A COMPAIXÃO COMO ENERGIA ILIMITADA
Pupul Jayakar (PJ): Rimpocheji fez uma pergunta: escutando Krishnamurti
durante anos, sente-se que a porta está a ponto de se abrir, porém não se abre.
Há algo que nos impede?
Achyut Patwardhan (AP): Encontramos que a porta está fechada para nós porque
vivemos no tempo e a percepção não pertence ao tempo?
PJ: Muitos de nós temos tido este sentimento de estamos diante de um
limiar.
Brij Khare (BK): Isso é certo para todos nós, mas uma parte do problema
— e quem sabe isso esteja implícito na pergunta — é que temos medo de abrir a
porta pelo que poderíamos encontrar por detrás dela.
PJ: Eu não disse isso.
AP: O que você disse implica que há alguém que abre a porta; mas não é
assim.
Jiddu Krishnamurti (K): Depois de
exercitar muitíssimo a inteligência, a razão, o pensar racional, e de observar nossa
própria vida cotidiana, o que é bloqueia a todos nós? Essa é a pergunta,
verdade?
PJ: Eu iria mais além disso. Diria que tem havido diligência, seriedade e
que temos discutido isto durante anos...
K: Mas, ainda assim, algo não funciona, correto? É a mesma coisa. Sou um
homem corrente, bem instruído, com capacidade para me expressar, de pensar
racional e intelectualmente, etc.; porém, em tudo isto há algo que falta por
completo e não posso ir mais longe. Esse é o ponto? Além do mais, percebo que toda
minha vida está tão terrivelmente
limitada?
PJ: Eu digo que temos feito o que deve se fazer. Temos tomado às decisões.
K: Muito bem. Que é que pode fazer o homem ou a mulher? O que é que pode
fazer uma pessoa que tenha estudado ao K, que tenha investigado durante todos
estes anos, mas encontra que se enfrenta com uma parede?
PJ: Eu não me acho nem aqui nem lá; me encontro entre os dois. Estou no
meio da corrente. Não posso dizer que estou ali nem tampouco que não tenha partido.
Você deve ter isto em conta, ainda quando diga que não existe uma aproximação
gradual.
K: Qual é a pergunta, então?
PJ: É como se algo estivesse a ponto de se abrir, porém que não se abre.
K: Você é como esse broto que surge da terra e que, apesar de receber a
luz do sol, não acaba de se abrir para se converter em flor? Falemos disso.
G: Narayan (GN): O tempo biológico impulsiona a ação, devido a sua
inata energia. Você disse que, de igual forma, o tempo psicológico também
impulsiona certo tipo de ação. É o tempo psicológico um depósito similar ao
biológico?
K: Você está confundindo as duas perguntas. Pupulji disse isto: “Tenho feito
muitas coisas. Tenho lido, escutado ao K, e tenho chegado a certo ponto em que
não estou inteiramente com o mundo nem com o outro: estou presa no meio. Me
encontro na metade do caminho e não posso ir mais longe.”
BK: Eu penso, senhor, que durante vários anos a esta parte, em suas
palestras, em seus diálogos, você nos tem insinuado a resposta. E nós dizemos a
mesma coisa, mas intelectualmente.
PJ: Não estou disposta a aceitar isso. Quando formulo esta pergunta ao K,
eu tenho visto tudo isto e tenho passado por isso.
BK: Reprimimos a parte racional da mente.
PJ: Não, não é assim. Tenho observado o tempo. Tenho examinado o processo
do tempo, o tempo psicológico. Tenho visto seu movimento. Algumas das coisas
que K disse, me parecem ser assim. Não posso dizer que me sejam completamente
desconhecidas. Mas parece haver um ponto em que algum salto é indispensável.
K: Segundo a terminologia cristã, está esperando que a graça desça sobre
você.
PJ: Quem sabe.
K: Ou você está buscando por algum agente externo que resolva isto? Tem
chegado alguma vez a esse ponto em que seu cérebro já não busca, nem examina,
nem indaga, mas que se encontra absolutamente num estado de não saber? Compreende
o que digo? Chega ao ponto em que o cérebro se dá conta de que nada sabe,
exceto os conhecimentos técnicos, não sabe nada, desde já, no que se refere as
coisas do mundo tecnológico?
PJ: Eu não digo isso, mas se conheço um estado no qual o cérebro deixa de
funcionar. Não é que diga: “não sei”, mas chega ao seu findar todo movimento.
K: Você passa por alto do que levanto.
PJ: Não o faço.
K: Temo não estar expressando-me com clareza. Um
estado de não saber... entendo que essa é a primeira coisa que se necessita.
Estamos sempre argumentando, indagando; jamais chegamos ao ponto do vazio total, de
não saber. Alguma vez chegamos a esse ponto, de modo tal que o cérebro se detenha
realmente? O cérebro está sempre ativo, esquadrinhando, indagando, argumentando;
se acha sempre ocupado. Pergunto: Existe um estado em que o cérebro não esteja
ocupado consigo mesmo? É esse o bloqueio?
Mary Zimbalista (MZ): No vazio há uma abertura tremenda, onde nada se
armazena, onde não há nenhum movimento, onde o estado de abertura do cérebro se
encontra em seu máximo nível.
K: De momento eu não empregaria todas essas palavras. Só pergunto: Há um
instante em que o cérebro se encontre completamente desocupado?
Sunanda Patwardhan (SP): O que você entende por “totalmente desocupado?”
BK: Nesse momento não pensa, está em branco.
BK: Nesse momento não pensa, está em branco.
K: Por favor, vejam o perigo, porque você está traduzindo o que eu tenho
dito.
Jagannath Upadhyaya (JU): Toda ação se acha confinada dentro de uma estrutura
de tempo-espaço. Você está tentando nos conduzir ao ponto onde vejamos que toda
ação, tal como a conhecemos, não só está limitada pelo tempo e o espaço, senão
que também é uma ilusão e, portanto, deve ser negada?
K: Sim, negá-la. Isso é uma teoria ou uma realidade?
JU: Você está falando desse estado que se encontra entre duas ações?
K: Começamos por investigar a ação? O que é a ação?
JU: Na realidade, não há ação.
K: Todos vocês teorizam. Eu quero saber o que é a ação, não conforme alguma
teoria, mas sim de fato. Que é a ação em si mesma, per se, o fazer.
JU: A ação é o movimento do pensar, de um ponto a outro do espaço, ou um
momento a outro do tempo...
K: Não falo do pensamento que se move de um ponto a outro ponto, mas sim
da ação, do fazer.
PJ: Qual é a pergunta fundamental?
K: Trato de formular a pergunta fundamental que você levantou no começo:
O que é que nos impede de florescer? (Uso a palavra “florescer”, com toda a beleza,
o perfume e o deleite associados com ela). É basicamente o pensamento? Só estou
perguntando. É o tempo, é a ação? Ou, na realidade, não tenho lido a fundo o
livro que sou eu mesmo? Tenho lido, talvez, um certo número de páginas de um capítulo,
porém, não tenho finalizado totalmente com o livro.
PJ: Neste ponto, eu digo que tenho lido o livro. Não posso dizer que tenha
lido o livro completamente porque, cada dia, a cada minuto, se lhe escreve um outro
capítulo.
K: Não, não. Aqui estamos, pó fim. Eu lhe pergunto: Já leu alguma vez o
livro, não de acordo com o Vedanta, o budismo, o islamismo, ou inclusive de
acordo com os psicólogos modernos, senão realmente
leu o livro?
PJ: É de algum modo possível perguntar se se tem lido o livro completo da
vida?
K: Se de algum modo tiver lido o livro, você descobrirá que não há nada
que ler.
JU: Você tem dito que se há percepção do instante, em sua totalidade,
então, tudo está no instante.
K: Mas isso é tão só uma teoria. Não estou criticando, senhor. Pupulji disse:
tenho escutado ao K; tenho conhecido diferentes gurus; tenho meditado. E ao
final disto, só há cinzas em minhas mãos, em minha boca.
PJ: Não, eu não diria que há cinzas em minhas mãos.
K: Por quê?
PJ: Porque não as vejo como cinzas.
MZ: Nós temos explorado. E temos chegado até certo ponto.
K: Sim, o admito. Vocês têm chegado a certo ponto e estão presos aí. Não é
isso?
PJ: Eu tenho chegado a certo ponto e não sei o que fazer, aonde ir, como voltar.
Radha Burnier (RB): Você quer dizer que não se produz a ruptura?
K: Por que não somos simples? Eu tenho alcançado um ponto, e esse ponto é
tudo o que temos dito; e a partir dali começarei.
PJ: Você deve entender uma coisa. Há uma diferença, Krishnaji; uma coisa é
fazer uma viagem, e outra coisa é dizer que estamos desesperados. Eu não digo
isso.
K: Você não está desesperada?
PJ: Não. Também estou o suficientemente desperta como para ver que,
havendo viajado, a flor não se abriu.
K: O que você pergunta, pois, é por que a flor não se desabrochou, por
que o casulo não se abre — expresse-o como preferir.
AP: Para tirá-lo do contexto pessoal: Quando você nos fala, Krishnaji, há
algo dentro de nós que responde e diz que isso é verdade, que é o certo, porém
não somos capazes de captá-lo.
PJ: Em meus tempos tenho chorado, tenho conhecido o desespero, e tenho
visto a escuridão. Mas também tenho tido os recursos para sair disso e, havendo
saído, cheguei ao ponto em que pergunto: “Diga-me, já fiz tudo isso. E agora, o
que mais?”.
K: E venho a você e lhe faço esta pergunta. Com tudo o que você tem dito
até agora, qual seria a sua resposta? Em vez de me perguntar, o que me diria? O
que responderia você?
PJ: A resposta é: sacrifício.
AP: Sacrifício quer dizer que se
deve continuar, e “continuar” implica tempo.
PJ: Significa queimar as impurezas que nublam nossa visão.
K: Compreende a pergunta? “O pensamento é impuro”; podemos investigar isto?
RB: Isto é muito interessante. O pensamento é impuro, mas não há impureza.
K: Quando você admite que o pensamento é impuro, impuro no sentido de que
não é total...
RB: Sim, isso é o que corrompe.
K: Não. O pensamento não é total. Acha-se fragmentado; portanto, é “corrupto”,
é “impuro”, ou qualquer que seja a palavra que goste de usar. Aquilo que é
total se acha mais além do puro e do impuro, do vergonhoso e do horrível. Quando
Pupul disse: “Queimar as impurezas”, escute, por favor, desse modo. Por que o
cérebro é incapaz de perceber o total e, dessa totalidade, atuar? A raiz disso
— o bloqueio, a inibição, o não florescer — é o pensamento, incapaz de perceber
o total? O pensamento gira e gira em círculos.
Agora
me pergunto: Suponhamos que estive nessa situação. Suponhamos que vi, reconheci, observei que minhas ações eram
incompletas e que, portanto, o pensamento mesmo nunca podia ser completo e que,
em consequência, qualquer coisa que o pensamento fizer seria impura, corrupta e
jamais bela...
Por
que o cérebro é incapaz de perceber o total? Se vocês podem responder a essa
pergunta, quem sabe possam responder a outra.
Rinpoche Samdhong (RS): Você tem interpretado corretamente nossa pergunta.
K: Então, poderíamos mover-nos a partir daí, ou não é possível mover-se a
partir daí? Quer dizer, durante todas nossas vidas temos exercitado o
pensamento. O pensamento tem chegado a ser a coisa mais importante em nossas
vidas, e eu sinto que é esse o verdadeiro motivo de que haja corrupção. Esse é o
bloqueio, o fator que impede este maravilhoso florescer do ser humano? Se esse
é o fator, então, existe a possibilidade de uma percepção que nada tenha que
ver com o tempo, com o pensamento? Estão compreendendo o que estou dizendo?
Dou-me conta, não só intelectualmente senão de fato, de que o pensamento é a
origem de toda a maldade, imoralidade e degeneração. Vejo isso realmente, o sinto
em meu sangue? Se é assim, minha pergunta seguinte é: visto que o pensamento se
acha fragmentado, dividido, e é limitado, há uma percepção que seja total? É esse
o bloqueio?
JU: Minha mente tem sido educada na disciplina da ordem consecutiva. Por
isso, não há a possibilidade de dizer: “Isto pode ser?” ou é assim ou não é
assim.
K: Eu tenho sido treinado na sequência do pensamento — do pensamento, que
é lógica. E meu cérebro está condicionado a causa e efeito.
JU: Estou de acordo em que o pensamento não é completo.
K: Senhor, não é um caso de acordo ou desacordo. Vê realmente que o
pensamento é incompleto e que qualquer coisa que faz é incompleta? Qualquer
coisa que o pensamento faça criará — deve fazê-lo — dor, dano, angústia,
conflito.
AP: O pensamento só lhe levará até um determinado ponto. Se moverá até um
certo grau.
JU: Nós temos alguns outros instrumentos, certos processos, mas você parece
faz caso omisso deles. Você desfaz qualquer coisa que tenhamos adquirido. Suponhamos
que estejamos com uma enfermidade, você não pode curá-la; nenhum agente externo
pode fazê-lo; nós mesmos temos que nos livrar-nos da enfermidade. Portanto, devemos
descobrir um instrumento que possa abrir a porta que leva da enfermidade à boa saúde.
Esse instrumento é tão só o pensar o qual, num instante, rompe o domínio do
falso; e na ruptura mesma, nasce uma outra ilusão, uma outra irrealidade. O
pensamento volta a romper isso, e desta maneira nega o falso uma e outra vez.
Há um processo de dissolução do pensamento, e o pensamento mesmo aceita isto e
continua negando. Assim que na própria natureza do pensamento está o perceber
que pode dissolver-se a si mesmo.
Todo
o processo do pensamento é discriminação. Abandona uma coisa to pronto descobre
que é o falsa. Mas aquilo que a percebeu como falsa é também pensamento.
K: Certamente.
JU: Em consequência, o processo de percepção continua sendo conduzido pelo
pensamento.
K: Você está dizendo que a percepção é anda pensamento. Nós dizemos algo diferente.
Dizemos que há uma percepção que não pertence ao tempo, que não pertence ao pensamento.
RMP: Queremos saber sua posição mais claramente. Tenha a bondade de
explicá-la em detalhe.
K: Em primeiro lugar, conhecemos a percepção comum do pensamento:
discriminar, comparar, construir, mover-se em todas as atividades humanas de
escolha, liberdade, obediência, autoridade e tudo isso. Esse é o processo do
pensamento que percebe. O que perguntamos – não o afirmamos — é se há uma
percepção que não seja pensamento.
PJ: A muito quisera saber qual é o valor de uma pergunta como essa. Veja,
você formula uma pergunta e diz que nenhuma resposta é possível.
K: Não, não.
PJ: É possível uma resposta?
K: Sim. Conhecemos a natureza do pensamento. O pensamento discerne,
distingue, elege; o pensamento cria a estrutura. Há na percepção um movimento
do pensar para distinguir entre o correto e o incorreto, o verdadeiro e o
falso, o adorável e o aborrecível, o bom e o mal. Conhecemos isso e, como
dissemos, isso nos prende ao tempo. Bem, agora, permanecemos aí, ou seja,
permaneceremos perpetuamente em conflito? Assim que você pergunta: Há uma
investigação que nos conduza a um estado de não conflito? O que implica: Existe
uma percepção que não nasça do conhecimento, sendo o conhecimento experiência,
memória, pensamento, ação? Eu pergunto: Há uma ação que não se baseie na
recordação, ou seja, no passado? Há uma percepção que esteja completamente independente
do passado? Vocês investigariam comigo desse modo? Eu conheço isto, e me dou
conta de que isto implica um eterno conflito.
AP: Neste processo que é o pensar dentro do campo de causa e efeito, não há
uma maneira de escapar das reações em cadeia. Este é tão só escravidão. Portanto,
ao observar isto, nos liberamos disso aqui e agora. A continuação, nos
perguntamos: Há uma percepção que não seja afetada pelo passado, que não esteja
comprometida com o passado, sendo o passado tudo quanto temos feito, tudo
quanto nos tem preocupado?
K: É algo muito racional perguntar-se isso; não se trará de uma pergunta
ilógica.
AP: Porque temos aprendido por experiência, que o pensar por intermédio do
processo de causa e efeito não pode liberar-nos da roda do sofrimento.
JU: Qualquer que tenha sido nosso instrumento, você acabou com ele. Antes
de que nos aflija uma enfermidade, você já a tem eliminada. O homem enfermo continuará
vivendo. Portanto, quando quer livrar-se da enfermidade, é preciso indica-lhe
algum processo mediante o qual possa alcançar a saúde. Inclusive depois de
renunciar a cadeia de causa efeito, necessita que se lhe demonstre a sua
futilidade. Eu aceito que é muito difícil de fazê-lo.
AP: Não. O que você está dizendo equivale a afirmar que não podemos liberar-nos
da roda do tempo.
JU: Não, não é isto o que estou dizendo. Causa e efeito é um movimento no
tempo; e se você afirma que ao final disso ainda permanece um “processo”, essa
deve ser uma forma de atividade mental. Qualquer coisa que seja, se levanta a
pergunta: Pode permitir-se que o paciente morra antes que se cure de sua
enfermidade? Eu aceito o fato de que a cadeia de causa e efeito é incompleta.
Entendo também que, até que possamos rompê-la, este dilema não poderá ser
resolvido; mas a questão é muito simples, a saber, que o paciente deve restabelecer
a saúde e não deixar que morra. A enfermidade deverá ser curada sem matar ao
paciente.
K: Se você diz que a vida é conflito, continua estando onde está.
PJ: Upadhyayaji compreende todo o movimento do conflito no tempo e vê sua insuficiência.
Mas, segundo a metáfora eu ele usa, o homem enfermo, o homem que sofre e deseja
ser curado, não pode matar-se a si mesmo antes que lhe curem. O que você pede é
que ele se mate.
K: Você está fabricando um exemplo insustentável.
PJ: Ele pode expressá-lo de outra maneira. Não duvidamos tampouco que o
conflito é o “eu”. Finalmente, a sociedade e tudo o mais pode ir-se pelo ralo. E
isso é o “eu”. Toda experiência, toda busca se centra ao redor daquilo que é pensamento
preso no tempo, no tempo como conflito.
K: Portanto, o “eu” é conflito.
PJ: Vejo que é assim, mas o vejo de um modo abstrato.
K: Não, não é assim de um modo abstrato; é assim.
PJ: Quem sabe esta seja a última coisa que nos está detendo...
K: Sejamos muito simples. Reconheço que minha vida é conflito. O conflito
sou “eu”.
AP: Depois de aceitar a futilidade da causa e efeito, o que fica é uma
identificação com certos hábitos reflexos. Essa identificação se rompe ou não?
Se não se rompe, então nosso diálogo se desenvolve somente em um nível teórico.
K: Não introduza mais palavras. Quando você diz que o conflito chega a seu
fim, chega a seu fim “eu”? Ou há um bloqueio?
PJ: Eu conheço o conflito.
K: Não o conhece. Não pode conhecê-lo.
PJ: Como pode dizer isso?
K: Isso nada mais é que uma teoria. Dou-me conta realmente de que estou em
conflito? Percebo em meu sangue, em meu coração, no mais profundo de “mim mesmo”
que “estou em conflito”, ou é só uma ideia a que estou tratando de me adequar?
JU: Se se aceita que a cadeia da causalidade inclui o impacto do tempo, do
espaço e das circunstâncias, devemos reconhecer que este é um problema sumamente
importante. Isto é como uma roda, e cada movimento desta roda não vai dissolver
o problema. Aceitamos isso por lógica e por experiência. O que estive tratando
de explicar mediante um exemplo, é que um processo deve seguir sendo o que é
dentro da roda da dor. Se a enfermidade
não existe, e se a roda da dor não existe, algum princípio de vida deve, sem
dúvida, cair.
AP: Um processo de continuidade.
JU: Então, o que é isso? É imutável?
AP: Quando percepção e ação não se relacionam com o passado, há um cessar
da continuidade.
K: E só sei que minha vida é uma série de conflitos até que morro. Essa é
nossa vida. Pode o homem admitir isto?
Eu
sou um homem razoável, um homem reflexivo, e me pergunto: “Devo seguir deste
modo?” Então vê você e me diz: “Averigue se há um modo diferente de olhar, de
atuar, que não contenha isto, porque isto é a continuidade”. Também me diz que há
um modo diferente, que não é este, e diz que me mostrará.
JU: Eu aceito que este círculo da continuidade em que não nos estamos movendo
não nos leva a nenhuma parte. Até aí estou de acordo com você. Onde se trata de
uma questão de experiência, esclareço minha posição com ajuda de um exemplo. Mas
você o invalida ao afirmar que tenho que descartar a continuidade. Se a continuidade
se interrompe, a questão mesma desaparece. Como posso, pois, aceitar a
proposição de que devo renunciar a continuidade por completo?
AP: Por conseguinte, devemos deixar de lado exemplos e comparações. Temos
que nos libertar de todas as ancoras do passado.
JU: Ainda que deixemos os exemplos, isso não traz uma terminação; a menos
que haja um final, como pode haver um novo começo?
K: Quem está dizendo isso?
AP: Você tem dito que isto é tempo; disse que neguemos o tempo.
RB: O que Upadhyayaji disse é isto: que a vida é conflito, tempo,
pensamento; e ele aceita que estas coisas devem desaparecer.
JU: Se isso desaparece, qual é, então, a conexão entre isso e o que vai a
ser?
K: Não falo de nenhuma conexão. Sou um indivíduo que sofre, que se debate
no desespero, no conflito, e digo que tenho estado assim durante sessenta anos;
por favor, mostre-me uma maneira diferente de viver. Vocês aceitariam este fato
tão simples? Se o aceitam, pergunta seguinte é: Há uma maneira de olhar, de
observar a vida sem introduzir nela o passado? Há uma maneira de atuar sem que opere
o pensamento, que é memória? Eu digo que vou descobrir o que é a percepção.
Tenho percebido a vida como conflito; isso é tudo o quanto conheço.
Alguém
se aproxima de mim e me diz: “Descubramos o que é a verdadeira percepção”. Eu
não o sei, porém, escuto o que ele me diz. Isto é importante. Nesse escutar não
introduzo minha mente lógica; escuto.
Está acontecendo isso agora? Quem fala disse que há uma percepção sem memória. Escutam
isso ou estão dizendo que existe uma contradição? Se estão dizendo algo, seja o
que for, isso significa que não escutam em absoluto. Espero que o tenham captado.
Eu digo: “Achyutji, há uma maneira de
viver sem conflito”. Ele me escutará? Escutará e não traduzirá imediatamente
numa reação? O está fazendo isso?
AP: Quando se faz uma pergunta ou quando nos enfrentamos com um fato, tem
que haver um escutar sem nenhuma reação, porque só em um estado semelhante pode
haver, em absoluto, relação com aquilo que é o passado.
K: Portanto, não há reação; e o que isso implica? Implica que você já está
vendo. Compreende?
JU: Não tenho compreendido o estado. Por exemplo, se se observa durante um
só instante e com atenção, todas as ilusões, então, à luz dessa atenção, se
dissipará todo o processo ilusório; e esse mesmo instante de atenção será o
instante de verdadeira observação, não é assim? Porque isso significaria que se
observou “o que é” como é.
PJ: Krishnaji nos pergunta se podemos escutar sem o passado, ou seja, sem introduzir
as projeções do passado. Somente então, nesse escutar assim, há percepção.
JU: Por isso dizia que, se o instante que está carregado de ilusão pode
ser visto com atenção plena, então esse instante se converte o instante de
percepção, já que a ilusão é vista tal como é. Para dar um exemplo: vejo uma
moeda sobre a qual está o selo do Ashoka Chakra. A outra cara da moeda é diferente, mas
são duas caras da mesma moeda. O ver, a percepção que esteve presa no passado, é
um ver semelhante?
K: Não. Bem, agora, senhor, você é um grande erudito budista. Conhece e
tem lido muitíssimo sobre o budismo. Sabe o que Buda disse; conhece todas as
intrincações das análises budista, da exploração budista e as extraordinárias
estruturas budistas. Bem, agora, se o mesmo Buda lhe aparecesse e lhe dissesse
“Escute”, você o escutaria? Por favor, não se ria, porque isto é muito sério.
Senhor, responda a minha pergunta: se o Buda viesse hoje aqui, agora, se
estivesse sentado à sua frente e lhe dissesse “Por favor, Senhor, escute”. Você
o escutaria? E se, além do mais, acrescenta-se “Se me escutar, essa é a sua
transformação”. Somente escutar. Esse escutar é o escutar da verdade. Você não
poderia discutir com o Buda.
JU: Essa atenção pura é o Buda e tal atenção é ação, a qual é, em si mesma,
o Buda. Por isso mesmo é que eu coloquei o exemplo da moeda, que possui um selo
de um lado e um selo distinto do outro.
K: Você escutaria? Se o Buda me falasse, eu lhe diria: “Senhor, lhe
escuto porque sinto amor por você. Não quero chegar a nenhuma parte, porque
vejo que o que você disse é verdadeiro, e eu sinto amor por você”. Isso é tudo.
Isso tem transformado tudo.
AP: Quando me dou conta de que esta é a palavra do Buda, vejo que é a
verdade. Esta verdade barra qualquer outra impressão.
K: Ninguém lhe escutava; por isso existe o budismo.
JU: Não há Buda; não há discurso do Buda. Só existe o escutar. E no verdadeiro
escutar está a quintessência dessa sabedoria que transforma. A palavra Buda ou
a palavra do Buda não é a verdade. Buda não é a verdade. Essa atenção mesma é o
Buda. O Buda não é uma pessoa, não é um avatar,
e não há tal coisa como a palavra do Buda. A única realidade é a atenção. Nessa
atenção há percepção pura. Isto é prajna,
inteligência; isto é conhecimento. Esse instante que estava rodeado pelo
passado, esse mesmo instante, iluminado
pelo raio da atenção, se converte no instante de percepção pura.
K: Agora, só me escute. Há conflito. Vem um homem como eu e diz que há
uma maneira de viver sem conhecimento. Não argumente; só escute. Escutar sem o conhecimento
implica escutar sem que opere o pensar.
AP: Esse instante de atenção está totalmente desvinculado do processo do
pensamento; não tem relação alguma com a causalidade.
K: Sei que minha vida se acha em conflito. E me pergunto: Há uma maneira
de olhar, de escutar, de ver, que não tenha relação alguma com o conhecimento?
Afirmo que há. E a pergunta seguinte é: visto que o cérebro está cheio de
conhecimentos, como pode um cérebro assim compreender esta declaração? Eu digo
que o cérebro não pode responder a esta pergunta. O cérebro está acostumado ao
conflito, se habituou a ele, e agora se lhe levanta uma nova pergunta.
Portanto, o cérebro se rebela; não pode respondê-la.
JU: Eu quero saber isto. A pergunta que você tem levantado é minha
pergunta. Você a expôs com clareza.
K: Este que lhes fala disse: Não se rebele; escutem. Tratem de escutar
sem o movimento do pensar, o que implica ver algo sem nomeá-lo. O nomear é o processo
do pensamento. Logo, descubram qual é o estado do cérebro quando não utiliza a
palavra no ver — a palavra, que é o movimento do pensar — Façam-no.
RMP: Isso é muito importante.
AP: Sua percepção é isso.
JU: Está certo.
PJ: A verdade é ver a incapacidade do cérebro.
K: Toda minha vida tem mudado. Por conseguinte, se desenvolve um processo
de aprender completamente diferente, o qual é criação.
PJ: Se isto é. Em si mesmo, o processo de aprender, isto é a criatividade.
K: Dou-me conta de que minha vida está incorreta. Ninguém tem que
assinalar-me isso; é assim. Isto é um fato, e você se aproxima e me diz que posso
fazer algo instantaneamente. Eu não acredito. Sinto que isso não poderá jamais
acontecer. Mas você vem e me diz que é possível terminar imediatamente com toda
esta luta, com esta monstruosa maneira de viver. Meu cérebro responde: “não acredito,
sinto que você está louco. Você poderá ser o Buda, poderá ser Deus, mas eu não
acredito”. Mas K diz: “Observe, o demonstrarei como fazê-lo, passo a passo. Escute,
dedique tempo”. Estou usando aqui a palavra “tempo” no sentido de ter
paciência, mas a paciência não é, na realidade, tempo; a impaciência é tempo. A
paciência não contém o tempo.
SP: Que paciência é essa que não é tempo?
K: Eu disse — todos dissemos — que a vida é conflito. Venho e lhes digo
que há um final para o conflito; e o cérebro resiste. Digo-lhes que o deixem
que resista, mas que, por favor, sigam
escutando-me. Digo-lhes que não introduzam mais e mais resistência. Digo-lhes
que tão só escutem, que se movam, que não fiquem com a resistência. Observem a própria
resistência e continuem se avançando; isso é a paciência. Digo, pois: Não
reajam, senão prestem atenção ao fato de que seu cérebro é uma rede de
palavras, e de que não podem ver nada novo se estão todo o tempo usando
palavras, palavras, palavras.
Podem,
pois, observar algo, seja o que for — olhar a própria esposa, uma árvore, o
céu, uma nuvem — sem uma só palavra? Não dizer: “É uma nuvem”, simplesmente olhar.
Quando olham assim, o que acontece com o cérebro?
AP: Nossa compreensão, a totalidade de nossa compreensão é verbal. Quando vejo
isto, deixo de lado a palavra. Então, tudo o que vejo não é verbal. Que
acontece com o conhecimento acumulado?
K: Que acontece, não de teoricamente, senão de fato, quando você está olhando
sem a palavra? A palavra é o símbolo, a memória, o conhecimento e tudo isso.
AP: Isto é somente uma percepção. Quando estou observando algo, e deixando
de lado o conhecimento enquanto presto atenção àquilo que é não verbal, que
reação tem a mente? Sente que toda sua existência está ameaçada.
K: Observe-o em si mesmo. O que acontece? A mente se encontra em estado
de choque; oscila. Tenha, pois, paciência. Observe-a em sua oscilação; isso é
paciência. Veja o cérebro no estado oscilante e permaneça com isso. E à
medida que o está observando, o cérebro se aquieta. Então, com esse cérebro
quieto, observe as coisas; observe. Isso é aprender.
AP: Upadhyayaji, K está dizendo que quando se observa a instabilidade da
mente, quando vê que tal é sua natureza, então esse estado desaparece.
K: Está ocorrendo isso? A amarra está rompida. A cadeia está rompida. Essa
é a prova. Assim, pois, prossigamos. Há um escutar, há um ver e um aprender desprovido
de conhecimentos. Então, o que ocorre? O que é aprender? Há, em absoluto, algo
que aprender? Isso significa que se eliminou o “si mesmo”, a personalidade. Não
sei se você vê isto. Porque o “si mesmo” é conhecimento. O “si mesmo” está composto
de experiência, memória. Memória, pensamento, ação; esse é o ciclo. Bem, agora,
está ocorrendo isso? Se não está ocorrendo, comecemos de novo. Isso é
paciência. Essa paciência não contém tempo. A impaciência contém tempo.
JU: Que surgirá deste observar, deste escutar? Este estado continuará, ou algo
surgirá dele que transformará ao mundo?
K: O mundo sou eu, o mundo é o si mesmo, o mundo são as diferentes personalidades.
Bem, agora, que acontece quando isto tem lugar, não teoricamente senão de fato?
Em primeiro lugar, há uma energia tremenda; uma energia sem limites; não a energia
que é gerada pelo pensamento, não a energia nascida deste conhecimento, senão
um tipo de totalmente diferente de energia; e então, essa energia atua. Essa
energia é compaixão, é amor. Esse amor e essa compaixão são inteligência, e
essa inteligência atua.
AP: Essa ação não tem raízes no “eu”.
K: Não, não. A pergunta de Upadhyayaji é: Se isto realmente tem lugar,
qual é o passo seguinte? O que ocorre? O que de fato ocorre é que ele tem esta
energia que é compaixão e amor e inteligência. Essa inteligência atua na vida. Quando
o “eu” está ausente, existe “o outro”. “O outro” é compaixão, amor, e esta imensa
energia sem limites. E essa inteligência atua. E essa inteligência, naturalmente,
não é de vocês nem minha.
Madrás,
16 de janeiro de 1981
Fogo na Mente
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