Entrando em comunhão com o problema
Há, penso eu, uma grande diferença entre “estar em comunicação” e “estar em comunhão”. Estar em comunicação é partilhar ideias, por meio de palavras, agradáveis ou desagradáveis, por meio de símbolos, de gestos; e as ideias podem ser traduzidas ideologicamente, ou interpretadas conforme as peculiaridades, as idiossincrasias, o fundo de cada um. Mas, na comunhão, penso que ocorre algo muito diferente. Na comunhão não há partilhar ideias, ou interpretação de ideias. A pessoa pode estar, ou não, em comunicação com outros por meio de palavras, mas se acha em relação direta com o que observa; e se encontra em comunhão com a própria mente, com o próprio coração. Pode-se comungar com uma árvore, por exemplo, ou com uma montanha, um rio. Não sei se já alguma vez estivestes sentado sob uma árvore e se realmente experimentastes estar em comunhão com ela. Isso não é sentimentalismo, nem emocionalismo: está-se em contato direto com a árvore. Há uma extraordinária intimidade nessa relação. Nessa comunhão, deve haver silêncio, um senso profundo de quietude; os nervos, o corpo estão em repouso; o próprio coração quase parado. Não há interpretação, não há comunicação, não há partilhar. Vós não sois a árvore, e tampouco estais identificado com a árvore: há só esse sentimento de intimidade em profundo silêncio. Não sei se alguma vez experimentastes isso. Experimentai-o, numa ocasião em que vossa mente não esteja a “tagarelar”, a divagar, em que não estejais a monologar, a lembrar-vos de coisas feitas ou por fazer. Esquecei tudo isso e procurai entrar em comunhão com a montanha, com um rio, uma pessoa, uma árvore, com o movimento da própria vida. Requer isso um extraordinário sentimento de tranquilidade e uma peculiar atenção — não concentração, porém uma atenção natural e agradável.
Pois bem; desejo estar em comunhão convosco, nesta manhã, a respeito do que estivemos investigando outro dia. Falamos sobre a liberdade e sua essência. A liberdade não é um ideal, uma coisa remota; não é concepção de uma mente prisioneira, uma mera teoria. Só pode existir liberdade quando a mente não está sendo tolhida por nenhum problema. A mente que tem problemas jamais pode comungar com a liberdade ou estar ciente dessa coisa extraordinária que ela é.
A maioria das pessoas tem problemas e os vai simplesmente suportando; acostumam-se com os problemas e os aceitam como parte necessária da vida. Mas tais problemas não se resolvem pelo aceitá-los ou acostumar-nos com eles; e se raspamos a superfície, lá os encontramos, a “supurar”, como sempre. E a maioria das pessoas vive nesse estado — aceitando perenemente um problema após outro, uma dor após outra; sentem e aceitam a desilusão, a ansiedade, o desespero.
Se simplesmente aceitamos os problemas e ficamos com eles, nós evidentemente não os resolvemos. Podemos dizer que estão esquecidos ou que nenhuma importância têm; mas eles importam infinitamente, porque pervertem o espírito, falseiam a percepção e destroem a clareza. Se temos um problema, ele, geralmente, invade todo o campo de nossa vida. Pode ser um problema de dinheiro, problema sexual, de falta de instrução ou atinente ao desejo de nos realizarmos, de nos tornarmos famosos. Qualquer que ele seja, ele nos absorve a ponto de apoderar-se de todo o nosso ser, e pensamos que, resolvendo-o, estaremos livres de nossas aflições. Mas a mente limitada e mesquinha que tenta resolver seu problema pessoal isolando-o do movimento global da vida não pode jamais libertar-se de seus problemas; porque cada problema está relacionado com outro e, assim, são de todo inúteis as tentativas de resolução fragmentária. É como cultivar uma só parte do campo e pensar que cultivamos o campo todo. Tendes de cultivar o campo inteiro, considerar cada problema.
Como já disse antes, o importante não é a solução do problema, porém, sim, o compreendê-lo — por mais doloroso, por mais exigente, por mais premente e urgente que ele seja. Sem querer ser positivo ou dogmático, parece-me que o preocupar-se com um só problema, em particular, é indicativo de uma mente vulgar; e a mente vulgar que tenta continuamente resolver seu problema pessoal nunca encontrará um meio de livrar-se de problemas. Poderá fugir de várias maneiras, tomar-se acrimoniosa, mordente, ou entregar-se ao desespero; mas nunca compreenderá o problema total da existência.
Assim, se temos de lidar com problemas, devemos ocupar-nos do campo inteiro em que eles proliferam, e não simplesmente de um dado problema. Qualquer problema, por mais complicado, por mais exigente ou premente que seja, relaciona-se com todos os outros; muito importa, por conseguinte, não tratá-lo fragmentariamente, coisa essa sobremodo difícil. Ao termos um problema urgente, doloroso, insistente, pensamos em geral que o devemos resolver isoladamente, sem levar em conta todo o conjunto de problemas. Nele pensamos fragmentariamente, mas a mente fragmentária é na realidade uma mente vulgar; é — se me permitis a expressão — uma mente burguesa. Não emprego essa palavra em sentido depreciativo, porém apenas para indicar o que a mente de fato é: ela é medíocre ao pretender resolver isoladamente um problema pessoal. A pessoa atormentada pelo ciúme, por exemplo, deseja agir imediatamente, fazer qualquer coisa, reprimir o ciúme ou vingar-se. Mas esse problema individual relaciona-se com outros problemas. É o todo que devemos considerar, e não apenas a parte.
Ao considerarmos problemas, deve ficar entendido que não estamos interessados em achar solução para problema algum. Como já apontei, a investigação que visa apenas a encontrar a solução de um problema é uma fuga ao problema. A fuga poderá ser confortável, ou dolorosa, poderá exigir certa capacidade intelectual, etc.; mas, como quer que seja, é sempre fuga. Se temos de resolver nossos problemas, se temos de ficar livres deles, aliviados de todas as pressões que ocasionam, de modo que a mente fique completamente quieta e possa perceber (pois só pode perceber em liberdade), então o que antes de tudo nos deve interessar não é como resolver um problema, porém, sim, o compreendê-lo. Compreender um problema é muito mais importante do que resolvê-lo. Compreensão não representa a capacidade ou habilidade da mente que adquiriu várias formas de conhecimento analítico e é capaz de analisar um dado problema; compreender é estar em comunhão com o problema. Estar em comunhão não significa achar-se identificado com o problema. Como disse, para se estar em comunhão com uma árvore, com um ente humano, com um rio, com a extraordinária beleza da natureza, necessita-se de certa quietude, um certo senso de separação, de distanciamento do mundo.
Assim, o que aqui estamos tentando é aprender a estar em comunhão com o problema. Mas, percebeis a dificuldade que essa asserção implica? Havendo comunhão com outro, a ideia do “eu” está ausente. Quando estais em comunhão com o ente amado, com vossa esposa, vosso filho, quando segurais a mão de um amigo, nesse momento (se não se trata dessa falsa sentimentalidade, sensualidade, etc., a que chamam “amor”, porém de algo completamente diferente, algo vital, dinâmico, real) há ausência total do mecanismo do “eu”, com seu “mecanismo de pensamento”. Analogamente, estar em comunhão com um problema implica observação completa, não identificadora, não é? Os nervos, o cérebro, o corpo, toda a entidade está quieta. Nesse estado pode-se observar o problema sem identificação, e é esse o único estado em que é possível a compreensão do problema. O chamado artista poderá pintar uma árvore ou escrever uma poesia a respeito dela, mas estará realmente em comunhão com a árvore? No estado de comunhão não há interpretação, nem ideia de comunicação, como também a busca de uma maneira de expressão. Se expressais, ou não, essa comunhão em palavras, numa tela, ou no mármore, pouco importa; mas, no momento em que desejais expressá-la, a fim de exibi-la, de vendê-la, de vos tornardes famoso, etc., começa a ter importância o “eu”.
Compreender inteiramente um problema é comungar com ele. Vereis então que o problema nenhuma importância tem, pois o que importa é o estado mental de comunhão, não criador de problemas. Mas se o indivíduo não é capaz dessa comunhão, se é egocêntrico, egotista, e deseja expressão pessoal e tantas outras infantilidades, eis a mentalidade vulgar geradora de problemas.
Assim, como já acentuei, para se compreender um problema — qualquer problema — é necessário compreender o mecanismo do desejo. Somos contraditórios, psicologicamente, e, por conseguinte, também em nossa atuação. Pensamos uma coisa e fazemos outra. Vivemos num estado de “contradição”, pois, do contrário, não haveria problemas; contradizemo-nos quando não há compreensão do desejo. Para se viver sem conflito de espécie alguma, é preciso compreender a estrutura e a natureza do desejo — não reprimi-lo, controlá-lo, tentar destruí-lo, ou simplesmente entregar-se a ele, como em geral fazemos. Isso não significa pôr-se a dormir, vegetar, e aceitar simplesmente a vida com toda a sua degeneração; significa, isto sim, perceber cada um por si mesmo que o conflito, em qualquer forma que seja — disputa com e mulher, ou marido, ou a comunidade, a sociedade — qualquer conflito — deteriora a mente, torna-a embotada, insensível.
Como disse antes, o desejo em si não é contraditório; são os objetos do desejo, e a reação do desejo a esses objetos, que criam a contradição. O desejo só tem continuidade quando o pensamento com ele se identifica.
Para observar, necessita-se de sensibilidade; os nervos, os olhos e ouvidos, todo o ser deve estar vivo e, contudo, a mente deve estar quieta. Pode-se então olhar para um belo carro, uma bela mulher, uma esplêndida vivenda, ou um rosto de extraordinária vivacidade, inteligência — pode-se observar essas coisas, vê-las tais como são, e não passar disso. Mas, em geral, que acontece? Há desejo; e o pensamento, identificando-se com o desejo, dá-lhe continuidade.
Não sei se me estou expressando com clareza. Examinaremos este ponto posteriormente.
O importante é observar sem interferência do pensamento. Mas não façais agora desta asserção um problema. Não digais: “Como posso observar, como posso ver e sentir, sem deixar o pensamento interferir?” Se perceberdes por vós mesmos todo o mecanismo do desejo e a contradição criada por seus objetos, e a continuidade que o pensamento dá ao desejo — se perceberdes todo esse mecanismo em ação, não fareis tal pergunta. Para aprendermos a conduzir um carro, não basta recebermos instruções teóricas. Temos de sentar-nos ao volante, “dar saída” ao carro, freá-lo, aprender toda a técnica de conduzir. Da mesma maneira deveis conhecer o mecanismo extremamente delicado do pensamento e do desejo, e não apenas ser informado a seu respeito. Precisais olhá-lo, aprender o que há nele, por vós mesmo — e isso requer que dele vos acerqueis com sensibilidade.
Assim, o importante não é a solução de um problema, porém a compreensão dele. Só se apresenta um problema quando existe uma contradição, um conflito; e todo conflito supõe esforço, não é verdade? — esforço para alcançar, esforço para “vir a ser”, esforço para transformar isto naquilo, esforço para aproximar uma coisa ou para distanciá-la. Esse esforço tem sua origem no desejo — o desejo, a que o pensamento deu continuidade. Por conseguinte, deveis aprender tudo o que se relaciona com esse mecanismo — aprender, e não apenas ser instruído por este orador, pois isso nenhum valor tem. O que ouvis por meio do telefone pode ser agradável ou desagradável; pode ser real ou absurdo, completamente falso; mas o que ouvis é que é importante, e não o próprio aparelho. Em geral, damos importância ao instrumento. Pensamos que o instrumento nos vai ensinar algo, e já vos tenho advertido frequentemente a respeito desta particular forma de insensatez.
Aqui estais a fim de aprender, e escutais, não apenas o orador, mas a vós mesmos. Comungais com vossa própria mente, observando o funcionamento do desejo e como surge o problema. Estais entrando em intimidade com vós mesmos, e essa intimidade só pode ser sentida profundamente quando vos aplicais ao problema com toda a calma sem dizerdes: “Preciso liquidar esse problema infernal” — e sem vos sentirdes agitado ou excitado em relação a ele. Quereis averiguar como surge um problema e como o pensamento o perpetua, dando continuidade a um certo desejo. Vamos, pois, aprender como surge e como termina um problema — sem precisarmos de tempo para refletir sobre ele, mas pondo-lhe fim imediatamente.
Qualquer que seja o problema, o pensamento lhe dá continuidade. Se me dizeis algo que me agrada, o pensamento se identifica com esse prazer e nele deseja continuar a viver; por conseguinte, considero-vos meu amigo e visito-vos frequentemente. Mas, se me dizeis algo insultuoso, que acontece? Dou também continuidade a esse sentimento, pensando nele. O que dissestes poderá ser verdadeiro, mas não me agrada e, por conseguinte, evito-vos ou desejo “dar-vos o troco”. É esse o mecanismo que cria e mantém vivos os problemas.
Penso que agora está bastante claro. Pensando constantemente numa coisa, damos-lhe continuidade. Sabeis quantas coisas confusas pensais acerca de vós mesmo e de vossa família, quantas recordações agradáveis e quantas ilusões tendes a vosso respeito pensais constantemente em tudo isso e lhe dais, por conseguinte, continuidade. Ora bem, se começardes a compreender esse “mecanismo”, no seu todo, e a conhecer individualmente a natureza da continuidade, então, ao apresentar-se um problema, podereis entrar em perfeita comunhão com ele, porque então o pensamento não interfere; por conseguinte, termina logo o problema. Entendeis?
Consideremos um problema muito comum: o desejo de segurança. A maioria de nós quer estar em segurança — esta é uma das exigências humanas de origem animal. É óbvio que, no sentido físico, necessita-se de uma certa segurança. Precisamos de um lugar onde morar, e saber onde obter nossa próxima refeição — a não ser que vivamos no Oriente, onde se pode “brincar” com a insegurança física, andando de aldeia em aldeia, etc. Felizmente, ou infelizmente, não se pode fazer isso aqui; quem o faz é preso por vadiagem, etc.
No animal, no bebê, na criança é muito forte a ânsia de segurança física. Mas a maioria quer estar em segurança psicologicamente; em tudo o que fazemos, pensamos e sentimos, queremos segurança, certeza. Por isso, há tanta competição entre nós; por isso, somos ciumentos, ávidos, invejosos, brutais e vivemos terrivelmente interessados em coisas insignificantes. Essa insistente exigência de segurança psicológica existe há milhões de anos, e nunca indagamos a verdade a seu respeito. Temos por assentado e certo que devemos ter segurança psicológica em nossas relações com a família, a mulher, o marido, os filhos, nossos haveres, com o que chamamos Deus. Queremos sentir-nos seguros a qualquer preço.
Ora, preciso pôr-me em comunhão com essa exigência de segurança psicológica, que é um problema real. Compreendeis? Se não nos sentimos seguros, psicologicamente, isso é para nós como perder-nos em águas profundas, ou tornar-nos neuróticos, “esquisitos”. Pode-se notar essa “esquisitice” na fisionomia de muitas pessoas. Eu desejo descobrir a verdade relativa a esta questão, compreender completamente a exigência de segurança; porque é o desejo de se estar seguro nas relações que gera o ciúme, a ansiedade, que faz nascer o ódio e a aflição em que vive a maioria de nós. E como pode a mente, que há milhões de anos exige segurança, que tão condicionada está, descobrir a verdade relativa à segurança? Para descobrir essa verdade, tenho, naturalmente, de estar em perfeita comunhão com ela. Não posso deixar-me instruir por outro a respeito dela — isso seria um absurdo. Eu próprio tenho de aprender o que é essa verdade. Cabe-me investigá-la, descobri-la; devo estar em perfeita intimidade com essa exigência de segurança, pois, de outro modo, nunca saberei se existe, ou não, essa coisa chamada segurança. Este é provavelmente o principal problema de cada um. Se descubro que não existe realmente segurança nenhuma, então não há problema algum, há? Já estou fora da batalha pela segurança e, por conseguinte, minha ação nas relações é toda diferente. Se minha mulher deseja abandonar-me, abandona-me e eu não fico, por isso, em situação dolorosa, não odeio ninguém, não me torno ciumento, invejoso, furioso, etc.
Vejo que prestais toda a atenção e folgo com isso! Estais muito mais familiarizados com essas coisas do que eu. Pessoalmente, não desejo fazer da segurança um problema; não desejo criar em minha vida nenhum problema — econômico, psicológico, ou religioso. Vejo com clareza que a mente que tem problemas se torna embotada, insensível, e que só a que é sensível é inteligente. E, visto que esse clamor pela segurança persiste, profunda e perenemente, em cada um de nós, desejo descobrir a verdade relativa à segurança. Mas esta é uma questão muito difícil de investigar; porque, não só desde nossa infância, mas desde o começo dos tempos, sempre quisemos segurança — segurança em nosso trabalho, em nossos pensamentos e sentimentos, em nossas crenças e nossos deuses, em nossa nação, em nossa família, em nossos haveres. É por isso que a memória, a tradição, o fundo do passado, exercem tão importante papel em nossa vida.
Ora, toda experiência me torna mais forte a consciência de segurança. Toda experiência está sendo registrada na memória, acrescentada ao depósito de coisas passadas. Essa experiência acumulada se torna o meu fundo no decorrer de minha vida, fundo com o qual prossigo “experimentando”; por conseguinte, toda experiência nova vai acrescentar e reforçar esse fundo de memória, em que me sinto protegido, seguro. Entendeis? Portanto, preciso conscientizar-me de todo esse extraordinário mecanismo de condicionamento. Não se trata de saber como ficar livre de meu condicionamento, porém, sim, de estar em comunhão com ele de instante em instante. Posso então olhar o desejo de segurança sem convertê-lo num problema.
Está tudo claro? Desejais fazer perguntas?
INTERROGANTE: Não há comunhão porque a mente está sob a carga do “eu”.
KRISHNAMURTI: Senhor, vou perguntar-vos uma coisa: Que é comunhão? Ora, que acontece quando ouvis esta pergunta? Todo o mecanismo de vossa mente condicionada entra em função, e respondeis à pergunta; mas não a escutastes realmente. Pode ser e pode não ser que já tenhais refletido a esse respeito. Podeis ter pensado nisso ocasionalmente; ou talvez tenhais lido algo sobre o assunto neste ou naquele livro, e repetis o que lestes. Mas não estais escutando. Quando este orador diz: “Procurai estar em comunhão com uma árvore”, é claro que — se tendes verdadeiro interesse — lereis primeiramente de descobrir o que isso significa. Ide sentar-vos debaixo de uma árvore, ou à beira do rio, ou à sombra de uma montanha, ou simplesmente olhai o rosto de vossa mulher, de vosso filho. Que significa “estar em comunhão”? Significa que não há barreira de pensamento entre o observador e aquilo que está sendo observado. O observador não se está identificando com a árvore, com a pessoa, com o rio, com a montanha, com o céu. Não existe, simplesmente, barreira alguma. Se existe um “vós”, com seus complexos pensamentos e ansiedades, a observar a árvore, não há então comunhão com a árvore. O estar em comunhão com alguém ou alguma coisa, exige espaço, silêncio; vosso corpo, vossos nervos, vossa mente, vosso coração, todo o vosso ser deve estar quieto, completamente sereno. Não digais “como posso tornar-me tranquilo?” Não façais da tranquilidade mais um problema. Vede, simplesmente, que não há comunhão se está em função o mecanismo do pensamento — o que não significa pôr-se a dormir.
Provavelmente, nunca fizestes isto; nunca estivestes em comunhão com vossa mulher ou marido, com quem dormis, respirais, comeis, tendes filhos, etc. Provavelmente nunca estivestes sequer em comunhão com vós mesmo. Se sois católico, ides à igreja e recebeis o que se chama “comunhão”; mas não é disso que falo. Tais coisas são todas infantis.
Quando falamos de comunhão com a natureza, com as montanhas, entre nós, em geral não sabemos o que isso significa e procuramos imaginá-lo. Especulamos sobre a matéria, e dizemos que é o “eu” que está impedindo a comunhão. Por Deus, senhores, não façais da comunhão um novo problema. Já tendes problemas que chegam e, portanto, escutais simplesmente. Vós estais em comunhão comigo, e eu estou em comunhão convosco. Digo-vos alguma coisa, e, para a compreenderdes, tendes de escutar. Mas, escutar significa atenção sem esforço, com os nervos repousados; não significa “Tenho de escutar!” — e pôr-vos num estado de excitação, de tensão nervosa. Ou seja, escutar com agrado, naturalidade, em silêncio, para que possais descobrir o que o orador deseja transmitir. O que ele diz pode ser puro disparate, ou algo de real, e cabe-vos escutar, para o averiguardes; mas, isso parece constituir uma das vossas maiores dificuldades. Vós não escutais verdadeiramente; mentalmente, estais argumentando comigo, erguendo uma barreira de palavras.
Eu estou dizendo que o importante em tudo isso é aprender a estar em comunhão com vós próprio, de maneira agradável, feliz, de modo que possais seguir todos os pequenos movimentos de vosso pensamento e sentimento, assim como se segue o curso de um rio. Vede a atividade de cada pensamento e sentimento, sem procurar corrigi-lo, sem dizê-lo bom ou mau, sem nenhum desses juízos simplórios, burgueses, da mente vulgar, insignificante. Observai apenas; e, no observar, sem vos identificardes com nenhum pensamento ou sentimento, agradável ou desagradável, vereis que podereis estar em comunhão com o vosso ser.
A maioria de nós deseja estar psicologicamente segura, disso fazemos questão, e, por essa razão, a família se torna um verdadeiro pesadelo; torna-se uma coisa terrível, porque dela fazemos nosso próprio meio de segurança. Em seguida, torna-se também a nação a nossa segurança e nos deixamos empolgar pelas vacuidades do nacionalismo. A família tem sua razão de ser, mas, quando nos serve como meio de segurança, é veneno mortal.
Para descobrir a verdade relativa à segurança, deveis estar em comunhão com o desejo de vos sentir seguros, profundamente arraigado em nós e que constantemente se manifesta sob diferentes formas. Busca-se a segurança, não só na família, mas também em lembranças e na dominação ou influência de outro. Recorreis à lembrança de alguma experiência ou relação que vos foi grata, que vos deu esperança, conforto, e nessa lembrança buscais abrigo. Há a segurança proporcionada pelo talento e o saber, a segurança dada pelo nome e a posição. E há a segurança proveniente de uma capacidade: sabeis pintar, ou tocar violino, ou executar outra coisa qualquer, que vos faz sentirdes seguros.
Pois bem; uma vez estejais em comunhão com o desejo que vos impele a buscar a segurança, percebendo ser esse desejo o criador da contradição (já que nada ou ninguém neste mundo pode estar em segurança); desde que o descubrais individualmente, e não mediante instrução de outrem, e após a solução do problema, ver-vos-ei fora do campo da contradição e, portanto, livre do medo.
Não sei se alguma vez ficais em íntimo recolhimento. Nesse estado de silêncio interior, quando caminhais pela rua, vossa mente está completamente serena, observando e escutando, sem pensamento. Conduzindo vosso carro, olhais a estrada, as árvores, os outros carros que passam — observais, apenas, sem reconhecimento, sem nenhuma interferência do mecanismo do pensar. Quanto mais funciona esse mecanismo, tanto mais a mente se gasta; nenhum espaço fica para a simplicidade, e só a mente simples, sã, pode perceber a Realidade.
Krishnamurti, Saanen, 16 de julho de 1964,
A mente sem medo