Existe algo além do tempo, algo imensurável?
[...] Existe algo além do tempo, algo imensurável, atemporal; mas, para o encontrardes, para o descobrirdes, deveis lançar a base adequada; e para lançardes essa base, cumpre despedaçar a sociedade. Por “sociedade” não entendo a estrutura externa; não se trata de dinamitar edifícios, de tirar as roupas e vestir um manto de sannyasi, de tornar-se eremita; isso não fará ruir a sociedade. Quando falo de sociedade, refiro-me à estrutura psicológica, à estrutura interna de nossa mente, de nosso cérebro, aos processos psicológicos de nosso pensar; estes têm de ser completamente destruídos, para que se possa descobrir, criar uma mente nova. Vós necessitais de uma mente nova, porque, se observardes o que se está passando no mundo, vereis cada vez mais claramente que a liberdade está sendo negada pelos políticos, pelo progresso, pelas religiões organizadas, pelos processos mecânicos, técnicos. Mais e mais os computadores estão substituindo o homem, e está certo que assim seja. A virtude está sendo “produzida” com preparados químicos: tomando determinado preparado químico, podeis ficar livre da cólera, da irritabilidade, da vaidade; podeis quietar vossa mente, tomando um calmante, e podeis tornar-vos muito pacífico. Como vedes, vossa virtude está sendo regulada quimicamente; já não precisais submeter-vos à tirania da disciplina para vos tornardes virtuoso. Tudo isso está ocorrendo no mundo. E, assim, temos de criar um novo mundo, não no sentido químico, nem industrial ou político, porém espiritualmente — se posso usar esta palavra já tão gasta, tão desvalorizada pelos políticos, pelos religiosos. Não podeis ser espiritual se pertenceis a alguma religião, a alguma nacionalidade. Se vos denominais hinduísta, parse, muçulmano ou cristão, nunca sereis espiritual. Só sereis espiritual ao destruirdes a estrutura social de vosso ser — isto é, o mundo em que viveis, mundo de ambição, de avidez, de inveja, de sede de poder. Para a maioria de nós, esse mundo é a realidade, e nada mais o é; é a ele que todos nós aspiramos; do mais alto político à mais insignificante pessoa do povo, do maior dos santos ao devoto vulgar — é a ele que todos aspiram. Se não o quebrardes, não importa o que façais, nunca tereis amor, nunca atingireis a felicidade, e estareis sempre em conflito e aflição.
Assim, como disse, vamos investigar a estrutura da sociedade. Essa estrutura é produzida pelo pensamento; a estrutura da sociedade nasceu no cérebro que atualmente possuímos — o cérebro de que agora nos servimos para adquirir, competir, tornar-nos poderosos, ganhar dinheiro honesta ou desonestamente. O cérebro é o resultado da sociedade em que vivemos, do meio cultural em que crescemos, dos preconceitos, dogmas, crenças, tradições da religião; tudo isso é o cérebro — resultado do passado. Examinai a vós mesmos, por favor, não vos limiteis a ouvir o que se está dizendo.
Há duas maneiras de escutar. Uma delas é: ouvir meramente as palavras e seguir o seu significado — e isso é escutar, ouvir comparativamente, quer dizer, comparar, condenar, traduzir, interpretar o que se está dizendo. É o que faz a maioria das pessoas; é assim que escutamos. Quando se diz uma coisa, vosso cérebro imediatamente a traduz— por efeito de reação — em vossa própria terminologia, vossas próprias experiências; e, ou aceitais o que agrada, ou rejeitais o que desagrada. Estais apenas “reagindo”, não estais escutando. E há a outra maneira de escutar. Esta requer imensa atenção, porque nesse escutar não há tradução, não há interpretação, nem condenação, nem comparação; estais escutando, simplesmente, com todo o vosso ser. A mente capaz de escutar tão atentamente compreende de imediato; está livre do tempo e do cérebro, que é o resultado da estrutura social em que fomos criados. Enquanto esse cérebro não se tiver tornado de todo quieto — mas ao mesmo tempo intensamente atento, ativo —, enquanto isso não ocorrer, cada pensamento, cada experiência será por ele traduzida de acordo com seu condicionamento e, por conseguinte, cada pensamento, cada sentimento se tornará um obstáculo à investigação total.
Vede, senhores, a maioria das pessoas aqui presentes é parse, hinduísta ou cristã. Desde a infância vos dizem que sois hinduísta; essa lembrança se conserva por associação nas células cerebrais; e cada experiência, cada pensamento é traduzido segundo esse condicionamento; e esse condicionamento impede a vossa compreensão total da vida. A vida não é a vida de um hinduísta, ou de um cristão; a vida é algo muito mais vasto, muito mais significativo, que a mente condicionada de modo nenhum pode compreender. A vida é ir para o emprego; a vida é sofrimento; a vida é prazer; a vida é extraordinário senso da beleza; a vida é amor; a vida é pesar, ansiedade, sentimento de culpa — tudo isso. E se não a compreendeis, nada descobrireis. Não há “saída” do sofrimento. E, para compreender a totalidade da vida, o cérebro deve estar completamente quieto — o cérebro que está condicionado pelo meio cultural em que fostes criado, por cada pensamento, que é reação de vossa memória, por cada experiência, que é “resposta” a desafio, “resposta” do passado, nele concentrado. Se não compreendermos todo esse processo, o cérebro nunca ficará quieto. E para que possa nascer uma mente nova, é absolutamente necessário que o cérebro compreenda a si próprio, esteja apercebido de suas próprias reações, seu próprio embotamento, estupidez, condicionamento. O cérebro deve estar apercebido de si próprio e, por conseguinte, deve “interrogar” a si próprio, sem buscar resposta, porque toda resposta será projetada do seu próprio passado. Por conseguinte, quando “interrogais” interessado numa resposta, a resposta estará ainda dentro dos limites da mente condicionada, do cérebro condicionado. Assim, ao “interrogardes” — o que significa que estais apercebido de vós mesmo, de vossas atividades, de vossas maneiras de pensar, de sentir, de vossa maneira de falar, de andar, etc.— não busqueis resposta, porém apenas, olhai, observai. E vereis que, como resultado dessa observação, o cérebro começará a perder o seu estado condicionado. E quando isso acontecer, estareis fora da sociedade.
Assim, o mais importante de tudo é vos investigardes — e não o que o Sankara, Buda ou vosso guru vos disse; investigar a vós mesmo, investigar os movimentos de vossa mente, de vosso cérebro, os movimentos de vosso pensamento.
E mutação difere de mudança. Por favor, escutai, prestai atenção! Mudança implica tempo, gradualidade, mudança implica continuidade do que foi; mas, mutação implica uma quebra completa e a verificação de algo novo. Mudança implica tempo, esforço, continuidade, modificação que requer tempo. Na mutação, não existe o tempo; ela é imediata. O que nos interessa é a mutação, e não a mudança. O que nos interessa é a completa e imediata cessação da ambição, e essa quebra imediata da ambição é mutação — que ocorre imediatamente, que não admite o tempo.
Continuaremos a examinar esta questão. Mas, por ora, procurai aprender o significado disto: até agora vivemos através de séculos de tempo, mudando gradualmente, gradualmente moldando nossa mente, nosso coração, nossos pensamentos, nossos sentimentos; nesse processo temos vivido, em constante sofrimento, constante conflito; nunca houve uma dia, nunca houve um momento de completa libertação do sofrimento; o sofrimento sempre existiu, escondido, reprimido. E a coisa sobre que agora estamos falando é uma terminação completa e, portanto, uma total mutação; e essa mutação é a revolução religiosa. Explicaremos isso, um pouco, nesta tarde.
O importante é compreender a capacidade de ver, a capacidade de escutar. Há duas maneiras de ver — só duas. Ou vedes com o conhecimento, com o pensamento; ou vedes diretamente, sem conhecimento, sem pensamento. Quando vedes com o conhecimento, com o pensamento, o que realmente sucede é que não estais vendo, porém interpretando, dando opiniões, impedindo a vós mesmo de ver. Mas, quando vedes sem pensamento, sem conhecimento — o que não significa que, quando vedes, vossa mente está “em branco”; a o contrário, vedes completamente — esse ver é o fim do tempo e, por isso, há mutação imediata. Por exemplo, se sois ambicioso, dizeis que gradualmente mudareis — esse é o hábito que a sociedade sempre aprovou; a sociedade inventou todos os meios e modos possíveis, de vos livrardes a pouco e pouco de vossa ambição; no entanto, no fim de vossa vida sois ainda ambicioso, estais ainda em conflito — e isso é completamente infantil, sem madureza. Madureza é enfrentar o fato e dar-lhe fim imediato. E podeis pôr fim ao fato prontamente quando o observais sem pensamento, sem conhecimento.
O conhecimento é a acumulação do passado, da qual brota o pensamento. Por conseguinte, o pensamento não constitui o meio de promover a mutação; ele impede a mutação. Por favor, tendes de examinar isto muito atentamente, e não apenas aceitá-lo ou rejeitá-lo. Considerarei isso durante estas palestras; mas procurai desde já apreender o seu significado, o seu perfume. Porque, para mim, só há mutação, e não mudança. Ou sois ou não sois; não se trata de, quando sois ambicioso, cuidardes de tornar-vos menos ambiciosos; isso é proceder como os políticos que falam da extinção da política e do poder, e continuam na política. São falas insinceras. O que nos interessa é a terminação imediata, para que possa nascer uma mente nova.
E vós necessitais de uma mente nova, porque um novo mundo precisa ser criado — não pelos políticos, não pelos indivíduos religiosos, não pelos técnicos, porém por vós e por mim, que somos simples pessoas comuns; porque somos nós que temos de mudar completamente, somos nós que temos de operar uma mutação em nossa mente e nosso coração. Isso pode ser feito imediatamente, desde que possais ver o fato e “permanecer com o fato” — sem procurar pretextos, dogmas, ideais, fugas; “permanecer com o fato” totalmente, completamente. Percebereis, então, que o ver completo põe fim ao conflito. O conflito tem de terminar. É só quando a mente está por inteiro quieta, e não num estado de conflito, é só então que ela pode penetrar fundo nas esferas que estão além do tempo, do pensamento, do sentimento.
Krishnamurti, Nova Déli, 21 de fevereiro de 1962, A mutação Interior