Compreendendo o mecanismo da ação
Desejo prosseguir do ponto em que ficamos outro dia. Considero importante compreender a questão da ação; e não estou empregando essa palavra em sentido abstrato, ou meramente ideativo. Refiro-me ao fato concreto da ação, do “fazer alguma coisa”. Se estais cavando num jardim, ou a caminho do escritório, ou contemplando uma árvore, ou seguindo o movimento de um rio, ou simplesmente caminhando pela estrada, sem nada pensar, observando tranquilamente as coisas — o que quer que estejais fazendo é parte da ação. Mas, em regra, nessa ação gera conflito. Ela, por profunda que seja considerada, ou por mais superficial, torna-se mecânica, cansativa, fastidiosa, mera atividade sem significação. Eis porque muito importa compreender o que é “ação”.
Fazer qualquer coisa — andar, falar, olhar, pensar, sentir — requer energia; e a energia se dissipa quando, na sua mesma expressão, existe conflito. Como se pode observar, nossas atividades, em todos os níveis, geram conflito; criam em nós uma consciência de esforço, certa resistência, negação, defesa. E é possível, de alguma maneira, agir sem conflito, sem resistência — e, até, sem esforço? É sobre isto que desejo falar-vos nesta manhã.
Vê-se o que está acontecendo no mundo. Os computadores, os cérebros eletrônicos, e várias formas de “automação” vão proporcionar ao homem cada vez mais folga, e essa folga vai ser monopolizada pelas religiões e diversões organizadas.
Não sei se há muita diferença entre essas duas coisas, mas, por ora, deixemo-las separadas. Quando o homem dispõe de maior lazer, tem também mais energia — bastante energia — e a sociedade exige que ele utilize essa energia de maneira correta, e não anti-social.
Para controlar o sentimento anti-social, entrega-se o homem à religião organizada ou a divertimentos de todo gênero. Ou irá cultivar a literatura, a arte, a música — outra forma de divertimento. E o resultado é que o homem se tornará cada vez mais superficial. Poderá ler todos os livros do mundo e procurar entender as complicações da teologia, da filosofia, da ciência; poderá familiarizar-se com certos fatos e verdades da literatura, mas tudo será exterioridade, tal como as diferentes formas de religião e de entretenimento. Afirmam as religiões organizadas que estão buscando as coisas interiores da vida, porém elas exigem crença, dogma, ritual, conformismo, como todos sabemos.
Ora, a menos que estejamos conscientizados de todas essas condições inerentes à moderna civilização, nossas energias serão por elas consumidas e nossa atenção, por conseguinte, permanecerá superficial; e, por causa dessa superficialidade, continuaremos a ter conflito interior e com outras pessoas, com a sociedade. Em todas as formas da atividade humana — artística, científica, matemática, industrial — e em nossas relações com esposa ou marido, com os filhos, com o próximo, continuará a haver conflito; e todo conflito é desperdício de energia. Para se conseguir a extinção do conflito e, por conseguinte, a conservação da energia, cabe-nos compreender o que é ação; pois, sem essa compreensão, nossa vida se tornará mais e mais exterior, e estaremos cada vez mais vazios interiormente. Isto não é um ponto passível de discussão ou de dúvida, não está em questão minha opinião contra a vossa. Trata-se de fatos reais.
Assim, em primeiro lugar, que é ação, como a conhecemos? Todas as nossas ações têm algum móvel, sutil ou óbvio, não é verdade? Ou estamos visando a uma recompensa, ou atuando por medo, ou procurando ganhar alguma coisa. Nossa ação é sempre um ajustamento a algum padrão, a alguma ideia, ou aproximação a algum ideal. Conformismo, ajustamento, aproximação, resistência, renúncia — eis tudo o que sabemos a respeito de ação, e tudo isso implica uma série de conflitos.
Como já mencionei, comungar com alguma coisa com a qual não nos relacionamos profundamente é sempre um tanto difícil. Eu desejo estar em comunhão convosco, em referência a um estado de espírito que é a verdadeira antítese desse conflito que comumente chamamos “ação”. Há uma ação total, ação sem conflito, e desejo dizer-vos algo sobre ela — mas não para vós o aceitardes ou rejeitardes, ou serdes hipnotizado por minhas palavras. Uma das coisas mais difíceis (quando um homem está sentado num estrado, a falar, e outros escutando — se de fato o escutais) é estabelecer a relação correta entre o ouvinte e o orador. Aqui não estais para serdes mesmerizados com uma série de palavras, a tampouco de nenhuma forma desejo influenciar-vos. Não estou fazendo propaganda de uma ideia, nem é minha intenção instruir-vos. Como várias vezes tenho frisado, não há instrutor nem discípulo, há só um “estado de aprender”; e vós e eu nenhuma possibilidade temos de aprender, se esperamos ser instruídos, ser informados sobre o que devemos fazer. Não nos interessam opiniões. Eu não tenho opiniões. O que estou tentando é apenas expor certos fatos, e podeis olhá-los, examiná-los por vós mesmos, ou deixar de fazê-lo. Isso significa que vós e eu temos de estabelecer a relação correta, de modo que haja não apenas uma comunhão intelectual, mas a percepção total de um fato que ambos examinamos. Não estamos em comunhão um com o outro, porém, antes, em comunhão com o fato e, por conseguinte, o fato se torna mais importante do que vós e eu. Só o fato, e o percebê-lo mutuamente, criará o ambiente ou clima adequado, que não pode deixar de influir profundamente em nós. Assim, eu acho que o escutar uma coisa — aquela corrente, ou o sussurro das árvores, ou nossos próprios pensamentos e sentimentos — se torna sobremodo importante quando estamos considerando o fato em si, e não uma ideia ou opinião sobre ele.
Todos sabemos que nossa ação gera conflito. Toda ação baseada em ideia, conceito, fórmula, ou visando a um ideal, deve inevitavelmente gerar conflito. Isto é óbvio. Se atuo em conformidade com uma fórmula, um padrão, um conceito, estou sempre dividido entre o fato — o que sou — e o que penso que deveria fazer a seu respeito; assim, não há ação completa. Há sempre “aproximação” a uma ideia ou ideal, e por conseguinte o conflito é inerente a toda ação que conhecemos, e é um desperdício de energia, um fator de deterioração mental. Observai o estado e a atividade de vossa mente, e vereis que isso é verdadeiro.
Pergunto, agora, a mim mesmo: existe ação sem ideia e consequentemente sem conflito? Ou, por outras palavras: deve a ação sempre gerar esforço, luta, conflito? Por exemplo, eu estou falando, e isso é uma forma de ação. Por certo, nesta ação só há conflito se estou tentando impor-me, procurando tornar-me importante, procurando convencer-vos. Assim, é de suma relevância descobrir, cada um por si, se há possibilidade de viver e fazer coisas sem o mais leve conflito — isto é, se pode haver ação em que a mente permaneça intacta, livre de deterioração, de qualquer forma de distorção. E não pode deixar de haver distorção, se a mente de alguma maneira está sendo influenciada ou envolvida em conflito, que é desperdício de energia. Descobrir o que ocorre verdadeiramente é para mim de real interesse, e também para vós o deve ser; porque o que estamos tentando é averiguar se podemos viver sem sofrimento, sem medo, sem desespero, sem nenhuma forma de atividade que mentalmente nos deteriora. Se é possível, que nos acontece, então? Que acontece à pessoa que não é influenciada pela sociedade, que não teme, que não é ávida, invejosa, ambiciosa, desejosa de poder?
Para o averiguarmos, precisamos começar por aperceber-nos do atual estado de nossa mente, cheia de conflitos, aflições, frustrações, perversões, desespero. Temos de estar plenamente apercebidos e, assim, acumular energia; e essa própria acumulação de energia é a ação que purificará a mente de todas as inutilidades que o homem veio amontoando no curso dos séculos.
A ação em si não nos interessa. Nós queremos averiguar se existe uma ação que não gere contradição em nenhuma forma. Como vimos, as ideias, os conceitos, as fórmulas, os padrões, os métodos, dogmas, ideais — são os criadores das ações contraditórias. E é possível viver sem a ideia — isto é, sem nenhum padrão, nenhum ideal, nenhum conceito ou crença? Muito importa que nós mesmos o descubramos, pois facilmente se pode ver que o amor não é uma ideia, um padrão, um conceito. Em geral temos um conceito do que é o amor, mas esse conceito, evidentemente, não é o próprio amor. Ou amamos, ou não amamos.
É possível uma pessoa viver neste mundo e ir para o escritório todos os dias, cozinhar, lavar pratos, dirigir seu carro, e executar todas as outras ações da vida cotidiana — que no presente se tornaram maquinais e causadoras de conflito — é possível fazer todas essas coisas, viver e agir, sem ideação e dessa maneira libertar a ação de toda contradição?
Não sei se já algumas vezes percorrestes uma rua movimentada ou uma estrada solitária, olhando apenas para as coisas, sem pensar. Há um estado de observação sem a interferência do pensamento. Embora estejamos a par de tudo que nos cerca, e reconheçamos outra pessoa, a montanha, a árvore, ou o carro que se aproxima, nossa mente não funciona no costumeiro padrão de pensamento. Não sei se isso alguma vez já vos sucedeu.
Experimentai-o, numa ocasião em que estiverdes passeando, de carro ou a pé. Olhai, apenas; observai sem a reação criada pelo pensamento. Embora reconheçais as cores e as formas, conquanto vejais o rio, o carro, o animal, o ônibus, não há reação alguma, porém, tão só observação; e esse próprio estado, da assim chamada observação negativa, é ação. A mente, então, pode utilizar o conhecimento para executar o que for necessário, mas se acha isenta de pensamento, quer dizer, não atua por reação. Com essa total atenção, sem reagir — podeis executar todas as tarefas de cada dia.
Em geral, estamos sempre pensando em nós mesmos, da manhã à noite, e funcionando dentro do padrão desta atividade egocêntrica. Toda atividade dessa ordem, que é apenas reação, leva inevitavelmente a várias formas de conflito e deterioração. Mas, é possível não funcionar dentro desse padrão e, todavia, viver neste mundo? Não quero dizer “viver sozinho numa caverna, entre as montanhas”, ou coisa semelhante; pode-se viver neste mundo e funcionar como ente humano total, pela ação desse estado de vazio (se não interpretais erroneamente o uso que estou fazendo desta palavra)? Pintando ou escrevendo poesia, ou caminhando para o escritório, ou falando, podeis conservar sempre um espaço vazio, interiormente, e, pela ação desse espaço, trabalhar? Porque, quando existe esse espaço vazio, a ação não gera contradição.
Isso é uma coisa que muito importa descobrir e vós mesmo é que tendes de descobri-la, porquanto ela não pode ser ensinada ou explicada. Para descobrirdes, deveis primeiramente compreender que toda ação egocêntrica gera conflito e, a seguir, interrogar-vos se a mente pode em algum tempo contentar-se com tal ação. Ela poderá satisfazer-se momentaneamente; mas, ao perceberdes que, em toda ação dessa natureza, é inevitável o conflito, passais a averiguar se existe outra espécie de ação, ação não conducente a conflito; e, então inevitavelmente descobrireis que ela existe.
Surge, assim, a questão: porque é que estamos sempre à procura de satisfação? Em todas as nossas relações, e em tudo o que fazemos, existe sempre o desejo de preenchimento, a busca de prazer, e o desejo de conservar esse estado de prazer. O que chamamos “descontentamento” só se apresenta quando as coisas não nos satisfazem; e esse descontentamento só serve para gerar outra série de reações.
O indivíduo que encara os fatos com seriedade e que percebe tudo isto — como há milênios vivem os homens em completa confusão e aflição e sem nunca haver uma ação integral — deve por si mesmo descobrir se é capaz de viver sem se deixar contaminar pela sociedade. E isso ele só poderá descobrir quando estiver livre da influência social. Refiro-me a um estado livre da estrutura psicológica da sociedade, constituída de avidez, inveja, ambição e desejo de importância pessoal. Uma vez compreendida e posta de lado essa estrutura, o homem acha-se livre da sociedade. Poderá continuar a ir para o escritório, trajar calças, etc., mas já estará livre daquela estrutura psicológica que tanto lhe deforma o espírito.
Atinge, em suma, um ponto em que descobre por si próprio que a libertação da influência social é uma completa inação. Esta inação significa ação total, que não engendra contradição e, por conseguinte, deterioração.
Krishnamurti, Saanen, 26 de julho de 1964,
A mente sem medo