É possível quebrar as fúteis muralhas da mente?
PERGUNTA: A observação implica cessação da memória?
KRISHNAMURTI: Pergunta esse senhor: Observação é o cessar da memória? Não sei se já fizestes alguma experiência pessoal ao verdes algo, ao observardes algo. Ao olhardes para alguém, olhais com todas as impressões que recebestes dessa pessoa e, por conseguinte, não a estais olhando realmente. Em maioria, com exceção dos estudantes aqui presentes, sois homens casados; olhais alguma vez vossa esposa? Vós olhais o retrato, a imagem, as impressões que tendes tido dela, mas nunca olhais para ela; e, talvez, se a olhardes livre de todas as impressões, insultos, brigas, lembranças que tendes acumulado, pensareis que algo terrível estará sucedendo; por conseguinte, mantendes àquela cortina entre vós e ela. O olhar verdadeiramente uma coisa, livre da memória — que é pensamento, que é reação acumulada, etc. — o olhar o fato, livre da palavra, liberta energia, porque o próprio fato produz energia — e não eu que estou olhando. Olhar o fato — não as explicações, as teorias, não a desnecessidade ou a necessidade dele — olhar a integral estrutura da sociedade — isso provocaria uma tremenda revolução no pensar. Mas nós não desejamos essa revolução, porque causa muita perturbação; talvez me faça abandonar minha profissão, adotar outra maneira de viver. Assim sendo, trato de proteger-me com a palavra e de nunca olhar o fato de frente. E, para a maioria de nós, filosofia e religião, e essa coisa imensa que se chama a Vida, são meras palavras. O libertar a mente da palavra é, com efeito, uma coisa extraordinária.
PERGUNTA: É possível à mente humana compreender a Verdade?
KRISHNAMURTI: A mente humana pode compreender a Verdade? Penso que não. Que é, no presente, a mente humana? Existe mente humana, ou se trata de mera reação instintiva do animal ainda existente em nós? Isto não é sarcasmo.
Antes de mais nada, para se compreender qualquer coisa na vida — não só a Verdade — para eu compreender minha mulher, meu semelhante, meu filho — é necessária uma certa quietude mental (não quietude disciplinada, porque então a mente não está quieta, porém morta), pois uma mente em conflito impede a observação de qualquer coisa, a observação de mim mesmo. Ora, eu me vejo em contínuo conflito, em perpétuo movimento — sempre e sempre a mover-me, a falar, a indagar, explicar; em tais condições, não há possibilidade de observação. É isso o que está fazendo a maioria de nós, quando nos vemos frente à frente com “o que é”.
Vê-se, pois, que só é possível a observação quando não há conflito. Para não ter conflito, uma pessoa pode tomar um calmante, um comprimido, a fim de se tornar tranquila; mas isso não lhe dará percebimento; fá-la-á dormir. Eis, provavelmente, o que quase todos queremos. Consequentemente, para observar, necessita-se de uma certa placidez mental; e, se então percebeis ou não o que é verdadeiro; isso depende da qualidade de vossa mente.
A verdade não é uma coisa estática. A Verdade não é uma coisa fixa, sem força. É algo que deve ser vivo, extraordinariamente sensível, ativo, dinâmico, vital. E como pode uma mente corrompida, insignificante, agitada, continuamente acicatada pela ambição, compreendê-la? Apenas poderá dizer que a Verdade existe, ficar repetindo essa frase e com ela hipnotizar-se.
A questão, por conseguinte, não é se a mente humana pode perceber já Verdade, porém, sim, se é possível quebrar as fúteis muralhas que o homem ergueu em torno de si e a que chama “a mente”. É este o problema real. Uma dessas muralhas — de que todos muito gostamos — é a autoridade.
PERGUNTA: O Amor e a Verdade não são uma só e a mesma coisa?
KRISHNAMURTI: O Amor e a Verdade são uma só e a mesma coisa? Como sabeis, devemos desconfiar de todas as semelhanças — mas existem semelhanças. Considere-se a palavra “amor”.
O general que se prepara para matar, que está planejando matanças, fala de seu amor à Pátria, seu amor à esposa e filhos, e até de seu amor a Deus. Os políticos fazem o mesmo: falam de “voz interior”, de Deus, de amor. Como se descobre o que é o amor, o que é a Verdade? Não se trata de saber se são semelhantes ou dessemelhantes, mas, sim, de saber o que é amar, o que isso significa. Já não nos sobra tempo para entrarmos a pleno nesta questão.
Para se descobrir o que é o amor, necessita-se de sensibilidade. Para a maioria de nós, amor é sexo, desejo. Por causa da tradição, por causa das sucessivas “ondas” de santos que têm percorrido este pobre e desafortunado país, o amor desapareceu. Pregam o amor divino, o amor humano; entretanto, são homens terrivelmente duros, totalmente insensíveis — eles, os santos que venerais. Nega-se a Beleza: Não olhes para uma árvore, não olhes para uma mulher; foge dela, trata-a como a um leproso, ou manda-lhe rapar a cabeça. De quantas tretas somos capazes, quando somos insensíveis!
Dessa forma, precisamos ser sensíveis, pois então saberemos o que é o amor. Para ser deveras sensível, impende romper com o passado, libertar-se de todos os heróis e santos. Digo-o seriamente. Se os seguis, estais imitando; e a mente imitadora não é sensível.
Pergunto-me a mim mesmo, esgotada esta hora de palestra e de respostas, que efeito terá ela produzido em vossa mente — não de maneira teórica ou ideológica, porém realmente. Tornastes-vos mais sensíveis? Aquela jovem diz que está com a mente sobremodo perturbada. Muito folgo com isso. Deixai-vos ficar perturbada para o resto da vida. A perturbação é apenas o começo. Mas que efeito real tem isso — estar perturbado? Só os jovens são suscetíveis de perturbar-se. Os velhos não se perturbam, pois já se acham por demais “comprometidos”; têm seu puja, seus santos, seus deuses, seus “caminhos da salvação”, seus métodos de salvar a sociedade, etc. Estão “comprometidos”, tão cheios de deveres e obrigações que não há mais lugar para o amor.
Assim, ao dizermos que estamos perturbados, que significa isso? Perturbados até que profundidade? Quando um rio é perturbado pelos ventos, aparecem-lhe rugas na superfície; mas no fundo do rio não há perturbação, porém a tranquilidade da morte. Provavelmente, o mesmo acontece conosco; nas camadas mais profundas não há perturbação nenhuma. Talvez os jovens possam ser perturbados — mas, depois, se casarão, farão exames, arranjarão emprego — e estarão estabilizados para o resto da vida. Não digo que não devais casar-vos e empregar-vos. Mas, quando o fazeis, vossa perturbação muda de objeto; vedes-vos perturbados por causa do emprego, desejais emprego melhor, ganhar mais dinheiro. Não estou tratando dessa espécie de perturbação, que é por demais elementar. Falo da mente que está de fato perturbada, perturbada e sem encontrar resposta. No momento em que achais uma resposta, pensais ter a solução do problema. A vida não é tão fácil assim.
Portanto, qual o efeito real desta hora de palestra? Uma ruga na superfície, ou profunda perturbação — coisa semelhante ao arrancar uma árvore pelas raízes. Já vistes uma árvore ser arrancada pelas raízes? Sabeis o que sucede? Tudo se desprende dela. A árvore morre para tudo a que estava ligada. Eu gostaria de saber até que profundeza uma palestra como esta pode lançar raízes. Não podeis responder; e eu não estou pedindo resposta.
O mundo necessita de entes humanos que não estejam mecanizados. O mundo necessita de homens que tenham verdadeiramente adquirido um novo intelecto, uma mente nova. Há milhares de entes mecanizados, mas, por certo, torna-se necessária uma mente nova para resolver os inumeráveis problemas existentes no mundo, problemas que se multiplicam e crescem continuamente. Nessas condições, se assim me posso expressar, averiguai se a casa está sendo demolida, ou se apenas a estais reformando.
Krishnamurti, Varanasi, 03 de janeiro de 1961, A mutação Interior