A MENTE, O CÉREBRO, O VAZIO
Pupul Jayakar (PJ): Senhor, há pouco, em um dos jornais, li a notícia de
que haviam lançado uma nave espacial que viajaria pelos espaços exteriores do
universo. Esta nave formaria parte do universo, e a viagem não terminaria
jamais, já que não haveria o envolvimento da fricção e nem do tempo.
Jiddu Krishnamurti (K): Sim.
PJ: Minha pergunta é: Há dentro do ser, do cérebro humano, da mente humana
— chame-o como quiser —, há dentro das coisas, seja do homem, da árvore, da
natureza, algo que seja um espaço sem fim, uma imagem refletida dessa
imensidade que existe?
K: Você pergunta — se posso repetir o que disse — se há ou pode haver,
dentro do cérebro humano, um espaço infinito, uma eternidade fora do tempo? Eu
gostaria de distinguir entre o cérebro e a mente. Veja, podemos especular
muitíssimo, como o tem feito os filósofos mas essa especulação não é a
realidade.
PJ: Não, mas se não se postula algo, nem se quer pode...
K: Não. Quero ser claro neste ponto. Agora, em nossa conversação, estamos
especulando e teorizando, ou realmente tratamos de descobrir se dentro de nós mesmos há algo imenso, se
existe, de fato, um movimento que não é do tempo, senão que é eterno?
PJ: Como se começa a investigar? Começa por examinar ou levantar a
pergunta? Se não se levanta a pergunta...
K: A temos levantando.
PJ: Então, o que surge disso, especulação ou exame, depende de como se o
aborda; mas a pergunta deve ser levantada.
K: Expressamos a pergunta: Pode o cérebro compreender a verdade acerca de
se a eternidade existe ou não? Essa é a pergunta, certo?
PJ: Sim.
K: Agora. Você pergunta: Como se começa a investigar isso? Como começa a
tatear, suavemente, com certa incerteza, seu caminho nesta pergunta
verdadeiramente fundamental? Se o homem está sempre preso ao tempo, ou se o
cérebro pode mudar, em si mesmo — não imaginariamente, não romanticamente, senão
de fato — um estado de eternidade, é uma interrogação que o homem tem se feito
durante milhões de anos. E essa é a pergunta que também formulamos.
PJ: Você começou traçando uma distinção entre o coração e a mente.
K: Sim.
PJ: Poderia, por favor, explicar isso com detalhe?
K: Em primeiro lugar, dizemos que o cérebro ou ao menos certa parte dele
se acha condicionada. Esse condicionamento tem sua origem na experiência; é
conhecimento e memória. E, como a experiência, o conhecimento e a memória são
limitados, o pensamento é limitado.
PJ: Sim.
K: E bem, nós temos estado funcionando na área do pensamento.
PJ: Concordo.
K: E para descobrir algo novo, tem que haver, ao menos transitoriamente,
um período no qual o pensamento não se mova, que se mantenha em suspenso.
PJ: O cérebro é uma coisa material.
K: Sim.
PJ: Tem sua própria atividade.
K: Sim, tem sua atividade própria não imposta pelo pensamento.
PJ: Mas durante séculos, a operação do cérebro tem sido a operação do
pensamento.
K: Isso é tudo. É o que estamos dizendo, ou seja, que todo o movimento do
cérebro — ao menos essa parte que temos usado — está condicionada pelo
pensamento; e o pensamento é sempre limitado e, por onde, se acha condicionado
pelo conflito. O que é limitado deve, por força, gerar divisão.
PJ: O que é a mente, então?
K: A mente é uma dimensão por completa distinta e que não tem contato com
o pensamento. Deixe-me explicá-lo. O cérebro — a parte do cérebro que tem
estado funcionando como instrumento do pensar — se acha condicionada, e
enquanto essa parte do cérebro permanece nesse estado, não há comunicação com a
mente. Quando esse condicionamento não existe, então essa mente, que se
encontra numa dimensão por completo distinta, se comunica com o cérebro e atua usando
o pensamento.
PJ: Mas você já levantou...
K: Oh!, Claramente!
PJ: ...um estado fora do reino do pensamento.
K: Isso é correto: fora. E, portanto, fora do reino do...
PJ: ...tempo.
K: Sim, do tempo.
PJ: Visto que o tempo parece ser o núcleo essencial deste problema...
K: O tempo é pensamento.
PJ: O pensamento é um produto do tempo. Quero dizer que,em certo sentido,
o pensamento é tempo.
K: Disso se trata, é o que realmente importa. O que você quer dizer,
então, é por onde se começa?
PJ: Não, não. Quem sabe poderíamos investigar todo este assunto da
corrente do tempo, e em que instante é possível a interceptação...
K: O que você entende por “interceptação”? Não capto muito bem o uso dessa
palavra. Quem intercepta?
PJ: Não falo de um interceptador, senão da corrente...
K: O findar dela.
PJ: Eu ia usar outra palavra, mas se, poderia usar a palavra “findar”.
K: Usemos palavras mais simples.
PJ: O tempo procede de um passado imemorial.
K: Sim, o tempo, que é pensamento.
PJ: O pensamento também procede de um passado imemorial, e se projeta para
um futuro, o qual também é eterno.
K: Não! O futuro está condicionado pelo passado — como uma psique humana.
PJ: Sim. Portanto, a menos que a civilização humana, que a cultura humana chegue
a seu fim, a menos que o ser humano deixe de estar...
K: ... deixe de estar condicionado, correto?
PJ: O conteúdo experimentará uma transformação, mas o mecanismo do
pensamento continuará.
K: Bem, expressemo-lo deste modo. O pensamento é o instrumento principal
que temos. Concorda?
PJ: Sim.
K: Milhões de anos de múltiplos esforços e ações não só tem embotado esse
instrumento, senão que esse instrumento também tem alcançado seu limite. O
pensamento-tempo é limitado, está condicionado, dividido, e se acha em um
estado perpétuo de agitação. Bem, agora, isso pode terminar? Essa é a pergunta.
PJ: Então, esse movimento do passado como pensamento, como o ontem...
K: Como o hoje.
PJ: O que é o “hoje”?
K: O “hoje” é o movimento do passado que se modifica — a memória. Somos
um feixe de recordação.
PJ: Isso é certo, mas o contato com o tempo...
K: O que você entende por “contato com o tempo”? O tempo é pensamento.
PJ: Mas o contato com o tempo, como processo psicológico, está no presente,
não é assim?
K: Pupul, sejamos muito cuidadosos. O tempo é pensamento. Não separemos o
tempo como se fosse algo diferente do pensamento. É tempo-pensamento.
PJ: Sim. Eu estou usando o passado, o presente e o futuro...
K: Você pergunta o que é o “agora”?
PJ: É a “interceptação” de que estou falando. Permita-me usar minha palavra
para que eu a dê por eliminada.
K: Muito bem, muito bem; “interceptação”, mas não entendo bem.
PJ: Interceptação é “contato com”, contato com o fato.
K: Contato com o fato de que todo o movimento do pensar...
PJ: Nem sequer isso. Só contato com “o que é”.
K: Ou seja, o “agora”.
PJ: O qual é tudo o que é. Sua declaração de um momento atrás e minha ação
de escutá-la, constituem o contato com “o que é”.
K: Posso expressá-lo de modo que eu o compreenda? O passado, o presente e
o futuro, implicam um processo de tempo-pensamento. Como você se dá conta
disso? Como chega a ver essa verdade, esse fato?
PJ: Não, senhor, existe uma coisa como o toque tátil.
K: Sim, o tato. Como você toca isto? Como — para usar suas palavras —
entra em contato com este fato de que se é toda uma série de recordações que
são tempo-pensamento?
PJ: Não, sejamos mais concretos. O que vou a avançar nesta tarde e quem
sabe lhe esteja abandonando, é um pensamento.
K: Não é um pensamento; é uma realidade.
PJ: Uma realidade, sim; mas por causa disso há certa pena de ter que
deixá-lo, e para dissimular o fato afluem elementos emocionais, psicológicos.
K: Sim, e então, quê?
PJ: Sinto esta pena.
K: A pena? Entendo. Você pergunta: A pena de séculos, de um milhar de
anos, a pena da solidão, da dor, da aflição, da angústia, da ansiedade e tudo
isso, está separado do “eu” que a sente?
PJ: Pode não estar separado.
K: Isso sou eu. (De modo categórico).
PJ: Como eu posso tocar isso?
K: Não entendo totalmente seu uso da expressão: “Como eu posso tocar isso?”
PJ: Senhor, isso se encontra tão só no presente...
K: Vejo o que quer dizer.
PJ: Só no presente se assenta todo este edifício.
K: Isso é o que disse. O “agora” contém o passado, o presente e o futuro.
PJ: Sim.
K: Espere, entendamos isto. O presente é a totalidade do passado e do
futuro.
PJ: Sim.
K: Isto é o presente. O presente sou eu com todas as recordações de um
milhar de anos, e esses mil anos estão sendo modificados a todo tempo. Tudo
isso é o “agora”, o presente.
PJ: Mas o presente tampouco é algo estático. Se finda antes...
K: É claro, é claro. Apenas você tem dito isso, o presente passou.
PJ: Passou. Então, o que é isso que se vê realmente, que é que realmente
observa?
K: Observa-se realmente o fato...
PJ: Que fato?
K: O fato — espere um instante — de que o presente é o movimento total do
tempo e do pensamento. Vê-se, realmente, a verdade disso. Tem um discernimento direto — não usemos a
palavra “ver” —, uma percepção
instantânea do fato de que o “agora” é a totalidade do tempo e do
pensamento.
PJ: Essa percepção, provém do
cérebro?
K: Essa percepção surge ao
perceber com os olhos, etc., ou é um discernimento
direto que nada tem que ver com o tempo e o pensamento.
PJ: Mas se origina dentro do cérebro?
K: Ou se origina fora do cérebro? Essa é sua pergunta, certo?
PJ: Sim, isso é muito importante.
K: Eu sei; por isso quero ser claro. Está dentro da esfera do cérebro, ou
esse discernimento surge quando estamos livres do condicionamento, o qual
constitui a operação da mente? Essa
liberdade é inteligência suprema, entende?
PJ: Não, não entendo.
K: Sejamos claros. O cérebro está condicionado pelo tempo e o pensamento,
o tempo-pensamento. Enquanto esse condicionamento subsista, o discernimento direto é impossível.
Pode-se ter um discernimento ocasional em algo, mas isso não é discernimento puro, o qual implica a compreensão da totalidade das coisas.
Não é tempo-pensamento, é a percepção
instantânea da completude. Portanto, esse discernimento forma parte de um
cérebro que se acha em uma dimensão diferente.
PJ: Sem percepção não pode haver
discernimento.
K: É tudo quanto estou dizendo.
PJ: Senhor, o perceber, o escutar (que está contido no perceber), parece-me
que são a natureza intrínseca do discernimento.
K: Gostaria de repetir isso, devagar, por favor?
PJ: Tomemos a palavra “discernimento” (insight
= discernimento direto na natureza essencial das coisas, uma percepção
instantânea da verdade subjacente). Significa “ver dentro”.
K: Ver dentro...
PJ: Ver dentro do ver?
K: Não, um momento; consideremos a palavra “ver”. O discernimento ou a
compreensão acerca da totalidade, da imensidade de algo, é possível somente
quando cessam o pensamento e o tempo. O pensamento e o tempo são limitados;
portanto, em uma limitação assim não pode ter lugar o discernimento.
PJ: Para compreender o que você está dizendo, devo ter um ouvido aberto e
olhos que veem. Desde esse som, desde essa forma, desde esse total...
K: Sim, desde esse significado total das palavras, etc...
PJ: ...surge um ver que vai mais além. Estou tratando de captar algo.
K: O que está tratando de captar? Realmente, não...
PJ: Você fala de discernimento. Bem, agora, o discernimento não pode
surgir sem atenção.
K: Não, espere; não introzua a palavra “atenção”.
PJ: Ou visão, ver.
K: Não, atenha-se ao mesmo. Quer dizer, o discernimento não pode existir
enquanto jogue um papel o tempo-pensamento.
PJ: Você vê isso, é como perguntar: “Quem vem primeiro?”
K: O que você quer dizer com: “Quem vem primeiro?”
PJ: Quero dizer que em minha consciência, em minha aproximação a isto, não
posso começar com o discernimento.
K: Não.
PJ: Só posso começar com a observação.
K: Só posso começar compreendendo a verdade do tempo. O tempo psicológico
e o pensamento são sempre limitados. Isso é um fato!
PJ: Isso, Krishnaji, é um fato...
K: Não, espere, comece a partir daí.
Comece compreendendo que o tempo-pensamento é sempre limitado e que, portanto,
qualquer coisa que faça será sempre limitada e, por onde, contraditória,
divisora, e dará origem a um interminável conflito. É tudo o quanto estou
dizendo. Pode-se ver o fato que isso implica.
PJ: Pode-se ver esse fato exteriormente a si mesmo.
K: Espere, espere. Pode-se vê-lo no político, no religioso. Em todas as
partes em que se vá, é um fato que o tempo e o pensamento, com sua atividade,
têm causado estragos no mundo. Isso é um fato.
PJ: Sim, sim.
K: De modo que nos perguntamos: Pode essa limitação findar alguma vez, ou
o homem está condenado para sempre a viver dentro da área do tempo-pensamento?
PJ: Qual é a relação das células cerebrais com a ação dos sentidos diante
de uma declaração como esta — não uso por agora a palavra “pensamento” —? Vê-se
o fato de que o tempo-pensamento é limitado? E o que significa isso exatamente?
Como vê isso? É como me dizer que sou uma ilusão.
K: O que disse?
PJ: Isso é exatamente como me dizer que “Pupul é uma ilusão”.
K: Não, eu não disse isso.
PJ: Mas eu digo isso.
K: Não, você não é uma ilusão.
PJ: Não, senhor, isso é exatamente igual que...
K: Não!
PJ: Porque no momento em que você disse: “Depois de tudo, Pupul é um feixe
psicológico do passado, um movimento psicológico de tempo e de pensamento, que
é a psique, e essa psique é limitada”...
K: Sim, é limitada, e qualquer coisa que faz é limitada.
PJ: Então, eu perguntaria: O que há de mal em que seja limitada?
K: Não há nada de mal se você quer viver em perpétuo conflito.
PJ: Um passo a mais. Findar com isso não é só dizer, sentir que isso é
limitado, senão que deve haver um verdadeiro final da limitação.
K: Eu digo que há.
PJ: Qual é a natureza desse final?
K: O que você entende por “o final”? Tomemos a palavra “final”. Devo ser
claro acerca do que você e eu estamos dizendo. Tem que ser claro para mim que
ambos entendemos a mesma coisa quando usamos as palavras “findar com algo”.
Findar com o apego. Não fazer mais isto ou aquilo. Não fumar. Pôr-lhe fim a
isso. O final.
PJ: A corrente cessa de fluir.
K: Sim, se prefere expressá-lo desse modo. Sim. Cessa o movimento do
pensar e o tempo — cessa psicologicamente. Qual é a sua dificuldade? Você
converte uma coisa simples em terrivelmente complexa.
PJ: Não, senhor, há um ponto de percepção que é um ponto de discernimento.
K: Sim.
PJ: Qual é esse ponto de discernimento?
K: O que você entende por “ponto de discernimento?”
PJ: Em que tempo-espaço vejo isso?
K: Olhe, Pupul, sejamos simples. O tempo-pensamento tem dividido o mundo,
o tem dividido política, geográfica, religiosamente. Isso é um fato. Não pode
ver esse fato?
PJ: Não, senhor, observo o externo e vejo...
K: Não, espere, espere. Não observe o externo. Isto é...
PJ: Não, não vejo o fato.
K: O que você quer dizer com “não vejo o fato”?
PJ: Porque se visse o fato, se realmente visse o fato...
K: Findaria com esse tipo de coisas.
PJ: Se haveriam acabado.
K: É quanto estou dizendo.
PJ: Por que, se é uma coisa tão simples, o qual não creio que seja, já que
tem maneiras tão tortuosas...?
K: Não! Essa é toda a questão. Se se percebe de maneira direta que o
processo do tempo-pensamento é separatista — qualquer que seja o nível, o reino
ou a área em que tenha lugar —, que é um processo, um movimento de conflito
interminável...
PJ: Sim, mas se pode vê-lo quando é um assunto externo a si mesmo.
K: Então, pode-se ver este movimento externo, pode ver o que gera no
mundo, a infelicidade que tem causado? No interno, o movimento é a psique, eu é
tempo-pensamento. Este movimento
interno tem criado aquele (K assinala
para fora). É simples. O movimento psicológico separatista tem originado o
fato externo: “eu sou hindu”, “eu sou alemão”... Sinto-me seguro na palavra.
Sentir que pertenço a algo me dá segurança.
PJ: Veja, Krishnamurti, eu diria que todas estas coisas, ser um hindu ou
ser ganancioso, são vistas como um produto deste processo de tempo-pensamento.
K: Isto é tudo quanto digo.
PJ: Mas não é o bastante...
K: Qual é a sua dificuldade?
PJ: Há, dentro de tudo isso, um sentido de “eu existo”.
K: Esse é todo o problema. Você não se dá conta de que a psique é isso.
PJ: Sim, essa é, em essência, a natureza do problema.
K: Por que não se dá conta? Porque... é bastante simples, por que o
converte em algo complexo? Pensa que a psique é outra coisa que um estado de
condicionamento. Pensa que há algo em você — no cérebro ou em alguma parte —
que é atemporal, que é Deus, que é isso ou aquilo, e que se tão só pudesse alcançar
isso, tudo estaria perfeito. Isso
forma parte de seu condicionamento. Devido a que se sente insegura, confusa,
Deus ou o princípio supremo ou alguma classe de convicção, lhe brinda com
segurança, proteção, certeza. Isso é tudo.
PJ: Qual é a natureza do solo do qual surge o discernimento?
K: O tenho dito. O discernimento só
pode ter lugar quando estamos livres do tempo e do pensamento.
PJ: Tempo e pensamento. Veja, isso é de algum modo interminável.
K: Não, não o é. Você está complicando um fato muito simples, como a
maioria de nós o faz. Viver em paz é florescer; é compreender a imensidade
extraordinária da paz. A paz não pode ter sua origem no pensamento.
PJ: Krishnaji, entenda-me, por favor; é o próprio cérebro quem escuta essa
declaração.
K: Sim, a escuta, e então, o que ocorre? U momento. O que ocorre? Se
escuta, está quieto.
PJ: Está quieto. Não está ruminando pensamentos. Não discorre, não
tagarela. Está quieto. Sim, está quieto.
K: Espere, espere. Quando realmente, de
fato, escuta, e há uma quietude não produzida, então há discernimento. Não
tenho que explicar de dez maneiras diferentes que o pensamento é limitado. É assim.
PJ: Entendo o que disse. Há algo mais que isso?
K: Oh, sim, há. Deus meu! Há muitíssimo mais! A saber: O escutar, é
possível unicamente quando está relacionado com um som — um som dentro de uma
área —, ou existe também um escutar algo, por exemplo, o que você está dizendo,
sem o som verbal? Eu sustento que, se há um som verbal, não estou escutando,
senão só entendo as palavras. Mas você quer comunicar-me algo que é muito mais
que as palavras. Se as palavras estão produzindo um som em meu escutar, não
posso compreender a fundo a profundidade do que você diz. Quero descobrir,
pois, algo muito mais profundo que as palavras. Com isso foi que começamos, ou
seja, com o presente.
PJ: Sim.
K: O presente é o “agora”. O “agora” é o movimento total do
tempo-pensamento.
PJ: Sim.
K: É a estrutura íntegra. Se a estrutura de tempo e pensamento chega a
seu fim, o “agora” tem um significado completamente diferente. O agora é,
então, o nada. E o nada contém o todo. Quero dizer, o zero contém todos os números. Concorda?
PJ: Concordo.
K: Mas nós tememos ser nada.
PJ: Quando você disse: “Contém o todo”, isso quer dizer que a essência de
toda a humanidade, do meio ambiente, da natureza e...
K: Sim, sim.
PJ: ... do cosmos com tal?
K: Não. Nada há. A psique é um
feixe de recordações, e essas recordações estão mortas. Operam, funcionam em
nós, mas são o resultado de experiências passadas, experiências que estão
mortas. Eu sou um movimento de recordação.
Bem, agora, se tenho um discernimento de que sou nada... de que nada há, então
“eu” não existo.
PJ: Você disse algo acerca do som e do escutar.
K: Sim, escutar o som. Percebe a beleza disso?
PJ: Sim, isso é possível quando a mente mesma está completamente
silenciosa.
K: Não, não introduza a mente pelo momento. Quando o cérebro está
absolutamente quieto, não há som algum que as palavras façam. Esse é o verdadeiro escutar. A palavra
tem me transmitido o que você quer comunicar. Você que dizer-me: “Parto esta
tarde” Eu escuto isso...
PJ: Mas o cérebro não tem estado ativo no escutar.
K: Sim. O cérebro, quando está ativo, é ruído. Voltamos a esta questão do
som, porque é muito interessante. O que é o som? O som — o som puro — só pode
existir quando há espaço e silêncio. Do contrário, é somente ruído (Pausa).
Gostaria
de regressar ao fato de que toda nossa educação, toda nossa experiência passada
e nosso conhecimento, são um movimento no vir a ser, tanto interna como
externamente. O vir a ser é a acumulação da memória: mais e mais e mais
recordações que constituem o conhecimento. Enquanto esse movimento existir, há
medo de ser nada. Mas, quando temos discernimento e, graças a ele, percebemos
lucidamente que nada há, quando vemos realmente a falácia, a ilusão do vir a
ser — que é inacabável tempo-pensamento e conflito —, então isso se finda. Ou
seja, se termina o movimento que é a psique, que é o tempo-pensamento. O final
desse movimento é ser nada. O nada contém, então, a totalidade do universo; não
meus mesquinhos e insignificantes medos, minhas ansiedades e problemas, meu
sofrimento em relação a isso... você sabe, dezenas de coisas. Ao fim e ao cabo,
Pupuji, “o nada” significa toda a imensidade da compaixão. A compaixão é o
nada. Portanto, esse nada é inteligência
suprema. Isso é tudo o que existe. Não sei se o estou comunicando.
PJ: Sim.
K: Então, por que os seres humanos — simplesmente os seres humanos
comuns, inteligentes — tem medo de ser nada, de ver que, na realidade, são
ilusões verbais, que não são senão mortas recordações? Isso é um fato. Não gosto
de pensar que não sou senão recordações, mas a verdade é que sou recordações. Se não conservo
recordações, pode ser que me encontre num estado de amnésia, ou pode dever-se a
que compreendo todo o movimento da memória, que é tempo-pensamento, e vejo o
fato de que, enquanto exista este movimento, tem que haver conflito, luta e dor
intermináveis. E quando há um discernimento nisso, o nada significa algo
completamente diferente. Esse “nada” é o presente, e não é um presente
“variável”.
PJ: Não é um presente variável...
K: Isto não é um dia, e o dia seguinte algo distinto. Esse “nada” não é
tempo. Em consequência, não é um dia deixar de ser e outro dia voltar a sê-lo.
Veja, se você investiga este problema, não teoricamente — como o fazem os
astrofísicos, tratando, por exemplo, de compreender o universo a partir do
ponto de vista dos gases —, senão realmente, aqui, como parte do ser humano, e
não lá fora, então não tem que haver nem vestígio de tempo e pensamento. Veja,
Pupul, isso, depois de tudo, é a
verdadeira meditação. Isso é o que significa sunya em sânscrito. Mas nós o temos interpretado de cem maneiras;
temos comentários acerca disto e daquilo. Mas o fato real é que somos “nada”,
nada exceto palavras e opiniões e juízos. Entendo que tudo isso é um assunto
trivial e temos convertido em triviais as nossas vidas.
Temos
que captar, pois, temos de compreender, que o zero contém todos os números e
que no nada está contido todo o universo — não a pena e a ansiedade, que são
coisas tão pequenas. É claro, sei que quando estou sofrendo, isso é o único que
tenho, ou que quando há medo, isso é o único que tenho. Mas, desafortunadamente,
já se vê, não me dou conta de que é uma coisa tão insignificante e trivial.
Havendo,
pois, escutado tudo isto, qual é a sua compreensão? Seria bastante bom, Pupul,
se você pudesse expressá-lo em palavras. O que é que você, e aqueles que vão
escutar tudo isto — pode ser uma tolice, pode ser verdadeiro — vão captar,
compreender? Veem a imensidão de tudo isto?
PJ: É realmente um final, um final da natureza psicológica do “eu”...
K: Sim.
PJ: Porque isso é o vir a ser.
K: Não, espere um instante, Pupulji. Eu formulei a pergunta, porque vai
ser de muita ajuda para todos nós: Quando escuta tudo isto, qual é a sua
resposta, qual é a sua reação, o que compreendeu? Disse: “Por Deus!, o tenho.
Tenho captado o perfume disso?”
PJ: Senhor, não me pergunte isso.
K: Por quê?
PJ: Porque nada do que dissesse soaria... Porque enquanto você falava
havia imensidão.
K: Sim. Agora espere um momento. Havia isso. Eu podia senti-lo, você
podia senti-lo. Existia a tensão dinâmica disso, mas é algo transitório — por
um momento, por um segundo — e passou; e então, se repete uma e outra vez todo
o assunto de recordá-lo, de capturá-lo, de convidá-lo?
PJ: Não, não. Eu digo que, ao menos, se se moveu de lá. Outra coisa da
qual se dá conta é que, o mais difícil no mundo, é ser totalmente simples.
K: Sim. Ser simples; isso é certo. Se se é realmente simples, simples,
pode compreender a enorme complexidade das coisas. Mas nós começamos com todas
as complexidades e jamais vemos a simplicidade. Essa é nossa educação. Temos
adestrado nossos cérebros para ver a complexidade, e então tratamos de
encontrar uma resposta à complexidade. Mas não vemos a extraordinária
simplicidade da vida, melhor dito, dos fatos.
PJ: Posso afastar-me um pouco?
K: Sim, por favor; alegra-me que o faça.
PJ: Na tradição indiana, do som nasceram todos os elementos, todos os panca-mahanhutas. Existe o som que
reverbera e, sem dúvida, não se ouve.
K: Assim é. Mas, ao fim e ao cabo, Pupul, especialmente na tradição
indiana, desde o Buda, desde Nagarjuna e os antigos hindus, existe esse estado
de nada no qual, diziam eles, se deve negá-lo todo. Nagarjuna chegou até esse
ponto. Até onde me tem dito e tenho entendido — posso equivocar-me —, ele
negava tudo, todo o movimento da psique.
PJ: Sim, todo o movimento das células cerebrais tal como nós...
K: Sim, está aí nos livros; está na tradição. Bem, agora, por que não
temos aspirado isso? Vejam, ainda o mais inteligente deles, ainda o mais
devoto, o mais religioso, tem perseguido alguma estrutura e não o sentimento da
religião, o sentimento do divino, o sentimento de algo sagrado. Por que não se
tem dedicado a negar, não o mundo — não se pode negar o mundo — se não o “eu”?
Não o têm negado, não o têm negado totalmente o “eu”. O que têm feito é negar o
mundo — coisa impossível — e têm terminado por fazer tão só uma confusão de
suas próprias vidas.
PJ: Senhor, na realidade, você sabe, a renúncia... Permita-me usar essa
palavra...
K: Eu sei, a renúncia.
PJ: É a negação do “eu”.
K: Mas isso não é negação. O “eu” segue existindo. Posso renunciar a
minha casa, mas...
PJ: Senhor, basicamente, a renúncia jamais está no externo.
K: Sim, jamais fora senão dentro... e o que isso implica? Não estar
apegados, nem sequer a um princípio supremo. Não estar apegados a nosso ideal —
a tanga. O que ocorre, ao meu entender, é que estamos presos numa rede de
palavras, em teorias; não vivemos a realidade. Sofro. Devo encontrar um modo de
terminar com isso e não escapar para algum tipo de tonta ilusão. Por que os
seres humanos não se têm enfrentado ao fato, senão que o tem modificado?
Entendem a minha pergunta? É porque estamos vivendo de ilusões, a base de
conclusões e ideias e todas as irrealidades? Tudo isto é tão óbvio!
PJ: Vivemos com a história da humanidade. Essa é a história da humanidade.
K: Sim, e a humanidade sou eu, e o “eu” é esta inacabável infelicidade.
Assim, pois, se você quer terminar com a infelicidade, termine com o “eu”. O
terminar com o “eu” não é uma ação da vontade. A terminação do “eu” não ocorre
mediante o jejum e todo esse assunto infantil pelo qual se tem passado os seres
humanos a quem temos chamado “santos”.
PJ: Isso é realmente o findar do tempo, não é assim, senhor?
K: Sim, verdade? O findar do tempo-pensamento. Isso implica escutar sem o
som. Escutar o universo, escutá-lo sem um só som. Outro dia, em Nova Iorque,
estivemos falando com um médico que, segundo creio, é muito conhecido. Disse:
“Todas estas questões estão muito bem, senhor, mas o problema fundamental é se
as células cerebrais — que têm estado condicionadas durante séculos — realmente
originar sua mutação dentro de si mesmas. Então toda a coisa seria simples”
Compreende?
PJ: Sim.
K: Eu respondi: “Isso é possível só graças ao discernimento”, e então nos
pusemos a examiná-lo a fundo, tal como o temos feito agora. Veja, ninguém está
disposto a escutar isto em sua totalidade. Todos escutam parcialmente. Estão de
acordo, em certo sentido, o acompanham a si até determinado ponto e ali se
detém. Se o homem diz: “Tem que haver paz no mundo: portanto, devo viver em
pacificamente”, haverá paz no mundo. Mas ele — o homem — não quer viver em paz;
faz todo o oposto disso. Continua com sua ambição, sua arrogância, suas
tolices, insignificantes temores e demais. Temos reduzido, pois, a imensidade
de tudo isto, a mesquinharias e triviais reações. Dá-se conta disso,
Pupul? E por isso vivemos vidas tão insignificantes. Isto se aplica a todos os
seres humanos, qualquer que seja sua condição, desde a mais alta a mais baixa.
PJ: O que é o som para você, senhor?
K: O som é a árvore. Espere um momento. Consideremos a música. O canto
indiano puro, o canto rig védio ou os cantos gregorianos... estão
extraordinariamente unidos. E se escuta todos os cantos de elogio, que são...
mas não examinarei tudo isso agora. Então, se escuta o som das ondas, o som do
vento forte entre as árvores, o som da pessoa com quem se tem vivido durante
muitos anos; se tem acostumado a tudo isto. Mas se você não se acostuma a isso,
o som tem um significado extraordinário. Então você escuta tudo como se fosse a
primeira vez.
Digamos,
por exemplo, que você me diz que o tempo-pensamento é todo o movimento do
homem; por conseguinte, é limitado. Bem, agora, você me comunicou um fato
simples e eu não o escuto. O escuto sem o som da palavra. Captei a
significação, a profundidade dessa declaração, e não posso perder isso. Não é
que o tenha escutado agora, e isso desaparece quando me vou. O escutei
totalmente. Isso quer dizer que o som comunicou o fato de que isso é assim. E o que é assim, é absoluto, o é
sempre. Creio que na tradição hebreia, você só pode dizer de Jehová — ou que for
o inominável —: “Eu sou”. Tat tavan asi, etc.
em sânscrito.
Brockwood Park
25 de junho de 1983
Fogo na Mente
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