Como já observamos, a sociedade está nos fazendo, e nós estamos ficando cada vez mais mecânicos, superficiais, insensíveis, indiferentes. Uma horrível matança está ocorrendo no Extremo Oriente e nos mantemos relativamente despreocupados Alcançamos grande prosperidade, mas essa prosperidade está nos destruindo, porque estamos nos tornando indiferentes e indolentes, porque nos mecanizamos, perdendo a estreita relação com todos os homens e todos os entes vivos; e parece-me importantíssimo fazermos esta pergunta: Que é relação — se de fato alguma relação existe — e que lugar compete, nessa relação, ao amor, ao pensamento e ao prazer?
(...) Consideremos esta questão da relação, questão realmente importantíssima, porque viver é estar em relação; e, considerando-a, indaguemos o que significa viver. Que é nossa vida, que exige relações profunda, seja com a esposa, o marido, os filhos, a família, seja com a comunidade ou outra entidade qualquer? Ao tratarmos desta questão, não podemos considerá-la fragmentariamente, porque, se tomamos uma única seção, uma única parte da totalidade da existência e procuramos resolver só essa parte, a questão não fica de modo nenhum resolvida. (...)Assim, pergunto se podemos, pelo menos por esta tarde (e espero por todo o resto de nossa vida) observar a vida sem estarmos fragmentados — como católicos, protestantes, especialistas do Zen, ou seguidores de determinado guru, determinado Mestre, coisa absurda e pueril. Temos um problema imenso, que é o de compreender a existência, de aprender a viver. E, como dissemos viver é relação, não há viver se não estamos em relação. E, como a maioria de nós não se acha em relação, no sentido mais profundo da palavra, tentamos identificar-nos com alguma coisa — com a nação, com um dado sistema ou filosofia, ou certo dogma ou crença. É isto que se observa no mundo: a identificação de cada indivíduo com alguma coisa — com a família ou com sua própria pessoa — e eu não sei o que significa "identificar-se consigo mesmo".
Esta existência fragmentária, separativa, leva inevitavelmente a várias formas de violência. Assim, se pudéssemos dispensar atenção ao problema das relações, teríamos talvez a possibilidade de resolver as iniquidades sociais, as injustiças, a imoralidade e aquela coisa terrífica chamada "respeitabilidade", que o homem sempre cultivou. "Ser respeitável" é ser moral em conformidade com uma coisa verdadeiramente imoral. Em tais condições, há alguma espécie de relação? Relação significa estar em contato profundamente, fundamentalmente, com a natureza, com outro ente humano — estar em relação, não de sangue, como membro de uma família, ou como marido e mulher, pois isso dificilmente pode chamar-se "estar em relação". Para compreender a natureza desta questão, temos de considerar outro ponto, ou seja o mecanismo da formação de imagens, da criação de uma ideia, de um símbolo. Quase todos nós temos imagens acerca de nós mesmos e a imagem de outrem; temos tais imagens, nas relações. Tendes vossa imagem do orador, e o orador, como não vos conhece, não tem imagem nenhuma de vós. Mas, quando conhecemos uma pessoa intimamente, dela já formamos uma imagem; a própria intimidade implica a imagem que tendes da pessoa — a esposa tem uma imagem do marido, e este tem uma imagem dela. E há a imagem da sociedade, e as imagens que temos acerca de Deus, da verdade, de tudo.
Como se origina essa imagem? E, se ela existe — e ela existe, pode-se dizer, em todas as pessoas — como é então possível haver qualquer relação real? Relação significa estar profundamente em contato um com outro. Dessa relação pode nascer a cooperação, o trabalhar juntos, fazer coisas juntos. Mas, se há alguma imagem — eu com uma imagem de vós, e vós com uma imagem de mim — que relação pode haver, a não ser a relação de uma ideia, de um símbolo, de uma certa memória, que se torna a imagem? Estão essas imagens em relação, e é nisso que consistem as relações? Pode haver amor, no verdadeiro sentido desta palavra (não em conformidade com os sacerdotes ou em conformidade com os teólogos, ou em conformidade com os comunistas ou esta ou aquela pessoa), pode haver efetivamente esse sentimento de amor quando as relações são puramente conceituais, entre imagens, e não relações reais? Só pode haver relação entre os entes humanos quando aceitamos o que é, e não o que deveria ser. Estamos sempre vivendo no mundo das fórmulas, dos conceitos, que são imagens do pensamento. Pode, pois, o pensamento, o intelecto, estabelecer relações corretas Pode a mente, o cérebro, com todos os seus instrumentos de autoproteção, formados através de milhões de anos — pode esse cérebro, que é inteiramente reação da memória e do pensamento estabelecer relações corretas entre os seres humanos? Que lugar compete à imagem, ao pensamento, nas relações? Há realmente lugar para eles?
(...)Ora, que são relações? Temos, de fato, alguma espécie de relação? Vivemos tão fechados, tão absorvidos em proteger-nos, que nossas relações se tornaram apenas superficiais, sensuais, aprazíveis. Se nos examinarmos em silêncio (não de acordo com Freud ou Jung ou outro especialista), se observarmos a nós mesmos tais como realmente somos, talvez possamos descobrir o quanto estamos a isolar-nos todos os dias, a erguer em torno de nós muralhas de defesa, de medo. Olhar a nós mesmos é mais importante e de maior necessidade do que nos observarmos de acordo com um especialista. Se vos olhais de acordo com Jung ou Freud, ou Buda, ou outrem, estais a olhar-vos com olhos alheios. Isso estamos sempre fazendo; para olhar, já não dispomos de nossos próprios olhos, e eis porque estamos perdendo a beleza que há em olhar.
Pois bem; quando vos olhais diretamente, não descobris que vossas atividades diárias (vossos pensamentos, vossas ambições vossa agressividade, vossa constante ânsia de ser amado e de amar, a constante tortura do medo, a agonia do isolamento), não descobris que essas coisas são fortemente separativas e causadoras de profundo isolamento? E, nesse profundo isolamento, que relação podeis ter com outro, com esse outro que também se isola com sua ambição, sua avidez, sua avareza, sua ânsia de domínio, de posse, de poder, etc.? Eis, pois, duas entidades chamadas entes humanos a viverem em seu próprio isolamento, a gerarem filhos, etc., mas sempre no isolamento. E a cooperação entre essas duas entidades isoladas torna-se mecânica; alguma cooperação, entretanto, é necessária entre eles, para que possam viver, ter família, trabalhar num escritório ou numa fábrica mas eles permanecem sempre entidades isoladas, com suas crenças e dogmas, suas nacionalidades — bem conheceis todas as coisas de que o homem se cerca para isolar-se dos demais O isolamento, portanto, é, essencialmente, o fator do estado de "não relação". E nas pseudo-relações desse isolamento, o prazer se torna da máxima importância.
Pode-se ver como, em todo o mundo, o prazer se está tornando cada vez mais exigente, mais insistente, porque todo prazer — se o observais atentamente — é um processo de isolamento; e esta questão do prazer precisa ser examinada no contexto das relações. O prazer é produto do pensamento, não? Houve prazer numa coisa que ontem experimentastes, na beleza ou na percepção sensitiva, ou no excitamento dos sentidos ou do sexo. Pensais nessas coisas, formais uma imagem daquele prazer ontem experimentado Eis como o pensamento sustenta e dá nutrição à coisa que ontem chamastes deleitável. E, assim, o pensamento exige, hoje, a continuação daquele prazer. Quanto mais pensais na experiência que tivestes e que por um momento vos deleitou, tanto mais o pensamento lhe dá continuidade, na forma de prazer e de desejo. E que relação tem isso com a questão fundamental da existência humana: Como estamos relacionados? Se nossa relação é produto do prazer sexual, ou do prazer derivado da família, da propriedade, do domínio, do controle, do medo de nos vermos desprotegidos, privados de segurança interior e, por conseguinte, sempre a buscar o prazer — então que lugar compete ao prazer nas relações? A exigência de prazer destrói todas as relações, sejam sexuais, sejam de outra espécie. E, se bem observarmos, veremos que todos os nossos chamados "valores morais" baseiam-se no prazer, embora o disfarcemos com a "virtuosa" moralidade de nossa respeitável sociedade.
Assim, quando nos interrogamos, quando olhamos fundo em nós mesmos, percebemos essa atividade de auto-isolamento, esse "eu", esse "ego", a erguer defesas em torno de si, e essas próprias defesas são o "eu". Este "eu" é isolamento, é ele que produz fragmentos, que produz o "olhar" que se fragmenta em pensador e pensamento. Assim, que lugar compete ao prazer, que é produto de uma lembrança sustentada e nutrida pelo pensamento — o pensamento que é sempre velho, e nunca livre? Que tem a ver esse pensamento, que concentrou sua existência no prazer, com as relações? Fazei a vós mesmos esta pergunta, não vos limiteis a ouvir as palavras deste orador — que amanhã já não estará aqui. Vós tendes de viver vossa própria vida e por conseguinte, o orador é inteiramente sem importância. O importante é fazerdes a vós mesmos estas perguntas, e, para fazê-las, deveis ser ardorosos, estar inteiramente dedicados à investigação. Porque só ao manifestardes esse ardor, essa determinação, estais vivendo, só quando sois profundamente aplicados, a vida desabrocha, tem significado, tem beleza. Deveis interrogar-vos: É ou não é um fato que estamos vivendo na dependência de uma imagem, de uma fórmula, de um fragmento que nos está isolando? Não foi por causa desse isolamento que o medo, com sua dor e prazer (produtos do pensamento), se tornou existente? Tenta então aquela imagem identificar-se com algo que seja permanente com Deus, com a verdade, com a nação, a bandeira, etc.
Assim, se o pensamento é velho (e ele é sempre velho e, por conseguinte, nunca é livre), como pode ele compreender as relações? As relações estão sempre no presente, no presente vivo (não no passado morto, da memória, das lembranças, do prazer e da dor), as relações estão ativas agora; "estar em relação" significa justamente isso. Ao olhardes para outra pessoa com olhos cheios de afeição, de amor, estabelece-se uma relação imediata (...) Mas, se o pensamento se intromete, então essa relação se converte em imagem. Assim, pergunta-se: Que é o amor? O amor é prazer? O amor é desejo? É o amor a lembrança de uma multiplicidade de coisas que formastes e conservastes — a respeito de vossa esposa, de vosso marido, de vosso próximo, da sociedade da comunidade, de vosso Deus? Pode-se chamar a isso amor?
Se o amor é produto do pensamento (como de fato é, na maioria dos casos), então esse amor está fechado entre cercas, emaranhado na rede do ciúme, da inveja, do desejo de dominar, de possuir e ser possuído, da ânsia de ser amado e de amar. Pode, então, haver amor a um e amor a todos? Se amo um, destruo o amor para com outros? E como, para a maioria de nós, o amor é prazer, companhia, conforto, segregação na família e o sentimento de segurança que nela se encontra — existe, aí, realmente amor? Pode um homem que está acorrentado à família amar o seu próximo? Podeis discorrer teoricamente acerca do amor, ir à igreja para amar a Deus (o que quer que isso signifique) e, no dia seguinte, ir para o trabalho e destruir o vosso próximo — porque estais em competição com ele, ambicionando o seu cargo, as suas posses, e desejando melhorar a vós mesmos, comparando-vos com ele. Assim, quando, dentro em vós existe essa atividade, da manhã à noite, e mesmo durante o sono, em sonhos, podeis estar em relação? Ou relação é coisa de todo diferente?
Só pode haver relação quando há total abandono do "eu", do "ego". Quando não existe "eu", estais então em relação; nesta, não há separação de espécie alguma. Provavelmente, nunca experimentamos esse estado de total negação (não intelectual, porém real), de total cessação do "eu". E talvez seja esse estado que a maioria de nós está buscando, sexualmente ou pela identificação com uma coisa superior. Todavia, esse processo de identificação com uma coisa superior deriva do pensamento; e o pensamento é sempre velho (como o "eu", o "ego", ele pertence ao passado). Apresenta-se, assim, a questão: Como é possível abandonar de todo esse processo isolante, esse processo que se centraliza no "eu"? Como é possível isso? (...)Como pode o "eu", cujas atividades diárias são motivadas pelo medo, pela ansiedade, pelo desespero, a tristeza, a confusão e a esperança — como pode esse "eu" que se separa de outro pela identificação com Deus, com seu condicionamento, sua sociedade, suas atividades morais e sociais, com o Estado — morrer, desaparecer, para que o ente humano possa estar em relação? Porque, se não estamos em relação, iremos viver em guerra uns com os outros. Poderá não haver matança mútua, porque isso se está tornando muito perigoso, a não ser, talvez, em terras muito longínquas. Como podemos viver de modo que não haja separação, de modo que possamos cooperar realmente?
Há tanta coisa por fazer neste mundo — acabar com a pobreza, viver com felicidade, viver deleitosamente em vez de viver na agonia e no medo, edificar uma sociedade de espécie completamente diferente, com uma moralidade superior. Isso, porém, só se tornará possível quando a moralidade da atual sociedade for totalmente negada. Há tanto que fazer, e que não poderá ser feito enquanto estiver em funcionamento o processo de isolamento Falamos do "eu", do "meu", e do "outro"; "o outro" está do outro lado do muro, e o "eu" e o "meu" deste lado. Como pode, pois, essa essência da resistência, que é o "eu" ser totalmente abandonada? Porque esta é realmente a questão mais importante, em todas as relações — já que percebemos que a relação entre imagens não é relação nenhuma e que, quando existe tal qualidade de relação, há necessariamente conflito e estamos sempre em guerra uns com os outros.
(...)Não sei se já vistes o que significa ter uma mente totalmente vazia. Vós tendes vivido num espaço criado pelo "eu" (um espaço limitadíssimo). O espaço que o "eu" (o processo de isolamento) criou entre uma pessoa e outra, é esse o único espaço que conhecemos, o espaço entre ele próprio e a circunferência (a fronteira que o pensamento criou). Nesse espaço é que vivemos; nele há divisão. Dizeis: "Se abandono a mim mesmo, ou se abandono o centro que é o "eu", ficarei vivendo num vácuo." Mas, já alguma vez abandonastes o "eu", de fato, realmente de modo que dele não tenha ficado nenhum resquício? Já vivestes neste mundo nesse estado de espírito — no vosso trabalho com vossa esposa ou marido? Se alguma vez já vivestes assim, deveis saber que há um estado de relação em que o "eu" não existe, um estado que não é utópico, que não é coisa sonhada ou experiência mística, irracional, porém um estado possível: viver numa dimensão em que todos os entes humanos estejam relacionados.
Mas essa possibilidade só existe se compreendemos o que é o amor. E, para existirmos, para vivermos nesse estado, temos de compreender o prazer (sustentado pelo pensamento) e todo o seu mecanismo. Então, se poderá ver instantaneamente todo o complicado mecanismo que construímos para nós mesmos e em redor de nós. Não há necessidade de percorrermos todo o processo analítico, ponto por ponto. Toda análise é fragmentária e, por essa porta, não virá resposta nenhuma.
Existe este imenso e complexo problema da existência, com seus temores, ansiedades, esperanças, passageira felicidade e alegrias, mas a análise não pode resolvê-lo. O que o resolverá é abarcá-lo, no seu todo, num rápido lance de olhos. Só podemos compreender uma coisa quando a olhamos (não com o olhar prolongado exercitado, do artista, do cientista ou do homem que se exercitou para "olhar"), só podemos compreender uma coisa quando a olhamos com toda a atenção, quando a vemos, em seu conjunto, num relance de olhos. E, assim, vos sentireis livres. Estareis então fora do tempo. O tempo se deterá e, por conseguinte, terá fim o sofrer. O homem entregue à amargura ou ao medo não está em relação. Como pode um homem ambicioso de poder estar em relação? Ele poderá ter família, dormir com sua mulher, mas não está em relação. Quem compete com outro não está em nenhuma relação. E toda a nossa estrutura social, com sua moralidade, se baseia na competição. Achar-se em relação, fundamental e essencialmente, significa a cessação do “eu”, gerador de separação e do sofrimento.
Krishnamurti — 25 de abril de 1968 – Onde está a Bem-aventurança