
A base correta para se descobrir se existe uma realidade além das crenças que a propaganda inculcou na mente de cada um, essa base só pode ser criada pelo autoconhecimento. O conhecer a si mesmo é, exatamente, meditação. Conhecer a si mesmo não é conhecer o que se deveria ser. Por isso não tem vitalidade, nem realidade, e não passa de mera ideia ideal. Mas compreender o que é, compreender o fato real — o que somos — momento por momento, isso requer que se liberte a mente de seu condicionamento. Pela palavra “condicionamento”, entendo tudo o que a sociedade nos impôs, tudo o que a religião nos inculcou, pela propaganda, pela insistência, pela crença, pelo medo do céu e do inferno. Inclui o condicionamento referente à nacionalidade, ao clima, aos costumes, à tradição, à cultura como francês, hindu ou russo, e às inumeráveis crenças, superstições, experiências que constituem todo o fundo (background) em que vive a consciência e que se consolidou em consequência de nosso desejo de segurança. É a investigação e a destruição desse fundo que constitui a base correta para a meditação.
Sem liberdade não se pode ir muito longe; apenas divagamos para a ilusão, e isso nada significa. Se desejamos descobrir se existe ou não a Realidade, se de fato almejamos levar a cabo este descobrimento — sem ficarmos apenas a brincar com ideias, por mais agradáveis, intelectuais, razoáveis ou aparentemente sensatas que sejam — necessitamos de liberdade, cumpre estar livre de conflito. E isso é dificílimo. É relativamente fácil fugir ao conflito; pode-se seguir um método, tomar uma pílula, um calmante, uma bebida, e perder a consciência do conflito. Mas o penetrar profundamente a questão do conflito requer atenção. (...) só se pode estar atento quando não há barreiras para a mente.(...) Na atenção não há distração. (...) Isso talvez seja algo novo para vocês; mas se o experimentarem em si mesmos, verão que existe uma qualidade de atenção capaz de escutar, de ver, de observar sem nenhum senso de identificação; nela, há visão completa, observação completa, por conseguinte, nenhuma exclusão. (...)Assim, vocês mesmos devem descobrir se é possível, vivendo-se neste mundo — tendo-se de ganhar a vida, de viver a vida de família, com sua entediante rotina diária, suas ansiedades, o “sentimento de culpa” — se é possível penetrar muito profundamente, ultrapassar a consciência e viver sem conflito interior.
O conflito, certamente, existe quando desejamos “vir a ser” alguma coisa. Existe, quando há ambição, cobiça, inveja. E é possível viver neste mundo sem ambição, sem cobiça? Ou o homem está destinado inapelavelmente a ser perpetuamente cobiçoso, ambicioso, “culpado”, etc.? E é possível eliminar tudo isso? Porque, se não for eliminado, não se pode ir muito longe, uma vez que isso restringe o pensamento. E eliminar da consciência todo esse processo de ambição, inveja, cobiça, é meditação. A mente ambiciosa não tem nenhuma possibilidade de saber o que é o amor; a mente debilitada pelos desejos mundanos nunca pode ser livre. Isso não quer dizer que a pessoa deva viver sem teto, sem comida, sem roupa, sem certo grau de conforto físico; significa apenas que a mente ocupada com a inveja, com o ódio, a cobiça — seja a cobiça de conhecimentos, de Deus, seja de mais roupas — por se achar em conflito, jamais pode ser livre. E só a mente livre pode ir muito longe.
Conhecer a si mesmo é o começo da meditação. Sem conhecerem a si mesmos, o repetir uma quantidade de palavras da Bíblia, do Gita, ou de qualquer dos chamados livros sagrados, não tem nenhuma significação. Isso poderá satisfazer a mente, mas uma pílula dá o mesmo resultado. Pelo repetir uma frase mais e mais vezes, o cérebro torna-se naturalmente quieto, sonolento e embotado; e como resultado desse estado de insensibilidade, de embotamento, pode-se ter alguma espécie de experiência, obter certos resultados. Mas a pessoa continua ambiciosa, invejosa, cobiçosa, e cria inimizade. Assim, o aprender a conhecer a si própria, aquilo que a pessoa realmente é, é o início da meditação. (...)
Se desejo aprender a conhecer-me, descobrir o que realmente sou, tenho de estar vigilante a todas as horas, a todos os minutos do dia, para ver como estou me manifestando. Estar vigilante não é condenar ou aprovar, porém, ver o que somos de momento a momento. Pois o que somos está sempre a se modificar, — não é verdade? — nunca é estático.(...) Para seguir esta coisa a que chamo “eu”, com todas as suas nuanças, suas expressões, seus desvios, suas sutilezas, sua astúcia, a mente deve estar muito clara e vigilante, uma vez que o que sou está sempre mudando, se modificando, não é assim? Eu não sou o mesmo de ontem ou de há um minuto, porque cada pensamento e cada sentimento está modificando, moldando a mente. E se lhes interessa somente condenar ou julgar, de acordo com os seus conhecimentos acumulados, seus condicionamentos, não estão então seguindo a coisa, não estão acompanhando, observando. Por conseguinte, o aprender a se conhecer é muito mais importante do que o adquirir conhecimentos a respeito de si mesmos. Não se pode ter um conhecimento estático a respeito de uma cosia viva(...) uma coisa viva está sempre mudando, sempre sofrendo modificações; ela difere a cada minuto, e vocês têm de segui-la, para conhece-la. Vocês não podem compreender os seus filhos se continuamente os estiverem condenando, justificando, ou com eles se identificando; vocês têm que observá-los, sem julgamento, quando dormem, quando choram, quando brincam — a todas as horas.
Assim, o aprender a conhecer a si mesmo é o começo da meditação; aprendendo a se conhecer, todas as ilusões vão se eliminando. E isso é absolutamente essencial, pois, para descobrir o que é verdadeiro — se existe a verdade, algo imensurável — não pode haver ilusão. E há ilusão quando há desejo de prazer, de conforto, de satisfação... Desejando satisfação, vocês criam a ilusão e aí ficam atolados para o resto da vida. Aí estão satisfeitos; e a maioria das pessoas está satisfeita com o acreditar em Deus. Assusta-as a vida, a insegurança, a agitação, a agonia, a “culpa”, a ansiedade, as misérias e tristezas da vida; assim estabelecem, finalmente algo a que chamam Deus, onde se acolhem. E tendo-se rendido à crença, têm visões, e se tornam santos, etc. Isto não é investigar se existe ou não uma realidade. Ela poderá existir e poderá não existir; compete a vocês descobri-lo. E para o descobrirem, precisam de liberdade no começo e não no fim — livres de todas essas coisas, tais como a ambição, a cobiça, a inveja, a fama, o desejo de ser importante e todas as demais infantilidades.
Desse modo, ao aprenderem sobre a própria pessoa, estão penetrando em si mesmos, não apenas no nível consciente, mas também no nível mais profundo, inconsciente, e trazendo à luz todos os secretos desejos, buscas, impulsos, compulsões. Destrói-se então o poder de criar ilusões, porque está lançada a base correta. Quando a mente, o intelecto, se examina, se observa a si mesmo no movimento do viver, nunca deixando sem exame e compreensão um só pensamento ou sentimento, então tudo isso, em sua totalidade, é percebimento. É estar consciente de si mesmo, inteiramente, sem condenação, sem justificação, sem escolha — como quem olha o próprio rosto no espelho. Você não pode dizer então: “Eu desejava ter um rosto diferente”; ele está lá, tal como é.
E com essa autocompreensão, o intelecto — que é mecânico e está sempre “tagarelando”, reagindo a todas as influências, todos os desafios — se torna muito quieto, embora sensível e vivo. Ele não está morto; tornou-se um intelecto ativo, dinâmico, vigilante, mas, ao mesmo tempo, tranquilo, silencioso, porque nenhum conflito tem. Está em silêncio porque eliminou, compreendeu todos os problemas que criara para si. Afinal, um problema só se torna existente quando uma dada questão não foi bem compreendida. Quando o intelecto examinou e compreendeu perfeitamente a ambição, acabou-se o problema da ambição. E, assim, o intelecto se tranquilizou. (...) Não se pode eliminar a ambição ou a cobiça pouco a pouco; aqui não há “mais tarde” nem “no interim”. Ou a eliminamos totalmente, ou ela de modo nenhum é eliminada. Mas, quando se alcança o ponto em que não há mais cobiça, nem inveja, nem ambição, o intelecto está então extremamente tranquilo, sensível e, portanto, livre — e tudo isso é meditação; e então, mas não antes, pode-se ir mais longe. Ir mais longe, sem se ter chegado a este ponto, é mera especulação, sem nenhuma significação.(...) Uma mente insignificante a buscar o imensurável continua insignificante. Por conseguinte, a mente embotada deve transformar-se. (...) para descobrir isso, a mente deve tornar-se completamente quieta, não mesmerizando a si própria, não por meio de disciplina, repressão, ajustamento; tudo isso significa, apenas, substituir um desejo por outro. (...) Nosso intelecto, nossos pensamentos resultam do tempo; assim, pensar a respeito do atemporal nenhuma significação tem. Só quando o intelecto se tranquilizou, quando já não busca, nem evita, nem resiste, porém se acha totalmente tranquilo por ter compreendido todo este mecanismo, só então nessa tranquilidade, se manifesta uma vida de espécie diferente, um movimento que transcende o tempo.
Krishnamurti — Paris, 21 de setembro de 1961
Krishnamurti — Paris, 21 de setembro de 1961