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segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Pode o homem libertar-se de seu sofrimento?

[...] O "eu", a mente, é o único instrumento que possuímos: entretanto, essa mente está tão condicionada, tão especializada, que só é capaz de pensar dentro da sua esfera de valores condicionados, pontos de vista condicionados, ações condicionadas. E com a compreensão da parte, do "eu", esperamos compreender o todo. O todo não é uma teoria, não é uma especulação; não é o que diz este ou aquele instrutor; não é uma ideia relativa a um estado, a Deus, a um modo de ser. Mas o direto experimentar do todo, não especulativamente mas de maneira real, pode tornar-se a libertação final do homem, do seu sofrimento. 

Porque nós — vocês e eu — estamos condicionados, totalmente condicionados pelo nosso pensar, é incapaz, a nossa mente, de compreender "o todo", a respeito do qual, nada sabemos. Todo pensar é condicionado; o pensamento, em qualquer nível que o coloquemos, é sempre condicionado. Não gostam de admitir este fato. Acreditam existir dentro de vocês, uma parte não condicionada, sobranceira a todas as influências "condicionadoras" — influências climáticas, religiosas, sociais; a educação; a memória; a experiência. Pensam que essa coisa não está sujeita a nenhum condicionamento e que ela não é o "eu". Mas, quando pensam nesse estado que dizem "não condicionado", o fato, justamente, de o pensarem, cria condicionamento; além disso, essa coisa que se acha além de toda possibilidade de condicionamento, é todavia condicionada se está em relação com o pensamento. Isto não é mera especulação ou argumento sutil. 

Se puderem examinar essa questão da mente condicionada, verão não existir nenhuma parte do pensamento que não esteja controlada, condicionada. Talvez seria esse condicionamento a verdadeira fonte de todo sofrimento. Se pudermos examinar esta questão, fora do nível verbal[...] se pudermos examinar e compreender esta questão, então não há dúvida de que com essa compreensão descobriremos muitas e muitas coisas. 

Em primeiro lugar, se estivermos vigilantes, por pouco que seja, se observarmos o estado da nossa mente, reconheceremos o pensamento é condicionado, não há pensar independente de condicionamento. Se admitirmos e compreendermos esse fato, haverá então diferentes maneiras de tratar o problema. Isto é, ao reconhecer que estou condicionado e que não há nenhuma possibilidade de "descondicionar" a minha mente, tento modificar o condicionamento, a condição, deixando de crer em certas ideias ou ideais; nesse "processo", porém, eu me condiciono, já que trato de adotar outras ideias ou ideais. Temos, pois, um "progresso" no condicionamento, e é isso o que interessa para a maioria de nós. Queremos progredir, social, econômica, religiosamente, ou em nossa relações mútuas, vivendo sempre condicionados ou "ou mais bem condicionados". Admitimos, desse modo, que o sofrimento nunca pode ter fim e que só é possível modificá-lo ou recorrer às várias maneiras de fuga ao sofrimento. 

Entretanto, quando sabemos, quando temos perfeita consciência de que nosso pensamento está inteiramente condicionado e que não há uma única parte dele "não condicionada", temos então a possibilidade de descobrir se existe alguma coisa além da mente, além das "projeções" e fabricações da mente. Acho importantíssimo este ponto; se pudermos examiná-lo verdadeiramente, experimentá-lo efetivamente, enquanto estamos falando, encontraremos então uma solução real para todos os nossos problemas, o principal dos quais é o sofrimento e a dor — não só a dor física, mas as manifestações mais complicadas da dor psicológica: as lutas e conflitos interiores, as frustrações, o desespero, a esperança. 

O que importa, por conseguinte, é que se descubra, que se experimente de fato a totalidade, o todo não condicionado (se é que existe um estado não condicionado) não controlável pela mente, não "projetado" por ela. Todas as nossas soluções — sociais, econômicas ou religiosas — são procuradas por uma mente condicionada e, por conseguinte, qualquer solução há de ser "progressivamente condicionada", nunca independente de condicionamento. Isto é, em vez de venerarmos a palavra "Deus", veneraremos, agora, a palavra "Estado" e, assim, usando-a, acreditamos ter feito um progresso espantoso. Ou, se não gostamos da palavra "Estado", adotamos a palavra "Ciência" ou as palavras "Materialismo Dialético", como se isso fosse resolver todos os nossos problemas. Isto é, estamos sempre a abordar a solução de nossos problemas com um pensamento condicionado. 

O pensamento é sempre condicionado; não há pensamento não-condicionado. Como disse, pode-se conceber o "Eu Supremo", no nível mais elevado, mais sublime; ainda assim, ele é condicionado. Se, reconhecendo este fato, não teoricamente mas realmente, observarmos as operações da mente, veremos que a mente está sempre pensando de acordo com seu fundo próprio, visto não haver pensamento sem memória, experiência sem memória, sem o processo de reconhecimento e, por conseguinte, a respectiva contradição (o respectivo "oposto"). Tal é o estado que conhecemos, e desse ponto de vista é que queremos considerar os nossos problemas! Não me parece, porém, possam eles ser resolvidos de tal maneira, pelo mero processo de os considerarmos de um determinado ponto de vista. Um problema só pode ser resolvido quando compreendemos o todo, e essa compreensão não é possível enquanto o pensamento, a ideia, estiver em funcionamento. Tenham a bondade de refletir sobre isso — não depois de irem para casa, mas aqui mesmo, enquanto falo. 

Infelizmente, a maioria de nós, costumamos traduzir, interpretar tudo o que ouvimos. Compreendem? Dizem que é assim que está nos Upanishads, que é isso o que significa tal frase do Bhagavad-Gita. Desse modo, estão interpretando, e não compreendendo; em consequência, o conhecimento de vocês se torna um empecilho à experiência direta. Urge, por conseguinte, suprimirmos o conhecimento, eliminarmos todo conhecimento (não me refiro ao conhecimento relativo à construção de uma ponte, por exemplo, o qual é essencial; não estou empregando o retorno ao estado primitivo, o que seria um absurdo), urge eliminarmos o conhecimento comparativo, o conhecimento que interpreta o que os outros dizem. Essa interpretação, essa tradução é uma forma de satisfação do "eu", do seu desejo de estar sempre seguro, sempre certo; por causa dele a mente está sempre dizendo: "é o que diz o Livro" — sustando, assim, com essa afirmação, com essa tradução, o experimentar, o estudar. 

A mente, sem dúvida, deve achar-se num estado de completa incerteza, quer dizer, num estado de completa inação, um estado de desconhecimento, em que a mente jamais diz "eu sei", "eu tenho experiência", "é isso mesmo!" A mente que diz "eu sei" é incapaz de resolver qualquer problema complexo do viver, pois a vida está sempre em movimento, a vida não é estacionária. Vocês podem traduzir a vida, interpretá-la como comunista, como socialista, como materialista dialético, etc.; podem traduzi-la e prendê-la assim a palavras explanatórias; a Realidade, porém, é uma coisa viva, e essa coisa viva não é acessível através da parte, que é o pensamento. Percebam isso, por favor, e a Realidade se revelará a vocês. Se estão verdadeiramente à escuta da Realidade, ela fará algo extraordinário: quebrará de golpe o condicionamento da mente, e esta se tornará tão desperta, tão vigilante, que "o todo" não mais se lhe afigurará uma coisa miraculosa, transcendental. Esse todo, essa totalidade pode ser experimentada apenas depois de compreendido todo o processo do condicionamento e de reconhecermos positivamente que por meio de um pensamento condicionado não há solução para os nossos problemas. Quando tiverem uma experiência dessa natureza, quando tiverem a percepção, a experiência do "todo", ocorrerá então uma extraordinária revolução interior — a única verdadeira; porque "revolução econômica" é mero pensamento progressivo, ação condicionada.

Devemos, pois, abeira-nos de todos os nossos problemas com a compreensão de que nosso pensamento está condicionado. Podem fazer o que quiserem, acumular conhecimentos psicológicos e ler todos os livros sagrados do mundo: se com esse conhecimento desejarem resolver os problemas da vida, que é movimento constante, nunca é estática, não encontrarão jamais a solução. Entretanto, desde que haja o experimentar do todo com a compreensão do todo (em que se reconhece o estado de condicionamento da mente) então, com essa compreensão do todo, qualquer problema pode ser resolvido, não por meio de um condicionamento progressivo, mas em virtude do completo desaparecimento do problema.

Como disse ontem, há neste mundo de pretendo progresso cada vez mais sofrimento, mais destruição, desgraça, sufocação, frustração. Podem não estar consciente disso, já que se habituaram á pedra do moinho da rotina diária. Se estivessem, um pouquinho que fosse, conscientes, observariam ser este o processo da existência: frustração constante, sem qualquer fim; e quanto mais procuram preenchimento, mais encontrarão frustração. Da satisfação do "eu", do desejo de preenchimento, nascem novos desejos, novos sofrimentos. Visto que a fonte de suas ações, o incentivo de suas ações é sempre o preenchimento do "eu" — preenchimento no seu filho, na sua família, na nação, ou na sociedade — esse desejo de preenchimento e a ação dele resultante acarretam frustração. Na frustração há sempre desespero. Por isso a mente busca uma senda promissora, no Estado, em deus, ou noutra coisa qualquer, por meio da qual possa preencher-se; e dessa forma nos vemos de novo a nos debater na mesma cadeia sem fim.

Nessas condições, se se deseja uma ação não inspirada por determinado sistema, determinada teoria, se se deseja ação de conjunto, por parte de vocês e de mim, ação não inspirada pelo desejo de preenchimento, faz-se necessária a compreensão de como está condicionada a nossa mente. É essencial a libertação da mente do seu condicionamento, porque então há cooperação, ação de todos nós e não ação particular de vocês ou minha. Aí se encontra a Verdade. Requer tudo isso, naturalmente, apurada observação. A Verdade não se pode adquirir nos livros. Tal é a verdadeira meditação, que não é a meditação de pensamentos controlados, meditação limitadora do pensamento, e, sim, a meditação do amplo percebimento. O amplo percebimento é o percebimento de todos os movimentos do pensar; é se estar consciente de como a mente opera, de cada reação, de cada experiência, cada transgressão contra a vida; consciente de como a mente funciona a cada momento; consciente de cada reação, sem o desejo de modificá-la, controlá-la, orientá-la, discipliná-la. Nesse estado de amplo percebimento, a mente se torna tranquila num grau extraordinário; não mais lhe interessa a plenitude, o preenchimento do "eu", o ser ou não ser alguma coisa. Esse estado de tranquilidade não é um estado forçado, disciplinado. É o "estado de ser" — o qual nada tem em comum com a mente; por essa razão a mente se apresenta tranquila, serena; e nessa tranquilidade, aquilo que é "o todo" é compreendido.

Jiddu Krishnamurti em, Autoconhecimento — Base da Sabedoria

Uma mente que é produto do temor, jamais encontrará o amor

[...] Vocês só podem ter inteligência apenas quando há liberdade, e não, temor. E uma mente disciplinada nunca pode descobrir o que é a Verdade — isto é, uma mente que é produto do temor, jamais encontrará o amor. 

[...] Não digam: "o que me acontecerá, se eu não me disciplinar?" — O que lhes aconteceu, até agora? — pois suponho que tenham se disciplinado, até agora; pelo menos dizem que estão se disciplinando. Qual é a situação de vocês? Vivem lutando incessantemente, entre aquilo que desejam ser e aquilo que são realmente. 

Por que não se livram da teoria ideológica relativa ao que deveriam ser, que não contém nenhuma verdade? O fato é: o que são atualmente? Por que não procuram compreender este fato? A compreensão do que são não exige disciplina; ao contrário, podem examiná-lo livremente, livremente lhe investigar a verdade. Em geral, porém, não queremos compreender o que somos, sempre em demanda do que deveríamos ser, esperando assim fugir ao que somos. A compreensão do que somos é o único fato, a única realidade; e nessa compreensão haverão de encontrar a verdade infinita de que "o que é" é, e de que "o que é" nunca é estático. Mas isso requer uma mente não carregada de temor, não tolhida por uma ideia de disciplina ou daquilo que meu pai, minha mãe, meu guru, minha sociedade possam dizer de mim. 

A disciplina impede a inteligência. A inteligência é o resultado da libertação do temor. Mas vocês acham que não devem ficar livre do temor. Pensam que o temor conserva o homem no caminho reto e que, por conseguinte, devem disciplinar o seu filho para que ele não se rebele contra vocês, e lhe ensinar o que acreditam ser a Verdade. Começam, pois, a condicioná-lo, por meio do temor; querem que se ajuste ao padrão da sociedade de vocês. Instalam, assim, gradualmente, no seu espírito, o temor e lhe destroem a inteligência. É isso o que está sucedendo à maioria de nós, não é exato? Talento, erudição, capacidade de argumentar, de citar outros — nada disso significa inteligência. O homem inteligente é sem temor. Não se pode dissipar o temor por meio de compulsão ou ajustamento. O temor é um veneno que atua lentamente no ser total de vocês, destruindo-lhes toda a lucidez. 

Assim, pois, considerando devidamente o problema da disciplina, verão não ser a disciplina coisa importante; que o que tem importância é a compreensão do "processo da mente", o "processo" de conduta, tanto em si mesmos como em tudo o que os cerca. A compreensão de si mesmo é essencial. A compreensão de si mesmo não exige que se retirem da vida, que se tornem eremita ou monge. Não podem se compreender no isolamento; só podem se compreender quando em relação com outro, pois viver é estar em relação; e para compreenderem a si mesmo, precisam se servir do espelho das relações, o que requer uma capacidade extraordinária, e não temor ou uma mente que diga "isso é errado", ou "isto é correto"; essa é uma mentalidade de colegial. Só o pensamento não amadurecido está sempre condenando ou justificando. 

[...] Uma mente inteligente não precisa de disciplina; ela se disciplina continuamente — isto é, está sempre a observar, a adaptar-se e nunca se acha dentro do rígido molde chamado "disciplina". Senhor, uma mente criadora é a mais disciplinada das mentes; entretanto, sua disciplina não é a que resulta do temor e, sim, a disciplina própria da mente que compreende, que está sempre cônscia das suas ações e dos movimentos dos seus próprios desejos. Esse percebimento não exige disciplina. Apenas a mente preguiçosa, inutilizada, "desintegrada", só essa mente tem medo de amadurecer e por isso diz: "preciso disciplinar, controlar; preciso ser isso, ser aquilo" ou "não devo ser isso". Essa mente jamais descobrirá o que é a Verdade. 

A mente disciplinada não pode, nunca, descobrir o que é a Verdade. A mente disciplinada não pode saber o que é o amor. Por isso, nunca conhecemos o amor. Conhecemos, tão somente, a sensação do sexo, ou essa vaidade de sermos amados ou de amarmos. Não sabemos o que é o amor. O amor não é coisa da mente. O amor não é nenhum artifício da mente que crê, que se limita a si mesma, e que teme. O amor nasce apenas quando a mente compreende a natureza da inveja. Quando a mente compreender as próprias tendências de preenchimento, seu desejo e seu medo à frustração, só então poderá surgir aquela coisa que não é mera sensação, mas a "qualidade amor", a qual nos resolverá todos os problemas. 

Jiddu Krishnamurti em, Autoconhecimento — Base da Sabedoria

Por que vivemos criando inimizade entre nós?

Uma das causas fundamentais das guerras — dizem — ser de ordem econômica. Mas, muito mais do que isso, a causa fundamental é "a crença em alguma coisa". Quando eu creio numa coisa, quero lhes converter às minhas ideias, e se não concordam comigo, os liquido. Vocês possuem uma panaceia, um sistema, possuem a Bíblia ou um livro de Marx, cheio de "verdades", de dogmas transcendentais, de disciplinas; e se eu não estiver de acordo com o modo de pensar de vocês, se não creio em Deus da mesma maneira que acreditam, vocês me destroem. É isso o que precisamos compreender: por que vivemos criando inimizade entre nós?

Isso que chamam religião não é uma das causas da inimizade? Tenham a bondade de refletir sobre isso. Não desprezem esta questão. Você se acreditam hinduístas; eu, desde a a infância, ouço dizer que sou muçulmano. Pratico certos rituais que vocês não praticam. Por conseguinte, a crença, os ritos, estão nos dividindo, não é verdade? Vocês são brâmanes; eu não sou. Acreditam num único Salvador — Marx, Jesus, Buda. Se discordo de vocês, me colocarão á margem, darão cabo de mim. 

Como veem, fundamentalmente, um dos fatores da inimizade entre os homens é a "crença", e a crença cria "projeções". Desejo alguma espécie de segurança, na vida; tenho dinheiro, tenho posição; quero, porém, uma segurança maior. Por conseguinte, "projeto" da minha mente o desejo, a ânsia que me impele a buscar a segurança numa "super-ideia", num "super-homem", em "super-visões" ou em "super-conclusões". Crio, pois, em virtude do meu próprio desejo, a ideia de segurança, a ideia da existência ou não-existência de Deus; e minha mente se apega a essa ideia. É, pois, a minha crença que me proporciona o sentimento de segurança, de certeza; digo que ela é minha inspiração; chamo-a "minha", porque estão separados de mim pela crença de vocês. Gradualmente, em consequência de tudo isso, surge a discórdia, o antagonismo; vocês são ingleses e eu sou negro; são capitalistas, eu, comunista. Por conseguinte, a crença, o desejo da mente de se sentir segura, numa conclusão, numa convicção, é uma das causas da inimizade. 

O amor não é coisa da mente. Vocês amam seus filhos? Duvido muito disso; porque, se assim fosse, não haveria guerras. Se os amassem, nunca criariam na mente a divisão entre hinduísta e muçulmano; se os amassem não haveria distinção de subordinados e superiores, etc. etc. Se amassem seus filhos, os ajudariam a se tornarem um ente humano inteligente, livre de condicionamento, e capaz de penetrar, com sua inteligência, todos os condicionamentos da vida. 

A causa da guerra, portanto, não se acha fora de nós, mas em nós. Pregamos a não violência; temos ideias de fraternidade; empregamos muitas palavras inteiramente vazias de significação. O idealista é o pior dos empreiteiros de guerras[...] O homem que prega a fraternidade não é fraternal; por isso mesmo prega a fraternidade. O homem que é fraterno não fala de fraternidade. Quando o home tem o ideal da fraternidade, isso significa que ele ainda não é fraternal, mais o será, futuramente. Criamos uma filosofia de adiamento e um ideal; e, é bem evidente, o homem que prega um ideal, ainda não é o que ele acha que deveria ser. Só ao compreendermos o que somos, de fato, não teoricamente, mas realmente, só ao nos compreendermos haverá a possibilidade de nos libertarmos da inimizade. 

Temos de reconhecer a verdade de que a humanidade está se dividindo por causa de suas teorias, dogmas, princípios e crenças; de que cada um quer realizar algo, tornar-se alguém, neste mundo; e de que esta é a verdadeira causa da guerra, da destruição, da degeneração. Não queremos, porém, olhar de frente esse fato; desejamos segurança econômica; queremos ver alteradas as condições externas, sem operarmos, radicalmente, fundamentalmente, uma transformação em nosso pensar, nos nossos sentimentos. Só quando percebermos esta verdade, haverá a possibilidade de colocarmos uma paradeiro às guerras e de impedirmos que as invenções que se possam tornar pavorosos meios de destruição, produzam mais devastações e mais sofrimentos para a humanidade.

Krishnamurti em, Autoconhecimento — Base da Sabedoria

Só a Verdade pode nos libertar dos problemas

[...] Queremos ser amados, e, também, amar; desejamos possuir a capacidade de descobrir e compreender a Verdade — a Verdade não ouvida da boca de outrem, não achada num determinado livro. Queremos conhecer a Verdade, experimentar a Verdade diretamente, sem interpretação. 

Temos problemas incontáveis; o dia inteiro é cheio de problemas — que espécie de ação empreender, que profissão adotar, o desejo de preenchimento e ( por falta de compreensão dele) a cadeia sem fim de frustração. A fim de resolver estes problemas, apelamos em geral para alguém, para um livro, um sistema, um líder, um guru, ou para nossa experiência pessoal. Entretanto, se observarmos atentamente, o nosso desejo de achar uma solução por intermédio de alguém, de um guru, de um livro, de uma panaceia política, de um guia, verá que ele só nos leva à frustração. Não é isso o que acontece, na vida de quase todos nós?

[...] Vocês possuem livros religiosos, possuem guias e filósofos, observam numerosos rituais e, todavia, sempre estão acompanhados do temor, da frustração, da desesperança, da amargura, da ansiedade. Tal é o fado de todos nós!

E à medida em que vamos envelhecendo, com uma carga cada vez maior de experiências e desenganos, vemos que estamos perdendo a coisa mais essencial da nossa vida: a fé, não é exato? Entendo por "fé", não a mesma coisa que vocês estão acostumados a entender — a fé no líder, a fé no guru, e na experiência pessoal. Vocês podem não acreditar em coisa alguma, e fazem muito bem; porque, se não acreditam em nada, possuem uma possibilidade de descobrimento. Entretanto, o viver sem fé leva ao cinismo, ao ceticismo, a uma vida de gozos superficiais, e superficial beneficência. Se não nos tornamos cínicos, nos tornamos pessoas muito ativas e prestativas; mas aquela chama tão essencial ao pensar criador, é negada, sufocada. Creio ser essa coisa, essa chama, que nos cumpre encontrar, e não a solução para um problema qualquer, pois as soluções dos problemas são relativamente fáceis. 

Se são inteligentes, se possuem capacidade e energia, lhes é então relativamente simples estudar o problema. O estudo perfeito do problema representa, justamente, a sua solução, porquanto a solução não se acha fora do problema. Porém, para se estudar o problema, descobrir a verdade que ele encerra, para isso, necessita-se energia, vitalidade; e essa vitalidade, essa energia, são destruídas quando seguem alguém, quando obedecem ao guru, ao guia político, ou a um sistema econômico. Toda energia criadora de vocês se dissipou no seguirem alguma coisa, no disciplinarem suas mentes de acordo com um determinado padrão de ação. Se falha ou se morre o guia de vocês, se veem sós. 

Ora, é possível termos aquela fé criadora — se posso usar tal expressão — sem a identificarmos com um determinado padrão de pensamento? Não me refiro aqui à fé num guru, num livro, na experiência pessoal, mas àquela fé, àquela confiança que nasce do direto experimentar, por nós mesmos — prescindindo de tradições e mentores, compreendendo o problema diretamente, nos aplicando a ele com energia, com aquela extraordinária confiança, aquela capacidade de lhe descobrir a verdade intrínseca. Essa fé, sem dúvida é a verdadeira solução. Porque, sem ela, não somos entes humanos criadores. O que se faz necessário no mundo, hoje em dia, não são líderes, nem sistemas, nem gurus, mas, sim, a capacidade, por parte de cada indivíduo, para descobrir por si mesmo o que é a Verdade. 

A Verdade não é coisa de vocês ou  minha. A Verdade não é pessoal. É algo que surge quando a mente se acha muito lúcida, simples, direta, silenciosa. Só então surge a Verdade. Não podemos perseguir a Verdade. Tentamos persegui-la quando estamos dominados pela ânsia de solução para determinado problema. 

O que se necessita, pois, é a confiança, a fé imprescindível para o descobrimento da Verdade. Não podemos descobrir o que é a Verdade, se nossas mentes estão condicionadas. Infelizmente, a janela pela qual observamos a vida, está condicionada. Estamos condicionados como hinduístas, muçulmanos, cristãos ou budistas — isto é, estamos condicionados para pensar de uma determinada maneira. A conduta, o padrão de ação nos é inculcado desde a infância. E, por conseguinte, quando crescemos e começamos a experimentar, o fazemos através dessa cortina de condicionamentos; esta é uma óbvia consequência psicológica, quer nos agrade, quer não. 

Nunca somos livres para descobrir. Até agora abrigamos uma determinada forma de condicionamento — capitalista, ou socialista. Dizemos agora: "esta forma é insensata; nos tornemos comunistas". Se tornar comunista também é condicionamento. Por meio de um condicionamento, se pode resolver algum problema? Ao contrário, só se pode resolver um problema quando somos livres para meditar nele a fundo e experimentá-lo diretamente. E visto que estamos tão condicionados — religiosa, econômica, climaticamente, enfim, de todos os modos — não somos livres para olhar, observar, descobrir. Estamos agrilhoados, principalmente neste país; somos incapazes de pensar independentemente, livremente, por nós mesmos, sem ajuda dos guias, dos livros, dos líderes.[...] Tão inutilizadas estão as nossas mentes pela imitação, que somos incapazes de abandonar todos os livros e todos os guias, para refletirmos por nós mesmos sobre cada problema e descobrirmos a Verdade. 

[...] Nos achamos numa tremenda crise, quer reconheçamos, quer não. E, no meio desta crise, não podemos continuar seguindo um livro anacrônico ou um guia qualquer; temos de encontrar a Verdade no nosso próprio coração, e só a encontraremos se nossa mente estiver "descondicionada". Enquanto houver o condicionamento que nos faz buscar, seguir, ou criar ideologias e adorar ídolos; enquanto houver condicionamento da nossa mente, nos fazendo proceder como hinduístas, comunistas, socialistas, capitalistas, ou o que quer que seja, não encontraremos a Verdade contida em problema algum. Só quando vocês e eu descobrimos a Verdade, que não é pessoal, individual, haverá a possibilidade de se promover uma revolução que não seja uma revolução de ideias, mas a revolução da Verdade. Dela necessitamos nos tempos atuais. 

Importa igualmente descobrir qual é a relação de vocês para com a Realidade Criadora, ou como quiserem chamá-la — pois os nomes não têm importância. Essa Realidade Criadora nunca será encontrada, enquanto a mente de vocês estiver cristalizada, atulhada de ideias e palavras sem nenhuma significação. Não a encontrarão, não a descobrirão, se a mente de vocês não é capaz de se libertar do pensamento tradicional. 

A Verdade não é uma estrutura mental. A mente não pode perceber a Verdade. A Verdade não é produto da mente; ao contrário, enquanto a mente estiver em atividade, tentando imaginá-la, descobri-la, desenterrá-la, jamais a encontrará. Apenas a encontrará, quando houver a compreensão que liberta a mente e lhe dá a única possibilidade de profundo silêncio. É essencial uma mente silenciosa, uma mente tranquila, de uma tranquilidade que não é produzida por disciplina, coerção ou persuasão. Uma mente disciplinada não é uma mente livre; uma mente estreita, condicionada, é incapaz de compreender o que é a Verdade. A mente, porém, que compreende, que penetra, capaz de "experimentar" diretamente, na ação, nas relações, no viver de cada dia — essa mente é também capaz de descobrir a Verdade; e essa Verdade é que nos liberta dos problemas.

[...] Os problemas são criados pelo nosso pensar, nosso viver, nossas ações, e queremos achar uma solução fora dos nossos pensamentos, nossas atividades e relações de cada dia. Por isso estamos sempre à espera de alguém que nos diga o que devemos fazer. E como há sempre quem esteja muito disposto a nos dizer o que devemos fazer, a essas pessoas chamamos líderes, guias; consequentemente, no fim de nossa busca encontramos a busca, a frustração, a desesperança, a amargura; nossa vida foi toda desperdiçada; e começa a desintegração do nosso próprio ser. Assim, pois, só no estudo  do problema pode ser encontrada uma solução verdadeira.

Jiddu Krishnamurti em Autoconhecimento — Base da Sabedoria

Qual é o estado da mente que não está procurando?

[...] Qual é o estado da mente que não está procurando, que não está tentando alcançar, que não está desejando, que não está em busca de um resultado, que não está dando nomes, que não está reconhecendo? Essa mente está tranquila; essa mente está em silêncio; o silênico veio naturalmente, sem nenhuma espécie de constrangimento, de compulsão, de disciplina. Foi a verdade que libertou a mente. Nesse estado a mente está extraordinariamente tranquila. Então, surge aquilo que é novo, que não é reconhecível, aquilo que é criação, que é amor, ou como como vocês o queiram chamar — aquilo que não é diferente do começo. E essa mente é uma mente bem-aventurada, uma mente sagrada. Só essa mente pode ser útil. Só essa mente pode cooperar, só essa mente pode existir sem identificação, pode estar só, sem auto-mistificação de nenhuma espécie. 

O que está além não é mensurável com palavras. O que não é mensurável vem; mas, se o procurarem, como o fazem os insensatos, nunca o terão. Vem, quando menos o esperam; quando estão contemplando o céu; quando estão descansando à sombra de uma árvore; quando estão observando o sorriso de uma criança ou as lágrimas de uma mãe. Nós, porém, não estamos observando, não estamos meditando. Quando meditamos é sobre alguma coisa sem beleza, alguma coisa misteriosa, que precisa ser cultivada, que precisamos praticar e viver em conformidade com ela. Um homem que pratica a meditação, nunca saberá; mas o homem que compreende a verdadeira meditação, a qual é de momento a momento, esse homem saberá. Não há experiência individual. Quando se trata da verdade, desaparece a individualidade, o "eu" deixou de existir.

Krishnamurti em, Quando o pensamento cessa

domingo, 30 de agosto de 2015

Como pode haver união baseada na falsidade?

Pergunta: Você diz que pela identificação causamos a separação, a divisão. Para alguns de nós, seu modo de vida parece "separativo", isolante, e parece também ter trazido a desunião de muitos que antes estavam unidos. Com o que você se identificou?

Krishnamurti: Procuremos, em primeiro lugar, averiguar a asserção de que a identificação divide, separa. Tenho afirmado isso muitas vezes. É ou não um fato? 

Que entendemos por identificação? Não devem simplesmente ceder à identificação num nível verbal, mas, sim, encará-la diretamente. Se identificam com a nação de vocês, não é verdade? Quando o fazem, o que acontece? Imediatamente, por causa dessa identificação com um determinado grupo, vocês se fecham. Isso é um fato, não acham? Quando se dizem hinduístas, vocês se identificaram com determinadas crenças, tradições, esperanças, ideais; e justamente essa identificação os isola. Isso é um fato, não? Se perceberem essa verdade, deixarão de se identificar, e por isso não serão mais budista, nem cristão, política ou religiosamente. A identificação, pois, é fator de separação, fator de deterioração, em nossa vida. Eis o fato; eis a verdade sobre a identificação, quer lhes agrade, quer não. 

Pergunta, a seguir, o interrogante se eu, com minha ação, causei separação no seio daqueles que antes estavam unidos. Exatamente. Quando percebemos uma verdade, não temos o dever de proclamá-la? Como pode haver união baseada na falsidade? Vocês se identificam com uma ideia, uma crença; e quando alguém impugna essa crença, essa ideia, vocês o repelem — não o atraem, e, sim, o repelem. Vocês o isolaram; o homem que diz que o que vocês fazem está errado, não os isolou. Assim, é a reação de vocês que é isolante e não a ação dele, a ação da pessoa que aponta onde está a verdade. Vocês não querem encarar o fato de que a identificação é um fator de separação. 

A identificação com uma família, com uma ideia, uma crença, com uma organização qualquer, tem força separativa. Se alguém acaba com ela diretamente ou lhes chama a atenção para ela, lhes apresentando um desafio, então vocês, que desejam a identificação, que desejam ser separativos, que desejam repelir tal pessoa, dizem que esse home é um fator de isolamento. 

O modo da existência e o modo de vida de vocês, é separativo; por conseguinte, são responsáveis pela separação. Eu, não. Vocês me expulsaram; não fui eu que saí. Naturalmente, começam a sentir que eu estou fomentando o isolamento, estou causando divisão, que minhas ideias e minhas expressões estão destruindo, são destrutivas. Elas tem de ser destrutivas, tem de ser revolucionárias. Do contrário, que valor tem uma coisa nova? 

Com efeito, Senhores, se faz necessária uma revolução, não de acordo com qualquer ideologia ou padrão. Se for de acordo com qualquer ideologia ou padrão, não é revolução, mas, sim, mera continuação do passado; é identificação com uma nova ideia, emprestando, portanto, continuidade a uma determinada convenção; e isso, naturalmente, não é revolução de espécie alguma. A revolução se realiza, quando, interiormente, cessa toda e qualquer identificação; e isso só se consegue quando vocês são capazes de olhar diretamente o fato, sem enganarem a si mesmos, e sem dar ao intérprete nenhuma oportunidade de lhes dizer o que pensa a respeito dele.

Se percebo a verdade sobre a identificação, então, evidentemente, não estou identificado com coisa alguma. Senhor, quando percebo a verdade de que uma coisa é nociva, não existe problema. Cesso de me identificar com ela, onde quer que seja. Compreendam que todo processo de identificação é destrutivo, separativo; quer ele funcione em relação a crenças religiosas, quer em relação à concepção dialética, ele é exclusivamente separativo. Quando reconhecerem esse fato, quando estiverem plenamente conscientes do mesmo, estarão, então, sem dúvida nenhuma, libertos; por essa razão, não haverá identificação com coisa alguma. Não estar identificado significa estar só, mas não como uma entidade superior, perante o mundo. Isso nada tem a ver com a união. Vocês, no entanto, temem a desunião. 

Diz o interrogante que eu trouxe a desunião. Eu? Duvido muito! Descobrirão por si mesmos, a verdade a respeito. Se vocês se deixam persuadir por mim e, consequentemente, se identificam comigo, não fizeram então uma coisa nova, apenas trocaram um mal por outro mal. Senhores, vocês precisam romper com tudo, para descobrirem. A verdadeira revolução é a revolução interior; é uma revolução que vê as coisas em toda a claridade; e essa é a revolução do amor. Nesse estado não temos identificação com coisa alguma. 

Krishnamurti em, Quando o pensamento cessa.

É possível à mente ficar livre da atividade egocêntrica?

[...] Para compreender o que é a atividade egocêntrica, precisamos, naturalmente, examiná-la, observá-la, estar cônscios do seu processo, na sua inteireza. Se for possível ficamos cônscios dele, haverá então a possibilidade de sua dissolução; mas o estar cônscio requer certa compreensão, certa intenção de enfrentar a coisa tal como ela é, abstendo-se de interpretá-la, modificá-la, ou condená-la. Temos de estar cônscios daquela atividade que estamos desempenhando, oriunda daquele estado egocêntrico; precisamos estar cônscios dela. Essa é uma das nossas principais dificuldades, uma vez que no momento em que ficamos cônscios daquela atividade queremos moldá-la, queremos controlá-la, queremos condená-la, queremos modificá-la; mas nunca estamos em situação de enfrentá-la diretamente; e quando estamos, pouquíssimos de nós somos capazes de saber o que se deve fazer. 

Reconhecemos que as atividades egocêntricas são prejudiciais, são destrutivas e que toda forma de atividade egocêntrica — tal como a identificação com a nação, com determinado grupo, com determinados desejos, com desejos que produzem ação, a busca de um resultado, neste mundo ou no outro, a glorificação de uma ideia, o surgimento de um exemplo, a veneração e o cultivo da virtude — é, essencialmente, a atividade de uma pessoa egocêntrica. Todas as suas relações, — com a natureza, com pessoas, com ideias — são produto daquela atividade. Sabendo de tudo isso, que cabe a uma pessoa fazer? Toda atividade dessa ordem tem de findar voluntariamente, e não por imposição própria, não por ter sido influenciada, guiada. Espero que estejam percebendo a dificuldade aí existente. 

A maioria de nós somos sabedores de que essa atividade egocêntrica gera malefícios e o caos; mas só estamos cônscios disso em certas direções. Ou o observamos noutras pessoas e ignoramos nossas próprias atividades; ou, se em nossas relações com outras pessoas, tomamos conhecimento de nossa atividade egocêntrica, desejamos fazer uma transformação, desejamos encontrar um substituto, desejamos passar além. Antes de podermos atender a esse processo, precisamos saber como é que ele se origina, não é verdade? Para compreender alguma coisa, precisamos ser capazes de a observar; e, para observá-la, precisamos conhecer as suas várias atividades em níveis diferentes, tanto conscientes como inconscientes, e bem assim as diretrizes conscientes, os movimentos egocêntricos resultantes dos motivos e intenções inconscientes. Trata-se, sem dúvida, de um processo egocêntrico, resultado do tempo, não é verdade? 

Que é ser egocêntrico? Quando é que vocês têm consciência de ser "eu"?

[...] Só estou consciente das atividades do "eu" quando existe oposição, quando a consciência se vê contrariada, quando o "eu" está  desejoso de alcançar um resultado. O "eu" está ativo, ou tenho consciência daquele centro, quando o prazer termina e eu desejo mais desse prazer; há então resistência e um intencional ajustamento da mente a um determinado fim, o qual me proporcionará deleite, satisfação; estou cônscio de mim mesmo e das minhas atividades quando estou cultivando a virtude conscientemente. É só isso que sabemos. Um homem que cultiva a virtude conscientemente, não é virtuoso. A humildade não pode ser cultivada e nisso é que consiste a beleza da humanidade. 

Nessas condições, enquanto existe esse centro de atividade, em qualquer direção, consciente ou inconsciente, há o motivo do tempo e estou consciente do passado e do presente em conjunção com o futuro. O centro dessa atividade, da atividade egocêntrica do "eu", é um processo de tempo. É isso o que vocês entendem por tempo — referem-se, ao processo psicológico do tempo; é a memória que dá continuidade à atividade do centro, que é o "eu". Tenham a bondade de se observarem em funcionamento; não ouçam apenas as minhas palavras, não fiquem hipnotizados pelas minhas palavras. Se observarem a si mesmos e tomarem conhecimento desse centro de atividades, verão que ele é apenas o processo do tempo, da memória, do experimentar e traduzir cada experiência, segundo a memória; verão também que a atividade do "eu" é recognição, sendo isso processo da mente. 

Pois bem, pode a mente ficar livre da atividade egocêntrica? Talvez seja possível, em momentos raros; talvez possa acontecer à maioria de nós, quando praticamos um ato inconsciente, não intencional, não propositado. É possível à mente ficar livre da atividade egocêntrica? Eis uma pergunta muito importante, que, devem se fazer em primeiro lugar, pois, precisamente no fazê-la encontraram a resposta. Isto é, se estão conscientes do processo total dessa atividade egocêntrica, se estão perfeitamente cientes de suas atividades em diversos níveis da consciência de vocês, então, de certo, terão de se perguntar se é possível aquela atividade chegar a um fim; isto é, não pensar dentro dos limites do tempo, não pensar com referência ao que serei, ao que fui, ou ao que sou. Desse modo de pensar procede todo o processo da atividade egocêntrica; aí também tem começo a determinação de vir-a-ser, a determinação de escolher e de evitar, tudo isso processo de tempo. Notam-se, nesse processo, malefícios sem fim, miséria, confusão, perversão, degenerescência. Fiquem conscientes disso, enquanto falo, nas suas relações, nas suas mentes. 

Positivamente, o processo de tempo não é revolucionário. No processo do tempo não há transformação; só há uma continuidade e nunca um findar. No processo do tempo só existe recognição. Só quando temos a cessação completa do processo do tempo, da atividade do "eu", há o novo, há revolução, há transformação. 

Uma vez consciente de todo esse processo do "eu", em sua atividade, o que deve a mente fazer? Só com a renovação, só com a revolução — não pela evolução, não com o "eu" na atividade de vir-a-ser, mas sim pelo completo findar do "eu", há o novo. O processo do tempo não pode trazer o novo; o tempo não é o caminho da criação. 

Não sei se qualquer um de vocês já teve algum momento de criação — não "ação", não me refiro à execução algum ato — quero significar o momento de criação em que não há reconhecimento algum. Nesse momento se realiza aquele estado extraordinário em que o  "eu" como "atividade de reconhecimento" deixou de existir. Acredito que alguns de nós já conhecemos um momento desses; talvez a maioria de nós já o conhecemos. Se estamos vigilantes, veremos que naquele estado não existe nenhum "experimentador" que lembra, que traduz, reconhece, e depois identifica. Não há nenhum processo de pensamento, que é coisa do tempo. Naquele estado de criação, de ação criadora, naquele estado do novo, que é atemporal, não existe, absolutamente, nenhuma ação do "eu". 

Nossa questão, agora, é certamente esta: é possível à mente experimentar, conhecer aquele estado, não momentaneamente, não em instantes raros, mas — não quero usar a expressão "eternamente" ou "para sempre", que implicam o tempo — conhecer aquele estado, achar-se naquele estado, sem relação alguma com o tempo? Esta, sem dúvida, é uma descoberta muito importante, que cada um de nós deve fazer, porquanto ela é a porta do amor; todas as outras portas representam atividades do "eu". Onde há ação do "eu" não há amor. O amor não é do tempo. Não podem praticar o amor, pois isso seria uma atividade consciente do "eu", que espera, por meio do amor, alcançar um resultado. 

O amor, pois, não é coisa do tempo; não podem chegar a ele por meio de um esforço consciente, por meio de uma disciplina, por meio de identificação, porque tudo isso é processo do tempo. A mente que só conhece o processo do tempo é incapaz de reconhecer o amor. O amor é a única coisa que é nova, eternamente nova. Uma vez que a maioria de nós temos cultivado a mente, que é um processo de tempo, resultado do tempo, não sabemos o que é o amor. Falamos a respeito do amor; dizemos que amamos pessoas, que amamos nossos filhos, nossas esposas, nosso próximo; que amamos a natureza; mas, no momento em que estou consciente de que amo, entrou em atividade o "eu" e, consequentemente, o amor deixou de existir. 

O processo total da mente só é compreensível no estado de relação — relação com a natureza, com pessoas, com nossa própria "projeção", com tudo, enfim. Na realidade, a vida não é outra coisa senão relações. Ainda que tentemos nos isolar das nossas relações, não podemos existir sem elas; embora as relações sejam dolorosas e procuremos evitá-las pela fuga, nos recolhendo ao isolamento, nos tornando eremitas, etc., não o podemos fazer. Todos esses métodos constituem um indício de atividade do "eu". Ao perceberem o quadro, em sua inteireza, ao perceberem integralmente esse processo do tempo como consciência — perceber, sem que haja escolha, sem que haja nenhuma intenção determinada no sentido de um objetivo, sem desejo de resultado — verão como esse processo do tempo chega a um fim, espontaneamente — um fim não provocado, um fim que não é resultado do desejo. Só quando cessa aquele processo existe o amor, que é eternamente novo. 

Não temos de procurar a verdade. A verdade não é uma coisa que se acha longe de nós. A verdade habita a mente, está presente em suas atividades de cada instante. Ao perceberem essa verdade existente, momento por momento, ao perceberem inteiramente esse processo do tempo, então, esse percebimento libera, descarrega aquela consciência ou energia que está toda aplicada a ser. Quando a mente se serve da consciência como atividade egocêntrica, entra em cena o tempo, com todas as suas misérias, todos os seus conflitos, todos os seus malefícios, todas as suas ilusões intencionais; é só quando a mente, compreendendo esse processo total, cessa, pode existir o amor. Podemos chamá-lo amor ou por qualquer outro nome; o nome que lhe damos não tem importância.

Krishnamurti em, Quando o pensamento cessa

sábado, 29 de agosto de 2015

Deixando de viver no sonho coletivo

Como pode a mente conhecer o amor?

Pergunta:Você diz que a vida que levamos é negação e por isso não pode haver amor. Quer ter a bondade de se explicar? 

Krishnamurti: Porque quer a minha explicação? Não está ciente disso? Serão nossas vidas criadoras, muito positivas? Pelo menos, nós pensamos que somos positivos. Mas o resultado é sempre negativo. Somos muito positivos em nossa avidez, nossos rancores, nossa inveja, nossa ambição. Sabemos isso muito bem, não é verdade? — divisão de classes, divisão comunal, divisões naturais, todas as formas de destruição, separação, isolamento. Eis os fatos inegáveis. 

Nossa vida, conquanto pareça positiva, é em verdade negativa, porque leva à morte, à destruição, ao sofrimento. Não vão querer admitir isso, porque dizem: "Estamos fazendo tudo quanto há de mais positivo no mundo; não se pode viver em estado de negação." O que estão fazendo, contudo, é uma atividade negativa. Tudo o que fazem é um ato de morte. Que mais pode ser tal atividade, senão negação? Sendo ambicioso, são destrutivo, são um elemento corruptor, um elemento corrosivo, nas suas relações. Cada um de seus atos é um ato negativo. 

Como pode a mente, cuja existência inteira, é uma série de negação, conhecer o amor? E vocês vêm me perguntar o que é o amor. Imitação é morte, no entanto, temos modelos que desejamos seguir, temos poder; temos gurus; seguimos o processo de repetição, da imitação, da rotina — e o que é isso? Morte, negação! Não é? Como pode tal entidade compreender alguma coisa? Essa entidade não pode conhecer o amor.

A única coisa positiva que existe é o amor. Mas ele só se manifesta quando não existe o estado de negação, quando não são ambiciosos, quando não são corruptos, quando não são invejosos. Precisam, primeiramente, compreender aquilo que é, e ao compreenderem aquilo que é, surge na existência "o outro estado". 

Krishnamurti em, Quando o Pensamento Cessa

Por que nos orgulhamos tanto do nosso saber?

Pergunta: Por que você diz que o saber e a crença precisam ser suprimidos para que a verdade exista? 

Krishnaurti: Que é o saber e a crença de vocês? Se examinam o saber e a crença de vocês, que são eles? Só lembranças. Não é verdade? De que é que vocês têm conhecimento? Das lembranças de vocês, das experiências de outras pessoas, registradas num livro! Se pensam a respeito do saber de vocês, que é ele? Lembrança. Estão obtendo explicações, ministradas por outras pessoas, e possuem suas próprias experiências, baseadas em suas lembranças. Vocês se deparam com um incidente e o traduzem de acordo com a memória de vocês, a que chamam de experiência. O saber de vocês é um processo de reconhecimento. Sabemos o que são as crenças. Elas são criadas pela mente, no seu desejo de estar certa, de estar protegida, de estar em segurança. 

Assim, como pode a mente, tolhida que está pelo saber, essa mente, que é acumulação do passado, traduzindo o presente segundo sua própria conveniência, como pode essa mente, com sua carga de saber, compreender o que é verdadeiro? A verdade tem de ser algo que está além do tempo. Ela não pode ser projetada pela mente; não pode ser talhada pela minha experiência; tem de ser algo incognoscível, em face da minha experiência passada. Se eu a conheço, do passado, isso então é reconhecimento e portanto não é a verdade. Se ela é apenas uma crença, é então uma "projeção" dos meus próprios desejos. 

Por que nos orgulhamos tanto do nosso saber? Estamos aprisionados em nossas crenças, no "estado de conhecimento", no sentido em que é geralmente compreendido o conhecimento. Vocês temem o "ser nada". Eis porque fazem questão de tantos títulos; possuem a preocupação de adquirir nomes, ideias, reputação, de se exibirem. Com toda essa carga na mente, dizem: "estou procurando a verdade, desejo compreender a verdade". O que acontece se examinam atentamente todo processo da aquisição de saber e da formação da crença? Verificam, sem dúvida, que essas coisas são artifícios da mente — o acreditar, o saber; elas lhes conferem certo prestígio, certo poderes; os outros lhes respeitam como um homem extraordinário, muito lido e muito culto. E ficando mais velhos, se acham com o direito a mais respeito, porque, naturalmente, se tornaram mais sábios, pelo menos assim o pensam. O que fizeram foi apenas amadurecer na própria experiência de vocês. A crença destrói os entes humanos, divide os entes humanos. O homem que crê nunca pode amar; porque, para ele, a crença é mais significativa do que ser bondoso, cordial, solícito; a crença proporciona certa força, certa vitalidade, um falso sentimento de segurança. 

Assim, examinando bem as coisas, que encontram? Só palavras, só memória. A verdade é algo que deve achar-se além dos limites da imaginação, além do processo da mente. Ela tem de ser eternamente nova, uma coisa não suscetível de reconhecer-se, de descrever-se. Se citam Sankara, Buda, XYZ, já começaram a comparar — o que demonstra que, pela comparação, desistiram de pensar, de sentir, de experimentar. Esse é um dos sacrifícios da mente. O saber de vocês está destruindo a percepção imediata daquilo que é a verdade. 

Eis porque é importante compreender, no seu todo, o processo do saber e da crença, para o abandonarmos. Sejam simples, vejam essas coisas com simplicidade e não com uma mente ardilosa. Verão, assim, que a mente, que amontoou tanta experiência, tantas explicações, que está limitada por tantas crenças, começa a se renovar. Ela já não está à procura do novo, já não está reconhecendo, deixou de reconhecer; acha-se, por conseguinte, em estado de constante experimentar, não relacionado com o passado; há um movimento novo, que não é suscetível de repetir-se. 

Importa, por essa razão, que todo saber, toda crença sejam devidamente compreendidos. Não podem suprimir o saber; precisam compreendê-lo; não podem fechar a porta ao saber. Qual é, agora, a reação de vocês? Sairão daqui e continuarão a proceder da maneira habitual, porque possuem o medo de se afastar do velho padrão. 

Para achar a verdade, não há guru, não há exemplo, não há caminho; a virtude não conduzirá à verdade; a prática da virtude é a auto-perpetuação. O saber, evidentemente, só nos dá respeitabilidade. 

O homem "respeitável" e fechado dentro de sua própria importância, nunca encontrará a verdade. A mente precisa estar de todo vazia, não procurar, não "projetar". Só quando a mente está totalmente tranquila, apresenta-se a possibilidade daquilo que é imensurável.

Krishnamurti em, Quando o Pensamento Cessa

A questão da automistificação

Desejo discorrer, nesta tarde, sobre a questão da automistificação, das ilusões a que a mente gosta de se entregar, que ela impõe a si mesma e aos outros. Trata-se de uma questão muito séria, sobretudo numa crise da espécie que o mundo agora está enfrentando. Todavia, para que possamos compreender inteiramente esse problema da automistificação, cabe-nos estudá-lo não apenas verbalmente, no nível verbal, mas intrinsecamente, fundamental e profundamente. Como dizia, nos satisfazemos muito facilmente com palavras e "contra-palavras"; somos "conhecedores" das coisas do mundo e, como tais, só nos cabe ficar à espera de que alguma coisa aconteça.[...] Aqueles de nós que sentem verdadeiro emprenho, precisam transcender a palavra, procurar essa revolução fundamental dentro de si mesmos; é ela o único remédio capaz de trazer uma redenção duradoura e fundamental da humanidade. 

Identicamente, ao tratarmos desta espécie de automistificação, creio que devemos nos colocar em guarda contra quaisquer explicações e respostas superficiais; devemos, se me é permitido sugerir, não apenas escutar as palavras de um orador, mas também observar o problema, tal como o conhecemos em nossa vida diária; isto é, devemos observar a nós mesmos no pensar e na ação, observar a impressão que produzimos nos outros, e como continuamos a agir, de nossa parte. 

Qual é a razão, qual é a base da automistificação? Quantos de nós estamos verdadeiramente conscientes de que estamos enganando a nós mesmos? Antes de podermos responder à pergunta "que é automistificação, e como ela se origina?" — não julgam necessário estarmos conscientes de que estamos enganando a nós mesmos? Que pretendemos nós com essa mistificação? Julgo muito importante o problema, pois, quanto mais enganamos a nós mesmos, tanto mais cresce a força da ilusão, a qual nos transmite certa vitalidade, certa energia, certa capacidade, que nos leva a impor aos outros a nossa própria ilusão. Assim, gradualmente, não só estou impondo uma ilusão a mim mesmo, mas também aos outros. É um processo "interatuante" de automistificação. Estamos conscientes desse processo, nós que nos julgamos muito capazes de pensar com lucidez, determinada e diretamente? Estamos conscientes de que, nesse processo de pensar, há automistificação? 

O pensamento, em si, não é um processo de busca, uma procura de justificação, procura de segurança, de automistificação, um desejo de ser tido em boa conta, um desejo de posição, de prestígio e poder? Esse desejo de ser — política, religiosa ou socialmente, — não é ele próprio a causa da automistificação? No momento em que desejo algo diferente da pura materialidade, não produzo, não dou origem a um estado que aceito facilmente? 

[...] Aquele que busca está sempre impondo a si mesmo aquela ilusão; ninguém a pode lhe impor; é ele próprio que a impõe. Criamos a ilusão e depois nos tornamos seus escravos. Assim, o fator fundamental da automistificação é esse desejo constante de ser alguma coisa, neste mundo ou no outro. Sabemos qual é o resultado do desejo de ser alguma coisa neste mundo; esse resultado é a confusão extrema, em que todos competem com todos, todos se autodestroem, em nome da paz; conhecemos o jogo que estamos fazendo com os outros, o qual é uma forma extraordinária de automistificação. De igual maneira, desejamos a segurança no outro mundo. 

Vemos que começamos a enganar a nós mesmos, no momento em que existe esse impulso para ser, para vir-a-ser, conseguir. É muito difícil a mente ficar livre desse impulso. Esse é um dos problemas básicos da nossa vida. É possível viver neste mundo e não ser nada? Porque só assim podemos estar livres de todas as ilusões, só assim a mente não fica procurando um resultado, uma resposta satisfatória, uma forma de justificação, a segurança, numa dada forma, numa dada relação. Só se realiza esse estado quando a mente reconhece as possibilidades e as sutilezas da ilusão, e por conseguinte, com compreensão abandona todas as formas de justificação, de segurança — o que significa que a mente é então capaz de ser, completamente, "nada". É possível isso?

Por certo, enquanto vivermos a enganar a nós mesmos, de alguma forma, não poderá existir o amor. Enquanto a mente for capaz de criar e impor a si mesma uma ilusão, ela terá, inevitavelmente, de separar-se da compreensão coletiva ou integrada. Essa é uma das nossas dificuldades; não sabemos como operar; o que sabemos é só trabalhar em conjunto visando a um fim que nós mesmos criamos. Ora, só pode haver cooperação quando vocês e eu não temos nenhum alvo comum, criado pelo pensamento.[...] O que importa é compreender que a cooperação só é possível quando vocês e eu não desejamos ser coisa alguma. Quando vocês e eu queremos ser alguma coisa, torna-se necessário a crença e tudo o mais; torna-se necessária uma utopia, de nós mesmos projetada. Mas se vocês e eu estamos criando, anonimamente, se automistificação de espécie alguma, as barreiras de crença e de saber, sem o desejo de estar em segurança, existe a verdadeira cooperação. 

[...] A crença não produz a cooperação; ao contrário, a crença divide. Vemos um partido político contra o outro, cada um deles crendo num determinado método de atender aos problemas econômicos e, consequentemente, todos em guerra entre si. Não estão decididos, por exemplo, a solucionar o problema da fome. Interessam-se pelas teorias que irão resolver aquele problema. Não lhes interessa a realidade do problema, mas, sim, apenas o método pelo qual se resolverá o problema. Por isso, tem de haver luta entre os dois, porque o que lhes interessa é a ideia e não o problema. De modo idêntico, os indivíduos religiosos estão uns contra os outros, embora, verbalmente, proclamem que têm uma só vida, um só Deus; vocês sabem tudo isso. Entretanto, no íntimo, as suas crenças, as suas opiniões, as suas experiências os estão destruindo e mantendo separados. 

[...] Nossa dificuldade, pois é que cada um de nós está de tal modo identificado com uma determinada crença, com uma determinada forma ou método de promover a felicidade, o ajustamento econômico, que nossa mente está tomada por essa coisa e nos é impossível entrar mais profundamente no problema; por esse motivo, desejamos permanecer à parte, individualmente, com nossas peculiares maneiras de proceder, nossas crenças e experiências. Enquanto não dissolvermos e compreendermos essas coisas, não só no nível superficial, mas no nível mais profundo, não pode haver paz no mundo. 

[...] A verdade não é coisa que se possa ganhar. O amor não pode vir àqueles que têm o desejo de segurar-se a ele ou que desejam com ele se identificar. Essas coisas vêm, por certo, quando a mente não procura, quando a mente está totalmente tranquila, quando a mente já não está criando movimentos e crenças em que possa apoiar-se ou de que lhe advenha uma certa força — o que constitui um indício de automistificação. Só quando a mente compreende, no seu todo, o processo do desejo, pode estar tranquila. Só quando a mente não está em movimento, para ser ou para não ser, só então há a possibilidade de um estado em que não é possível ilusão de espécie alguma. 

Krishnamurti em, Quando o Pensamento Cessa

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Não estamos em comunhão com coisa alguma

Pergunta: Você disse que a verdade só pode surgir quando uma pessoa é capaz de estar só e amar o sofrimento. Isso não está claro. Tenha a bondade de explicar o que entende por "estar só" e "amar o sofrimento".

Krishnamurti: A maioria de nós não está em comunhão com coisa alguma. Não estamos diretamente em comunhão com nossos amigos, com nossas esposas, nossos filhos. Não estamos diretamente em comunhão com coisa alguma. Existem sempre barreiras — barreiras mentais, imaginárias e reais. E essa separação é, sem dúvida, a causa do sofrimento. Não digam "sim, já lemos isso, o sabemos verbalmente". Mas, se forem capazes de experimentar diretamente, verão que o sofrimento não pode terminar por meio de nenhum processo mental. Vocês podem achar explicações para o sofrimento, o que é um processo mental; mas o sofrimento continua existindo, embora vocês o encubram.

Assim, para compreender o sofrimento, vocês precisam, por certo, amá-lo, não é verdade? isto é, precisam estar em comunhão direta com ele. Se desejam compreender alguma coisa — seu vizinho, sua esposa, ou qualquer relação — se desejam compreender qualquer coisa de maneira completa, precisam estar perto dela. Precisam se chegar a ela sem objeção alguma, sem preconceito, condenação ou repulsa; precisam amá-la, não é verdade? Se desejo lhes compreender, não devo ter preconceitos a respeito de vocês, preciso ser capaz de olhá-los, não através de barreiras, não através de cortinas formadas pelos meus preconceitos e meus condicionamentos. Preciso estar em comunhão com vocês, o que significa que preciso amá-los. De modo idêntico, se desejo compreender o sofrimento, preciso amá-lo, preciso estar em comunhão com ele. Isso me é impossível, porque estou fugindo dele, por meio de explicações, por meio de teorias, de experiências, de adiamentos, constituindo tudo isso o processo de verbalização. Por conseguinte, as palavras me impedem a comunhão com o sofrimento. As palavras — palavras explicativas, racionalizações, que são sempre palavras, que representam o processo mental — as palavras me impedem de estar em direta comunhão com o sofrimento. É só quando me acho em comunhão com o sofrimento, que o compreendo.

O segundo passo é este: Eu, que sou o observador do sofrimento, sou diferente do sofrimento? Eu, que sou o "pensador", o "experimentador", sou diferente do sofrimento? Exteriorizo-o, a fim de fazer alguma coisa com relação a ele, a fim de evitá-lo, dominá-lo, repeli-lo. Sou diferente daquilo a que chamo sofrimento? Não sou. Portanto, eu sou o sofrimento; não é verdade que existe o sofrimento e eu sou diferente dele. Eu é que sou o "sofrimento".

Enquanto sou o observador do sofrimento, não há o término do sofrimento. Mas assim que se dá o percebimento de que o sofrimento sou eu, de que o próprio observador é o sofrimento — o que é muitíssimo difícil de experimentar, de perceber, porque há séculos que dividimos essa coisa — quando a mente percebe que ela mesma é sofrimento — não quando está sentindo o sofrimento — que ela própria é a criadora do sofrimento, ela própria é a entidade que sente o sofrimento, que ela é o próprio sofrimento, ocorre então o término do sofrimento. Isso não requer nem tradição nem pensar. mas sim um percebimento muito atento, muito vigilante e inteligente. Esse estado inteligente, esse estado "integrado", é que é "estar só". Quando o observador é a coisa observada, ele é então o estado "integrado". E nesse "estar só", nesse estado de se achar completamente só, completo, em que a mente não está em busca de coisa alguma, nem visando recompensa, nem fugindo à punição, em que a mente está de fato tranquila, não está procurando, não está tateando, só então vem à existência aquilo que não é mensurável pela mente.

Krishnamurti em, Quando o Pensamento Cessa

Observando os desdobramentos da mente

A codependência de identificação

Sobre o condicionamento da identificação

Um olhar sobre o processo de desconstrução

Onde não há sintonia reverbera distorção

A mente adquirida é vagabunda e serpentina

Vendo lucro onde a mente vê prejuízo

A mente se alimenta da dor física

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

O "eu" nunca pode preencher-se

Pergunta: Como pode um homem preencher-se, se não tem ideais?

Krishnamurti: Existirá o preenchimento, — embora a maioria de nós esteja em busca do preenchimento? Queremos nos preencher, por meio da família, de nosso filho, nosso irmão, nossa esposa, por meio da propriedade, da identificação com uma nação ou um grupo, ou pelo cultivo de um ideal, ou pelo desejo e continuidade do "eu". Há formas variadas e diferentes de preenchimento, em diversos níveis da consciência. 

Mas existe de fato o preenchimento? Que é que se preenche? Que entidade é essa que busca existir dentro ou por meio de uma certa identificação? Quando é que vocês pensam em preenchimento? Quando é que procuram o preenchimento? 

Como já disse, não estou fazendo uma conferência no nível verbal. Se assim a consideram, será melhor que se retirem, porque perdem o tempo. Se, porém, desejam penetrar profundamente, então fiquem vigilantes e sigam-me; porque necessitamos de inteligência, e não de uma repetição morta, — repetição de frases, de palavras, de exemplos, dos quais já estamos fartos. 

O que necessitamos é de criação, criação inteligente, "integrada"; o que vale dizer, devem investigar, para descobrir o processo da mente pela própria compreensão de vocês. 

Assim, ao escutarem o que digo, o relacionem diretamente com vocês mesmos, "experimentem" o que estou falando. Não podem experimentá-lo através das minhas palavras. Só o experimentarão se tiverem verdadeiro empenho, se observarem o próprio pensar e o próprio sentir de vocês. 

Quando há de ser preenchido o desejo? Quando possuem consciência desse impulso a ser, a vir-a-ser, a se preencher? Por favor, se observem. Quando possuem consciência dele? Não estão conscientes dele quando ele é contrariado? Não estão conscientes dele quando sentem uma solidão extraordinária, quando possuem um sentimento de nulidade absoluta, o sentimento de não serem alguma coisa? Vocês só possuem percepção desse impulso para o preenchimento, quando sentem um vazio, uma solidão. E, então, procuram o preenchimento por inúmeras maneiras, por meio da seita, pela relação com a propriedade de vocês, as árvores, com todas as coisas, em diferentes níveis de consciência. O desejo de ser, de se identificar, de se preencher, só existe quando há consciência de que o "eu" está vazio, solitário. O desejo de preenchimento é uma fuga daquilo que chamamos solidão. Nosso problema, pois, não é como nos preenchermos, ou o que é o preenchimento; porque tal coisa — o preenchimento — não existe. O "eu" nunca pode preencher-se; ele é sempre vazio; vocês podem ter umas poucas sensações ao alcançarem um resultado; mas assim que se desvanecem as sensações, vocês se encontram de novo naquele estado de vazio. Por isso, começam a seguir o mesmo processo de antes. 

O "eu", pois, é o criador daquele vazio. O "eu" é o vazio; o "eu" é um processo egocêntrico, no qual estamos conscientes daquela extraordinária solidão. Assim, estando conscientes dela, tentamos a fuga, por meio de várias formas de identificação. A essas identificações chamamos preenchimento. Na realidade não existe preenchimento, porque a mente, o "eu", nunca pode preencher-se; pela própria natureza, o "eu" é egocêntrico. 

Nessas condições, que deve fazer a mente que está consciente daquele vazio? Nosso problema é esse, não é verdade? Para a maioria de nós, essa dor do vazio é extremamente forte. Fazemos qualquer coisa, para fugir a ela. Qualquer ilusão serve, e essa é a fonte da ilusão. A mente tem o poder de criar ilusões. E enquanto não compreendermos aquele vazio, aquele estado de vazio, que é egocêntrico, podemos fazer o que quisermos, podemos buscar qualquer espécie de preenchimento, mas haverá sempre aquela barreira que separa, que não conhece a plenitude. 

Nossa dificuldade, por conseguinte, consiste em estarmos conscientes desse vazio, desse isolamento. Nunca nos vemos frente a frente com ele. Não sabemos como ele é, quais são as suas qualidades; porque vivemos continuamente fugindo dele, nos retraindo, nos isolando, nos identificando. Nunca estamos na presença dele, diretamente, em comunhão com ele. Por isso, somos "observador" e a "coisa observada". Isto é, a mente, o "eu", observa o vazio; e, então, o "eu", o pensante, trata de livrar-se desse vazio, ou de fugir.

Esse vazio, esse isolamento, será diferente do observador? Ou será que o próprio observador é que está vazio, e não que está observando o vazio? Porque, se o observador não for capaz de reconhecer esse estado a que ele chama "vazio", não haverá experiência alguma. Ele está vazio; está vazio, não pode atuar sobre isso, nada pode fazer a respeito. Porque, se fizer alguma coisa, torna-se ele o observador a atuar sobre a coisa observada, o que é uma relação falsa. 

Assim, quando a mente reconhece, percebe, está consciente de que está vazia, e que não pode atuar sobre esse estado, então, esse vazio, do qual estamos conscientes, do exterior, tem um sentido diferente. Até agora, tínhamos nos ocupado com ele como "observador". Agora é o "observador" que é vazio, que está só, solitário. Pode ele fazer alguma coisa a respeito? Não pode, evidentemente. Sua relação com esse estado é, então, inteiramente diferente da relação de observador. Ele está só, acha-se naquele estado em que não há a verbalização "estou vazio". No momento em que o verbaliza, em que o exterioriza, é diferente dele. Assim, quando cessa a verbalização, quando cessa o "experimentador" que "experimenta" o vazio, quando deixa de fugir, vê-se ele, inteiramente solitário, sua relação, em si mesma, é isolamento; ele próprio é o isolamento; e ao perceber isso plenamente, com toda a certeza, deixa de existir o vazio, a solidão. 

Mas a solidão é coisa de todo diversa de "estar só". Essa solidão tem de ser transposta, para então "estarmos sós". A solidão não é comparável com o "estar só". O homem que conhece a solidão, nunca conhecerá o "estar só". Estão sós? Nossas mentes não estão integradas para estarmos sós. O próprio processo da mente é separativo. E quem separa, conhece a solidão. 

Mas o "estar só" não é separativo. É algo que não é a multiplicidade, que não é influenciado pela multiplicidade, pela multidão, que não é resultado da multidão, que não é composto de partes, como a mente. A mente é produto da multidão. A mente não é uma entidade que está só, porque foi montada, peça por peça, fabricada, através de séculos. A mente nunca pode estar só, nunca pode conhecer o "estar só". Mas, uma vez consciente do isolamento, ao passar por esse estado, vem ela a conhecer o "estar só". Então, e só então, pode existir aquilo que é imensurável. A maioria de nós, infelizmente, buscamos a dependência. Queremos companheiros, queremos amigos, queremos viver num estado de separação, num estado que produz conflito. O que está só nunca pode se achar em estado de conflito. A mente, porém, não pode perceber isso, não pode compreender isso; só pode conhecer a solidão.

Krishnamurti em, Quando o pensamento cessa

O homem mundano

Eu não digo que pessoas mundanas são aquelas que têm dinheiro. Eu chamo de pessoas mundanas aquelas que mudam os seus motivos por causa do dinheiro. Eu não digo que as pessoas que não tem dinheiro não sejam mundanas. Elas podem ser simplesmente po
bres. Eu digo que as pessoas não são mundanas quando elas não mudam seus motivos por causa de dinheiro. Só por ser pobre não equivale a ser espiritual. E só por ser rico não é equivalente a ser um materialista. O padrão materialista de vida é aquele em que o dinheiro predomina acima de tudo. A vida não materialista é aquela em que o dinheiro é simplesmente um meio; a felicidade predomina, a alegria predomina, a sua própria individualidade predomina. Você sabe quem você é, e para onde está indo, e você não está se desviando. Então, de repente, você vê que a sua vida adquiriu uma qualidade meditativa.

Mas em algum ponto do caminho, todo mundo se perdeu. Você foi educado por pessoas que não se realizaram. Você foi educado por pessoas que não tinham saúde. Você pode sentir pena delas. Eu não estou lhe dizendo para ser contra elas. Eu não as estou condenando, lembre-se. Simplesmente sinta compaixão por elas. Os pais, os professores do colégio e da universidade, os chamados líderes da sociedade, eles foram pessoas infelizes. Eles criaram um padrão infeliz em você.

E você ainda não assumiu a sua própria vida. Eles viveram segundo uma interpretação errada, e essa foi a miséria deles. E você também está vivendo segundo uma interpretação errada.

Osho

Um olhar sobre a questão do temor

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

É realmente possível o findar do "eu"?

[...]Vemos que toda religião, toda filosofia, e mesmo o estado totalitário, deseja destruir o processo separativo da mente. Nunca houve revolução, nunca houve transformação econômica exterior, nunca houve disciplina interior, como se costuma dizer, capaz de destruir ou de fazer findar o "eu". Penso que a maioria de nós percebe ou está cônscia de que o "eu" precisa findar, não teoricamente, mas de fato. Pode-se filosofar e especular a respeito; a maioria o faz fraudulentamente ou com um intento agressivo, como a maioria dos políticos, por quem somos dirigidos, ou como os ricos que controlam quase toda a nossa economia externa, ou como os que seguem o caminho espiritual. Todos eles, de maneiras diferentes, estão aplicados à expansão do "eu". Não é esse m dos principais fatores que concorrem para destruir a mente?

O único instrumento que possuímos é a mente. Até agora nós a temos usado de maneira errada. É possível, agora, fazermos findar todo esse processo do "eu", com todos os seus fatores de degeneração, todos os seus elementos destrutivos? Creio que a maioria de nós percebe que o "eu" é separativo, destrutivo, anti-social; tanto externa como internamente, é um processo isolante, em que não é possível nenhum estado de relação, em que não pode existir o amor. Nós percebemos esse fato, uns mais, outros menos, mas a maioria não está cônscia dele. É possível findar verdadeiramente esse processo — não o substituindo por outra coisa, ou adiando, ou o afastando por meio de explicações? 

Como já vimos, nem a mera disciplina, nem a conformidade, colocam fim ao "eu"; dão-lhe, sim, vitalidade, mudando-lhe, apenas a direção. A maioria das pessoas inteligentes, das pessoas que refletem, já deve ter examinado essa questão. Independente das sanções religiosas, das compulsões totalitárias — injunções, campos de concentração — a maioria de nós temos nos perguntado se o "eu" pode realmente findar. Quando fazemos tal pergunta a nós mesmos, a reação automática, a reação natural é o "como". Como pode ele findar? Assim, o "como", o método prático, a maneira, tem importância para nós. Se pudermos examinar um pouco mais perto toda a questão relativa ao "como" e sua técnica, talvez venhamos a compreender o "como", o método prático de se conseguir um resultado que colocará fim ao "eu".

Quando desejamos conhecer o método de terminar o "eu", a maneira de conseguir tal resultado, qual é o processo da mente? Existe o "como", a maneira de proceder, o método, o sistema? Se seguirmos o sistema, ele colocará fim ao "eu"? Ou lhe dará força de expansão em outra direção? A maioria de nós, sobretudo os que sentimos um certo interesse e temos inclinações religiosas, desejamos ansiosamente conhecer ou descobrir o método de terminar, a maneira de vir-a-ser, a maneira de se conseguir um resultado. Se nos examinássemos profundamente, em nossos corações e em nossas mentes, é bem certo que conseguiríamos o método de terminar o "eu", se tal método existisse. 

Ora, porque pergunta a mente, pela técnica, pelo método? Não é importante esta pergunta? O que acontece é o seguinte: Vocês têm um sistema, um método, o "como", a técnica; e a mente forma, de acordo com a técnica, o padrão. Isso coloca fim ao "eu"? Vocês possuem um método disciplinar muito rigoroso, ou um método de gradualmente se aliviarem do conflito do "eu", um método que lhes proporcionará consolação; entretanto, essencialmente, o desejo de método só indica, realmente, o fortalecimento do "eu". Não é verdade? Prestem bem atenção e verão se é verdade ou não que o "como" indica um processo de pensamento, um processo imitativo, por meio do qual a mente, o "eu", pode acumular força, adquirir maior capacidade, em vez de acabar-se definitivamente. 

[...] Se pudermos compreender o processo de como desejamos um método para alcançar um resultado, e, também, se compreendermos a mente que cultiva a técnica, veremos, então, que isso, essencialmente, é um meio de fortalecer o pensamento. O pensamento é um dos principais fatores de deterioração, porque o pensamento é um processo da memória, sendo a verbalização da memória e uma influência condicionadora. A mente que busca uma saída desta confusão, só está fortalecendo aquele processo de pensamento. O que importa, pois, não é que se ache uma maneira ou método, porque já vimos quais são as consequências aí contidas — mas, sim, de estarmos cônscios de todo o processo da mente. 

O pensamento nunca pode ser independente; não há pensar independente, porque todo pensamento é um processo de conformidade com o passado. Não há nenhuma independência ou liberdade pelo pensar. Como que pode a mente que é essencialmente o resultado do passado, que está condicionada por várias memórias... como pode essa mente ser independente? Assim, — quando vocês buscam a independência do pensamento, estão apenas perpetuando o "eu". Qual é o processo dessa independência? A maioria de nós nos sentimos solitários, e há em nós uma constante ânsia de preenchimento. Conscientes desse vazio em nós, buscamos várias maneiras de fugir dele — atividades religiosas, atividades sociais... vocês bem conhecem essas fugas. Enquanto não resolvermos aquele problema, a independência que estamos procurando, para o nosso pensar, será sempre, apenas, uma perpetuação do "eu". 

Para a maioria de nós, a criação é coisa inexistente; não sabemos o que significa criar. Sem essa ação criadora que não é do tempo, que não é do pensamento, será que não poderemos fazer nascer uma civilização basicamente diferente, um diferente estado de relações humanas? É possível a mente se achar naquele estado receptivo, no qual pode se realizar a criação? O pensamento não é criador; o cultivo de um ideal é processo de pensamento e está condicionado em conformidade com a mente. Como pode, então a mente, que é processo de pensamento, que é resultado de tempo, que é resultado de educação, de influências, de coerção, do medo, da busca de recompensa e fuga da punição — como pode a mete, em tais condições, ser livre, de maneira que possa se realizar a criação? Quando nos fazemos esta pergunta, desejamos saber o método, o "como", a maneira prática de alcançar aquela liberdade mental. Procurar conhecer o "como", o método, é a coisa mais absurda, um processo colegial. O "como" implica sempre o método, que é a coisa que interessa ao pensamento, que é conformidade com uma técnica determinada. Vemos também que só há criação quando a mente, com seu processo de pensamento, chega ao seu fim. 

Sem dúvida, na atual crise mundial e com os políticos e suas astuciosas explorações, a criação é a coisa mais difícil de se alcançar. Não queremos mais teorias, mais guias, mais técnicas e técnicas mais novas, os meios de manter em vigor o padrão. 

As mentes criadoras são só as dos entes humanos que são "integrados". 

É possível para a mente, que é resultado de séculos de processo de pensamento, encontrar-se, em algum tempo, naquele estado criador? Isto é, pode o pensamento, alguma vez, receber, ou cultivar, aquele impulso criador? Creio que esta é uma das perguntas mais importantes que podemos fazer a nós mesmos. Porque já vimos que a simples observância de um padrão nunca nos levou a parte alguma, nem social, nem religiosamente. Nenhum guia pode nos dar o verdadeiro impeto criador, nenhum exemplo é capaz disso; todo exemplo é expansão do "eu", o herói é expansão do eu, glorificado. O cultivo do ideal, portanto, é uma expansão de mim mesmo, o preenchimento de mim mesmo numa ideia; é continuação do pensamento, como tempo, e por isso não há estado criador. Julgo muito importante averiguar bem isso, estar bem consciente de quanto é essencial que cada um de nós descubra esse espírito criador. A mente nunca será capaz de descobri-lo, por mais que faça; o pensamento não pode compreender nem gerar o estado criador. 

Que estado criador é esse? Por certo, não se pode dizer positivamente o que ele é. Descrevê-lo seria limitá-lo, seria um processo de medição; e medi-lo é empregar um processo de pensamento. Não há dúvida de que isso é exato. Por conseguinte, o pensamento nunca será capaz de apreendê-lo. De nada vale o descrevê-lo. O que está ao nosso alcance fazer é descobrir quais são os obstáculos, chegando-nos a eles de maneira negativa, indireta. A maioria de nós fará objeção a isso, porque estamos, em geral, habituados a ser diretos. "Faça isso, e você obterá aquilo", tal é a atitude que governo o nosso proceder. estamos aqui discutindo, não com o fim de descrever aquele estado, mas com o fim de verificar o que devemos fazer para descobrir, por nós mesmos, os empecilhos que estão obstruindo àquele estado criador, àquele estado extraordinário em que a mente, a entidade que observa, é inexistente. 

Qual é o primeiro obstáculo que se depara? É sem dúvida o desejo de ser poderoso, o desejo de dominar. O desejo de poder é um processo separativo; ainda que esteja identificado com o todo, com uma nação, ou com um grupo, é um processo de isolamento. O empecilho é a mente, que é ambiciosa, em qualquer nível... a chamada ambição espiritual, a mentalidade do político, do rico, do pobre. Todas essas pessoas desejam possuir mais. A ânsia de ter mais é o elemento destruidor que se nos depara. É muito difícil perceber isso, porque a mente é cheia de sutilezas. Uma pessoa pode não procurar o poder, escancaradamente, sem disfarce, mas pode procurá-lo como político, sob o pretexto de estar servindo aos interesses do Estado; ou pode também atuar como cabo eleitoral... Há várias maneiras de se buscar o poder, e tudo isso, essencialmente, é a vontade de ser, a vontade de vir-a-ser alguma coisa que se expressa sob a forma de virtude, de responsabilidade, pela ação da mente, pelo espírito de domínio, pelo orgulho de ser poderoso. 

Um dos fatores mais fortes, uma das barreiras mais importantes, é esse desejo de poder, esse desejo de domínio. Observem suas próprias vidas, e verão como está sempre operando aquele desejo separativo, aquele desejo destruidor. Ele, naturalmente, levará de vencida o amor. Só no amor está a nossa redenção. Mas não se pode possuir o amor, quando há espírito de domínio, espírito que se manifesta no desejo de poder, de posição, de autoridade, quando está em ação a vontade, o desejo de alcançar um resultado. Sabemos tudo isso. Estamos colhidos na corrente do vir-a-ser, na corrente do desejo de poder, impossibilitados de detê-la, de sairmos dela. Para isso não há nenhum "como". Devemos conhecer todas as consequências do poder; e assim que as reconhecemos, saímos da corrente — não há nenhum "como". 

Um dos obstáculos à criação é a autoridade, a autoridade do exemplo, a autoridade do passado, a autoridade da experiência, a autoridade do saber, a autoridade da crença. Tudo isso são obstáculos ao estado criador. Vocês não são obrigados a aceitar o que estou dizendo. Podem observá-lo na própria vida; e verão como a crença, o saber e a autoridade dão mais força ao processo separativo da mente. 

Evidentemente, outro fator que impede o estado criador é a repetição, a imitação, a perpetuação de uma ideia, — repetição, não só de sensação, mas repetição de ritos, a vã repetição que tem por alvo o saber, a repetição da experiência — que são inteiramente sem significação e só constituem obstáculos. Não há nenhuma experiência nova. Toda experiência é processo de reconhecimento. Se não há reconhecimento, não há experiência, e o processo de reconhecimento é processo da mente, que é verbalização. 

Outro fator que nos está separando do estado criador é o desejo de um método, do "como", da maneira — queremos proceder de modo que a mente alcance um resultado; esse é um processo de continuidade, de repetição, e a mente que está entregue à repetição não pode, jamais, ser criadora. 

Assim, se puderem ver tudo isso, compreenderão que é na realidade a mente que se opõe à existência de um estado criador. Uma vez cônscia de seu próprio movimento, a mente cessa. Só então pode realizar-se o estado criador; esse estado criador é a única salvação, porque ele é amor. O amor nada tem em comum com o sentimentalismo; nada tem em comum com a sensação; não é produto do pensamento; não pode ser fabricado pela mente. A mente só é capaz de criar imagens de sensação, de experiência; e imagens não são o amor. Não sabemos o que significa o amor, embora empreguemos prodigamente a palavra. Mas sabemos o que é sensação; é da própria natureza da mente, o sentir sensações, o cultivar a sensação, através de imagens, através de palavras ou de qualquer forma de presunção. A mente não pode conhecer o amor; no entanto, vimos cultivando a mente há séculos. 

É dificílimo à mente perceber todo esse processo, de modo que o "experimentador" não esteja separado da coisa experimentada. É esta divisão entre "observador"e "objeto observado" que é o processo de pensamento. No amor não existe "experimentador" ou "coisa experimentada", Nós não o conhecemos; mas, sendo ele a nossa única redenção, é lógico que um homem que sente verdadeiro empenho tem de observar todo o processo da mente, tanto o culto como o patente. Isso é extremamente difícil. A maioria de nós estamos dissipando as nossas energias, por influência do clima, por influência do regime alimentar, com maledicência ociosa — perdão, não há maledicência ociosa, só existe maledicência — e por causa da inveja. Não nos resta tempo para investigar. E só pela investigação meditativa nos é possível o percebimento claro da mente e da sua substância; então, a mente cessa, e o amor pode existir. 

Krishnamurti em, Quando o pensamento cessa
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"Quando você compreende, quando chega a saber,
então traz toda a beleza do passado de volta
e dá a esse passado o renascimento, renova-o,
de forma que todos os que o conheceram
possam estar de novo sobre a terra
e viajar por aqui, e ajudar as pessoas." (Tilopa)



"Nos momentos tranqüilos da meditação, a vontade de DEUS pode tornar-se evidente para nós. Acalmar a mente, através da meditação, traz uma paz interior que nos põe em contato com DEUS dentro de nós. Uma premissa básica da meditação, é que é difícil, senão impossível, alcançar um contato consciente, à não ser que a mente esteja sossegada. Para que haja um progresso, a comum sucessão ininterrupta de pensamentos tem de parar. Por isso, a nossa prática preliminar será sossegar a mente e deixar os pensamentos que brotam morrerem de morte natural. Deixamos nossos pensamentos para trás, à medida que a meditação do Décimo Primeiro Passo se torna uma realidade para nós. O equilíbrio emocional é um dos primeiros resultados da meditação, e a nossa experiência confirma isso." (11º Passo de NA)


"O Eu Superior pode usar algum evento, alguma pessoa ou algum livro como seu mensageiro. Pode fazer qualquer circunstância nova agir da mesma forma, mas o indivíduo deve ter a capacidade de reconhecer o que está acontecendo e ter a disposição para receber a mensagem". (Paul Brunton)



Observe Krishnamurti, em conversa com David Bohn, apontando para um "processo", um "caminho de transformação", descrevendo suas etapas até o estado de prontificação e a necessária base emocional para a manifestação da Visão Intuitiva, ou como dizemos no paradigma, a Retomada da Perene Consciência Amorosa Integrativa...


Krishnamurti: Estávamos discutindo o que significa para o cérebro não ter movimento. Quando um ser humano ESTEVE SEGUINDO O CAMINHO DA TRANSFORMAÇÃO, e PASSOU por TUDO isso, e esse SENTIDO DE VAZIO, SILÊNCIO E ENERGIA, ele ABANDONOU QUASE TUDO e CHEGOU AO PONTO, à BASE. Como, então, essa VISÃO INTUITIVA afeta a sua vida diária? Qual é o seu relacionamento com a sociedade? Como ele age em relação à guerra, e ao mundo todo — um mundo em que está realmente vivendo e lutando na escuridão? Qual a sua ação? Eu diria, como concordamos no outro dia, que ele é o não-movimento.

David Bohn: Sim, dissemos que a base era movimento SEM DIVISÃO.

K: Sem divisão. Sim, correto. (Capítulo 8 do livro, A ELIMINAÇÃO DO TEMPO PSICOLÓGICO)


A IMPORTÂNCIA DA RENDIÇÃO DIANTE DA MENTE ADQUIRIDA
Até praticar a rendição, a dimensão espiritual de você é algo sobre o que você lê, de que fala, com que fica entusiasmado, tema para escrita de livros, motivo de pensamento, algo em que acredita... ou não, seja qual for o caso. Não faz diferença. Só quando você se render é que a dimensão espiritual se tornará uma realidade viva na sua vida. Quando o fizer, a energia que você emana e que então governa a sua vida é de uma frequência vibratória muito superior à da energia mental que ainda comanda o nosso mundo. Através da rendição, a energia espiritual entra neste mundo. Não gera sofrimento para você, para os outros seres humanos, nem para qualquer forma de vida no planeta. (Eckhart Tolle em , A Prática do Poder do Agora, pág. 118)


O IMPOPULAR DRAMA OUTSIDER — O encontro direto com a Verdade absoluta parece, então, impossível para uma consciência humana comum, não mística. Não podemos conhecer a realidade ou mesmo provar a existência do mais simples objeto, embora isto seja uma limitação que poucas pessoas compreendem realmente e que muitas até negariam. Mas há entre os seres humanos um tipo de personalidade que, esta sim, compreende essa limitação e que não consegue se contentar com as falsas realidades que nutrem o universo das pessoas comuns. Parece que essas pessoas sentem a necessidade de forjar por si mesmas uma imagem de "alguma coisa" ou do "nada" que se encontra no outro lado de suas linhas telegráficas: uma certa "concepção do ser" e uma certa teoria do "conhecimento". Elas são ATORMENTADAS pelo Incognoscível, queimam de desejo de conhecer o princípio primeiro, almejam agarrar aquilo que se esconde atrás do sombrio espetáculo das coisas. Quando alguém possui esse temperamento, é ávido de conhecer a realidade e deve satisfazer essa fome da melhor forma possível, enganando-a, sem contudo jamais poder saciá-la. — Evelyn Underhill