A questão da percepção do que somos
[...] Estamos tratando de ver-nos como somos, conhecer a nós mesmos, se possível, totalmente. Estamos tratando de compreender essa entidade sobremodo complexa que é cada um de nós, com todas as suas sutis variações, conflitos, ânsias, compulsões.
Disse eu que, para nos compreendermos completamente, torna-se necessário um certo percebimento, o percebimento individual de como somos; e não podemos ter essa percepção, se condenamos ou justificamos o que vemos em nós. Ora, isso é bastante simples. Se condeno a mim próprio, não há compreensão. Não percebo o significado daquilo que vejo; condeno-o, apenas. Se condeno uma pessoa ou a comparo com outra, não a compreendo.
Assim, para compreendermos a nós mesmos — por nobres ou ignóbeis, sensíveis ou insensíveis que sejamos — requer-se percebimento. Esse percebimento implica que não deve haver justificação, nem condenação, nem comparação. Justificação, condenação e comparação estão dentro da esfera do tempo; são ditadas pelo nosso condicionamento. Olhamos as coisas como ingleses, hindus, cristãos ou comunistas. Nossa observação e nosso pensar estão condicionados pelas influências culturais e educativas de nosso ambiente, e se não estamos apercebidos desse condicionamento, não podemos ver o que é, não podemos ver o fato. Isto, em si, é bastante simples, não achais? Não é algo que estais tentando aprender de mim. Para verdes e compreenderdes a entidade sobremodo complexa que sois, deveis olhar-vos sem esse fundo de condenação, justificação e comparação. E quando vos olhardes desse modo sabereis ver-vos de maneira total.
Considero importante compreender esta questão do percebimento, e não torná-la algo misterioso. Não há mistério nenhum no percebimento. Ele é infinitamente praticável e aplicável à existência diária. Se uma pessoa percebe que está comparando, julgando, avaliando, se está inteirada de seus gostos, versões, contradições, sem condenar ou procurar livrar-se delas, — se percebe tudo isso, se está crente do fato, que acontece? Que acontece se não ignoro que sou mentiroso — se percebo o fato sem condená-lo, sem dizer quanto isso é terrível, maléfico, desvirtuoso, etc.? Se sabeis que realmente mentis, que acontece?
Vede, por favor, que não estais aprendendo nada de mim. Eu não quero ser vosso instrutor, não quero ser seguidor. Isso é prejudicial, um obstáculo, destrói toda a vossa capacidade de vós mesmo o descobrirdes. Mas, se observardes, vereis que, quando estais simplesmente apercebido do fato, vós o examinais sem terdes nenhuma opinião a seu respeito. Olhais para ele como coisa nova, e não com todas as lembranças e associações ligadas ao fato.
Espero estar-me explicando com clareza.
A dificuldade é que nunca encarais a realidade diretamente, olhais apenas para os “valores” e opiniões a ela associadas, e isso vos impede de ver o fato.
Ora, que acontece quando vejo que estou mentindo, que sou ambicioso, ou invejoso, ou ávido? Quando olho para o fato, sem nenhuma opinião, nenhuma lembrança a ele relativa, já não há então nenhum obstáculo a percebê-lo. Posso olhá-lo, sem desvio nem desfiguração; e, então, esse próprio fato gera a energia de que preciso para tratar dele. Posso descobrir porque minto, e o que a esse respeito devo fazer. Compreendeis? Se não tenho nenhuma opinião, juízo ou avaliação concernente ao fato, então ele próprio gera a energia necessária para enfrentá-lo.
Tudo isso faz parte da percepção, faz parte do tempo. Por favor, não especuleis a respeito do atemporal. Para descobrirdes o que existe além do tempo, não deveis “fabricar” uma porção de palavras, e tampouco podeis aprendê-lo de minha boca. Tendes de trabalhar aplicadamente, para chegardes a esse descobrimento.
Perceber significa estar consciente de vossas reações ao vos defrontardes com um fato. Significa observar todas as vossas reações aos “desafios” — não algum desafio “supremo”, mas os desafios de cada dia, os pequenos desafios ocorrentes quando viajais num ônibus, quando falais com o patrão, etc. Deveis dar-vos conta, não apenas de vossas reações conscientes, educadas, “modernas”, mas também dos motivos, compulsões e ânsias inconscientes; porque tanto o consciente como o inconsciente estão dentro do campo do condicionamento e, por conseguinte, do tempo. O inconsciente é o passado, a herança racial acumulada, e é preciso que se perceba tudo isso.
Ora, para se poder estar ciente, sem escolha, desse processo total do inconsciente e do consciente, necessita-se de um estado mental negativo; e acho que agora já deve estar bastante claro o que eu entendo por “ estado mental negativo” . O estado positivo é aquele em que a mente condena, julga, avalia, aprova, nega, concorda ou discorda, e ele resulta de vosso particular condicionamento. Mas o processo negativo não é o oposto do positivo.
Se desejais compreender o que está dizendo este orador, deveis escutar negativamente, não? “Escutar negativamente” significa não aceitar nem rejeitar o que se diz, nem compará-lo com o que está escrito na Bíblia, ou com o que diz o vosso analista. Escuta-se, simplesmente. Nesse “escutar negativo” percebeis vossas próprias reações sem julgá-las; por conseguinte, começais a compreender-vos, e não simplesmente o que o orador está dizendo. O que o orador diz é apenas um espelho em que vos mirais.
Ora, esse percebimento implica atenção, não achais? E, no estado de atenção, não há esforço de concentração. No momento em que dizeis: “Preciso concentrar-me”, criastes o conflito, porque concentração envolve contradição. Desejais concentrar-vos em alguma coisa, vosso pensamento foge, procurais fazê-lo voltar, e ficais continuamente empenhado nessa batalha. E, enquanto se desenrola a batalha, não estais escutando. Se aprofundardes isso, acho que descobrireis que os dizeres do orador exprimem a verdade. Não é uma coisa aplicável a vós mesmo só porque ouviste alguém dizer algo sobre ela.
A compreensão, pois, é um estado de atenção sem escolha. E, sem esse percebimento, essa atenção, nenhum significado tem o falar acerca do que está além, o atemporal, etc. Isso é pura especulação. É o mesmo que ficar sentado ao pé do monte a perguntar o que há do outro lado dele. Para descobrirdes o que há, tereis de galgar o monte. Mas ninguém deseja galgar o monte, pelo menos poucos o desejam. Em geral nos satisfazemos com explicações, conceitos, ideias, símbolos. Procuramos compreender apenas verbalmente o que é atenção, o que é percebimento. Mas essa compreensão de si mesmo é tarefa verdadeiramente penosa. Não estou empregando a palavra “penosa” no sentido de conflito ou esforço para alcançar algo. É preciso estar verdadeiramente interessado em tudo isso. Se não estais interessado, muito bem, não precisais tocar nisso. Mas, se estais interessado, vereis quanto é difícil compreender a si próprio totalmente. Todos os problemas humanos originam-se desse centro extraordinariamente complexo e vivo que é o “eu”, e o homem que deseja descobrir os sutis movimentos desse “eu”, tem de estar negativamente apercebidos, observando sem escolher. Todo esforço para ver, toda espécie de compulsão, desfigura o que se vê, e, por conseguinte, nada vemos.
Krishnamurti, Londres, 17 de junho de 1962,
O homem e seus desejos em conflito