Desde que me conheço por gente, sempre me vi prisioneiro de uma infindável manifestação de ansiedade, medo, conflito, frustração e depressão.
Sou o primeiro de quatro filhos de um lar disfuncional, cuja atmosfera girava sempre em torno de muito medo, angústia, ansiedade, raiva e vergonha. Meu pai, durante décadas, tentou solucionar seus conflitos interiores através do alcoolismo, enquanto que minha mãe, embriagada emocionalmente pelo convívio com o meu pai, tentava manter em pé a frágil estrutura de um ansioso lar alcoólico. Eu era uma criança perdida entre outras duas crianças perdidas em seus corpos de adultos. Quando hoje, me perguntam quanto a minha formação, costumo responder em tom de brincadeira de que sou o resultado de um espermatozóide alcoolizado com um óvulo emocionalmente perturbado. Não estou querendo com isso encontrar culpados para a série de conflitos que vivenciei ao longo destas quatro décadas. Seria profundamente injusto da minha parte, afinal de contas, éramos sobreviventes de uma estrutura familiar/social disfuncional; vítimas de vítimas, perpetuando uma seqüência de inconscientes abusos seculares.
No entanto, acredito no poder do reconhecimento e validação dos abusos e condicionamentos que lentamente foram abafando a originalidade e autenticidade do Ser que somos nós. Não somos tudo isso com o que, de modo totalmente inconsciente nos identificamos com o passar dos anos e que, apesar do enorme peso, insistimos em apresentar para os demais. Somos totalmente ignorantes quanto a nossa verdadeira realidade. Alguns de nós se orgulham da graduação cultural, do conhecimento e especialização que conquistaram com o decorrer dos anos, no entanto, se olharmos bem, muitos deles, não passam de verdadeiros analfabetos de si mesmos. Essa dualidade entre o que pensamos ser e o que realmente somos é que nos mantém vitimas de uma infinidade de dolorosas manifestações psíquicas, físicas e emocionais. Isso me faz recordar uma frase que ouvi num dos vários (e caros) workshops que participei, na tentativa de facilitar a compreensão de mim mesmo; ela veio de um poeta-educador por excelência, Roberto Crema:
"Leva-se apenas alguns minutos para se tirar a roupa que nos ajuda esconder nossas intimidades físicas dos demais. No entanto, de quanto tempo precisamos para nos despir das diversas capas de condicionamentos que escondem dos outros e de nós mesmos, nossa verdadeira intimidade?"
Olhar para a base da minha "deformação psíquica", com todos os seus abusos, que erroneamente chamam de "educação", foi para mim um dos primeiros degraus para o inicio da compreensão do meu condicionado modo de pensar e reagir. Posso afirmar de forma livre e espontânea que durante a maior parte da minha existência, nunca pensei por mim mesmo, fui como que um ser "pensado". Deixei-me hipnotizar pelo canto da sereia do pensamento coletivo condicionado. Fui um cego, surdo e mudo, uma vez que desconhecia minha própria, única e especial mensagem. Como um papagaio, limitei-me por anos e anos a repetir aquilo que ouvira de terceiros, sem a menor consciência do que fazia. É por essas e outras que hoje afirmo ser a depressão uma das maiores bênçãos que o "homo demens" possa receber. Ela é uma espécie de aviso de que em algum lugar do passado (e se não estivermos atentos ainda hoje), permitimos que alguém mexesse em nosso cérebro. Permitimos que roubassem de nós a sensibilidade, a capacidade de inquirir que nos dá a capacidade de sermos "homo sapiens" e passamos de forma inconsciente a nos identificar com esse estranho e insano modo de vida perpetuado pela sociedade formada por um grande clã de homo demens. Não existe a mínima possibilidade de se ter "sapiência" em meio do exercício de tamanha demência. E, a meu ver, uma das maiores manifestações da demência coletiva está em se manter no estágio infantil da crença. Como homo demens que fui, prisioneiro do sistema de crença coletiva, acreditei por anos e anos na idéia de um Deus externo capaz de me "salvar" dos males e conflitos criados pelo meu modo de ser, fundamentado numa série de comportamentos e reações condicionadas. Nenhum deus externo pode libertar o homo demens da influência continua da demência coletiva, por que essa própria "imagem" de deus, criada pelo pensamento coletivo condicionado, é uma mera ficção, ou seja, uma invenção imaginária, pura fantasia. A demência que me refiro aqui é um estado velado de deterioração mental, que produz procedimentos insensatos, que não revelam bom senso, cuja característica fundamental é a dissociação e a fragmentação da personalidade e a perda de contato com a realidade, que por sua vez, gera graves distúrbios de afetividade. O Homo demens não consegue vivenciar um estado de verdadeira intimidade consigo mesmo e conseqüentemente com outro ser humano. É um eterno fugitivo do encontro consigo mesmo. É incapaz de usar o cérebro, o pensamento de modo inteligente. Desde a mais tenra idade estive sendo fortemente influenciado e essa influência toda, acabou limitando o desenvolvimento do cérebro. A ciência já comprovou o fato de que o "homo demens" usa uma ínfima parte do potencial de seu cérebro. O cérebro, continua sendo um grande desconhecido de nós mesmos e é por causa disso que levamos uma vida medíocre, sem sentido e, portanto, disfuncional. Recuso-me aceitar que a função da existência seja esse medíocre movimento de correr atrás de cédulas impressas para o pagamento de carnês, boletos, contratos e ostentação de poder. Não creio que estamos vivendo a excelência de nosso ser, não fomos influenciados para isso, mas sim, para sermos meras máquinas de imitação em série. Por mexerem em nossos cérebros é que falta-nos a inteligência criativa e amorosa, que nada tem a ver com a sagacidade que erroneamente chamamos de inteligência. Se você acha que isso pode ser chamado de inteligência, lhe convido para dar uma boa olhada, de olhos bem abertos para o que está acontecendo fora dos seus aposentos, e quem sabe até, dentro dos mesmos... O que hoje se convencionou chamar de inteligência, não passa de interesse próprio, ou seja, puro egoísmo; uma manifestação egocêntrica que busca pela própria segurança mesmo que à custa da segurança alheia. A inteligência a que me refiro, não visa segurança própria, mas sim, o bem-estar comum. Essa inteligência é incapaz de se manifestar enquanto não olhamos com propriedade para o modo como nossos cérebros foram condicionados, limitados, atrofiados. Enquanto mantemos esses inúmeros condicionamentos, logicamente que nosso cérebro não pode funcionar de forma integral, mas tão somente, nos limites criados por tais condicionamentos. Fica então a questão: como se libertar de tais condicionamentos?