Justamente porque o ego, a alma e o Eu (Self) podem
estar presentes ao mesmo tempo, não será difícil entender o sentido verdadeiro
de “ausência do ego”[1]
– expressão que tem causado imensa confusão. Ausência do ego não significa a
ausência de um eu (self) funcional (o que seria próprio de um psicótico e não
de um sábio); significa que não estamos mais exclusivamente identificados com
aquele eu.
Um dos muitos motivos de não sabermos lidar com a
noção de “ausência do ego” é que desejamos que nossos “sábios sem ego”
satisfaçam às nossas fantasias relativas a “santidade” ou “espiritualidade”, o
que, habitualmente, significa que essas pessoas estejam mortas do pescoço para
baixo, livres das vontades ou desejos da carne, eternamente sorridentes.
Desejamos que esses santos não passem por todas as coisas que nos incomodam –
dinheiro, comida, sexo, relacionamentos, desejos. “Sábios sem ego” estão “acima
de tudo isso” – assim desejamos. Queremos cabeças que falem. Acreditamos que a
religião bastará para livrá-los de todos os instintos básicos, de todas as
formas de relacionamento, considerando a religião, não como orientação para
viver a vida com entusiasmo, mas, sim, como guia para evitá-la, reprimi-la,
negá-la, fugir dela.
Em outras palavras, o homem típico espera que o
sábio espiritual seja “menos que uma pessoa”, de alguma forma liberto dos
impulsos confusos, difusos, complexos, pulsantes, compulsivos, que guiam a
maior parte dos seres humanos. Esperamos que nossos sábios sejam a ausência de tudo o que nos impulsiona. Queremos que não sejam
sequer tocados por todas as coisas que nos atemorizam, que nos confundem, que
nos atormentam, que nos atordoam. É a essa ausência, a essa falta, a esse “menos
que uma pessoa” que, frequentemente, chamamos “sem ego”.
Entretanto, “sem ego” não significa “menos que uma pessoa”; significa “mais que uma pessoa”. Não pessoa menos,
mas pessoa mais – isto é, todas as qualidades normais da pessoa mais algumas transpessoais. Pensemos nos
grandes iogues, santos e sábios – de Moisés a Cristo, a Padmasambhava. Não
foram desfibrados maneirosos, mas dinâmicos e instigantes – desde o episódio
dos vendilhões do Templo até a imposição de novos rumos a nações inteiras. Lidaram
com o mundo em seus próprios termos, não em termos de uma piedade melosa;
muitos deles provocaram revoluções sociais significativas, que se estenderam
por milhares de anos. E assim fizeram, não porque tivessem evitado as dimensões
físicas, emocionais e mentais da humanidade, e o ego, que é o veículo de todas
elas, mas porque as assumiram com tal garra e intensidade que sacudiram as
próprias fundações do mundo. Indiscutivelmente, estavam também intimamente
ligados com a alma (o psiquismo mais profundo) e o espírito (o Eu informe) –
fonte última de sua força – mas expressaram essa força e tiraram dela
resultados concretos, exatamente porque assumiram, decididamente, as dimensões
menores através das quais ela poderia expressar-se de modo a ser sentida por todas
as pessoas.
Esses grandes mobilizadores e agentes de mudança não
foram egos pequenos; foram, na mais completa acepção do termo, grandes egos,
justamente porque o ego (veículo funcional do domínio da mente) pode existir e
de fato existe com a alma (veículo do sutil) e o Eu (veículo do causal). Na
mesma medida em que esses grandes mestres mobilizaram o domínio da mente, eles
mobilizaram o próprio ego, porque o ego é o veículo desse reino. Entretanto,
não se identificavam meramente com seu ego (isso seria narcisismo);
simplesmente perceberam seu ego conectado a uma fonte Kósmica[2]
radiante. Os grandes iogues, santos e sábios conseguiram tanto, exatamente
porque não foram tímidos bajuladores, mas grandes egos ligados ao seu Eu
superior, animados pelo puro Atman (o puro Eu – eu[3])
que é um com Brahman; abriram a boca e o mundo estremeceu, caiu de joelhos e
pôde ver face a face o Deus radioso.
Santa Teresa não foi uma grande contemplativa? Sim,
e Santa Teresa foi a única mulher que reformou uma tradição monástica inteira
(pensemos nisso). Gautama Buda sacudiu a Índia nos seus fundamentos. Rumi,
Plotino, Bodhidharma, Lady Tsogyal, Lao Tsé, Platão, o Baal Shem Tov – estes
homens e mulheres deram início a revoluções no mundo que duraram centenas, às
vezes milhares de anos – coisa que nem Marx, nem Lenin, nem Locke, nem
Jefferson, poderiam afirmar ter conseguido. E não agiram assim porque
estivessem mortos do pescoço para baixo. Não, eles eram fantasticamente,
divinamente grandes egos, ligados profundamente ao psíquico, que estava
diretamente ligado a Deus.
Existe certa verdade na noção do transcender o ego: não significa
destruir o ego, mas, sim, conectá-lo a alguma coisa maior. Como afirma
Nagarjuna[4],
no mundo relativo, atman[5]
é real; no absoluto nem atman nem anatman[6]
são reais. Assim, em nenhum caso annatta[7]
corresponde a uma descrição correta da realidade. O pequeno ego não se evapora;
permanece como o centro funcional da atividade no domínio convencional. Como eu
disse, perder esse ego significa tornar-se um psicótico, não um sábio.
“Transcender o ego”, significa, pois, em verdade, transcender mas incluir o ego num
envolvimento mais profundo e mais elevado, primeiro na alma ou psiquismo mais
profundo, depois na Testemunha ou Eu superior e, então, após a absorção nos
níveis precedentes, envolver-se, incluir-se e abraçar-se na radiância do Um Sabor.[8]
E isto não significa, portanto, “livrar-se” do pequeno ego, mas, ao contrário,
habitar nele plenamente, vivê-lo com entusiasmo, usá-lo como veículo
necessário, através do qual as grandes verdades podem ser transmitidas. Alma e
espírito incluem o corpo, as emoções e a mente; não os eliminam.
Grosseiramente, podemos dizer que o ego não é uma
obstrução ao Espírito, mas uma radiosa manifestação do Espírito. Todas as Formas
não são senão o Vazio, inclusive a forma do próprio ego. Não é necessário
livrar-se do ego, mas, simplesmente, vivê-lo com certa intensidade. Quando a
identificação transborda do ego no Kosmos em geral, o ego descobre que o Atman
individual é, de fato, da mesma espécie de Brahman. O Eu superior não é, em
verdade, um pequeno ego, e, assim, no
caso de estarmos presos ao nosso pequeno ego, a morte e a transcendência são
necessárias. Os narcisistas são, simplesmente, pessoas cujos egos não são ainda
suficientemente grandes para abraçar o Kosmos inteiro e, para compensar, tentam
tornar-se o próprio centro do Kosmos.
Não queremos que nossos sábios tenham grandes egos;
sequer desejamos que exibam qualquer característica evidente. Sempre que um
sábio se mostra humano – a respeito de dinheiro, comida, sexo, relacionamentos
– sentimo-nos chocados, porque
estamos planejando fugir inteiramente da vida, e o sábio que vive a vida nos
ofende. Queremos estar fora, queremos ascender, queremos escapar, e o sábio que
assume a vida com prazer, vive-a totalmente, pega cada onda da vida e surfa
nela até o fim – nos perturba e nos assusta intensamente, profundamente, porque
significa que nós, também, deveríamos assumir a vida com prazer, em todos os
níveis, e não simplesmente fugir dela numa nuvem etérea, luminosa. Não queremos
que nossos sábios tenham corpo, ego, impulsos, vitalidade, sexo, dinheiro,
relacionamentos ou vida, porque essas são coisas que habitualmente nos torturam
e queremos vê-las longe de nós. Não queremos surfar as ondas da vida, queremos
que as ondas desapareçam. Queremos uma espiritualidade feita de fumaça.
O sábio completo, o sábio não-dual está aqui para
mostrar-nos o contrário. Geralmente conhecidos como “tântricos”, estes sábios
insistem em transcender a vida, vivendo-a. Insistem em procurar libertação no
envolvimento, encontrando o nirvana no meio do samsara[9],
encontrando a liberação total pela completa imersão. Passam com consciência
pelos nove círculos do inferno, certos de que em nenhum outro lugar encontrarão
os nove círculos do céu. Nada lhes é estranho porque nada existe que não seja Um Sabor.
Na verdade, o segredo consiste em estar inteiramente
à vontade no corpo e com seus desejos, com a mente e suas idéias, com o
espírito e sua luz. Assumi-los inteiramente, plenamente, simultaneamente, uma
vez que todos são igualmente manifestações do Um e Único Sabor. Vivenciar a
paixão e vê-la funcionar; penetrar nas idéias e acompanhar seu brilho; ser
absorvido pelo Espírito e despertar para a glória que o tempo esqueceu de
nomear. Corpo, mente e espírito, totalmente contidos, igualmente contidos, na
consciência eterna que é a essência de todo o espetáculo.
Na quietude da noite, a Deusa sussurra. Na luminosidade do dia, Deus amado brada. A vida pulsa, a mente imagina, as emoções ondulam, os pensamentos vagam. O que são todas estas coisas senão movimentos sem fim do Um Sabor, eternamente jogando com suas próprias manifestações, sussurrando mansamente a quem quiser ouvir: isto não é você mesmo? Quando o trovão ruge, você não ouve o seu Eu? Quando irrompe o raio, você não vê o seu Eu? Quando as nuvens deslizam mansamente no céu, não é o seu próprio Ser ilimitado que está acena.
Na quietude da noite, a Deusa sussurra. Na luminosidade do dia, Deus amado brada. A vida pulsa, a mente imagina, as emoções ondulam, os pensamentos vagam. O que são todas estas coisas senão movimentos sem fim do Um Sabor, eternamente jogando com suas próprias manifestações, sussurrando mansamente a quem quiser ouvir: isto não é você mesmo? Quando o trovão ruge, você não ouve o seu Eu? Quando irrompe o raio, você não vê o seu Eu? Quando as nuvens deslizam mansamente no céu, não é o seu próprio Ser ilimitado que está acena.
Do livro One Taste de Ken Wilber
Tradução de Ari Raynsford
[1] No
original egolessness. (N. T.)
[2]
Kósmica – de Kosmos. Wilber reapresenta esta palavra em seu livro Sex, Ecology, Spirituality com a
seguinte observação: “Os Pitagóricos introduziram a palavra Kosmos que, normalmente, traduzimos como
‘cosmos’. Mas o significado original de Kosmos era a natureza de padrões ou de
processos de todos os domínios da existência, da matéria para a matemática para
o divino, e não simplesmente o universo físico, que é o significado usual das
palavras ‘cosmos’ e ‘universo’ hoje... O Kosmos contém o cosmos (ou
fisiosfera), bio (ou biosfera), noo (ou noosfera) e teo (teosfera ou domínio
divino)...” (N. T.)
[3]
Sri Ramana Maharshi frequentemente refere-se ao Self pelo nome “Eu – eu”, uma
vez que o Self é a autêntica Testemunha do eu. (N. T.)
[4]
Filósofo budista do Sec. II D.C., criador do Escola Madhyamika. (N. T.)
[5] No
Advaita Vedanta, atman é o princípio interior de todos os seres, idêntico a Brahman,
o Ser Universal que se desdobra em infinitas individualidades, as quais
aparecem e desaparecem no plano dos fenômenos (ou maya), sob o ciclo do samsara
(reencarnações), que, por sua vez, é efeito do karma (ação e reação). A identidade Atman/Brahman é expressa nos Upanishads
na famosa expressão Tat Tvam Asi -
Vós sois Isso. (N. T.)
[6] No
Budismo, anatman é a negação de
qualquer substrato último ou permanente no Universo. (N. T.)
[7] A
polaridade atman/anatman. (N. T.)
[8] No
original, One Taste – o estado de visão não-dual ou consciência da
unidade. (N. T.)
[9] O ciclo
contínuo de nascimento e morte. (N. T.)