PODE O CÉREBRO RENOVAR-SE A SI MESMO?
Pupul Jayakar (PJ): Estava me perguntando se poderíamos discutir a
natureza do nascimento na mente humana, quer dizer, se uma mente esgotada,
velha e incapaz de perceber, pode renovar-se totalmente a si mesma. Pode ter
uma percepção nova? Porque já o vê, senhor, o problema com muitos de nós é que,
a medida que envelhecemos, encontramos que a rapidez e agilidade de nossas
mentes...
Jiddu Krishnamurti (K): ... se perdeu.
PJ: Sim, que a capacidade de perceber e receber profundamente, se debilita.
K: Você pergunta se é possível conservar a mente muito jovem não obstante
sua antiguidade?
PJ: Sim. Você usa a palavra “antiguidade”. De fato, a tem usado diversas
vezes. Gostaria de saber o que entende por “antigo”. Evidentemente, a
antiguidade de que você fala, não se relaciona com o tempo — o tempo como o
ontem —. Qual é, então, a natureza desta antiguidade?
K: Investiguemos. Antes de tudo, o cérebro humano tem sua própria natureza
protetora — até onde se entende e até onde os cientistas se referem à qualidade
do cérebro e ao modo como trabalha: há uma reação química que o protege quando
experimenta uma comoção ou uma dor. O cérebro humano é muito, muito antigo. Tem
evoluído desde o macaco ao humano. Tem evoluído através do tempo, através da
imensa experiência. Tem adquirido muitíssimo conhecimento — tanto interno como
externo — e, por isso, é realmente muito antigo. Até onde posso entender, não é
um cérebro pessoal. Não é “meu”
cérebro ou “seu” cérebro.
PJ: Mas, senhor, obviamente seu
cérebro e meu cérebro tem em si uma
qualidade diferente com relação do antigo.
K: Não, espere. Só estou explorando; coloco simplesmente os primeiros
ladrilhos. Estamos de acordo de que o cérebro é muito velho, muito antigo e que
nossos cérebros não são cérebros individuais?
Nossos
cérebros não são cérebros individuais. Podemos ter reduzido o cérebro a algo
individual — de fato, quase todos pensamos nele como “meu” cérebro e “seu”
cérebro —, mas o cérebro não pode ter evoluído ao longo do tempo como “meu” cérebro. Quero dizer, tal coisa é
obviamente absurda.
PJ: Sim.
K: Sim, mas desafortunadamente, a maioria de nós pensa que o cérebro é pessoal: “meu” cérebro; e, a partir disto, nasce todo o conceito
individualista.
PJ: De acordo.
K: Bem, agora, estamos dizendo que semelhante cérebro antigo tem sido tão
condicionado que se tornou superficial, tosco por demais, vulgar e artificial?
Tem perdido o que se acha incrustado muito no fundo do inconsciente?
PJ: Mas uma mente antiga — como você acaba de dizer — é o resultado da
evolução no tempo.
K: É claro. Evolução significa tempo.
PJ: Então a busca que tem continuado por séculos...
K: Desde o princípio dos tempos o homem deve ter se perguntado...
PJ: Sim, o homem tem se perguntado se é possível liberar o cérebro do tempo
— do tempo, que se acha incorporado neste processo de envelhecimento —. Senhor,
quando você fala de um cérebro antigo, se refere a um cérebro que também leva
incorporado em si...
K: A qualidade de sua própria deterioração? Sim.
PJ: Por que é assim?
K: É assim porque a experiência e o conhecimento o tem limitado,
condicionado e reduzido. Quanto mais conhecimento o cérebro adquire, tanto mais
se limita. Correto?
PJ: Você parece estar implicando duas coisas, Krishnaji. Uma, o sentido do
antigo como o peso do passado que dá ao cérebro a sensação de ser muito velho,
porque tem muitos milhares de anos. E todas as experiências...
K: ... o têm condicionado, reduzido, limitado.
PJ: Mas o antigo de que você fala... refere-se a um cérebro que tenha
experimentado ao longo do tempo?
K: Não. Investiguemos isso. Primeiro vejamos quão antigo é no sentido
normal dessa palavra, e como, em seus milhares de anos de experiência, tem se
limitado a si mesmo. Por conseguinte, nele existe a qualidade de sua própria
deterioração. E, o estar vivendo no mundo moderno — com todo o ruído, com todas
as terríveis comoções e agonias da guerra, etc., — tem feito com que o cérebro
se torne ainda mais limitado, que se enrede ainda mais no conflito. A limitação
mesma apresenta seus próprios conflitos.
PJ: Senhor, há uma mente na qual o sentido dos milhares de anos, outorga
peso e densidade.
K: Sim, você está completamente correta.
PJ: Logo, há uma mente que é frágil, que pode corroer-se com facilidade.
K: Você usa a palavra “mente” e “cérebro”. De qual fala?
PJ: Do cérebro.
K: Então, atenha-se ao cérebro. Não use a palavra “mente”.
PJ: Usarei a palavra “cérebro”. O cérebro tem em si certo peso, certa
densidade.
K: Sim. Contém em si vulgaridade, peso.
PJ: Então, isso é o que você entende pelo antigo?
K: Não totalmente. Investiguemos devagar. Admitimos que o cérebro,
mediante sua própria evolução, condicionou-se e, portanto, leva em si a
qualidade inerente de sua própria destruição?
PJ: Sim.
K: Então, a pergunta é se essa qualidade inerente de sua deterioração,
pode alguma vez se interromper. Podem as células cerebrais renovar-se a si
mesmas do peso de seu condicionamento? Entende o que digo?
PJ: Sim.
K: Apesar das angústias, dos fracassos, das desgraças e todas as demais
complexidades deste mundo moderno em que vivemos, pode o cérebro renovar-se a
si mesmo como para alcançar sua originalidade? Por “originalidade” não deve
entender-se um sentido de individualidade, senão o sentido de sua origem.
PJ: Você diria que as células cerebrais do bebê são originais nesse
sentido?
K: Não, claro que não.
PJ: Então, o que se entende por originalidade das células cerebrais?
K: Examinemos um pouquinho mais. A palavra “original”, o que significa?
Único? Especial?
PJ: A palavra tem uma qualidade de “a primeira vez”.
K: Sim, uma qualidade prístina. “Original” significa não tocado, não contaminado
pelo conhecimento.
PJ: Sim.
K: Pode um cérebro semelhante, que tem sido condicionado por muitos
milhares de anos, eliminar seu condicionamento e alcançar uma qualidade de
prístino frescor? Mas esta, quem sabe, seja uma pergunta completamente errônea.
PJ: Os cientistas dizem que as células cerebrais estão morrendo todo o tempo.
Portanto, o número de células cerebrais disponíveis...
K: Mas o cérebro também se renova a si mesmo. Ao que parece, certas
células morrem e algumas outras nascem. As células não estão morrendo todo o
tempo. Do contrário, o cérebro se desmoronaria. Morreria.
PJ: O fato mesmo do envelhecimento indica que a renovação não avança ao
mesmo passo que a morte das células.
K: Sim, mas isso é tudo o que levanto. Um cérebro que tenha sido
condicionado e que, em consequência, como você o expressa, contém a qualidade
inerente de sua própria deterioração, pode renovar-se a si mesmo? Essa
qualidade inerente de deterioração, pode findar, desaparecer?
Quer
dizer, pode o cérebro conservar-se jovem, fresco, vivo, com a qualidade de seu
estado original?
PJ: Como você prosseguiria a partir daí?
K: Antes que prossigamos, creio que devemos investigar a questão do que é
a consciência, porque essa é uma parte de todo o nosso ser. Temos que examinar
não só o ser-consciente-das-coisas, tanto externa como internamente, senão
também todo o conteúdo da consciência. Porque, como sabemos, sem o conteúdo não
há consciência. A pergunta é: O conteúdo que contém essa consciência, pode
findar por si mesmo? Pode essa consciência terminar por si mesma, de modo tal
que haja na consciência uma dimensão completamente diferente?
Bem,
agora, o conteúdo da consciência é a consciência: prazer, crença, excitação,
sensação, reação, fé, angústia, sofrimento, afeto... A totalidade disso é a
consciência.
PJ: Sim.
K: E, enquanto o conteúdo, que é tudo isto, existe, o cérebro se desgasta
por causa do conflito que há dentro da consciência. Por isso não há nele,
frescor. O cérebro envelhece e morre.
PJ: O conteúdo da consciência, é idêntico às células cerebrais?
K: Sim, é claro.
PJ: Por causa da natureza mesma da consciência e seu conteúdo, as células
cerebrais se desgastam...
K: Por causa do conflito. Tenha cuidado.
PJ: Sim, compreendo isso. Esse processo mesmo está desgastando as células
cerebrais.
K: Isso é o conflito: a perturbação, os impactos emocionais, as pressões.
PJ: De modo que o físico e o psicológico são, na realidade, o mesmo. A dor
é o físico. O conteúdo da consciência é psicológico.
K: O qual também é um processo do físico.
PJ: Sim.
K: Portanto, o psicológico, assim como o físico, constituem tudo isto: as
reações que dão origem ao pensamento de dor, ao pensamento de angústia, ao
pensamento de prazer, de realização, ambição, crença, fé, etc.
PJ: Isso cria uma perturbação.
K: Sim.
PJ: Mas está na natureza das células cerebrais morrer continuamente. Isso
também é inerente ao cérebro.
K: É claro. Está aí, como também suas próprias reações químicas para auto-proteger-se.
PJ: Sim. Mas assim o tempo está incorporado às células cerebrais.
K: Desde já; ao fim e ao cabo, o cérebro é um produto do tempo.
Bem,
agora, a verdadeira pergunta é se a consciência com seu conteúdo pode findar
totalmente. Ou seja, pode findar totalmente o conflito?
PJ: Mas com o conflito totalmente findado, findará o tempo?
K: Sim. Depois de tudo, isso é o que tem investigado os sannyases, os
monges, as pessoas verdadeiramente reflexivas. Todos têm se perguntado se o
tempo se detém, se há um findar para o tempo.
PJ: Sim, mas agora você fala do tempo como o processo psicológico do conflito.
K: Sim.
PJ: Não do tempo como duração, entre um nascer e o pôr do Sol.
K: Não. O que é, então, o que estamos tratando de descobrir? Que tratamos
de investigar juntos?
PJ: O que é que dá origem, no cérebro, a esta qualidade do nascimento?
K: Tenhamos claro o que entendemos por “nascimento”. Entendemos por
“nascimento” um elemento novo, fresco, que penetra o cérebro?
PJ: Ao usar a palavra “nascimento”, estou sugerindo pureza, frescor...
K: Espere um momento; seja cuidadosa. O que entende por “nascimento”? Um
bebê nasceu, porém seu cérebro já contém a qualidade e a tradição de seu pai,
de sua mãe...
PJ: Mas o nascimento também tem a qualidade de novo. O nascimento
significa: Isso não era, e agora é.
K: Você está usando “nascimento” no sentido do velho que nasce. O cérebro
antigo — que não é seu e nem meu, porque é universal — renasce em um
bebê.
PJ: Sim. Mas o que renasce em um cérebro que é livre? Renasce o antigo?
K: Sejamos claros, Pupul. Em primeiro lugar, há possibilidade de liberar-nos
o cérebro deste condicionamento, que tem produzido sua própria deterioração? E,
além do mais, pode essa consciência findar integralmente com todos os seus
conflitos? Porque só então será possível ter um novo nascimento.
Não
sei se entende o que estou dizendo. Enquanto nosso cérebro, ou seja, nossa
consciência, esteja em conflito, nenhum elemento novo poderá nela penetrar.
Isso é óbvio. Você admitiria isso, não só verbalmente senão de maneira factual?
Vê o fato de que enquanto você esteja lutando, lutando, esforçando-se por
chegar a ser algo...?
PJ: Sim, creio que se vê isso.
K: E bem, se se vê realmente isso, se o vê internamente, por assim dizer,
então, surge a interrogação de se é possível findar com isso, findar com o
sofrimento, com o medo, etc.
PJ: Veja, Krishnaji, o perigo está em que se pode terminar com isso,
terminar com o sofrimento e tudo isso, sem que haja renovação.
K: Não, espere...
PJ: Por favor, escute.
K: Muito bem.
PJ: Existe a possibilidade de terminar com todas essas coisas...
K: ... e não obstante...
PJ: E não obstante, degradar.
K: Entendemos duas coisas diferentes por “findar”.
PJ: Findar de quê?
K: Findar de “o que é”, ou seja, de minha consciência. Todos os
pensamentos que tenho tido, todas as complexidades que têm se acumulado ao
longo do tempo... Terminar com tudo isso. Teremos, pois, que ser muito claros
com respeito ao que entendemos por “findar”. Finda você com tudo “o que é”,
mediante um ato deliberado da vontade, mediante uma ideia deliberada, devido a
um propósito, a alguma meta superior?
PJ: Krishnaji, quando um findar ocorre verdadeiramente, o qual implica uma
interrupção completa, uma quietude total da mente, isso ocorre sem nenhum
motivo. Não se deve a nenhuma causa particular.
K: Não. Não. Primeiro sejamos claros, Pupulji. Que entendemos por
“findar”? O findar, cria seu próprio oposto?
PJ: Não.
K: Espere, vá com cuidado. No geral, é isso o que entendemos. Findo com
isto a fim de obter aquilo.
PJ: Não. Eu não me refiro a esse findar.
K: Eu entendo por “findar”, a
percepção total do “que é”. Em outras palavras, por “findar” entendo ter uma percepção total de minha consciência,
uma percepção íntegra, completa dessa consciência que é meu
conteúdo interno. Essa percepção carece de motivo, de alguma recordação; é uma percepção imediata, e no findar
dessa consciência, há algo mais além, algo que não tem sido tocado pelo
pensamento. Isso é o que entendo por “findar”.
PJ: Você chama “o antigo” aos milhares de anos?
K: Isso forma parte do cérebro antigo... é claro, naturalmente.
PJ: É a totalidade desse milhão de anos que se vê a si mesma?
K: Sim, correto. É disso que se trata realmente. Olhe, Pupul, façamos um
pouco mais simples, um pouco mais definido. Vemos o fato de que nossa consciência
tem sido cultivada ao longo do tempo?
PJ: Sim.
K: Pode haver uma possibilidade de perceber sem o movimento do futuro?
Compreende o que quero dizer? O findar não tem um futuro. Só há o findar. Mas o
cérebro diz: “Não posso terminar desse modo, porque necessito de um futuro para
sobreviver”.
PJ: Sim, porque o futuro está incorporado no cérebro.
K: Desde já. Então, há um findar para as exigências psicológicas, para os
conflitos, etc., sem o pensamento do
futuro? Há um findar para tudo isso, sem o pensamento que diz: “Que farei se eu
chego ao fim?” Não sei se estou comunicando algo. Veja, no geral, renunciamos a
algo se nos garante outra coisa. Renunciarei, por exemplo, ao sofrimento, se
você me garantir que, com o findar deste, serei feliz, ou se há alguma
recompensa extraordinária que me aguarda. Isto é porque todo meu cérebro, toda
minha consciência, se baseia na noção de recompensa e castigo. O castigo é o
findar e a recompensa é o que obterei.
PJ: Sim.
K: Bem, agora, enquanto estes dois elementos existem no cérebro, o
presente continuará — continuará modificado, é claro.
PJ: De acordo.
K: Então, podem os dois princípios de recompensa e castigo findar de modo
que, quando o sofrimento chegue a seu fim, o cérebro não esteja buscando uma
existência futura no paraíso?
PJ: Mas ainda quando o cérebro não está buscando um futuro no paraíso, o
sofrimento mesmo o corroí.
K: Sim, Mas veja, Pupulji, é muito importante compreender que o cérebro
está buscando constantemente a segurança. Deve ter segurança. Por isso possuem
uma significação extraordinária a tradição, a memória, o passado. Correto? O
cérebro necessita de segurança. O bebê necessita segurança. A segurança é o
alimento, a roupa, a residência, e também a nossa fé em Deus, nossa fé em algum
ideal, nossa fé numa sociedade melhor no futuro.
Assim
que o cérebro diz: “Devo ter uma profunda segurança; do contrário, não posso
funcionar”. De acordo? Só considere isso, Pupul: fisicamente, não há segurança,
nenhuma segurança verdadeira, em absoluto. Estou indo rápido demais?
PJ: Não. Mas sigo dizendo que há uma exigência central.
K: Qual? Sobreviver?
PJ: Não, senhor.
K: Qual é a exigência central?
PJ: A exigência central é ter uma mente, um cérebro, que contenha em si o
sabor de uma nova existência.
K: Quem exige isso? Quem deseja realmente um cérebro assim? Não a imensa
maioria das pessoas. Quase todos dizem: “Por favor, deixe-nos seguir como
estamos”.
PJ: Mas nós não estamos falando da imensa maioria. Eu estou discutindo com
você, ou X está discutindo com você...
K: Sejamos claros.
PJ: Senhor, ao que trato de chegar é que há muitas maneiras de conquistar
segurança.
K: Não, não, Pupul, eu questiono que exista a segurança no sentido em que
nós a desejamos.
PJ: Senhor, o cérebro jamais compreenderá isso.
K: Oh, sim, o compreenderá, o compreenderá.
PJ: Porque leva isso incorporado em si...
K: Por isso digo que a percepção
é importante.
PJ: A percepção de quê?
K: A percepção do que realmente “é”.
Mova-se a partir daí. Devagar, muito devagar.
PJ: A percepção do “que é”
inclui as coisas criativas que o cérebro tem feito, assim como as coisas
estúpidas, o que considera valioso. Está, pois, a percepção de tudo isto e o findar de tudo isto.
K: Não, um momento. Cuidado, Pupul; vamos devagar, se não se importa.
Estamos falando sobre a percepção do “que
é”, ou seja, do que realmente ocorre. Correto? O que ocorre ao meu redor
físico, externamente, e o que ocorre psicológica, internamente, constitui “o
que é”.
PJ: Sim.
K: Perguntamo-nos, então: “O que é” pode ser transformado? Ou seja, pode
ser transformada minha consciência, que forma parte das células cerebrais?
PJ: Mas no esvaziar dessa consciência...
K: Esse é o ponto. Formulamos-nos a pergunta: Isso é possível? É possível
esvaziar ou eliminar a totalidade de meu passado? O passado é tempo. Todo o
conteúdo de minha consciência é o passado, o qual pode projetar o futuro; mas o
futuro segue tendo suas raízes no passado. Compreende?
PJ: Sim.
K: Bem, gora, é possível esvaziá-lo totalmente? Esta é, realmente, uma
pergunta de enorme importância. Não é uma pergunta ideológica ou intelectual. É
possível não carregar, psicologicamente, a carga de um milhão de ontens?
O
findar disso é o começo do novo. O findar disso é o novo.
PJ: Você acaba de perguntar: “É possível não carregar, psicologicamente, a
carga de um milhão de ontens?”
K: Sim.
PJ: O problema, está na carga ou no milhar de ontens?
K: O milhar de ontens é a carga. Você não pode separar ambas as coisas.
PJ: O milhar de ontens é um fato. A carga se deve a que lhe foi outorgado
um conteúdo especial a muitas das experiências que tive.
K: Um momento. Existiria o milhar de ontens se não houvesse memória dos
sofrimentos contidos nesses mil ontens? Poso separar esses ontens pelo
calendário?
PJ: Sim. Pode-se separar a carga, o milhar de ontens.
K: Mostre-me como.
PJ: Tomemos a própria via de si. Pode-se cortar o milhar de ontens
separando-o do sofrimento, da dor, etc., que constituem a carga.
K: O que entende você por “cortar”? Além do mais, você pode cortar? Veja, o cortar implica duas partes.
PJ: É possível compreender, que é o que se tem que fazer com as recordações
superficiais dos ontens.
K: Você sabe o que isso significa? Extirpou realmente, pois fim ao milhar
de ontens com todas as superficialidades, sua mesquinhez, sua estreiteza, sua
brutalidade, sua crueldade, suas ambições e tudo o mais? Posso extirpar tudo
isso? Pode tudo isso findar? Você disse: “Eu posso cortar”, mas quem impunha a faca? O que é a faca e
quem ou o que é a entidade que faz o corte?
PJ: Por que você distingue entre o findar
e “o que é” e o cortar?
K: O “findar” implica, para mim, que não há continuação de algo que tenha
sido. “Cortar” implica duas partes da mesma coisa.
Agora
pergunto: É, antes de tudo, possível terminar completamente com o conteúdo da
consciência humana que se desenvolveu ao longo de milênios? E esse conteúdo é
esta confusão, esta vulgaridade, grosseria, mesquinhez e trivialidade de nossas
estúpidas vidas.
PJ: Mas também está a bondade...
K: Agora espere um momento. Devo ser muito cuidadoso. A bondade é algo
completamente diferente. A bondade não tem oposto. A bondade não é a
consciência daquilo que não é bom. O findar do que não é bom é a bondade.
Então, é possível colocar fim a todo conflito?
PJ: Sim, existe um findar para o conflito.
K: Existe, realmente um findar, Pupul? Ou é tão só um escutar a respeito
daquilo que se tem sido e que tem causado conflito?
PJ: O senhor quer dizer, que o fato mesmo do findar do conflito é o
nascimento do novo?
K: Sim. Você vê as implicações que tem o findar do conflito? Vê sua
profundidade, não só a superficialidade? A superficialidade é o limitar-se a
dizer que já não sou mais francês ou inglês, que não pertenço a tal ou qual
país, a tal ou qual religião. Não estou me referindo ao findar das coisas
superficiais. Falo do que está profundamente incrustado em nós.
PJ: Você se refere ao conflito como separação a respeito do outro.
K: Sim, como um estado de separação, de isolamento que, inevitavelmente,
engendra conflito. Isso é o real. O que significa? Quando não há conflito,
podem chegar ao seu fim os problemas? E quando surge um problema, podemos
terminar imediatamente com ele? Os problemas implicam conflito.
PJ: Por que surgem os conflitos?
K: Um problema é algo que se lançam a si, algo que constitui um fato. É
algo que devemos fazer frente.
PJ: Sim.
K: Nós resolvemos um problema intelectualmente ou fisicamente, o qual
segue criando mais problemas.
PJ: Você quer dizer, senhor, que para o nascimento do novo...
K: Sim, você está captando... Assim tem que ser. Portanto, o nascimento do
novo é o mais antigo.
PJ: Podemos investigar um pouco isso? Teria a bondade de dizer algo a
respeito?
K: Porque, depois de tudo, essa é a base
mais além da qual não há outra base.
Essa é a origem mais além da qual não há outra origem. (Larga pausa).
Veja,
Pupul, este é, na realidade, uma interrogação acerca de se o cérebro pode
alguma vez estar livre de sua própria escravidão. No fim das contas, findar com algo específico não é liberdade
total. De acordo? Posso terminar, por exemplo, com minhas feridas psicológicas.
Posso terminar com elas, é muito simples. Mas as imagens que tenho criado
acerca de mim mesmo, essas imagens se ofendem.
PJ: Sim.
K: E o fazedor das imagens é o problema. Por conseguinte, o mais
importante é viver uma vida sem uma só imagem. Então não haverá feridas
psicológicas, não haverá medo; e se não há medo, não haverá sentido algum de
segurança ou consolo: Deus e tudo o mais.
Você
diria que a origem de toda a vida é o antigo mais além do antigo, mais além de
todo pensamento acerca do velho e do novo? Diria que essa é a origem de toda a
vida e, também que, quando a mente — que inclui as células cerebrais — alcança
esse ponto, essa é a base totalmente
original, nova, incontaminada? Pergunto-me se é possível alcançar isso.
A
meditação tem sido um dos modos de alcançá-lo. Outra das maneiras pelas quais o
homem espera originar isso, é o silenciar da mente. Todos fazemos esforços para
chegar a isso. O que eu digo é que isso não requer esforço algum. A própria
palavra “esforço” implica conflito. Aquilo que não contém conflito algum, não
pode ser abordado através do conflito.
PJ: Em certo sentido, senhor, isso significa, na realidade, que em seu
ensinamento não há forma parcial alguma de abordar o conflito?
K: Impossível. Como poderia haver? Se eu fosse abordá-lo através dos
diversos caminhos que tem descoberto os hindus, — karma, yoga e demais, todos eles parciais — jamais poderia
acercar-me dele; jamais poderia abordá-lo.
PJ: Então, o que se pode fazer? Eu sou um ser humano corrente; que faço?
K: Esse é o verdadeiro problema. Não
se pode fazer nada. Só pode realizar atividades físicas. Psicologicamente, não há nada que possa fazer.
PJ: O que você entende por atividade “física”?
K: Criar um jardim, construir uma casa...
PJ: O movimento físico prossegue. Que se faz, pois?
K: Mas, se não há medo psicológico, não haverá divisão de países, etc. Não
haverá divisão; ponto.
PJ: Sim, mas o fato é que há
medo psicológico.
K: Exatamente. Em consequência, jamais se chegará. Uma mente, um cérebro
que tenha vivido em isolamento psicológico, com todos os seus conflitos
concomitantes, jamais poderá alcançar essa base
que é a origem de toda a vida. Obviamente, não. Como pode minha pequena mente,
atormentando-se com respeito ao meu detestável e mesquinho “eu”...?
PJ: Então toda a vida é tão insignificante, senhor... Se depois de fazer
de tudo, nem sequer foi dado o primeiro passo, onde me encontro?
K: O que é o primeiro passo? Um momento; investigue-o. O que é o primeiro
passo?
PJ: Eu diria que o primeiro passo é ver “o que é”, seja o que for.
K: Ver “o que é”. Correto. Espere. Como você o vê? Como o aborda? Porque
disso depende a totalidade do “que é”. Você vê “o que é”, somente parcialmente?
Se vê a totalidade de “o que é”, isso se findou.
PJ: Senhor, não funciona exatamente assim.
K: É claro que não. Porque nossas mentes, nossos pensamentos, estão
fragmentados; portanto, você aborda a vida ou “o que és” realmente, com seu
cérebro fragmentado, sua mente fragmentada...
PJ: (Interrompendo). Sim dúvida,
eu insistirei em que, com o tempo, o fragmentado diminui. Não caia sobre mim,
mas com o tempo isso diminui, e para a mente é possível, quando lhe escutamos,
permanecer quieta, sem fazer nenhum movimento, nenhum esforço. Mas isso não é,
todavia, o primeiro passo.
K: Ali é onde o eu começaria:
vendo se levo uma vida de fragmentação (Pausa).
Olhe,
Pupul, se eu fosse a perceber parcialmente “o que é”, isso conduziria a mais
complicações. De acordo? A percepção
parcial cria problemas. Bem, agora, é possível ver a complexidade total de
“o que é”? É possível ver a totalidade e não o fragmento? Porque se encaro a vida
— que é minha consciência, a maneira de pensar, sentir e atuar —
fragmentariamente, estou perdido. Isso é o que está ocorrendo no mundo. Estamos
completamente perdidos. É possível, pois, considerar a vida como uma totalidade
sem fragmentação? Pupul, esse é o ponto crucial.
PJ: Por que a mente antiga não vê isto?
K: Não o verá. Não pode. Como poderia ver isto? Como pode ter ordem total
completa...?
PJ: Mas você acaba de dizer que o antigo...
K: Um momento, isso é o antigo.
A base original é o mais antigo.
PJ: Então está aí.
K: Não.
PJ: O que você quer dizer com “Não”?
K: Está aí como uma ideia. E isso é o que tem conservado todas as
pessoas: uma ideia. “Deus existe”; isso é tão só uma ideia, um conceito, uma
projeção de nosso próprio desejo de nos sentir confortados, de ser felizes (Larga pausa).
Veja,
Pupul, a questão é se um ser humano pode viver uma vida na qual não haja uma
ação fragmentária. Se alguém perguntasse: “Por onde tenho que começar?”, eu
diria: “Comece por ali; descubra por si mesmo se leva uma vida fragmentária.
Sabe o que é uma vida fragmentária? Uma vida fragmentária é dizer uma coisa e
fazer outra. Uma forma fragmentária de viver é o isolamento; devido a ele não
temos relação alguma com o resto da humanidade. Comece, pois, por ali”.
Sabe,
Pupul, o que isso significa? Sabe que investigação extraordinária deve-se fazer
para descobrir?
PJ: O que é a investigação?
K: É observação. Investigar é observar muito claramente, sem distorção alguma,
sem nenhuma tendência particular, sem nenhum motivo, quão fragmentada está minha
vida. É simplesmente observar, e não dizer: “Não devo ser fragmentado e, portanto,
devo ser total”. A ideia de chegar a ser total
é outra fragmentação.
PJ: De modo que o nascimento do novo...
K: Não é possível a menos que se veja isto.
Brockwood Park
22 de junho de 1982
Fogo Na Mente