A dificuldade da atenção total
PERGUNTA: A plena atenção é tão essencial em relação às coisas agradáveis, como em relação às coisas desagradáveis e dolorosas?
KRISHNAMURTI: Vede, desejamos dar continuidade às coisas agradáveis. Volvemos com a memória às alegrias da meninice, a prazeres outrora fruídos, ou nos apegamos àquilo que no momento estamos fruindo; e desejamos pôr fim às coisas não agradáveis. Mas, quando damos nossa atenção total, damo-la tanto ao agradável como ao doloroso. O desejo de continuidade do prazer é o começo do sofrimento. Por que não deve terminar o prazer? Desejais que a dor termine, mas que continue o prazer; e o depender do prazer embota a mente, torna-a insensível, exatamente como o faz a dor. Evitar o que chamamos sofrimento e buscar o prazer — tanto uma como a outra coisa acarretam aquela peculiar desatenção da mente indolente. A mente que conheceu muitos prazeres, que busca o prazer e “vive no prazer”, é uma mente entorpecida, e também o é aquela que evita o sofrimento ou continua a sofrer. Mas, vede, compreender a atenção total não é nada fácil.
Ser atento é entrar numa sala e ver as pessoas, as dimensões da sala, a cor do tapete, os quadros na parede — tudo. Mas não podeis fazê-lo, se dizeis: “não gosto daquele quadro”, “Ali está meu amigo fulano”, “Não gosto da cor do tapete”, “As dimensões da sala não são bem proporcionadas”, etc. etc. Se vossa mente está a “tagarelar”, dividindo-se entre o “de que gosta” e o “de que não gosta”, então não estais atento.
Vede, pode-se considerar uma flor botanicamente ou não botanicamente. Se a consideramos botanicamente, ainda assim há uma certa qualidade de atenção. Mas podemos também considerar a flor diferentemente, quer dizer, “sem conhecimento”. Não interpreteis “sem conhecimento” como um estado de ignorância. Ser “sem conhecimento” é possuir a sabedoria; porque o conhecimento tem continuidade, e a sabedoria não tem. “Estar atento” implica um estado de atenção isento de fronteira, limite, linha divisória. Observamos tudo, absorvemos tudo. Mas isso não se pode fazer quando há um motivo a inspirar a vossa atenção, por mais valioso que seja esse motivo. Se dizeis: “Vou estar atento, a fim de pôr fim ao meu sofrer” — nesse caso não ficais atento.
Tentai uma vez, se o desejardes, considerar totalmente uma flor, uma árvore, um ente humano. Considerar sem conhecimento, sem pensamento — o que não significa um estado de amnésia, i.e., ter a mente “em branco”. Vereis que, ao considerardes assim uma coisa, há um extraordinário estado de atenção que não é concentração. Concentração é exclusão. A mente que está atenta pode concentrar-se sem esforço, sem exclusão. Mas a mente que adquiriu a faculdade de concentrar-se por meio de esforço, treino, disciplina — essa mente jamais poderá estar atenta.
PERGUNTA: Vê-se que a mente só pode estar verdadeiramente tranquila por uns trinta segundos. Que entendeis, pois, por “tranquilidade mental”?
KRISHNAMURTI: Em primeiro lugar, a tranquilidade da mente não é um estado para ser alcançado. A pessoa não tem de dar vários passos para chegar a ele, não pode praticar um sistema a fim de se tornar tranquila, porque essa ação disciplinar só pode tornar a mente embotada. A mente que se ajusta é mente morta. Esta é a primeira coisa que cumpre perceber. A mente que se submete seja aos ditames da sociedade, seja à opinião de um vizinho, aos dogmas da igreja ou outra qualquer estrutura autoritária, nunca pode ser sensível — mas isso não significa que podeis desobedecer ao policial. Estamos tratando de coisa muito diferente. Estamos tratando da submissão no sentido de obedecer à autoridade da tradição, de um livro, um sistema, uma crença. A mente que se submete a um padrão — e isso é uma forma de disciplina — essa mente não é tranquila, porém, apenas, insensível. Esta a primeira coisa que se precisa compreender profundamente. Atrás de nossa submissão, encontra-se o desejo de segurança psicológica. A mente que busca segurança nunca pode ser livre; e é só em liberdade, completa liberdade psicológica, que pode existir a quietude mental.
Como vemos, não há passos para dar a fim de se alcançar a mente tranquila. De mais a mais, não sabeis realmente o que é “tranquilidade da mente”. O que vos interessa é, tão só, experimentar esse estado e retê-lo; daí, dizerdes que ele não dura mais de trinta segundos. Por que durar! Vede, o importante para vós não é a coisa em si, porém o que ela vos dá. Por isso, desejais saber como alcançá-la e se ela é durável, introduzindo assim o elemento tempo: ela deve ter continuidade, durar mais de trinta segundos. O silêncio que tem continuidade não é silêncio. Se o alcançais por meio do tempo, não se trata de serenidade mental.
E temos, em seguida, a questão do “observador e coisa observada”. Se há um experimentador do silêncio, não há silêncio. No momento em que dizeis: “Encontro-me num extraordinário estado de humildade”, acabou-se a humildade. Para vós, o silêncio é um estado que vós experimentais, assim como se experimenta a fome, e desejais reter essa experiência, desejais que ela continue. Por isso, há dualidade: vós e a coisa que desejais experimentar. Se examinardes isso profundamente, descobrireis que o silêncio que tendes experimentado e desejais continue, é meramente o reconhecimento de uma coisa já acabada; portanto, já não é silêncio.
Isto é talvez um pouco complicado, e requer atenção de vossa parte. O que estou dizendo é: o silêncio não pode ser “experimentado”. “Experimentar o silêncio” é uma coisa terrível. Que sugere essa experiência? Reconhecimento da coisa que experimentastes como silêncio e que é reação de vossa memória. O pensamento reconhece o silêncio. E no momento em que o pensamento reconhece o silêncio, isso já não é silêncio; é algo pertencente ao passado, a que destes no presente o nome de “silêncio”.
Assim, para compreenderdes o que é o silêncio, deveis estar livre da submissão e da limitação, livre da autoridade, livre das experiências de ontem, que acumulastes. Porque todas as experiências que acumulastes são condicionadas e ao mesmo tempo condicionantes; elas pertencem ao passado e fortalecem o passado. Também, é necessária a terminação do pensador e do pensamento como duas entidades separadas, porque esta divisão faz surgir o conflito da dualidade. Então, se não estais a buscar o silêncio, se nenhuma experiência estais a exigir, porque compreendestes o inteiro significado da experiência — então, talvez, sem o perceberdes, o silêncio poderá vir. Só a mente “inocente” é silenciosa. Alcançado esse estado, há, então, nesse silêncio, um movimento extraordinário, sem nenhum observador a observar o movimento; há só movimento, não há experimentador e, por conseguinte, não há experimentar. O tempo se tornou inexistente.
Para a maioria de nós, isso é apenas informação e, portanto, sem valor. O que tem valor é perceber o fato de que a autoridade, de qualquer espécie que seja, é destrutiva, seja autoridade da tradição, seja a do Salvador, do Mestre ou deste orador. Nós buscamos a autoridade porque desejamos certeza, não desejamos errar, queremos fazer o que é correto, seguro, respeitável. E uma mente respeitável não é apenas uma mente “burguesa”, medíocre, mas também uma mente insensível e incapaz de estar de todo atenta. Quando há atenção completa, há virtude — não uma imitação de virtude, conforme a pratica a sociedade respeitável. A virtude é então algo novo, que se encontra todos os dias, ao virar de cada esquina. Vereis que há então um silêncio e, nesse silêncio, imensurável criação.
PERGUNTA: Se vemos as coisas como são, com atenção total, com percebimento sem escolha, que acontece em relação às várias formas de arte, principalmente aquelas que se relacionam com a palavra?
KRISHNAMURTI: A beleza é coisa construída pelo homem? A beleza é questão de capacidade ou gosto pessoal? Ou é a beleza algo que transcende o pensamento e o sentimento, algo que nada tem que ver com capacidade, inclinação, simpatia e antipatia pessoal?
E que necessidade há de expressão? Podeis expressar uma dada coisa em palavras, na forma de uma poesia; podeis expressá-la na tela ou no mármore; podeis expressá-la na cozinha, ou no segurar a mão de outra pessoa. Mas, que necessidade há de expressão? Não estou dizendo que não deveis expressar-vos. Podeis expressar uma coisa qualquer, pô-la em palavras; mas a palavra não é a coisa. O símbolo nunca é o real. Mas vós expressastes a coisa e, porque sois dotado de capacidade ou talento, essa expressão se torna significativa; tem um valor, proporciona lucro, aplausos, popularidade.
Ora, como dizia, na atenção total há uma criação que não se pode exprimir em palavras, símbolos, ideias. Ela é energia total. Eu posso ter o dom de escrever poesias; mas, como posso definir essa energia total, essa coisa extraordinária chamada criação? Se não gostais da palavra “criação”, escolhei outro nome: “Deus”, “cachorro”, qualquer nome serve. Uma pessoa sente, talvez, que existe essa coisa — um movimento de criação, uma imensidade, uma atemporalidade. Entretanto, como expressar em palavras o imensurável? E, mesmo, quando o expressamos, a expressão não é a própria coisa. Assim, que valor, que importância, que significação tem a poesia para o homem ou a mulher que compreendeu essa atenção completa? Tem essa poesia necessidade de sair de casa para contemplar obras de arte, visitar museus, assistir a concertos? Entendeis? Quem bebeu na fonte da criação, de que mais necessita?
Mas, para a maioria de nós a arte, a poesia, ou a música se tornou muito importante. Somos como os assistentes de uma partida de futebol a observar os jogadores. Poucos estão jogando, e milhares assistindo. Porém, depois de vos desembaraçardes completamente da estrutura psicológica da sociedade, que importância tem a palavra, a forma, o som, o símbolo?
Receio que estejais escutando o orador na esperança de que ele vos ponha milagrosamente naquele estado ou a ele vos conduza. Mas tal não é possível. Para isso tendes de trabalhar intensamente. Requer-se uma energia imensa para ouvir corretamente. Impõe-se toda a vossa atenção, para destruir a vossa desatenção, e não há, então, distração de espécie alguma. Não existe distração, em tempo algum, para o homem atento. Já para o homem concentrado há sempre distração.
A arte, é claro, tem seu lugar próprio; mas a coisa não acaba aí. Só quando sois capaz de ultrapassar a arte, de superar a beleza criada pelo homem, só então conhecereis diretamente aquela beleza inexprimível. E, estando presente essa beleza, nada mais necessitais buscar.
Krishnamurti, Londres, 7 de junho de 1962,
O homem e seus desejos em conflito