Sendo numerosos os problemas de cada ser humano, não apenas na Índia mas no mundo inteiro, o mais importante, parece-me, é descobrir-se uma nova maneira de considerá-los. Porém, para a maioria de nós, é bem difícil encontrar esse novo modo de considerar os problemas, porque acostumamo-nos a pensar conclusivamente; e, sem dúvida, pensar com uma conclusão não é pensar nenhum. Mas não é fácil nos livrarmos do pensamento baseado em conclusão. Em geral, pensamos em qualquer problema, por mais complexo que seja, como hinduístas, como cristãos, budistas ou comunistas, e isso indica que nos abeiramos do problema com a mente já "preparada"; e, assim, o problema, que requer um exame totalmente novo, sempre se nos escapa e se multiplica.
Ora, é possível a entes humanos como vós e eu, como indivíduos, livrarem-se de todas as conclusões, de todo e qualquer pensamento condicionado, psicologicamente formado e controlado pela sociedade, pela chamada cultura? Não sei se já pensastes nesta matéria, mas, por certo, a questão não é de como resolvermos os nossos problemas; trata-se, antes, de compreender o problema, qualquer que ele seja. Temos muitos problemas na vida, não só econômicos e sociais, senão também o problema da morte e da imortalidade, o problema de descobrir se existe uma realidade, Deus — ou como quiserdes chamá-lo; e, a meu ver, só poderemos compreender e resolver esses problemas quando formos capazes de considerá-los, não com a mente dividida, porém com a mente "integrada". Aí se encontra, penso eu, toda a nossa dificuldade. Como é possível, então, nos abeirarmos de tantas questões com a mente já purificada de todas as obstruções, de todos os preconceitos, de todas as conclusões religiosas e pressões psicológicas que nos foram impostas no curso das idades? O problema, por certo, nunca é velho; ele varia e está em movimento constante. Mas nossa mente é estática, já está ajustada, formada, condicionada por nossos pretéritos pensamentos, temores e esperanças.
Assim é que invariavelmente nos abeiramos dos problemas com uma mente que já concluiu; e acho que a questão consiste inteiramente em nos habituarmos a libertar a mente de todas as conclusões, porque o pensar que se inicia com uma conclusão não é pensar, em absoluto. Se eu penso como hinduísta, é claro que meu pensamento é sem vitalidade; faz parte de uma suposição sem valor, e procura resolver os complexos problemas da existência através do crivo de determinada conclusão, preconceito ou ideia.
Mas é possível libertar a mente da ideação? Porque estas reuniões não vão ser uma troca de ideias. Não vou expor uma nova filosofia, um novo sistema de ideias, dogmas, doutrinas. Para mim, tudo isso crenças, ideias, dogmas, doutrinas — são empecilhos à percepção do que é verdadeiro, e se estais esperando uma nova coleção de ideias com que enfrentardes o célere movimento da vida, sinto dizer que não só ficareis decepcionados, mas também confusos. Já se pudermos pensar no problema de maneira nova, não como hinduístas, muçulmanos, budistas, comunistas ou cristãos, não como "quem sabe" e como "quem não sabe" — coisa realmente absurda —, porém como entes humanos interessados em resolver o problema da existência, então, acho que estas palestras terão verdadeira utilidade. Porque, fundamentalmente, só há um problema, que é o "processo" integral da existência — não de uma existência religiosa em oposição a uma existência mundana, nem de uma existência espiritual em oposição à da sociedade.
Os numerosos problemas humanos que nos defrontam estão-se tornando cada vez mais complexos, mais mortalmente destrutivos, causando enorme sofrimento não só aos indivíduos, mas também à vida coletiva dos povos; e se desejamos considerar esse "processo" da existência em sua perspectiva total, necessita-se de uma vital transformação em nosso pensar. Isto é bem óbvio, não achais? Se eu penso como comunista, meu pensamento está baseado numa conclusão preestabelecida, a qual, por mais inteligente e sutil que seja, não pode resolver o problema, pois este é totalmente novo, cada vez que me ponho a considerá-lo. Como ente humano desejoso de compreender esse inteiro processo da existência, com todas as suas complexidades, suas aflições, divisões e incessante conflito, é claro que a ele devo aplicar-me com uma mente não condicionada como hinduísta, budista, comunista ou cristã; mas, infelizmente, nossa mente está condicionada. Sabeis o que entendo por "mente condicionada". Por meio da educação, de sanções religiosas e compulsões psicológicas da sociedade, nossa mente foi ajustada a um certo padrão. Vós pensais como hinduísta, como muçulmano, ou o que quer que seja; ou, se rejeitastes os padrões mais ortodoxos, pensais como um homem que está livre de tudo isso, porém condicionado por suas próprias ideias, suas próprias conclusões, baseadas em estudos e experiências pessoais. Assim, há possibilidade de nos abeirarmos dos problemas da existência humana com a mente inteiramente livre de condicionamento?
Nossa investigação não visa então a descobrir como resolver o problema, porém a descobrir como pode a mente libertar-se de seu condicionamento, tornando-se fresca, nova e, portanto, capaz de aplicar-se ao problema de modo criador, e não, como está fazendo, de maneira fracionária e destrutiva.
Como já disse, estamos aqui conversando não com o fim de permutarmos ideias ou de promulgarmos uma nova filosofia — pois isso é absurdo em extremo —, porém, antes, com o fim de investigarmos profundamente em nós mesmos, como seres humanos, para vermos se é possível libertar a mente — nossa mente, não a mente de outro — do condicionamento que lhe foi imposto no decurso de séculos. Se dizeis ser impossível libertar a mente de seu condicionamento, ou se pressupondes que é possível, nesse caso já tendes uma conclusão e, consequentemente, já não há pensar criador. O importante é que, escutando o que se está dizendo, vos torneis cônscios de vós mesmos, de vosso próprio condicionamento, vosso próprio pensar, cônscios, portanto, de como vossa mente opera. Dessa forma, ficareis aptos a libertar a mente de seu condicionamento, não por me estardes ouvindo, mas pelo observardes a vossa mente mediante a descrição que estou fazendo. Acho importante compreender isso logo de início, porque só assim se pode estabelecer a relação correta entre nós. Para mim, a ideia de guru e discípulo é completamente falsa, porquanto só pode causar a escravização do pensamento. Eis por que tanto importa estabelecer desde o começo a correta relação entre o orador e vós.
O que estamos tentando é descobrir sem que nos digam o que devemos achar, e isso significa que vós e eu temos de ter uma mente capaz de descobrimento; mas nada descobriremos, se partirmos de uma série de conclusões ou experiências, nossas ou de outro, e aí é que está nossa principal dificuldade. Se vos observardes, vereis que vosso pensamento é apenas uma série de citações do Gita, do Alcorão, ou da Bíblia, ou do que foi dito por Buda ou pelo mais moderno santo e, em tais condições, a mente é incapaz de descobrimento. Descobrir é não só encontrar as soluções para nossos problemas, mas também, com a compreensão dos problemas, descobrirmos por nós mesmos o que é verdadeiro, se existe a Realidade, Deus, em vez de meramente afirmarmos que existe ou não existe.
Ora, como poderá a mente, tão condicionada, tão restrita pela autoridade, pela tradição, libertar-se do passado? Notai, por favor, que não apresento uma teoria, nem vos estou dizendo o que deveis fazer. Se eu vos dissesse o que deveis fazer e vós o fizésseis, isso seria completamente errôneo, porquanto estaríeis então seguindo a outrem. Podeis abandonar o velho e seguir o novo, mas continuais a ser um seguidor, e quem segue nunca encontrará o que é verdadeiro, nunca descobrirá por si mesmo se existe a Verdade, Deus, a Paz.
Por conseguinte, eu não vos estou indicando o caminho da Verdade, porque a Verdade não tem caminho, nem sistema; ela não se acha mediante cultivo da virtude, porque o cultivo da virtude é apenas uma forma de atividade egocêntrica. Precisais de uma mente livre para descobrir o real, e é dificílimo ter uma mente livre, mente não travada pela tradição, mente que tenha deixado de aceitar ou rejeitar conclusões, uma mente não pejada de experiência, por mais nobre ou mais transitória que seja. O importante não é seguirdes meramente o que eu digo, porém descobrirdes vós mesmos como vossa mente está condicionada e verdes se é possível libertá-la desse condicionamento. Vossa mente está evidentemente condicionada; isto, quer vos agrade quer não, é um fato, e enquanto vos denominardes indiano, hinduísta, comunista, o que quer que seja, estareis sustentando esse condicionamento.
Ora, como pode uma pessoa ficar cônscia de seu condicionamento? Entendeis o problema? Podeis afirmar verbalmente que estais condicionado; mas o afirmá-lo simplesmente, e o descobrir que estais condicionado, no vosso falar, no vosso pensar, de dúzias de maneiras, são dois estados completamente diferentes. Saberdes que sofrei é uma coisa, e simplesmente especular acerca do sofrimento é outra. Infelizmente, em geral, especulamos superficialmente sobre o nosso condicionamento, e dessa maneira criamos uma divisão entre nós, como realmente somos, e a ideia de estarmos condicionados. Isso é claro, não?
Em todas as partes do mundo o homem dividiu sua existência em espiritual e mundana, e essa divisão existe em nossa vida. Buscais Deus, meditais, etc., enquanto na vida diária sois ambiciosos, estais buscando o poder, a posição, o prestígio — e procurais combinar as duas coisas e, desse modo, criar algo. Viveis assim uma existência esquizofrênica, uma existência fracionada, secionada, e verificardes por vós mesmos que existe esta cisão é muito diferente da simples aceitação da ideia, não achais? Saber que tenho fome, sentir-lhe o tormento, é uma coisa, e pensar a respeito da ideia da fome é um estado completamente diferente. A maioria de nós está meramente pensando sobre esses problemas, não os está sentindo. Se fôssemos capazes de sentir totalmente qualquer problema, então nossa maneira de considerá-lo seria totalmente diferente, não fracionária; e considero muito importante compreender como a mente está enredada nas palavras e, portanto, incapacitada de olhar o fato livre da palavra.
Se estais ouvindo tudo isso como uma mera palestra, uma conferência como outra qualquer, o que se está dizendo terá então pouca significação. Só terá real valia, se o escutardes com o fim de descobrir como vossa mente opera, observando como está ela dividida em fragmentos, cada fragmento em conflito com outro, como outros tantos desejos opostos, e que aí vos achais presos e tentando levar a paz ao meio de toda esta confusão.
Há, pois, uma vasta diferença entre o fato e uma opinião ou ideia a respeito do fato. Qual é realmente o vosso caso? Estais enfrentando o fato, como quer que ele seja, ou trata-se apenas de vossa opinião acerca do fato? E pode-se libertar a mente da opinião, da conclusão, e olhar diretamente o fato? Se podemos olhá-lo dessa maneira, há então ação "integrada", compreensão completa do fato e, por conseguinte, a dissolução do fato.
A dificuldade é que, se existe problema em nossa vida, como realmente existe — o problema do sofrimento, da solidão, da divisão — a dificuldade é que desejamos uma solução; mas a solução não se encontra fora do problema. Prestai um pouco de atenção. A solução do problema se encontra no próprio problema, e não fora dele. Ora, nossa própria existência se tornou um problema, e para compreendermos nossa existência, cumpre, naturalmente, olhá-la, não em conformidade com o que a seu respeito se disse, porém tal qual ela realmente é. Muito importa uma pessoa conhecer-se, não achais? Porque, se não conhecer a si mesma, o que quer que pense, o que quer que creia, não terá base nem validade. Assim, primeiramente deveis conhecer-vos, pois esta é a base sobre a qual podeis edificar; em verdade, se não há autoconhecimento, vosso construir nenhuma significação tem. Porém, a dificuldade é que em geral não desejamos conhecer-nos. Estamos entediados de nós mesmos e queremos fugir a esse tédio por meio de uma distração qualquer: procurar o guru, frequentar a igreja, executar rituais, buscar poder, posição — todas essas preocupações da moderna sociedade.
O importante, pois, é conhecer a si próprio. O autoconhecimento é o começo da sabedoria, e adquirir autoconhecimento não é um problema complexo. Podeis conhecer a vós mesmos como realmente sois, observando-vos a cada minuto do dia ou quando for possível. Se desejo conhecer-me, tanto a parte consciente como a inconsciente, se desejo compreender toda a estrutura do "eu", devo observar-me quando entro no ônibus, quando estou conversando com um amigo; devo observar a maneira como falo a minha mulher, meu patrão, meu criado. Por certo, só me posso ver como sou no espelho das relações. Estais seguindo? Se vos aplicardes a isso realmente, vereis que é extraordinariamente simples.
Não havendo autoconhecimento, não há solução possível nem para o problema do mundo nem para vosso problema pessoal. Sabeis muito bem o que está acontecendo no mundo. Há confusão e tirania em escala cada vez maior. Por toda a parte está a espalhar-se o sistema do "partido único", encabeçado por um grande líder, assim chamado. O homem está sendo moldado, condicionado para pensar segundo um certo padrão, dentro de uma certa esfera e, consequentemente, evitando a revolução religiosa. E pode-se ver que é necessária uma revolução dessa natureza, revolução não baseada em convulsão econômica ou social, porém revolução total, revolução verdadeiramente religiosa. Não me refiro à religião do hinduísta, do budista ou do cristão. Isto não é religião, em absoluto, porém mero dogma, sistema de crenças oriundas do medo, do desejo de segurança, de sentar-se "à direita de Deus-Pai", o que quer que seja. Religião é coisa bem diversa, e para se achar a vida religiosa necessita-se de revolução total em nosso pensar. Para criar um mundo diferente, uma civilização inteiramente nova, deve cada um de nós começar da base correta, e essa base correta se lança com o autoconhecimento. Deveis começar a conhecer a vós mesmos, e não simplesmente a parte superficial de vossa consciência.
Fizeram-me algumas perguntas, as quais tentarei investigar; mas antes disso eu gostaria de saber por que interrogais. Ou pretendeis que outrem vos indique a maneira de sairdes de vossa confusão, ou esperais vos seja mostrado como resolver os vossos problemas. É bom duvidar, criticar, inquirir, e nunca aceitar; mas quando inquirimos temos sempre um fim em vista e, por essa razão, isso já não é uma verdadeira investigação. Se tendes um problema, desejais para ele uma solução imediata, não é verdade? Do contrário, não faríeis a pergunta. Não estais procurando compreender o problema, mas, sim, procurando solução satisfatória, um abrigo seguro, onde nunca sejais perturbado; por conseguinte, já não estais investigando o problema, e acho muito importante perceber isso.
Assim, ao considerar essas perguntas, não vou dar respostas, porquanto a vida não tem resposta: a vida é para ser vivida, compreendida, e dela não devemos fugir para abrigo nenhum. Para compreendermos esta tão complexa existência e descobrirmos se existe a Realidade, temos de proceder com muita cautela, experimentalmente, porque só assim poderemos começar a compreender a nós mesmos, toda a estrutura do nosso ser.
Krishnamurti — O Homem Livre — Cultrix – Páginas 7 à 13