Percebimento passivo e sem escolha
Esta manhã desejo apreciar convosco um problema bastante complexo; mas, antes disso, e como já disse anteriormente, acho necessária uma certa dose de seriedade. Não a seriedade de uma “cara solene”, ou a da excentricidade, mas aquele intento impetuoso de “ir até o fim”, cedendo quando necessário, mas nunca se detendo. Desejo tratar esta manhã de um assunto que exige toda a vossa seriedade e atenção; o Oriente chama-o meditação, e não estou nada certo de o Ocidente entender o que esta palavra significa. Não estamos representando o Ocidente nem o Oriente; mas vamos tentar investigar o que é meditar, porque isso para mim é importantíssimo. Abarca a totalidade da vida, e não apenas um fragmento dela. Infelizmente, os mais de nós cultivamos o fragmento e nele nos tornamos altamente eficientes. Empreender o trabalho de desvendar os recessos obscuros da mente; explorar, sem visar a nenhum alvo ou fim; alcançar a total compreensão da mente integral e, quiçá, passar além — isso para mim é meditação.
Desejo proceder de maneira cautelosa, porquanto cada passo revela alguma coisa. E espero que nós — todos nós — não nos deixemos ficar no mero nível verbal ou no nível da análise intelectual, nem nos limitemos — emocional e sentimentalmente — a reunir uns poucos fragmentos de nosso agrado, mas, sim, com um certo grau de seriedade, caminhemos até o fim. E talvez se torne necessário prosseguirmos nisso, da próxima vez. Todos buscamos alguma coisa, não só no nível físico, mas também no nível intelectual e nos níveis mais profundos de nossa consciência. Estamos sempre em busca da felicidade, do conforto, da segurança, da prosperidade, e de certos dogmas e crenças em que a mente possa instalar-se confortavelmente. Se observardes vossa própria mente, vosso intelecto, vereis que está sempre buscando e nunca satisfeito, sempre esperando encontrar, de alguma maneira, satisfação permanente, eterna. Buscamos o bem-estar físico; e, infelizmente, em geral nos contentamos com os confortos físicos, um pouco de prosperidade, um pouco de saber, relações medíocres, etc. Se nos achamos insatisfeitos — e talvez alguns de nós, aqui, o estejamos — com as coisas físicas, tratamos de buscar confortos e garantias de ordem psicológica, interior, ou desejamos mais amplos horizontes intelectuais, mais saber. Esse buscar, esse indagar é explorado pelas religiões de todo o mundo. Os cristãos, os hinduístas, os budistas oferecem-nos os seus deuses, suas crenças, suas garantias, que a mente aceita e, por elas se tornando condicionadas, não mais busca. Desse modo é canalizado e explorado o nosso buscar. Se nos sentimos completamente desditosos, insatisfeitos com o mundo e com nós mesmos, com nossa falta de aptidões, procuramos então identificar-nos com algo maior, mais vasto. E quando encontramos algo que por ora nos satisfaz, logo nos vemos forçados a abandoná-lo e a empenhar-nos em nova busca.
Esse “mecanismo” de descontentamento, de nos apegarmos a uma dada coisa até que um abalo nos faz soltar dela, cria — não é verdade? — o hábito de seguir, o hábito de estabelecermos uma autoridade para nós mesmos — a autoridade das igrejas e dos vários sacerdotes, santos, sanções, etc., existentes no mundo inteiro.
Ora, a mente que está tolhida pela autoridade — seja a autoridade de uma religião, a autoridade da capacidade, da experiência ou do saber — nunca será livre para descobrir. Para descobrir, a mente tem de ser livre. E um de nossos imensos problemas é libertarmos a mente da autoridade. Não me refiro à autoridade do policial e da lei. Quem vai pela rua na contramão pode provocar acidentes, e quem infringe a lei está sujeito a ir para a cadeia. O furtar-se à autoridade, neste sentido — sonegar impostos, etc. — é proceder de maneira muito tola e absurda. Refiro-me à autoridade que nós mesmos criamos ou que nos é imposta pela sociedade, pela religião, pelos livros, etc., pelo nosso desejo de achar, de buscar.
Parece-me, pois, que uma das coisas essenciais, uma necessidade absoluta, é a mente libertar-se completamente do “senso” da autoridade. Isso é dificílimo, porquanto cada palavra, cada experiência, cada imagem, cada símbolo, deixa sua marca, i.e., conhecimento, que se torna nossa autoridade. Podeis furtar-vos à autoridade externa, mas cada um de nós tem sua autoridade própria, secreta, a autoridade que diz “sei”. A autoridade, o seguimento de um padrão, gera ação fragmentária. Pode uma pessoa ser muito proficiente na música ou noutra coisa qualquer, mas, de qualquer maneira, sua ação é sempre fragmentária. E estamos falando de uma ação total, na qual está incluído o fragmento. Essa ação total abrange o todo da vida, o todo físico-emocional-intelectual. É a ação que se verifica quando penetramos profundamente no inconsciente e descobrimos todos os arcanos de nossa mente, e quando a mente de lá emerge de todo purificada. Essa ação total é que é meditação.
Exige-se, pois, grande soma de valente trabalho, de penetração, para se descobrirem todos os caminhos laterais, todos os becos de autoridade (sic) que para nós mesmos estabelecemos, através dos séculos, e pelos quais estamos constantemente vagueando. Esta é uma das coisas mais difíceis: ser livre — esquecer tudo o que interiormente se sabe, proveniente de ontem; morrer para cada experiência que tivemos, agradável ou dolorosa. Pois é só então que a mente está livre para agir de maneira total.
Para tanto, requer-se percebimento sem escolha, um percebimento passivo em que se revelam todas as ânsias secretas, todos os secretos impulsos e desejos; em que a mente não escolhe, porém observa apenas. Quando escolhemos, nesse mesmo momento estabeleceu-se a autoridade e, por conseguinte, a mente já não é livre. Estar apercebido, interiormente, de cada movimento de pensamento, do significado de cada palavra, cada desejo; e não rejeitar ou aceitar, porém prosseguir, observando sem escolha — isso é que liberta a mente da autoridade. Só quando a mente está livre pode descobrir o que é verdadeiro e o que é falso, e não antes; essa liberdade não se encontra no fim, porém no começo. A meditação, por conseguinte, não é mecanismo de controlar, disciplinar, moldar a mente pelo desejo, pelo saber.
Espero estejais seguindo o que estou dizendo. Provavelmente algumas coisas serão novas para vós, e as rejeitareis. Aceitar ou rejeitar indica incapacidade de “seguir até o fim” o que outro está dizendo; e, uma vez que vos destes o incômodo de uma longa viagem até aqui, acho que seria absurdo dizerdes, simplesmente: “Ele tem razão” ou “Ele não tem razão”. Assim, tende a bondade de escutar para descobrir, não o que pensa a vossa mente, mas se o que este orador está dizendo é falso ou verdadeiro; para perceber o falso na verdade ou a verdade como verdade, como fato. Isso é impossível, se lestes algum livro sobre meditação ou sobre psicologia e estais agora comparando o que se está dizendo com o que sabeis. Pois nesse caso estais seguindo por uma linha lateral, não estais escutando. Mas, se escutardes, não com esforço, porém com o desejo de descobrir, encontrareis então uma certa alegria no escutar. O próprio ato de escutar o que é verdadeiro constitui a chave. Nada tendes de fazer senão escutar realmente; mas isso não significa identificar. Na meditação, não há identificação, não há imaginação.
Quando a mente começar a compreender o processo de seu próprio pensar, ver-se-á de que maneira o pensamento se torna autoridade; como o pensamento, baseando-se na memória, no conhecimento, na experiência, e o pensador, guiando o pensamento, se tornam autoridade. A mente, portanto, deve tornar-se apercebida de seus próprios pensamentos, dos “motivos” dos quais eles nasceram, de sua causa. E, nesse profundo investigar, vereis que a autoridade do pensamento deixa de existir. Temos, pois, de lançar os alicerces adequados, para erguermos o edifício da meditação. Evidentemente, qualquer forma de inveja — que é essencialmente comparação: vós tendes algo belo e eu não tenho; sois inteligente e eu não sou; tendes um certo dom e eu não o tenho — deve desaparecer de todo. A mente invejosa — invejosa de posses, invejosa de capacidades — não pode ir muito longe, e não o pode, tampouco, a mente ambiciosa. Em geral somos ambiciosos; e a mente ambiciosa está sempre desejando sucesso, preenchimento, não só no campo mundano, mas ainda no espiritual. A mente amadurecida não conhece sucesso nem insucesso.
Deve, pois, a mente ser livre, de todo — livre não apenas de maneira casual, fragmentária, porém totalmente livre. E isso também é dificílimo. Significa purificar a mente que há séculos vem sendo educada para competir, para desejar o sucesso.
Deveis saber que o libertar-se da inveja não é questão de tempo. Não é questão de nos libertarmos gradualmente da inveja, ou de criarmos o oposto e com ele nos identificarmos, ou de tentarmos uma integração com o oposto, porquanto tudo isso implica um mecanismo gradativo. Se sois ambicioso e estabeleceis o ideal da não ambição, então, para percorrerdes a distância e realizardes o ideal, necessitais de tempo. A meu ver, esse mecanismo denota absoluta falta de madureza. Quando vemos uma coisa claramente, ela cai por si. Perceber totalmente a inveja com tudo o que ela implica — e isso por certo não é muito difícil — não exige tempo. Se a olhardes, se estiverdes atento, da se vos revelará rapidamente; e percebê-la é desembaraçar-se dela.
É óbvio que a mente invejosa, ambiciosa, egocêntrica, não pode ver a plenitude da beleza; não pode conhecer o amor. Um homem pode ser casado, ter filhos, possuir casas e perpetuar o seu nome; mas a mente que é invejosa e ambiciosa não pode conhecer o amor. Ela conhece sentimento, emoção, apego; mas apego não é amor.
E se alcançardes aquele ponto, não apenas intelectual ou verbalmente, encontrareis a chama da paixão. A paixão é necessária. E, com essa chama da paixão, podem-se ver as montanhas e as longas encostas cobertas de verdes árvores, pode-se ver a miséria existente em toda a parte, as horríveis divisões que o homem criou, na sua ânsia de segurança; pode-se, então, sentir intensamente, não egocentricamente. Esta, portanto, é a base; e, lançada a base, a mente está livre; pode prosseguir — e talvez não haja mais prosseguir. Assim, a menos que essa totalidade se instale por inteiro na mente, todo buscar, todo meditar, todo seguir da palavra — não importa quem a tenha pronunciado — só conduz à ilusão, a visões falsas. A mente condicionada no cristianismo terá por certo visões de Jesus, mas estará vivendo em ilusões baseadas na autoridade; e essa mente, portanto, será muito limitada e estreita.
Quando se chegou até esse ponto, interiormente — o que interessa então é o momento imediato, não o depois-de-amanhã, não o mês vindouro. As palavras que estou empregando não exprimem a realidade; as palavras não são a coisa. E se estais meramente acompanhando o orador, não estais acompanhando a vós mesmo, interiormente. A meditação, pois, é essencial. Meditação não significa sentar-se de pernas cruzadas, respirando de certa maneira, repetindo frases ou observando determinada fórmula; tudo isso são artifícios, embora se possam obter os resultados que o sistema promete. Mas o que se obtiver será um fragmento e, portanto, coisa inútil. É possível, decerto, ver num relance todo o mecanismo da disciplina, do seguír, do ajustamento, e abandoná-lo imediatamente, já que foi compreendido completamente. Mas a compreensão imediata é impedida quando a mente é preguiçosa. Em geral, nós somos indolentes; quer dizer, preferimos métodos, sistemas que nos indiquem o que devemos fazer.
Há certa forma de indolência que é muito boa: a que consiste numa certa passividade. Ser passivo é bom, porque então se veem as coisas com clareza, distintamente. Mas ser física ou mentalmente preguiçoso embota o corpo e o espírito, incapacitando-nos de olhar, de ver.
Assim, pois, lançada a base — e isso significa, realmente, rejeitar a sociedade e sua moral — pode-se ver que a virtude é uma coisa maravilhosa, uma coisa bela, uma coisa pura. Não podemos cultivá-la, assim como não se pode cultivar a humildade. Só o homem vaidoso cultiva a humildade; e fazer esforços para se tornar humilde é a maior estupidez. Mas um homem pode atingir a humildade facilmente, quando a mente começa a compreender a si mesma, começa a compreender todos os recantos obscuros e inexplorados da consciência. Pelo autoconhecimento atinge-se a humildade, e essa humildade é o próprio solo, os próprios olhos, o próprio alento que vos permitem ver, dizer, comunicar. Não podeis conhecer a vós mesmo, se condenais, se julgais e avaliais; mas observar, ver “o que é”, sem distorção, observar como se observa uma flor, sem a fazer em pedaços, isso é autoconhecimento. Sem o autoconhecimento, todo pensamento conduz à perversão e à ilusão. Assim, com o autoconhecimento começamos a lançar a base da verdadeira virtude, a qual não pede ser reconhecida pela sociedade ou por outra pessoa. No momento em que a sociedade ou outra pessoa a reconhece, isso significa que estais no padrão delas e, por conseguinte, vossa virtude é a virtude da respeitabilidade, e, portanto, já não é virtude.
O autoconhecimento, pois, é o começo da meditação. Há muito ainda que dizer acerca da meditação; isto aqui é apenas uma introdução, por assim dizer, apenas o primeiro capítulo. E o livro não tem fim; não há terminar, atingir. E a maravilha de tudo isso, a beleza de tudo isso é que quando a mente — na qual se inclui o intelecto, tudo — viu e se esvaziou de todos os descobrimentos que fez, quando está inteiramente livre do conhecido, sem “motivo” de espécie alguma, poderá, então, talvez, surgir na existência o incognoscível.
Krishnamurti, Saanen, 3 de agosto de 1961, O Passo Decisivo