[...] Para o homem religioso não existem teorias, nem crenças ou ideais de qualquer espécie, porque esse homem está sempre vivendo com plenitude, no presente ativo. Toda dependência de ideia, toda dependência de padrão, todo ajustamento a qualquer teoria ou crença, é coisa totalmente estranha à mente que busca o verdadeiro.
Ora, para a maioria de nós, certas palavras — tais como "morte", "sofrimento", "conflito'', "oração", "Deus" — estão "carregadas" de especial significado; têm para a mente extraordinária significação, e vivemos sob a influência dessas palavras. Elas nos moldam a vida, obrigando-nos a ajustar-nos, a imitar, a disciplinar-nos de acordo com certo e consagrado padrão. E esta manhã vou empregar uma dessas palavras — palavra talvez para muitos um pouco estranha; para outros, entretanto, que porventura leram algo sobre o assunto, terá ela alguma significação. É a palavra "meditação". A meditação, para a maioria dos Ocidentais, é algo de exótico, estranho, asiático; e para as pessoas, em geral, seja no Oriente, seja no Ocidente, é algo que se precisa praticar quando se deseja encontrar a Verdade ou Deus. Sobre isso vou falar, porque, para mim, uma vida sem meditação é uma vida perdida. Se se desconhece o profundo significado e importância da meditação, torna-se muito superficial o viver de cada dia. Mas, para se compreender o conteúdo dessa palavra, e passar além da palavra, requer-se um pensar muito claro, e uma mente alertada, ativa.
Antes de entrarmos nesta questão da meditação, precisamos ter uma noção bem clara do significado da disciplina. Para a maioria de nós, disciplina supõe controle, ajustamento de nosso pensamento e atividade a um certo padrão "ideacional". Ajustar-se, reprimir, seguir, imitar — tudo isso está implicado na palavra "disciplina".
Peço-vos, agora, acompanhar-me muito atentamente, pois isto vai tornar-se muito difícil, árduo, e, se não me seguirdes bem de perto, ativando ao máximo a vossa mente, vos perdereis completamente no caminho. Necessitareis, com efeito, de vossa energia total, para seguirdes o que este orador vai dizer.
Sucede, com a maioria de nós, que nossa mente foi condicionada por meio de disciplina, moldada por inumeráveis influências, pensamentos, experiências, ações, de maneira que a disciplina se nos tornou uma quase segunda natureza. Começamos a disciplinar-nos na escola e do mesmo modo prosseguimos pelo resto da vida, ajustando-nos às exigências da sociedade, submetendo-nos ao padrão consagrado — moral e social — refreando-nos por medo, ajustando-nos à opinião pública, ao que consideramos correto, etc. Está condicionada nossa mente para buscar a segurança mediante disciplina e, apesar disso, pensamos que pela disciplina seremos capazes de descobrir o que é a Verdade. Mas, por certo, para descobrir o que é a Verdade, precisa o indivíduo estar livre de toda disciplina que lhe foi imposta ou que a si próprio impôs. Só pode verificar-se o descobrimento do verdadeiro quando se está livre de ajustamento e de qualquer espécie de medo; há, então, uma disciplina de natureza toda diferente. Já não é disciplina, no sentido de imitação, repressão ou ajustamento a padrão. E um movimento livre, pois não significa fazer algo pelo desejo de um certo resultado, ou por medo. Deve, pois, ficar claramente entendido que qualquer espécie de disciplina que conhecemos denota desejo de ajustar-nos, de pôr-nos em segurança, e que, atrás desse desejo, está o medo — o medo à insegurança, de não obter o que se deseja, de não descobrir a verdade final, etc. etc.
Outra coisa muito necessária é estarmos apercebidos de quanto estamos condicionados pela sociedade, pelas inúmeras experiências que temos tido — e isso significa que devemos estar totalmente apercebidos de nossa consciência integral, e não apenas de certas partes dela. "Estar apercebido" requer espaço para a observação — isto é, que haja em nossa mente espaço, de modo que possamos observar sem opinião, sem avaliação, sem conclusão. Em geral, nenhum espaço temos na mente, porque nos chegamos a tudo o que observamos com uma conclusão, uma ideia, uma opinião, um juízo, uma avaliação; condenamos, aprovamos ou justificamos o que vemos, ou com isso nos identificamos, de modo que nenhum espaço existe dentro do qual possamos observar.
Por favor, não façais disso uma teoria ou coisa que se tem de praticar, pois isso seria terrível, já que tudo o que se pratica se torna hábito. Infelizmente, quase todos vivemos numa série de hábitos, agradáveis ou desagradáveis — o que é extremamente destrutivo da inteligência. Pela observação de vós mesmos, percebereis a verdade ou a falsidade desta asserção.
Sabeis o que é aprender? Aprender — no genuíno sentido da palavra — não é adicionar. Não é acumular conhecimento se, depois, pelo observar, pelo experimentar, acrescentar o que se aprendeu antes. Quando só se trata de acumular conhecimentos e de adicioná-los ao que já se sabe, nunca há liberdade para observar; por conseguinte, não se está aprendendo. Compreendeis? Se não, discutiremos sobre isso, depois.
Por "percebimento", entendo um estado de vigilância em que não há escolha. Estamos simplesmente observando o que é. Mas ninguém pode observar o que é, se tem alguma ideia ou opinião a respeito do que vê, dizendo-o "bom" ou"mau", ou de outro modo o avaliando. A pessoa tem de estar totalmente apercebida dos movimentos de seu próprio pensamento, de seu próprio sentimento, tem de observar suas próprias atividades, tanto conscientes como inconscientes, sem avaliação. Isso requer mente alertada e ativa no mais alto grau. Mas, acontece que a mente da maioria de nós está embotada, semi-adormecida; só certas partes dela se acham ativas — as partes especializadas, pelas quais funcionamos automaticamente, pela associação, pela memória, tal como um cérebro eletrônico. A mente, para ser vigilante, sensível, necessita de espaço, no qual possa olhar as coisas sem nenhum fundo de conhecimentos prévios; e uma das funções da meditação é levar a mente a um extraordinário estado de alerta, atividade, sensibilidade.
Estais seguindo bem isto?
Estar vigilante é o indivíduo observar a própria atividade corporal, a própria maneira de andar, de sentar-se, os movimentos das próprias mãos; é ouvir as palavras que emprega, observar todos os seus pensamentos, todas as suas emoções, todas as suas reações. Inclui o percebimento do inconsciente com suas tradições, seu conhecimento instintivo, e o imenso sofrer que ele acumulou — não apenas o sofrer pessoal, mas também o sofrer humano. De tudo isso deveis estar apercebido; e não o podeis, se estais meramente a julgar, a avaliar, a dizer: "Isto é "bom", aquilo é "mau"; conservarei isto e rejeitarei aquilo" — já que todas essas coisas tornam a mente embotada, insensível.
Do percebimento nasce a atenção. A atenção deflui do percebimento, quando nesse percebimento não há escolha; quando não se está escolhendo nem experimentando pessoalmente (sobre isto falarei mais adiante), porém simplesmente observando. E para se poder observar, necessita-se, na mente, de uma vasta porção de espaço. A mente que está toda enredada na ambição, na avidez, na inveja, na busca do prazer e do auto-preenchimento — com os inevitáveis pesares, dores, desespero, e aflição, que ocasionam — não dispõe de espaço, para observar. Está repleta de seus próprios desejos, a dar voltas e mais voltas nas águas represadas de suas próprias reações. Não podeis estar atento, se vossa mente não é altamente sensível, penetrante, racional, lógica, sã, vigorosa, sem a mais leve sombra de neurose. Deve a mente explorar todos os seus próprios recessos, sem deixar um só por descobrir; porque, se houver um só recesso mental que temermos investigar, daí brotará a ilusão.
O cristão que vê Cristo em sua meditação, em sua contemplação, pensa ter alcançado um estado maravilhoso, mas suas visões são meras "projeções" de seu próprio condicionamento. O mesmo acontece com o hinduísta que, sentado à margem de um rio, entra num estado de êxtase. Tem, também ele, visões nascidas de seu próprio condicionamento, e o que vê, por conseguinte, não constitui uma verdadeira experiência religiosa. Mas, pelo percebimento, pela observação livre de escolha — a qual só é possível quando há na mente espaço para observar — dissolvem-se todas as formas de condicionamento e, então, já se não é hinduísta, nem budista, nem cristão, porque todas as ideias, crenças, esperanças e temores desapareceram definitivamente. Daí vem a atenção, não atenção aplicada a uma certa coisa, porém um estado de atenção em que não há "experimentador" e, por conseguinte, não há experiência. Isto é de enorme importância e deve ser compreendido por todo aquele que se está realmente esforçando por descobrir o que é a Verdade, o que é religião, o que é Deus, o que existe além das coisas construídas pela mente.
No estado de atenção, não há reação: a pessoa está, simplesmente, atenta. A mente explorou e compreendeu todos os seus próprios recessos, todos os inconscientes motivos, exigências, preenchimentos, ânsias, pesares; por conseguinte, no estado de atenção há espaço, há vazio; não há experimentador a experimentar alguma coisa. Achando-se vazia, a mente não está "projetando", buscando, desejando, esperando. Compreendeu todas as suas próprias reações e "respostas", sua profundidade, sua superficialidade, e nada mais resta. Não há divisão entre o observador e o que ele observa. No momento em que há separação entre "observador" e "coisa observada", há conflito que é o próprio intervalo entre ambos. Já examinamos isso, e vimos quanto é importante estarmos completamente livres de conflito.
Isso talvez seja um pouco mais complicado do que as coisas que estais acostumados a ouvir, pois estou falando sobre a meditação — algo que transcende todas as palavras.
Ora, é só no estado de atenção que podeis ser vossa própria luz, e então todas as ações de vossa vida diária nascerão dessa luz — todas as ações, quaisquer que sejam: exercer o emprego, cozinhar, lavar, remendar roupas, etc. Todo esse mecanismo constitui a meditação, e sem ela a religião nada significa, torna-se mera superstição explorada pelos sacerdotes.
Para a maioria das pessoas que praticam o que chamam "meditação", esta é uma espécie de auto-hipnose. Tendo tomado "lições de meditação" ou lido livros sobre a matéria, põem se sentadas, de pernas cruzadas e percorrem toda a série de "habilidades" que aprenderam — respirar com a máxima regularidade, controlar os pensamentos, etc. etc. Há muitos sistemas de meditação, mas se compreenderdes um só deles, tereis compreendido todo o seu conjunto, porque todos eles visam ao autocontrole ou à auto-hipnose, como meios de se alcançarem certas experiências consideradas maravilhosas, porém, em verdade, ilusórias. Essa forma de meditação é de todo em todo infantil, sem nenhuma significação. Podeis praticá-la durante dez mil anos, e nunca descobrireis o que é verdadeiro. Podeis ter visões, "experimentar" o que pensais ser Deus, a Verdade, etc., mas tudo será coisa "projetada" por vossas próprias reações, por vosso próprio condicionamento e, por conseguinte, sem significação alguma.
Mas, eu estou falando de coisa completamente diferente: O libertar da mente, pela intensa vigilância, de todas as suas reações, e produzir, assim, sem o exercício de controle, de vontade deliberada, um estado de quietude interior. Só a mente muito ardorosa, altamente sensível, pode achar-se verdadeiramente quieta, e não aquela que está paralisada pelo medo, pelo sofrimento, pela alegria, ou entorpecida pelo ajustamento a inumeráveis exigências sociais e psicológicas.
A verdadeira meditação é inteligência em sua forma mais elevada. Não é questão de se ficar sentado a um canto, de pernas cruzadas e olhos fechados, ou ficar de pernas para o ar, apoiado na cabeça, ou o que mais seja. Meditar é estar completamente apercebido, quando se está passeando, quando viajando de ônibus, trabalhando no escritório ou na cozinha; é estar o indivíduo completamente apercebido das palavras que emprega, dos gestos que faz, de sua maneira de falar, de comer, seu costume de empurrar os outros. Estar apercebido, sem escolha, de tudo o que se passa em torno de vós e dentro em vós — isto é meditação. Se dessa maneira ficardes apercebido da incessante propaganda política e religiosa, das numerosas influências que vos rodeiam, vereis com que rapidez sereis capaz de compreender cada influência com que entrardes em contato, e dela vos libertar.
Mas, são raríssimos os que vão tão longe, já que quase todos estamos condicionados por nossas tradições. Isso é verdade, principalmente para quem vive na Índia, onde é absolutamente necessário fazer certas coisas — controlar completamente o corpo e, consequentemente, controlar completamente o pensamento. Por meio desse controle, espera-se alcançar o Supremo, mas o que for alcançado será o resultado da própria auto-hipnose de cada um. No mundo cristão faz-se mesma coisa, de maneira diferente. Mas, eu me estou referindo a algo que requer inteligência em sua mais elevada forma.
Ora, a mente que deseja experiência não é inteligente; e, se observardes, vereis que a maioria de nós deseja experiência. Cansados dos rotineiros "desafios e respostas" que há tanto tempo conhecemos, apelamos para a chamada meditação, ou ingressamos em tal ou qual igreja, esperando que por esse ou qualquer outro meio misterioso, iremos ter novas e mais profundas experiências. Mas a mente que se acha no estado de "desejo de experiência" — por mais exaltada que seja tal experiência — não é inocente; por conseguinte, não há isso que se chama "experiência religiosa". Só a mente que está desejando, buscando, tateando, ansiosa, desesperada — só essa pede experiência. A mente que é altamente sensível, já que é a luz de si própria, não tem desejo nem necessidade de experiência, essa mente, por conseguinte, se acha num estado de inocência; e só a mente inocente e altamente sensível pode estar quieta. Quando a mente está totalmente quieta, porque cada uma de suas partes é viva, sensível, acha-se então num estado de meditação; e daí pode prosseguir, até descobrir o que é a Verdade. Mas, enquanto não se achar nesse estado de meditação, toda tentativa que a mente faça para descobrir o que é a Verdade, o que é Deus, o que é "essa coisa" existente além dela própria (da mente) — será pura perda de tempo, e conducente à ilusão. O achar-se nesse estado de meditação requer extraordinária energia; e vós tereis pouquíssima energia, enquanto estiverdes em conflito, enquanto tiverdes os problemas do desejo. Por essa razão é que, como tenho dito desde o começo, todo conflito, toda exigência de preenchimento, com sua esperança e seu desespero, têm de ser compreendidos e dissolvidos. A mente, então, não tem ilusões, porque já não tem o poder de criar ilusões.
A mente que está toda enredada em problemas, no medo, no desespero, no desejo de preenchimento próprio, está sempre criando a ilusão e, por conseguinte, se encontra num estado de neurose. Esta é a primeira coisa que é necessário compreender. Mas, quando a mente é altamente sensível e está livre de todas as ilusões, então, nessa claridade, nessa sensibilidade, há inteligência; e só então pode a mente estar quieta, completamente e sem esforço algum. Esse estado de quietude completa e livre de esforço é o começo da meditação.
Assim, pois, há primeiramente um percebimento, uma observação sem escolha, de todos os vossos pensamentos e sentimentos, de tudo o que fazeis. Nasce, daí, um estado de atenção sem fronteiras, mas em que a mente pode concentrar-se; e desse estado de atenção resulta a quietude mental. E quando a mente está totalmente quieta, sem nenhuma ilusão, sem qualquer espécie de auto-hipnose, vem à existência algo que não foi formado pela mente.
Apresenta-se-nos agora a dificuldade de expressar em palavras algo que é inexprimível — e é esse algo que estamos buscando. Todos desejamos encontrar algo transcendental, fora deste mundo de agonias, de tirania, de força e subjugação, mundo tão indiferente, empedernido e brutal. Com nossas ambições, nossos nacionalismos, nossa diplomacia, nossas mentiras, estamos continuamente precipitando os horrores da guerra; e, cansados de tudo isso, desejamos a paz. Desejamos encontrar em alguma parte um estado de tranquilidade, de bem-aventurança e, assim, inventamos um Deus, um Salvador, ou um outro mundo que nos ofereça a paz que desejamos, contanto que façamos ou creiamos em certas coisas. Mas uma mente condicionada, por mais que deseje a paz, só provoca a própria destruição; é o que se observa no mundo atual. Todos os políticos do mundo, tanto da esquerda como da direita, usam a palavra "paz", mas esta palavra nada significa. Falo, porém, de algo existente muito além de tudo isso.
A meditação, pois, é o esvaziar da mente de todas as coisas que juntou. Se o fizerdes — talvez não desejeis fazê-lo, mas, sem embargo, escutai! — vereis abrir-se um extraordinário espaço em vossa mente, e esse espaço é liberdade. Assim, deveis exigir a liberdade justamente no começo, e não ficar aguardando, esperando alcançá-la no fim. Deveis buscar o significado da liberdade em vosso trabalho, em vossas relações, em tudo o que fazeis. Vereis, então, que meditação é criação.
"Criação" é uma palavra que empregamos tão levianamente, tão facilmente! Um pintor espalha umas poucas tintas sobre uma tela e por causa disso se põe num extraordinário estado de entusiasmo. Trata-se de seu preenchimento, de seu meio de "expressão"; do "mercado" em que irá ganhar dinheiro ou reputação. E a isso ele chama "criação"! Todo escritor "cria'', e há escolas onde se ensina a escrever "criadoramente"; mas nada disso tem a mínima relação com a criação. Tudo é só reação condicionada de uma mente que vive em determinada sociedade.
A criação a que me refiro é coisa inteiramente diferente. É a mente no estado de criação. Ela poderá expressar ou deixar de expressar tal estado. A expressão é de muito pouco valor. Aquele estado de criação não tem causa e, por conseguinte, a mente que nele se acha está, a cada momento, morrendo e vivendo e amando e sendo. Tudo isso é meditação.
Desejais discutir sobre isto?
Krishnamurti, Saanen, 24 de julho de 1963,
Experimente um novo caminho