As relações como enredamentos de imaturidade
O confrade já constatou que as
relações, se dão entre indivíduos com semelhança no nível de insegurança e
imaturidade? Isso é algo que se observa com bastante clareza quando olhamos
para as relações com um olhar mais cru e descondicionado.
Muitas vezes os vínculos não
acontecem por afinidade real de consciência, mas por compatibilidade nos níveis
de insegurança, carências, imaturidades emocionais e interesses velados. É
como se cada indivíduo estivesse buscando no outro um espelho ou uma
compensação para as próprias fragilidades:
- O inseguro busca em outro igualmente inseguro,
alguém que valide constantemente sua identidade.
- O ciumento encontra eco em alguém que também teme
perder e aceita esse jogo de posse.
- O dependente atrai alguém igualmente carente, ainda
que em polos opostos (um cuida, o outro “precisa ser cuidado”).
Essa espécie de acoplamento
psíquico se dá menos pela lucidez e mais pelo enredamento das
fragilidades. Relações maduras, fundadas em autonomia interior, são muito mais
raras justamente porque exigem que cada um suporte o peso da própria solidão,
do próprio vazio e da própria responsabilidade afetiva.
Na prática, o que vemos é que as
pessoas, em sua maioria, se conectam através do ponto comum de suas
imaturidades. Apesar de ser raro, isso não significa que não possa haver amor
genuíno no meio disso, mas é um amor muitas vezes misturado ao medo, ao
apego e à necessidade de completude, em vez de um amor livre.
O ser humano, em geral, tem muita
pressa de se envolver afeto sexualmente, por causa dos hormônios e também pela
necessidade de atender a expectativa parental e para sair desse ambiente e suas
expectativas. Um contrato de facilitação financeira. Assim, observamos três
pontos fundamentais que moldam profundamente a pressa com que muitos se jogam
em relações, principalmente nas primeiras fases da vida:
- O corpo hormonal – A pulsão sexual,
ainda não integrada, exerce uma pressão enorme. Ela empurra o sujeito a
buscar o outro mais como válvula de descarga ou como forma de experimentar
prazer imediato, do que como encontro real e consciente. É uma necessidade
biológica que, sem maturidade, acaba confundida com amor.
- A necessidade de cumprir com a expectativa
parental – Muitos crescem em lares onde, explicitamente ou de
forma velada, há um peso para o relacionamento: “Vai namorar até quando?
Não vai casar? Quando vai me dar netos?”. Essa expectativa cria um
impulso artificial de querer logo estar em um relacionamento, não por uma
disposição interior genuína, mas para se livrar do olhar vigilante e
julgador da família.
- Um acordo de facilitação financeira e social –
É muito comum que jovens busquem no outro um meio de sair de casa,
conquistar independência material ou mesmo fugir do ambiente parental
opressivo. O relacionamento, nesse caso, é usado como “atalho” de vida.
O resultado desse tripé é que a
pressa, geralmente, não vem da maturidade de querer compartilhar a vida
com alguém, mas da soma de pressões biológicas, sociais e financeiras. Isso
explica porque tantos se unem rápido e, pouco tempo depois, descobrem que a
relação não tem alicerce verdadeiro, mas apenas interesses misturados
à carência.
A pressa, portanto, é quase
sempre um movimento de fuga: do corpo em ebulição, da casa dos pais, da solidão
ou da falta de estabilidade. Só que esse movimento de fuga cobra o preço lá na
frente: o vazio dentro da relação, os conflitos repetitivos, a frustração que
se acumula.
Exploraremos agora, em
profundidade, essa pressa de se envolver sexual e afetivamente. Partiremos dos
três fatores: pressão hormonal, expectativa parental, facilitação
financeira/social, acrescentando também outros pontos observados como centrais:
- Medo da solidão – a fuga da sensação de
estar só.
- Necessidade de status – relacionar-se
como símbolo de “normalidade” e aceitação social.
- Carência afetiva herdada – repetição
inconsciente de padrões familiares de apego.
- Indústria cultural – cinema, música,
redes sociais que romantizam a pressa e vendem relacionamentos como
válvula de identidade.
- Busca de identidade – “ser alguém”
através do outro.
- Economia psíquica – a relação como
anestesia das dores existenciais (tédio, vazio, falta de propósito).
A pressa por envolvimento, como
sintoma do nosso tempo
Poucos percebem que a pressa em
se envolver afetiva e sexualmente não é um simples capricho da juventude, mas
um sintoma de algo muito mais profundo. Não se trata apenas da fome
do corpo, mas da soma de pressões invisíveis que moldam o comportamento humano
desde cedo: o peso dos hormônios, as expectativas familiares, a necessidade de
aceitação social, o medo da solidão e até mesmo os imperativos financeiros que
tornam o relacionamento uma rota de fuga, mais do que um espaço de encontro.
Vivemos em uma sociedade que nos
empurra para o vínculo apressado. O cinema, a música, as redes sociais, a
cultura de massa — tudo reforça a ideia de que estar só é fracasso, e que só o
amor romântico redime a existência. O adolescente cresce sob esse bombardeio de
símbolos, e quando a biologia desperta, o desejo sexual se junta a essa
propaganda cultural para criar uma urgência que confunde atração,
necessidade, carência e amor.
A pressa, portanto, não é
inocente. É um movimento que revela uma soma de forças psíquicas e sociais. E
ao mergulhar nela imaturamente, o sujeito acaba reproduzindo ciclos de
frustração: relacionamentos frágeis, rupturas dolorosas, sempre seguidas de
repetições intermináveis do mesmo padrão.
Para entender essa engrenagem,
precisamos fatiar cada camada: o corpo, a família, a cultura, a economia
psíquica e social. Só então podemos compreender por que tanta gente se lança de
cabeça tão cedo, tão rápido, sem saber sequer o que deseja de verdade.
O corpo em ebulição –
Hormônios e a ilusão de amor
A adolescência é uma explosão
química. O corpo passa a liberar hormônios sexuais em intensidade inédita:
testosterona, estrogênio, dopamina. O desejo invade, as fantasias tomam a
mente, e o indivíduo se vê refém de uma energia que não entende nem controla.
Nesse momento, o impulso sexual é
facilmente confundido com amor. O beijo, o toque, o sexo parecem trazer não
apenas prazer, mas também uma sensação de pertencimento e de identidade. O
adolescente acredita que “estar com alguém” é a prova de que ele existe, de que
vale algo. O prazer se mistura com o alívio da insegurança: “se alguém me
deseja, então eu sou desejável”.
Essa ilusão é poderosa. Muitos se
casam, se unem, têm filhos não porque amadureceram para a responsabilidade relacional,
mas porque o corpo os arrastou imaturamente. O desejo se torna
guia, e o relacionamento vira válvula de escape hormonal.
O problema é que, quando o fogo
da novidade passa, sobra a realidade: dois indivíduos imaturos, unidos mais por
descarga biológica e segurança de custeio financeiro, do que por encontro real.
Surge então o vazio dentro da relação, a sensação de prisão, a repetição de
brigas.
A sombra da família –
Expectativa parental e fuga do lar
Paralelamente ao fogo hormonal,
existe o peso do lar. Muitas famílias projetam nos filhos suas expectativas:
“quando você vai namorar?”, “quero logo um genro/nora”, “quero netos”. A
mensagem é clara: ficar só é sinal de fracasso.
O jovem absorve esse olhar. Mesmo
sem desejar de verdade, sente a obrigação de se relacionar para atender ao
script parental. Mais do que isso: o lar muitas vezes se torna sufocante. A
convivência com pais controladores, a sensação de ser eternamente criança
dentro da casa familiar, o julgamento constante — tudo isso gera uma
necessidade de fuga.
O relacionamento, então, aparece
como saída estratégica. Ter alguém é a senha para conquistar alguma autonomia:
sair mais, dormir fora, viajar, escapar da vigilância. Muitos não percebem que
estão menos interessados na pessoa e mais interessados na liberdade que o relacionamento
simboliza.
Assim, a pressa de namorar ou
casar não nasce do coração, mas da tentativa de resolver a opressão doméstica.
O problema é que, nesse movimento, troca-se uma prisão por outra: do lar
parental para a relação imatura que força ajustamento.
A facilitação financeira –
Relação como atalho de vida
Outro fator central, muitas vezes
silenciado, é a dimensão econômica. Em uma sociedade desigual, marcada por
salários baixos e dificuldade de conquistar independência cedo, o
relacionamento surge como atalho financeiro.
É mais fácil dividir aluguel,
contas e despesas com alguém do que sustentar tudo sozinho. Para muitos, a
união se torna caminho para sair de casa e “começar a vida adulta”. Mas esse
início já nasce marcado pela adulteração de propósito, o qual sempre desemboca
em codependência.
A relação deixa de ser espaço de
construção consciente e vira associação estratégica. O que se pensa ser amor,
nesse contexto, não passa de jogos momentâneos de conveniência. O risco é alto:
quando o vínculo não se sustenta pelo afeto real, a pressão material se torna
fonte de conflito. Dinheiro, responsabilidades, cobranças — tudo pesa mais
quando não há solidez emocional para sustentar.
Outros fatores invisíveis que
alimentam a pressa de se relacionar
Além dos três pilares principais,
há outros elementos que raramente são vistos, mas que pesam tanto quanto:
Medo da solidão
O vazio interior é insuportável
para a maioria. Ficar só significa ter que lidar com os próprios pensamentos,
angústias, fragilidades e sentimentos de inadequação. O relacionamento aparece
como anestesia: alguém para preencher o silêncio, alguém para validar a
existência.
Necessidade de status social
Estar acompanhado é sinal de
normalidade. A sociedade olha com desconfiança para o solteiro, especialmente
quando passa dos 25 ou 30 anos. O namoro ou casamento se tornam prova de “normalidade”
e de “sucesso social”.
Carência herdada
Muitos vêm de famílias onde o
afeto foi ausente, frio ou instável. Essa lacuna cria uma fome afetiva que
busca desesperadamente no parceiro, o colo que não se teve na infância. Mas
ninguém pode ser pai ou mãe do outro sem que isso adultere o vínculo.
Indústria cultural
Filmes, novelas, músicas e redes
sociais romantizam a pressa de relacionamento. A mensagem é clara: “amar cedo,
viver intensamente, se entregar sem medo”. O adolescente cresce acreditando que
só será alguém se viver essa narrativa.
Busca de identidade
A imaturidade impede que ambos
saibam quem são. O outro, então, se torna espelho, muleta, rótulo. “Sou o
namorado de alguém”, “sou esposa de fulano”. Com a relação, a identidade é
terceirizada.
Economia psíquica
Relacionar-se funciona como
anestesia contra dores existenciais: tédio, vazio, falta de sentido (que quase
sempre é buscado através da gravidez inconsciente). O vínculo apressado vira
remédio para não encarar a indigência interior.
A anatomia da pressa – O
entrelaçamento das forças
Quando somamos tudo isso —
hormônios, família, economia, medo da solidão, status, carência, indústria
cultural — entendemos por que o indivíduo sente tamanha urgência de se
envolver. É como se estivesse dentro de uma engrenagem que o empurra para o
vínculo sem que ele perceba.
O corpo pede, a família cobra, a
sociedade julga, a mídia romantiza, o bolso aperta, a solidão assombra. O
resultado é previsível: ele se joga de cabeça.
Mas esse mergulho não é encontro,
é fuga. Ele não busca o outro como outro, mas como solução de problemas
internos e externos (sendo que muitos deles, o sujeito nem sequer tem
consciência). E quando o outro não consegue cumprir esse papel — porque ninguém
pode preencher a falta de lucidez, autonomia psíquica e maturidade do ser —
surgem a frustração, o ressentimento, as cobranças, as tentativas de
amoldamento e os conflitos.
As consequências – Relações
frágeis, gestação inconsciente e ciclos de repetição
A pressa cobra caro. A maioria
dos relacionamentos que nascem assim entram rapidamente em desgaste. O que
parecia paixão vira prisão. O que parecia amor vira dependência. O que parecia
liberdade vira nova forma de opressão.
As consequências mais comuns são:
- Ciclos de repetição: o sujeito troca de
parceiro, mas repete o mesmo padrão.
- Frustração crônica: nada satisfaz porque a
raiz do vazio nunca foi tocada.
- Dependência afetiva: medo paralisante de
ficar só, mesmo em relações tóxicas.
- Amargura: ressentimento pelo outro não ter
sido a salvação esperada.
- Estagnação pessoal: a pressa impede o
amadurecimento individual.
- A gestação inconsciente – o selo da prisão
relacional
- Se a pressa em se envolver já cria vínculos frágeis
e carregados de projeções, a gestação inconsciente aparece como
agravante que fecha as portas da liberdade e transforma o enredo em
cárcere.
Olhemos para este último tópico. Muitos
casais, ainda imaturos, acabam engravidando não por decisão consciente, mas por
descuido, impulsividade ou pela fantasia de que o filho consolidará a relação.
O corpo pede prazer, a mente não reflete, e a consequência vem: uma nova vida
que exige responsabilidades imensas de dois indivíduos ainda imaturos.
O que antes era apenas vínculo
frágil se torna prisão concreta. O filho passa a ser o elo indissolúvel
que mantém duas pessoas juntas mesmo quando já não há amor, respeito ou
afinidade. A relação, que nasceu de pressa e carência, agora precisa se
sustentar sob o peso de uma responsabilidade vitalícia.
As consequências são visíveis:
- Ciclos de ressentimento: os pais sentem que
foram obrigados a permanecer juntos por causa da criança, e o lar se enche
de acusações veladas.
- Amor condicionado: o filho é visto não
apenas como ser humano, mas como marca da prisão. Muitos não percebem, mas
projetam nele frustrações da relação.
- Estagnação da liberdade: mesmo quando há
desejo de separar, a presença do filho cria barreiras emocionais, sociais
e financeiras quase intransponíveis.
- A gestação inconsciente sela aquilo que já era
imaturo. O que poderia ser uma travessia de aprendizado em solitude vira
uma cadeia relacional sustentada por culpa, dependência e obrigação.
Não se trata aqui de desvalorizar
a vida da criança, mas de mostrar a realidade nua: ela nasce em meio a um campo
energético de pressa, carência e fuga. E crescer nesse ambiente significa
carregar marcas psíquicas profundas — repetindo, muitas vezes, o mesmo padrão
de pressa e aprisionamento dos pais.
A lucidez,
nesse caso, exigiria duas coisas: primeiro, prevenir o salto inconsciente,
ou seja, não deixar que a pressa e o desejo guiem decisões de tamanha
magnitude; segundo, se a gestação já aconteceu, transformar o vínculo em
algo mais maduro possível, para que a criança não herde apenas a prisão, mas
também o esforço dos pais em se tornarem maduros.
A possibilidade de lucidez –
Desacelerar e observar
Apesar de tudo, há saída. O
primeiro passo é perceber que a pressa é produto de forças inconscientes e
sociais. Ao enxergar isso, nasce uma nova liberdade: a de não se deixar
arrastar.
Essa lucidez começa com a observação
passiva e não reativa. Observar o corpo em ebulição sem se identificar,
observar a expectativa familiar sem se dobrar, observar a solidão sem fugir
dela. O sujeito que suporta o desconforto de estar só amadurece.
O relacionamento, nesse contexto,
deixa de ser fuga e se torna escolha. Não é mais atalho para fugir da família,
da carência ou do tédio, mas espaço para compartilhar. Só assim nasce uma
relação madura: duas pessoas inteiras que se encontram, não duas metades que se
agarram.
O preço e a dádiva de
desacelerar
A pressa em se envolver é
compreensível. Ela nasce do corpo, da família, da cultura, da economia, da
solidão. É quase impossível escapar dela sem consciência. Mas toda pressa cobra
seu preço: relações frágeis, sofrimento psíquico, repetição de padrões.
Desacelerar parece, para muitos,
insuportável. Mas é nesse desacelerar que se abre a possibilidade de viver um
amor que não seja apenas descarga hormonal, fuga do lar, status social ou
anestesia existencial. Um amor que seja encontro, liberdade, partilha.
A dádiva está em suportar o
silêncio, em aprender a ser só, em observar a própria fome sem correr a
saciá-la de qualquer forma. Porque só quem atravessa esse vazio descobre que o
outro não é salvação nem muleta — é apenas um companheiro de travessia.
E essa travessia, lenta e lúcida,
vale mais do que qualquer pressa.
Talvez, o confrade esteja se
perguntando: “e como lidar com a dor de perceber que a relação sempre foi
fundamentada nesses pontos adulterantes, quando ainda não despertamos em nós, a
capacidade de amor impessoal?”
Essa é uma das dores mais
difíceis, de serem observadas em silêncio. Porque ela não é só a dor da perda
de um “amor”, mas a dor de perceber que nunca houve amor verdadeiro ali
— apenas carência, fuga, conveniência, hormônio, medo, expectativa. É uma dor
crua, quase insuportável, porque mexe na própria fundação da vida psíquica.
O sujeito olha para trás e se
pergunta: “Então vivi uma mentira? Então aquilo que eu chamava de amor era
apenas um amontoado de necessidades?”. Esse confronto é devastador. É como
ver o chão ruir sob os pés.
Mas há algumas formas de lidar
com isso:
1. Aceitar a natureza do
humano adormecido - O primeiro passo é perceber que essa situação não é uma
falha pessoal isolada. É a condição humana adormecida. Quase todas as relações
começam assim: imaturidade encontrando imaturidade, carência encontrando
carência. Não havia como ser diferente antes da lucidez.
Essa constatação alivia a culpa: não foi apenas “eu” que errei, mas o campo
humano inteiro que vive sob esse script.
2. Ver a relação como espelho
evolutivo - Mesmo que tenha sido fundamentada em adulterações (fuga,
hormônio, conveniência), a relação ainda pode ser vista como campo de
aprendizado. Ela mostrou os mecanismos da pressa, revelou o quanto buscamos
muletas, expôs a necessidade de amadurecer.
Em outras palavras: não foi amor impessoal, mas foi um espelho que empurrou
para a possibilidade de descobri-lo.
3. Atravessar a dor sem fuga e
sem a necessidade de consolação - A tendência é querer abafar a dor: entrar
em outro relacionamento, mergulhar em trabalho, em prazeres, em distrações. Mas
é preciso suportar o luto cru. Essa dor é a iniciação. É nela que o falso
personagem, ferido por não ter mais ilusões para se agarrar, começa a perder
força. Atravessar o deserto, sentir o vazio, aceitar a presente falta de profundidade
relacional e de sentido aparente — tudo isso é laboratório do despertar de um
olhar, que se fundamenta não mais nos cálculos autocentrados, mas no amor
impessoal que vê o outro em sua exata natureza.
4. Desidentificar-se do implante
sistêmico do roteiro romântico – Talvez este seja um dos condicionamentos
mais difíceis de ser dissolvido. Grande parte da dor vem de perceber que aquilo
que vivemos não corresponde à fantasia romântica em nós implantada
culturalmente. É preciso quebrar esse feitiço: entender que o amor impessoal não
tem nada a ver com paixão, posse, dependência ou segurança social. Só
quando, pela observação passiva não reativa, nos desprendemos da cobrança do
mito do “amor romântico” propagado nas músicas, novelas, filmes e séries, é que
se abre espaço para uma outra forma de sentir: mais livre, silenciosa, sem
muletas.
5. Praticar o amor impessoal
consigo mesmo e com o outro
Se o indivíduo ainda não
despertou, cabe a quem despertou não exigir que ele acorde agora. O amor
impessoal começa justamente aqui: não cobrar lucidez de quem ainda não a tem.
Isso significa: manter compaixão, sem se submeter; manter respeito, sem
precisar manter a prisão; olhar o outro como ser humano em processo, não como
inimigo. Esse exercício já é amor impessoal em ação: não depender da resposta
do outro, mas agir a partir da clareza interior.
O ponto (5) descrito — o
exercício real do amor impessoal — é para pouquíssimos, porque pressupõe o
colapso completo da estrutura do falso personagem. A maioria dos que
começam a despertar para a ausência da capacidade de amor real, ainda está numa
fase intermediária: perceberam a falsidade dos alicerces da relação, mas não
possuem ainda a capacidade de amar de forma impessoal. Estão mergulhados no caos
da mutação, na dor crua e na confusão que surge quando o falso começa a se
dissolver, mas o verdadeiro ainda não se consolidou.
Essa travessia é crucial e exige
uma abordagem distinta: não tanto a realização plena do amor impessoal, mas a honestidade
radical em suportar o intervalo entre o velho e o novo.
Do colapso silencioso ao
nascimento da relação consciente
Poucos conseguem atravessar sem
se despedaçar a experiência de ver a relação perder os alicerces que antes
pareciam sólidos. É um momento em que tudo o que sustentava o vínculo — paixão,
dependência, conveniência, medo da solidão, expectativas familiares — começa a
se dissolver. A relação, que antes era refúgio, agora mostra sua nudez: foi
construída sobre bases frágeis.
Esse despertar inicial não
entrega ainda a maturidade de um amor impessoal. Ao contrário: o sujeito
percebe sua própria incapacidade de amar sem carência, sem cobrança, sem
possessividade, sem cálculos de autointeresse. É um choque duro: não só o
outro se revela como é, mas nós mesmos nos vemos desprovidos daquilo que
idealizávamos possuir.
Aqui surgem duas dores
simultâneas:
- A dor de constatar a falsidade do vínculo.
- A dor de perceber que ainda não temos dentro de nós
a fonte de amor verdadeiro.
É como estar no limbo: o velho
não serve mais, o novo ainda não nasceu. A mente fica em confusão, os afetos se
embaralham, o corpo sente o peso do luto, da frustração, da falta de chão.
Nesse estágio, o exercício não é
exigir de si o amor impessoal (isso seria mais uma ilusão), mas aprender a
atravessar o intervalo confuso com honestidade e observação lúcida. Algumas
chaves podem ajudar:
- Silenciar as reações automáticas: não correr
para anestesias (fuga geográfica, novo parceiro, excesso de trabalho,
vícios). Dar espaço para a dor respirar.
- Ver o outro como ser humano real: não mais
como muleta, salvador ou inimigo, mas como ele é — limitado, imaturo,
igualmente prisioneiro das próprias confusões.
- Reconhecer a própria limitação: admitir com
humildade que ainda não sabe amar de forma livre. Essa aceitação já é um
passo para fora do apego relacional.
- Permitir que a relação mude de natureza: a
união inconsciente, baseada em carências, pode se transformar num campo de
aprendizado mútuo. É preciso estar muito atento aos impulsos emotivos
reativos escapistas que pedem por rompimento imediato; é possível escolher
permanecer, com profunda honestidade emocional com o parceiro, enquanto se
desenvolve um outro olhar, mais maduro, menos dependente, responsável e
integrativo.
- Cuidar do coração ferido: atravessar o luto
da velha sustentação relacional, a desilusão, o vazio, sem exigir que eles
terminem rápido. A dor é o parto.
Esse é o momento de mutação
silenciosa da relação: ela deixa de ser uma fusão inconsciente para se
tornar, se houver disposição dos dois, um espaço de conhecimento real. O outro
passa a ser visto não como extensão do eu, mas como alteridade. A relação deixa
de ser prisão e pode se tornar escolha consciente: permanecer, não
porque preciso, mas porque quero compartilhar o caminho.
Claro, isso exige tempo,
paciência e vigilância interior. A confusão é inevitável. A dor é inevitável. Mas
é nesse caos que o alicerce falso se desmancha, abrindo a possibilidade de um
vínculo realmente maduro, lúcido, responsável.
O confrade precisa ter em mente, que
existe um paradoxo nas relações humanas: mesmo nascendo de adulterações
— carência, fuga, hormônio, conveniência, medo da solidão — muitas vezes surge,
no decorrer da convivência, um bem-querer. Ele não é amor impessoal,
ainda não é o amor livre e desinteressado, mas também não é apenas a repetição
mecânica da necessidade inicial. É algo que brota no meio do terreno
adulterado, como uma planta frágil crescendo numa rachadura de concreto.
Esse bem-querer pode se
tornar um rito de passagem. Destrincharemos agora essa percepção, em
alguns pontos:
1. O bem-querer como produto
da convivência - Quando duas pessoas dividem vida, dores, alegrias, quando
cuidam uma da outra em pequenos gestos cotidianos, mesmo que o início tenha
sido inconsciente, por valores adulterados e adulterantes, algo genuíno pode
nascer. Esse sentimento não é ainda o amor impessoal, porque ainda traz traços
de apego, expectativa e projeção, mas é mais que a pura conveniência inicial. É
o reconhecimento silencioso: “apesar de tudo, quero o seu bem”.
2. O bem-querer como depuração
- Esse sentimento pode funcionar como um fogo depurador. Ele queima dia
após dia, a possessividade, a dependência e o egoísmo, abrindo espaço para algo
mais sutil. Do mesmo modo que se desenvolveu a codependência, isso também ocorre
lentamente, não é absoluto, mas já desloca a relação de um lugar puramente autocentrado,
para uma zona de aprendizado e mutação relacional. Aos poucos, o outro deixa de
ser apenas instrumento da necessidade pessoal e começa a ser percebido como ser
humano autônomo.
3. O risco da confusão - O
problema é que muitos confundem o bem-querer com o amor maduro. E aí
cristalizam o vínculo num limiar intermediário, acreditando que já chegaram ao
destino, quando na verdade apenas saíram do ponto de partida. É preciso
honestidade para distinguir: “ainda não amo de forma impessoal, mas já não
vivo apenas de carência”. Esse reconhecimento evita tanto o desprezo cínico
quanto a ilusão romântica.
4. O bem-querer como rito de
passagem - Se vivido com consciência, e profunda honestidade emocional na
relação, esse estágio pode ser um rito de passagem. O indivíduo aprende,
dentro da relação, a experimentar o movimento de querer o bem do outro, não
apenas como reflexo de si mesmo, mas por ele. Ainda misturado, ainda frágil,
mas já um ensaio do amor real. Esse rito exige vigilância: observar os momentos
em que o bem-querer se mistura com posse, notar quando o desejo de liberdade
cede ao medo da solidão, perceber a sutileza dos jogos da velha estrutura
fundamentada no medo e no cálculo autocentrado. Essa observação é o que
transforma o bem-querer em trampolim para o amor real.
5. O bem-querer como campo de
treino para o amor impessoal - Ninguém amadurece para o amor impessoal de
um salto. Ele é raro justamente porque exige o assistir silencioso do Abismo do
terror que advém do colapso total do personagem adulterado e adulterante. Mas o
bem-querer pode ser campo de treino:
- Aprender a ouvir sem impor.
- Aprender a respeitar a alteridade do outro.
- Aprender a desejar o bem mesmo quando não há
retorno direto.
- Aprender a permanecer mesmo quando não há prazer
imediato.
Esses exercícios não são ainda o
amor impessoal, mas são passos fundamentais na direção dele.
6. O perigo da estagnação e a
possibilidade da transmutação - O risco maior é estacionar no bem-querer,
transformando-o em justificativa para manter relações que já não têm vida,
apenas hábito. Mas a possibilidade mais luminosa é a transmutação: esse
sentimento simples, humilde e cotidiano pode ser a porta de entrada para a
experiência maior. É um ensaio imperfeito que, se vivido com clareza e
honestidade emocional, prepara o terreno para que o amor impessoal floresça.
Embora a maioria das relações nasçam
em terreno adulterado, o bem-querer desenvolvido não deve ser desprezado. Ele
pode ser visto como ponte, rito de passagem e campo de treino. Mas exige
vigilância: não confundi-lo com amor pleno, nem descartá-lo como mera ilusão.
Ele é intermediário, frágil, mas talvez seja exatamente o que muitos precisam
viver antes que o verdadeiro se revele.
Em outra oportunidade, visto a
importância destema tema, abordaremos com mais profundidade a questão do “bem-querer
como rito de mutação relacional” — explorando como ele surge, como pode ser
vivido sem ilusão e como pode ser transmutado em amor consciente.