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sábado, 17 de março de 2018

Pode o cérebro renovar-se a si mesmo?


PODE O CÉREBRO RENOVAR-SE A SI MESMO?

Pupul Jayakar (PJ): Estava me perguntando se poderíamos discutir a natureza do nascimento na mente humana, quer dizer, se uma mente esgotada, velha e incapaz de perceber, pode renovar-se totalmente a si mesma. Pode ter uma percepção nova? Porque já o vê, senhor, o problema com muitos de nós é que, a medida que envelhecemos, encontramos que a rapidez e agilidade de nossas mentes...

Jiddu Krishnamurti (K): ... se perdeu.

PJ: Sim, que a capacidade de perceber e receber profundamente, se debilita.

K: Você pergunta se é possível conservar a mente muito jovem não obstante sua antiguidade?

PJ: Sim. Você usa a palavra “antiguidade”. De fato, a tem usado diversas vezes. Gostaria de saber o que entende por “antigo”. Evidentemente, a antiguidade de que você fala, não se relaciona com o tempo — o tempo como o ontem —. Qual é, então, a natureza desta antiguidade?

K: Investiguemos. Antes de tudo, o cérebro humano tem sua própria natureza protetora — até onde se entende e até onde os cientistas se referem à qualidade do cérebro e ao modo como trabalha: há uma reação química que o protege quando experimenta uma comoção ou uma dor. O cérebro humano é muito, muito antigo. Tem evoluído desde o macaco ao humano. Tem evoluído através do tempo, através da imensa experiência. Tem adquirido muitíssimo conhecimento — tanto interno como externo — e, por isso, é realmente muito antigo. Até onde posso entender, não é um cérebro pessoal. Não é “meu” cérebro ou “seu” cérebro.

PJ: Mas, senhor, obviamente seu cérebro e meu cérebro tem em si uma qualidade diferente com relação do antigo.

K: Não, espere. Só estou explorando; coloco simplesmente os primeiros ladrilhos. Estamos de acordo de que o cérebro é muito velho, muito antigo e que nossos cérebros não são cérebros individuais?

Nossos cérebros não são cérebros individuais. Podemos ter reduzido o cérebro a algo individual — de fato, quase todos pensamos nele como “meu” cérebro e “seu” cérebro —, mas o cérebro não pode ter evoluído ao longo do tempo como “meu” cérebro. Quero dizer, tal coisa é obviamente absurda.

PJ: Sim.

K: Sim, mas desafortunadamente, a maioria de nós pensa que o cérebro é pessoal: “meu” cérebro; e, a partir disto, nasce todo o conceito individualista.

PJ: De acordo.

K: Bem, agora, estamos dizendo que semelhante cérebro antigo tem sido tão condicionado que se tornou superficial, tosco por demais, vulgar e artificial? Tem perdido o que se acha incrustado muito no fundo do inconsciente?

PJ: Mas uma mente antiga — como você acaba de dizer — é o resultado da evolução no tempo.

K: É claro. Evolução significa tempo.

PJ: Então a busca que tem continuado por séculos...

K: Desde o princípio dos tempos o homem deve ter se perguntado...

PJ: Sim, o homem tem se perguntado se é possível liberar o cérebro do tempo — do tempo, que se acha incorporado neste processo de envelhecimento —. Senhor, quando você fala de um cérebro antigo, se refere a um cérebro que também leva incorporado em si...

K: A qualidade de sua própria deterioração? Sim.

PJ: Por que é assim?

K: É assim porque a experiência e o conhecimento o tem limitado, condicionado e reduzido. Quanto mais conhecimento o cérebro adquire, tanto mais se limita. Correto?

PJ: Você parece estar implicando duas coisas, Krishnaji. Uma, o sentido do antigo como o peso do passado que dá ao cérebro a sensação de ser muito velho, porque tem muitos milhares de anos. E todas as experiências...

K: ... o têm condicionado, reduzido, limitado.

PJ: Mas o antigo de que você fala... refere-se a um cérebro que tenha experimentado ao longo do tempo?

K: Não. Investiguemos isso. Primeiro vejamos quão antigo é no sentido normal dessa palavra, e como, em seus milhares de anos de experiência, tem se limitado a si mesmo. Por conseguinte, nele existe a qualidade de sua própria deterioração. E, o estar vivendo no mundo moderno — com todo o ruído, com todas as terríveis comoções e agonias da guerra, etc., — tem feito com que o cérebro se torne ainda mais limitado, que se enrede ainda mais no conflito. A limitação mesma apresenta seus próprios conflitos.

PJ: Senhor, há uma mente na qual o sentido dos milhares de anos, outorga peso e densidade.

K: Sim, você está completamente correta.

PJ: Logo, há uma mente que é frágil, que pode corroer-se com facilidade.

K: Você usa a palavra “mente” e “cérebro”. De qual fala?

PJ: Do cérebro.

K: Então, atenha-se ao cérebro. Não use a palavra “mente”.

PJ: Usarei a palavra “cérebro”. O cérebro tem em si certo peso, certa densidade.

K: Sim. Contém em si vulgaridade, peso.

PJ: Então, isso é o que você entende pelo antigo?

K: Não totalmente. Investiguemos devagar. Admitimos que o cérebro, mediante sua própria evolução, condicionou-se e, portanto, leva em si a qualidade inerente de sua própria destruição?

PJ: Sim.

K: Então, a pergunta é se essa qualidade inerente de sua deterioração, pode alguma vez se interromper. Podem as células cerebrais renovar-se a si mesmas do peso de seu condicionamento? Entende o que digo?

PJ: Sim.

K: Apesar das angústias, dos fracassos, das desgraças e todas as demais complexidades deste mundo moderno em que vivemos, pode o cérebro renovar-se a si mesmo como para alcançar sua originalidade? Por “originalidade” não deve entender-se um sentido de individualidade, senão o sentido de sua origem.

PJ: Você diria que as células cerebrais do bebê são originais nesse sentido?

K: Não, claro que não.

PJ: Então, o que se entende por originalidade das células cerebrais?

K: Examinemos um pouquinho mais. A palavra “original”, o que significa? Único? Especial?

PJ: A palavra tem uma qualidade de “a primeira vez”.

K: Sim, uma qualidade prístina. “Original” significa não tocado, não contaminado pelo conhecimento.

PJ: Sim.

K: Pode um cérebro semelhante, que tem sido condicionado por muitos milhares de anos, eliminar seu condicionamento e alcançar uma qualidade de prístino frescor? Mas esta, quem sabe, seja uma pergunta completamente errônea.

PJ: Os cientistas dizem que as células cerebrais estão morrendo todo o tempo. Portanto, o número de células cerebrais disponíveis...

K: Mas o cérebro também se renova a si mesmo. Ao que parece, certas células morrem e algumas outras nascem. As células não estão morrendo todo o tempo. Do contrário, o cérebro se desmoronaria. Morreria.

PJ: O fato mesmo do envelhecimento indica que a renovação não avança ao mesmo passo que a morte das células.

K: Sim, mas isso é tudo o que levanto. Um cérebro que tenha sido condicionado e que, em consequência, como você o expressa, contém a qualidade inerente de sua própria deterioração, pode renovar-se a si mesmo? Essa qualidade inerente de deterioração, pode findar, desaparecer?

Quer dizer, pode o cérebro conservar-se jovem, fresco, vivo, com a qualidade de seu estado original?

PJ: Como você prosseguiria a partir daí?

K: Antes que prossigamos, creio que devemos investigar a questão do que é a consciência, porque essa é uma parte de todo o nosso ser. Temos que examinar não só o ser-consciente-das-coisas, tanto externa como internamente, senão também todo o conteúdo da consciência. Porque, como sabemos, sem o conteúdo não há consciência. A pergunta é: O conteúdo que contém essa consciência, pode findar por si mesmo? Pode essa consciência terminar por si mesma, de modo tal que haja na consciência uma dimensão completamente diferente?

Bem, agora, o conteúdo da consciência é a consciência: prazer, crença, excitação, sensação, reação, fé, angústia, sofrimento, afeto... A totalidade disso é a consciência.

PJ: Sim.

K: E, enquanto o conteúdo, que é tudo isto, existe, o cérebro se desgasta por causa do conflito que há dentro da consciência. Por isso não há nele, frescor. O cérebro envelhece e morre.

PJ: O conteúdo da consciência, é idêntico às células cerebrais?

K: Sim, é claro.

PJ: Por causa da natureza mesma da consciência e seu conteúdo, as células cerebrais se desgastam...

K: Por causa do conflito. Tenha cuidado.

PJ: Sim, compreendo isso. Esse processo mesmo está desgastando as células cerebrais.

K: Isso é o conflito: a perturbação, os impactos emocionais, as pressões.

PJ: De modo que o físico e o psicológico são, na realidade, o mesmo. A dor é o físico. O conteúdo da consciência é psicológico.

K: O qual também é um processo do físico. 

PJ: Sim.

K: Portanto, o psicológico, assim como o físico, constituem tudo isto: as reações que dão origem ao pensamento de dor, ao pensamento de angústia, ao pensamento de prazer, de realização, ambição, crença, fé, etc.

PJ: Isso cria uma perturbação.

K: Sim.

PJ: Mas está na natureza das células cerebrais morrer continuamente. Isso também é inerente ao cérebro.

K: É claro. Está aí, como também suas próprias reações químicas para auto-proteger-se.

PJ: Sim. Mas assim o tempo está incorporado às células cerebrais.

K: Desde já; ao fim e ao cabo, o cérebro é um produto do tempo.

Bem, agora, a verdadeira pergunta é se a consciência com seu conteúdo pode findar totalmente. Ou seja, pode findar totalmente o conflito?

PJ: Mas com o conflito totalmente findado, findará o tempo?

K: Sim. Depois de tudo, isso é o que tem investigado os sannyases, os monges, as pessoas verdadeiramente reflexivas. Todos têm se perguntado se o tempo se detém, se há um findar para o tempo.

PJ: Sim, mas agora você fala do tempo como o processo psicológico do conflito.

K: Sim.

PJ: Não do tempo como duração, entre um nascer e o pôr do Sol.

K: Não. O que é, então, o que estamos tratando de descobrir? Que tratamos de investigar juntos?

PJ: O que é que dá origem, no cérebro, a esta qualidade do nascimento?

K: Tenhamos claro o que entendemos por “nascimento”. Entendemos por “nascimento” um elemento novo, fresco, que penetra o cérebro?

PJ: Ao usar a palavra “nascimento”, estou sugerindo pureza, frescor...

K: Espere um momento; seja cuidadosa. O que entende por “nascimento”? Um bebê nasceu, porém seu cérebro já contém a qualidade e a tradição de seu pai, de sua mãe...

PJ: Mas o nascimento também tem a qualidade de novo. O nascimento significa: Isso não era, e agora é.

K: Você está usando “nascimento” no sentido do velho que nasce. O cérebro antigo — que não é seu e nem meu, porque é universal — renasce em um bebê.

PJ: Sim. Mas o que renasce em um cérebro que é livre? Renasce o antigo?

K: Sejamos claros, Pupul. Em primeiro lugar, há possibilidade de liberar-nos o cérebro deste condicionamento, que tem produzido sua própria deterioração? E, além do mais, pode essa consciência findar integralmente com todos os seus conflitos? Porque só então será possível ter um novo nascimento.

Não sei se entende o que estou dizendo. Enquanto nosso cérebro, ou seja, nossa consciência, esteja em conflito, nenhum elemento novo poderá nela penetrar. Isso é óbvio. Você admitiria isso, não só verbalmente senão de maneira factual? Vê o fato de que enquanto você esteja lutando, lutando, esforçando-se por chegar a ser algo...?

PJ: Sim, creio que se vê isso.

K: E bem, se se vê realmente isso, se o vê internamente, por assim dizer, então, surge a interrogação de se é possível findar com isso, findar com o sofrimento, com o medo, etc.

PJ: Veja, Krishnaji, o perigo está em que se pode terminar com isso, terminar com o sofrimento e tudo isso, sem que haja renovação.

K: Não, espere...

PJ: Por favor, escute.

K: Muito bem.

PJ: Existe a possibilidade de terminar com todas essas coisas...

K: ... e não obstante...

PJ: E não obstante, degradar.

K: Entendemos duas coisas diferentes por “findar”.

PJ: Findar de quê?

K: Findar de “o que é”, ou seja, de minha consciência. Todos os pensamentos que tenho tido, todas as complexidades que têm se acumulado ao longo do tempo... Terminar com tudo isso. Teremos, pois, que ser muito claros com respeito ao que entendemos por “findar”. Finda você com tudo “o que é”, mediante um ato deliberado da vontade, mediante uma ideia deliberada, devido a um propósito, a alguma meta superior?

PJ: Krishnaji, quando um findar ocorre verdadeiramente, o qual implica uma interrupção completa, uma quietude total da mente, isso ocorre sem nenhum motivo. Não se deve a nenhuma causa particular.

K: Não. Não. Primeiro sejamos claros, Pupulji. Que entendemos por “findar”? O findar, cria seu próprio oposto?

PJ: Não.

K: Espere, vá com cuidado. No geral, é isso o que entendemos. Findo com isto a fim de obter aquilo.

PJ: Não. Eu não me refiro a esse findar.

K: Eu entendo por “findar”, a percepção total do “que é”. Em outras palavras, por “findar” entendo ter uma percepção total de minha consciência, uma percepção íntegra, completa dessa consciência que é meu conteúdo interno. Essa percepção carece de motivo, de alguma recordação; é uma percepção imediata, e no findar dessa consciência, há algo mais além, algo que não tem sido tocado pelo pensamento. Isso é o que entendo por “findar”.

PJ: Você chama “o antigo” aos milhares de anos?

K: Isso forma parte do cérebro antigo... é claro, naturalmente.

PJ: É a totalidade desse milhão de anos que se vê a si mesma?

K: Sim, correto. É disso que se trata realmente. Olhe, Pupul, façamos um pouco mais simples, um pouco mais definido. Vemos o fato de que nossa consciência tem sido cultivada ao longo do tempo?

PJ: Sim.

K: Pode haver uma possibilidade de perceber sem o movimento do futuro? Compreende o que quero dizer? O findar não tem um futuro. Só há o findar. Mas o cérebro diz: “Não posso terminar desse modo, porque necessito de um futuro para sobreviver”.

PJ: Sim, porque o futuro está incorporado no cérebro.

K: Desde já. Então, há um findar para as exigências psicológicas, para os conflitos, etc., sem o pensamento do futuro? Há um findar para tudo isso, sem o pensamento que diz: “Que farei se eu chego ao fim?” Não sei se estou comunicando algo. Veja, no geral, renunciamos a algo se nos garante outra coisa. Renunciarei, por exemplo, ao sofrimento, se você me garantir que, com o findar deste, serei feliz, ou se há alguma recompensa extraordinária que me aguarda. Isto é porque todo meu cérebro, toda minha consciência, se baseia na noção de recompensa e castigo. O castigo é o findar e a recompensa é o que obterei.

PJ: Sim.

K: Bem, agora, enquanto estes dois elementos existem no cérebro, o presente continuará — continuará modificado, é claro.

PJ: De acordo.

K: Então, podem os dois princípios de recompensa e castigo findar de modo que, quando o sofrimento chegue a seu fim, o cérebro não esteja buscando uma existência futura no paraíso?

PJ: Mas ainda quando o cérebro não está buscando um futuro no paraíso, o sofrimento mesmo o corroí.

K: Sim, Mas veja, Pupulji, é muito importante compreender que o cérebro está buscando constantemente a segurança. Deve ter segurança. Por isso possuem uma significação extraordinária a tradição, a memória, o passado. Correto? O cérebro necessita de segurança. O bebê necessita segurança. A segurança é o alimento, a roupa, a residência, e também a nossa fé em Deus, nossa fé em algum ideal, nossa fé numa sociedade melhor no futuro.

Assim que o cérebro diz: “Devo ter uma profunda segurança; do contrário, não posso funcionar”. De acordo? Só considere isso, Pupul: fisicamente, não há segurança, nenhuma segurança verdadeira, em absoluto. Estou indo rápido demais?

PJ: Não. Mas sigo dizendo que há uma exigência central.

K: Qual? Sobreviver?

PJ: Não, senhor.

K: Qual é a exigência central?

PJ: A exigência central é ter uma mente, um cérebro, que contenha em si o sabor de uma nova existência.

K: Quem exige isso? Quem deseja realmente um cérebro assim? Não a imensa maioria das pessoas. Quase todos dizem: “Por favor, deixe-nos seguir como estamos”.

PJ: Mas nós não estamos falando da imensa maioria. Eu estou discutindo com você, ou X está discutindo com você...

K: Sejamos claros.

PJ: Senhor, ao que trato de chegar é que há muitas maneiras de conquistar segurança.

K: Não, não, Pupul, eu questiono que exista a segurança no sentido em que nós a desejamos.

PJ: Senhor, o cérebro jamais compreenderá isso.

K: Oh, sim, o compreenderá, o compreenderá.

PJ: Porque leva isso incorporado em si...

K: Por isso digo que a percepção é importante.

PJ: A percepção de quê?

K: A percepção do que realmente “é”. Mova-se a partir daí. Devagar, muito devagar.

PJ: A percepção do “que é” inclui as coisas criativas que o cérebro tem feito, assim como as coisas estúpidas, o que considera valioso. Está, pois, a percepção de tudo isto e o findar de tudo isto.

K: Não, um momento. Cuidado, Pupul; vamos devagar, se não se importa. Estamos falando sobre a percepção do “que é”, ou seja, do que realmente ocorre. Correto? O que ocorre ao meu redor físico, externamente, e o que ocorre psicológica, internamente, constitui “o que é”.

PJ: Sim.

K: Perguntamo-nos, então: “O que é” pode ser transformado? Ou seja, pode ser transformada minha consciência, que forma parte das células cerebrais?

PJ: Mas no esvaziar dessa consciência...

K: Esse é o ponto. Formulamos-nos a pergunta: Isso é possível? É possível esvaziar ou eliminar a totalidade de meu passado? O passado é tempo. Todo o conteúdo de minha consciência é o passado, o qual pode projetar o futuro; mas o futuro segue tendo suas raízes no passado. Compreende?

PJ: Sim.

K: Bem, gora, é possível esvaziá-lo totalmente? Esta é, realmente, uma pergunta de enorme importância. Não é uma pergunta ideológica ou intelectual. É possível não carregar, psicologicamente, a carga de um milhão de ontens?

O findar disso é o começo do novo. O findar disso é o novo.

PJ: Você acaba de perguntar: “É possível não carregar, psicologicamente, a carga de um milhão de ontens?”

K: Sim.

PJ: O problema, está na carga ou no milhar de ontens?

K: O milhar de ontens é a carga. Você não pode separar ambas as coisas.

PJ: O milhar de ontens é um fato. A carga se deve a que lhe foi outorgado um conteúdo especial a muitas das experiências que tive.

K: Um momento. Existiria o milhar de ontens se não houvesse memória dos sofrimentos contidos nesses mil ontens? Poso separar esses ontens pelo calendário?

PJ: Sim. Pode-se separar a carga, o milhar de ontens.

K: Mostre-me como.

PJ: Tomemos a própria via de si. Pode-se cortar o milhar de ontens separando-o do sofrimento, da dor, etc., que constituem a carga.

K: O que entende você por “cortar”? Além do mais, você pode cortar? Veja, o cortar implica duas partes.

PJ: É possível compreender, que é o que se tem que fazer com as recordações superficiais dos ontens.

K: Você sabe o que isso significa? Extirpou realmente, pois fim ao milhar de ontens com todas as superficialidades, sua mesquinhez, sua estreiteza, sua brutalidade, sua crueldade, suas ambições e tudo o mais? Posso extirpar tudo isso? Pode tudo isso findar? Você disse: “Eu posso cortar”, mas quem impunha a faca? O que é a faca e quem ou o que é a entidade que faz o corte?

PJ: Por que você distingue entre o findar e “o que é” e o cortar?

K: O “findar” implica, para mim, que não há continuação de algo que tenha sido. “Cortar” implica duas partes da mesma coisa.

Agora pergunto: É, antes de tudo, possível terminar completamente com o conteúdo da consciência humana que se desenvolveu ao longo de milênios? E esse conteúdo é esta confusão, esta vulgaridade, grosseria, mesquinhez e trivialidade de nossas estúpidas vidas.

PJ: Mas também está a bondade...

K: Agora espere um momento. Devo ser muito cuidadoso. A bondade é algo completamente diferente. A bondade não tem oposto. A bondade não é a consciência daquilo que não é bom. O findar do que não é bom é a bondade. Então, é possível colocar fim a todo conflito?

PJ: Sim, existe um findar para o conflito.

K: Existe, realmente um findar, Pupul? Ou é tão só um escutar a respeito daquilo que se tem sido e que tem causado conflito?

PJ: O senhor quer dizer, que o fato mesmo do findar do conflito é o nascimento do novo?

K: Sim. Você vê as implicações que tem o findar do conflito? Vê sua profundidade, não só a superficialidade? A superficialidade é o limitar-se a dizer que já não sou mais francês ou inglês, que não pertenço a tal ou qual país, a tal ou qual religião. Não estou me referindo ao findar das coisas superficiais. Falo do que está profundamente incrustado em nós.

PJ: Você se refere ao conflito como separação a respeito do outro.

K: Sim, como um estado de separação, de isolamento que, inevitavelmente, engendra conflito. Isso é o real. O que significa? Quando não há conflito, podem chegar ao seu fim os problemas? E quando surge um problema, podemos terminar imediatamente com ele? Os problemas implicam conflito.

PJ: Por que surgem os conflitos?

K: Um problema é algo que se lançam a si, algo que constitui um fato. É algo que devemos fazer frente.

PJ: Sim.

K: Nós resolvemos um problema intelectualmente ou fisicamente, o qual segue criando mais problemas.

PJ: Você quer dizer, senhor, que para o nascimento do novo...

K: Sim, você está captando... Assim tem que ser. Portanto, o nascimento do novo é o mais antigo.

PJ: Podemos investigar um pouco isso? Teria a bondade de dizer algo a respeito?

K: Porque, depois de tudo, essa é a base mais além da qual não há outra base. Essa é a origem mais além da qual não há outra origem. (Larga pausa).

Veja, Pupul, este é, na realidade, uma interrogação acerca de se o cérebro pode alguma vez estar livre de sua própria escravidão. No fim das contas, findar com algo específico não é liberdade total. De acordo? Posso terminar, por exemplo, com minhas feridas psicológicas. Posso terminar com elas, é muito simples. Mas as imagens que tenho criado acerca de mim mesmo, essas imagens se ofendem.

PJ: Sim.

K: E o fazedor das imagens é o problema. Por conseguinte, o mais importante é viver uma vida sem uma só imagem. Então não haverá feridas psicológicas, não haverá medo; e se não há medo, não haverá sentido algum de segurança ou consolo: Deus e tudo o mais.

Você diria que a origem de toda a vida é o antigo mais além do antigo, mais além de todo pensamento acerca do velho e do novo? Diria que essa é a origem de toda a vida e, também que, quando a mente — que inclui as células cerebrais — alcança esse ponto, essa é a base totalmente original, nova, incontaminada? Pergunto-me se é possível alcançar isso.

A meditação tem sido um dos modos de alcançá-lo. Outra das maneiras pelas quais o homem espera originar isso, é o silenciar da mente. Todos fazemos esforços para chegar a isso. O que eu digo é que isso não requer esforço algum. A própria palavra “esforço” implica conflito. Aquilo que não contém conflito algum, não pode ser abordado através do conflito.

PJ: Em certo sentido, senhor, isso significa, na realidade, que em seu ensinamento não há forma parcial alguma de abordar o conflito?

K: Impossível. Como poderia haver? Se eu fosse abordá-lo através dos diversos caminhos que tem descoberto os hindus, — karma, yoga e demais, todos eles parciais — jamais poderia acercar-me dele; jamais poderia abordá-lo.

PJ: Então, o que se pode fazer? Eu sou um ser humano corrente; que faço?

K: Esse é o verdadeiro problema. Não se pode fazer nada. Só pode realizar atividades físicas. Psicologicamente, não há nada que possa fazer.

PJ: O que você entende por atividade “física”?

K: Criar um jardim, construir uma casa...

PJ: O movimento físico prossegue. Que se faz, pois?

K: Mas, se não há medo psicológico, não haverá divisão de países, etc. Não haverá divisão; ponto.

PJ: Sim, mas o fato é que medo psicológico.

K: Exatamente. Em consequência, jamais se chegará. Uma mente, um cérebro que tenha vivido em isolamento psicológico, com todos os seus conflitos concomitantes, jamais poderá alcançar essa base que é a origem de toda a vida. Obviamente, não. Como pode minha pequena mente, atormentando-se com respeito ao meu detestável e mesquinho “eu”...?

PJ: Então toda a vida é tão insignificante, senhor... Se depois de fazer de tudo, nem sequer foi dado o primeiro passo, onde me encontro?

K: O que é o primeiro passo? Um momento; investigue-o. O que é o primeiro passo?

PJ: Eu diria que o primeiro passo é ver “o que é”, seja o que for.

K: Ver “o que é”. Correto. Espere. Como você o vê? Como o aborda? Porque disso depende a totalidade do “que é”. Você vê “o que é”, somente parcialmente? Se vê a totalidade de “o que é”, isso se findou.

PJ: Senhor, não funciona exatamente assim.

K: É claro que não. Porque nossas mentes, nossos pensamentos, estão fragmentados; portanto, você aborda a vida ou “o que és” realmente, com seu cérebro fragmentado, sua mente fragmentada...

PJ: (Interrompendo). Sim dúvida, eu insistirei em que, com o tempo, o fragmentado diminui. Não caia sobre mim, mas com o tempo isso diminui, e para a mente é possível, quando lhe escutamos, permanecer quieta, sem fazer nenhum movimento, nenhum esforço. Mas isso não é, todavia, o primeiro passo.

K: Ali é onde o eu começaria: vendo se levo uma vida de fragmentação (Pausa).

Olhe, Pupul, se eu fosse a perceber parcialmente “o que é”, isso conduziria a mais complicações. De acordo? A percepção parcial cria problemas. Bem, agora, é possível ver a complexidade total de “o que é”? É possível ver a totalidade e não o fragmento? Porque se encaro a vida — que é minha consciência, a maneira de pensar, sentir e atuar — fragmentariamente, estou perdido. Isso é o que está ocorrendo no mundo. Estamos completamente perdidos. É possível, pois, considerar a vida como uma totalidade sem fragmentação? Pupul, esse é o ponto crucial.

PJ: Por que a mente antiga não vê isto?

K: Não o verá. Não pode. Como poderia ver isto? Como pode ter ordem total completa...?

PJ: Mas você acaba de dizer que o antigo...

K: Um momento, isso é o antigo. A base original é o mais antigo.

PJ: Então está aí.

K: Não.

PJ: O que você quer dizer com “Não”?

K: Está aí como uma ideia. E isso é o que tem conservado todas as pessoas: uma ideia. “Deus existe”; isso é tão só uma ideia, um conceito, uma projeção de nosso próprio desejo de nos sentir confortados, de ser felizes (Larga pausa).

Veja, Pupul, a questão é se um ser humano pode viver uma vida na qual não haja uma ação fragmentária. Se alguém perguntasse: “Por onde tenho que começar?”, eu diria: “Comece por ali; descubra por si mesmo se leva uma vida fragmentária. Sabe o que é uma vida fragmentária? Uma vida fragmentária é dizer uma coisa e fazer outra. Uma forma fragmentária de viver é o isolamento; devido a ele não temos relação alguma com o resto da humanidade. Comece, pois, por ali”.

Sabe, Pupul, o que isso significa? Sabe que investigação extraordinária deve-se fazer para descobrir?

PJ: O que é a investigação?

K: É observação. Investigar é observar muito claramente, sem distorção alguma, sem nenhuma tendência particular, sem nenhum motivo, quão fragmentada está minha vida. É simplesmente observar, e não dizer: “Não devo ser fragmentado e, portanto, devo ser total”. A ideia de chegar a ser total é outra fragmentação.

PJ: De modo que o nascimento do novo...

K: Não é possível a menos que se veja isto.

Brockwood Park
22 de junho de 1982
Fogo Na Mente

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"Quando você compreende, quando chega a saber,
então traz toda a beleza do passado de volta
e dá a esse passado o renascimento, renova-o,
de forma que todos os que o conheceram
possam estar de novo sobre a terra
e viajar por aqui, e ajudar as pessoas." (Tilopa)



"Nos momentos tranqüilos da meditação, a vontade de DEUS pode tornar-se evidente para nós. Acalmar a mente, através da meditação, traz uma paz interior que nos põe em contato com DEUS dentro de nós. Uma premissa básica da meditação, é que é difícil, senão impossível, alcançar um contato consciente, à não ser que a mente esteja sossegada. Para que haja um progresso, a comum sucessão ininterrupta de pensamentos tem de parar. Por isso, a nossa prática preliminar será sossegar a mente e deixar os pensamentos que brotam morrerem de morte natural. Deixamos nossos pensamentos para trás, à medida que a meditação do Décimo Primeiro Passo se torna uma realidade para nós. O equilíbrio emocional é um dos primeiros resultados da meditação, e a nossa experiência confirma isso." (11º Passo de NA)


"O Eu Superior pode usar algum evento, alguma pessoa ou algum livro como seu mensageiro. Pode fazer qualquer circunstância nova agir da mesma forma, mas o indivíduo deve ter a capacidade de reconhecer o que está acontecendo e ter a disposição para receber a mensagem". (Paul Brunton)



Observe Krishnamurti, em conversa com David Bohn, apontando para um "processo", um "caminho de transformação", descrevendo suas etapas até o estado de prontificação e a necessária base emocional para a manifestação da Visão Intuitiva, ou como dizemos no paradigma, a Retomada da Perene Consciência Amorosa Integrativa...


Krishnamurti: Estávamos discutindo o que significa para o cérebro não ter movimento. Quando um ser humano ESTEVE SEGUINDO O CAMINHO DA TRANSFORMAÇÃO, e PASSOU por TUDO isso, e esse SENTIDO DE VAZIO, SILÊNCIO E ENERGIA, ele ABANDONOU QUASE TUDO e CHEGOU AO PONTO, à BASE. Como, então, essa VISÃO INTUITIVA afeta a sua vida diária? Qual é o seu relacionamento com a sociedade? Como ele age em relação à guerra, e ao mundo todo — um mundo em que está realmente vivendo e lutando na escuridão? Qual a sua ação? Eu diria, como concordamos no outro dia, que ele é o não-movimento.

David Bohn: Sim, dissemos que a base era movimento SEM DIVISÃO.

K: Sem divisão. Sim, correto. (Capítulo 8 do livro, A ELIMINAÇÃO DO TEMPO PSICOLÓGICO)


A IMPORTÂNCIA DA RENDIÇÃO DIANTE DA MENTE ADQUIRIDA
Até praticar a rendição, a dimensão espiritual de você é algo sobre o que você lê, de que fala, com que fica entusiasmado, tema para escrita de livros, motivo de pensamento, algo em que acredita... ou não, seja qual for o caso. Não faz diferença. Só quando você se render é que a dimensão espiritual se tornará uma realidade viva na sua vida. Quando o fizer, a energia que você emana e que então governa a sua vida é de uma frequência vibratória muito superior à da energia mental que ainda comanda o nosso mundo. Através da rendição, a energia espiritual entra neste mundo. Não gera sofrimento para você, para os outros seres humanos, nem para qualquer forma de vida no planeta. (Eckhart Tolle em , A Prática do Poder do Agora, pág. 118)


O IMPOPULAR DRAMA OUTSIDER — O encontro direto com a Verdade absoluta parece, então, impossível para uma consciência humana comum, não mística. Não podemos conhecer a realidade ou mesmo provar a existência do mais simples objeto, embora isto seja uma limitação que poucas pessoas compreendem realmente e que muitas até negariam. Mas há entre os seres humanos um tipo de personalidade que, esta sim, compreende essa limitação e que não consegue se contentar com as falsas realidades que nutrem o universo das pessoas comuns. Parece que essas pessoas sentem a necessidade de forjar por si mesmas uma imagem de "alguma coisa" ou do "nada" que se encontra no outro lado de suas linhas telegráficas: uma certa "concepção do ser" e uma certa teoria do "conhecimento". Elas são ATORMENTADAS pelo Incognoscível, queimam de desejo de conhecer o princípio primeiro, almejam agarrar aquilo que se esconde atrás do sombrio espetáculo das coisas. Quando alguém possui esse temperamento, é ávido de conhecer a realidade e deve satisfazer essa fome da melhor forma possível, enganando-a, sem contudo jamais poder saciá-la. — Evelyn Underhill