O estado de inocência e de inteligência desperta
[...] PERGUNTA: A inocência que tendes descrito difere da meditação?
KRISHNAMURTI: Em algumas de nossas reuniões, aqui, tive ocasião de falar a respeito do estado de “inocência”. Disse que a mente inocente é aquela que não está aprisionada na estrutura psicológica da sociedade e, por conseguinte, se acha livre de conflito; sobre ela não pesam as lembranças de coisas passadas — o que, entretanto, não significa um estado de amnésia. Já não a prende nenhuma técnica, embora a técnica seja necessária. E o interrogante deseja saber se há diferença entre esse “estado de inocência” e a meditação, sobre que estive falando esta manhã.
Uma de nossas dificuldades, assim me parece, é que nos apoderamos de uma palavra, tal como “inocência”, ou “imensidade”, ou “criação”, e depois procuramos relacionar todas as coisas com essa palavra. Como já disse, a palavra não é a realidade. A palavra “meditação” não é a própria meditação; a palavra “inocência” não é o estado de inocência. Mas, quando existe esse estado de inocência, ele é também estado de meditação. Não podeis alcançar essa inocência enquanto fordes ambicioso, enquanto vossa mente for medíocre, enquanto estiverdes aprisionado na estrutura psicológica da sociedade e nada fordes senão uma técnica “corporificada”, como o somos na generalidade. Exercemos certa atividade, pois temos de ganhar o sustento, e pouco melhores somos do que máquinas, por mais talentosos, sagazes e sutis que sejamos. Uma mente “maquinal” não é uma mente “inocente”. Os computadores, os cérebros eletrônicos provavelmente são “inocentes”, mas são feitos de metais e não são entes vivos como nós. Com o tempo poderá ser inventada uma máquina com uma determinada espécie de vida própria — e talvez não estejamos muito longe disso. Mas, quando nos reduzimos ao ponto de funcionar como máquinas em nosso esforço tecnológico, nossa aquisição de saber, nosso acumular de experiência — assim não haverá inocência. A inocência é aquele estado no qual a mente é sempre jovem e fresca. A mente inocente nenhum medo tem da morte, nem de coisa alguma e está, portanto, livre do tempo.
PERGUNTA: Talvez possamos ficar nesse estado de inocência, ou meditação, enquanto despertos; mas que acontece quando dormimos?
KRISHNAMURTI: Estamos despertos durante o dia? Presumimos que sim. Achamo-nos despertos se deixamo-nos aprisionar em hábitos de pensamento, em atividades e condutas rotineiras? Se constantemente condenais, comparais, julgais, avaliais, ou vos considerais como pertencente a uma certa raça, nacionalidade, “cultura” ou religião — estais desperto? Se o hábito vos domina e, por conseguinte, não vos achais desperto durante o dia, o sono, nesse caso, é apenas uma continuação desse mesmo estado mental. Faz, então, muito pouca diferença se, fisicamente, estais dormindo ou acordado. Podeis frequentar assiduamente a igreja, recitar orações, ou cantar um mantra, como acontece na Índia, ou entregar-vos a qualquer das outras práticas como habitualmente fazem as chamadas pessoas religiosas; ou podeis repetir chavões (slogans), como os políticos, ou contemplar a vida do ponto de vista artístico; mas constitui qualquer dessas coisas um estado de inteligência desperta? Encontrar-se nesse estado de “inteligência desperta” é ser a luz de si mesmo. Não se tem então nacionalidade, nem igreja, nem Deus; não se depende da música, da pintura, da beleza das montanhas; não se depende da família, do marido, da mulher, dos filhos. E quando, interiormente, uma pessoa se acha desperta, que é então o sono? Que significação tem o sono quando tanto o consciente como o inconsciente se mantêm totalmente despertos?
É a pessoa embotada, envolvida em conflito, que sonha. Os sonhos são apenas sugestões do inconsciente. Conservando-nos atentos durante o dia, tudo observando, dentro e em redor de nós — mas não de um centro de julgamento ou condenação, se assim nos achamos, ao dormir, não sonhamos. Se quando estais desperto — tomando um ônibus, ouvindo um concerto, passeando a sós, conversando com amigos — percebeis, de imediato e sem reação, as sugestões ou mensagens do inconsciente; se todas as coisas que se passam interior e exteriormente são de pronto observadas, reconhecidas, compreendidas, então, ao dormirdes vossa mente estará quieta; e, porque está quieta, pode alcançar grandes profundidades. E vereis que esse estado de profundo silêncio durante o sono traz frescor, purificação, e, assim, o dia seguinte é um dia diferente, traz consigo algo novo. Mas tudo isso requer uma extraordinária percepção interior.
Krishnamurti, Saanen, 9 de agosto de 1962,
O homem e seus desejos em conflito