“A
mente é o vaso do movimento, e quando o movimento não tem forma, quando não há “Eu”,
nem visão, nem imagem, a mente está completamente quieta... Nela não há
memória. Então, as células cerebrais experimentam uma transformação... As
células cerebrais estão acostumadas a moverem-se no tempo. São o resultado do
tempo, e o tempo é movimento, um movimento dentro do espaço que ela cria a
medida que se move... Quando não há movimento, há uma concentração de
energia... De modo que a mutação é a compreensão do movimento e o cessar do
movimento nas próprias células cerebrais”.
A
CHAMA DA DOR
Passeávamos
pelos jardins públicos, próximo de um imenso hotel. O céu do oeste tinha um tom
azul dourado e os ônibus e automóveis passavam ruidosamente. Havia nesse jardim
jovens plantas cheias de promessas; eram regadas todos os dias. Ainda estavam
construindo, criando os jardins, e um pássaro vibrava no céu agitando
rapidamente as asas antes que se precipitasse para a terra; e neste se somava a
lua cheia. A beleza não estava em nenhuma destas coisas senão no imenso vazio
que parecia conter a terra. A beleza era o pobre homem que com a cabeça
abaixada levava uma pequena botija de azeite.
KRISHNAMURTI:
Que significado tem a dor neste pais? Como o povo deste país encara a dor?
Fogem da dor mediante a explicação do Karma?
Como a mente indiana opera quando se enfrenta com a dor? Os budistas a encaram de
um modo, os cristãos de outro. Como a encara a mente hindu? Resiste a dor ou
dela escapa? Ou a mente hindu a racionaliza?
Interlocutor
P: Existem realmente muitos modos de
encarar a dor? Dor é sofrimento — o sofrimento de alguém que morre, o
sofrimento da separação. É possível enfrentá-lo de diversos modos?
KRISHNAMURTI:
Existem diversas vias de fuga, mas só há um modo de enfrentar-se a dor. As
fugas com as quais todos estamos familiarizados são na realidade maneiras de
iludir a grandeza da dor. Como vê, encaramos a dor com explicações, mas estas
explicações não são uma resposta ao problema. O único modo de entender-se com a
dor é fazê-lo sem resistência, sem um só movimento, externo ou interno, para
fugir; há que permanecer totalmente com a dor, sem desejar achar-se fora dela.
P:
Qual é a natureza da dor?
KRISHNAMURTI:
Há a dor pessoal, a dor que vem com a perda de alguém a que se ama, a solidão,
a separação, a ansiedade pelo outro. Com a morte está também o sentimento de
que o outro cessou de existir e que havia tanto que ele gostaria de fazer. Tudo
isso é dor pessoa; Logo há esse homem mal vestido, sujo, que abaixa a cabeça;
ele é ignorante, ignorante não só em conhecimentos livrescos, senão real e
profundamente ignorante. O sentimento que se tem pelo homem não é de piedade,
nem há uma identificação com esse homem; não se trata de que por encontrar-se
em uma posição melhor experimente piedade por ele, senão que dentro de si há o
sentimento da carga atemporal da dor no homem. Nada há de pessoal na relação
com esta dor. Ela existe.
P:
Enquanto você falava, o movimento da dor
tem estado operando dentro de mim. Não há uma causa imediata para esta dor, mas
ela parece ser como uma sombra que sempre acompanha ao homem. O homem vive,
ama, estabelece vínculos e tudo isso termina. Qualquer que seja a verdade do
que você diz, há tanta infinitude de dor nisto! Como isso pode terminar? Parece
não haver resposta. Outro dia você disse que na dor está contida todo o
movimento da paixão. O que isso significa?
KRISHNAMURTI:
Existe uma relação entre a paixão e a dor? Pergunto-me o que é a dor. Há uma
tal coisa como a dor sem causa? Nós conhecemos a dor que tem causa e efeito.
Morre meu filho; nisso está envolvida minha identificação com o filho, meu
desejo de que ele seja algo que eu não fui, minha busca de continuidade através
dele. E quando ele morre, tudo isso é negado, e eu me encontro completamente
vazio de toda esperança. Nisto há autopiedade, medo. Nisto há uma pena que é a
causa da minha dor. Esta é a parte que a todos nos toca. Isto é o que
entendemos por dor.
Logo,
há a dor do tempo, a dor da ignorância, não a ignorância com relação aos
conhecimentos, senão a ignorância com relação ao próprio condicionamento
destrutivo; a dor de não conhecer-se a si mesmo, de não conhecer a beleza que
está nas profundidades do próprio ser, e mais além.
Vemos
que ao escapar da dor mediante diversos tipos de explicações, na realidade desperdiçamos
pouco a pouco um fato extraordinário?
P:
Então, o que é que se há de fazer?
KRISHNAMURTI:
Você não respondeu a minha pergunta: “Existe uma dor sem causa e efeito?” Nós
conhecemos a dor e o movimento para fugir da dor.
P: Você fala da dor livre de causa e efeito.
Existe um estado semelhante?
KRISHNAMURTI:
O homem tem vivido com a dor desde tempos imemoriáveis. Nunca soube como
entender-se com a dor. Por isso, lhe tem rendido culto ou tem escapado dela.
Ambas as coisas são o mesmo movimento. Minha mente não faz nem um nem outro, e
tampouco utiliza a dor como um recurso para despertar. O que ocorre então?
P: Todas as outras coisas são o produto de
nossos sentidos. A dor é mais que isto. É um movimento do coração.
KRISHNAMURTI:
Eu lhe pergunto qual é a relação que há entre a dor e o amor.
P: Ambos são movimentos do coração.
KRISHNAMURTI:
O que é o amor e o que é a dor?
P: Os dois são movimentos do coração; um se
identifica como felicidade e outro como sofrimento.
KRISHNAMURTI:
O prazer é amor? Você diria que a felicidade e o prazer são a mesma coisa? Sem
compreender a natureza do prazer, a felicidade carece de profundidade. Você não
pode convidar à felicidade, ela ocorre. O sucesso pode transforma-se em prazer.
Quando esse prazer é negado, começa a dor.
P: Em um nível é assim, mas não em outro nível.
KRISHNAMURTI:
Como dissemos, a felicidade não é algo que possa ser convidado. Acontece. Eu
não posso convidar ao prazer, posso perseguir o prazer. Se o prazer é amor,
então o amor pode cultivar-se.
P:
Sabemos que o prazer não é amor. O prazer
pode ser uma manifestação do amor, mas não é o amor. Ambos, tanto a dor como o
amor, emergem da mesma fonte.
KRISHNAMURTI:
Eu perguntei que relação há entre a dor e o amor. Pode haver amor se há dor?
(sendo a dor, todas as coisas que temos falado).
P: Eu diria “Sim”.
KRISHNAMURTI:
Na dor há um fator de separação, de fragmentação. Não existe uma grande dose de
autopiedade na dor? Qual é a relação de tudo isso com o amor? Há dependência no
amor? O amor tem a qualidade do “eu” e do “tu”?
P: Mas você fala de paixão...
KRISHNAMURTI:
Há amor quando não existe o movimento para escapar da dor. A paixão é a chama
da dor, e essa chama só pode despertar-se quando não há fuga nem resistência.
Isso significa que a dor não tem em si a qualidade da divisão.
P: Em tal sentido, há alguma diferença entre
esse estado de dor e o estado de amor? A dor é sofrimento. Você disse que
quando nesse sofrimento não há resistência, nem há um movimento para escapar,
emerge a chama da paixão. Estranhamente, nos textos antigos se diz que Kama
(amor), agni (fogo) e yama (morte), são o mesmo; são colocados no mesmo nível,
são completamente idênticos; criam, purificam e destroem para voltar a criar.
Tem que haver um fim.
KRISHNAMURTI:
Como vê, é assim. Qual a relação de uma mente que tenha compreendido a dor, e,
portanto, tenha cessado com a dor? Qual é a qualidade da mente que já não teme
o fim, o qual é morte?
Quando
a energia não se dissipa mediante a fuga, essa energia se converte na chama da
paixão. Compaixão significa paixão por tudo. A compaixão é a paixão por tudo.
Nova Delhi
12 de dezembro de 1970
Tradição e Revolução
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