O problema de como resolver nossos problemas
Em nossa reunião aqui, há dias, estivemos falando sobre a necessidade de liberdade; e com essa palavra “liberdade” não me referia à liberdade fragmentária, superficial, em certos níveis de nossa consciência. Falávamos sobre a necessidade de se ser totalmente livre — livre nas raízes mesmas da mente, em todas as nossas atividades físicas, psicológicas e parapsicológicas. Liberdade supõe total ausência de problemas, não achais? Porque, quando a mente é livre, pode observar e agir com perfeita clareza; ela pode ser o que é, sem consciência de nenhuma tradição. Para mim, uma vida de problemas — econômicos ou sociais, particulares ou públicos — destrói e perverte a lucidez. E tem-se necessidade de lucidez. Necessita-se de uma mente que veja bem claro cada problema que surge, uma mente capaz de pensar sem confusão, sem condicionamento, uma mente dotada de afeição, amor, que nada tenha em comum com emocionalismo ou sentimentalismo.
Para nos acharmos nesse estado de liberdade — o qual é dificílimo de compreender e requer muita perquirição — necessitamos de uma mente não perturbada, uma mente quieta; uma mente que funcione por inteiro, não apenas na periferia, mas também no centro. Essa liberdade não é uma abstração, um ideal. O movimento da mente livre é uma realidade, e os ideais e abstrações nenhuma relação têm- com ele. Essa liberdade ocorre natural e espontaneamente — sem nenhuma espécie de coerção, de disciplina, de controle ou persuasão — ao compreendermos integralmente como surgem e findam os problemas. A mente com um problema perturbador, e que encontra meios de fugir a esse problema, continua sendo uma mente inibida, acorrentada, não livre. Para a mente que não resolve cada problema que surge, em qualquer nível que seja — físico, psicológico, emocional — não pode haver liberdade e, por conseguinte, clareza de pensar, de visão, de percebimento.
A maioria dos entes humanos tem problemas. Entendo por “problema” a renitente perturbação causada pela inadequada “resposta” a um desafio — isto é, pela incapacidade de atendermos às solicitações da vida com todo o nosso ser; ou, pela indiferença que produz uma disposição habitual para aceitar e suportar os problemas. Há um problema toda vez que deixamos de enfrentar e examinar uma situação até suas últimas consequências. Não se pode deixar isso para amanhã ou alguma data futura, pois cada situação deve ser enfrentada logo que surge, a cada minuto, a cada hora, a cada dia.
Todo problema, em qualquer nível que seja — consciente ou inconscientemente — é um fator que destrói a liberdade. Problema é tudo aquilo que não compreendemos totalmente. O problema de qualquer de nós pode ser a dor, o incômodo físico, a morte de alguém, ou falta de dinheiro; pode ser a incapacidade de descobrirmos por nós mesmos se Deus é uma realidade ou mera palavra, sem nenhuma substância. E há os problemas atinentes às relações, particulares e públicas, individuais e coletivas. A não compreensão das relações humanas, em seu todo, gera problemas; e quase todos nós temos problemas (causadores de doenças psicossomáticas) a alquebrar-nos a mente e o coração. Com essa carga de problemas, apelamos para vários meios de fuga; cultuamos o Estado, aceitamos a autoridade, recorremos a alguém para que resolva nossos problemas, atiramo-nos a uma fútil repetição de orações e rituais, entregamo-nos à bebida, aos prazeres sexuais, ao ódio, à autopiedade, etc.
Temos cultivado muito zelosamente todo um sistema de fugas — racionais ou irracionais, nervosas ou intelectuais — o qual nos permite aceitar e, por conseguinte, suportar todos os problemas humanos que surgem. Mas tais problemas produzem, inevitavelmente, confusão e a mente nunca se torna livre.
Agora, não sei se tendes o mesmo modo de sentir que eu tenho em relação à necessidade — não necessidade fragmentária, necessidade de um dia em que nos vemos subitamente obrigados a enfrentar uma certa situação, porém a necessidade absoluta (desde que começamos a refletir nessas coisas, até o fim da vida) de não se ter problema algum. Provavelmente não percebeis quanto é urgente essa necessidade. Mas, se pudermos ver com toda a clareza, concretamente — não abstratamente — que a necessidade de se estar livre de problemas é tão grande quanto a de alimento e ar puro, então, com essa percepção agimos, tanto psicologicamente, como nas ocupações da vida diária; essa percepção estará sempre presente em tudo o que fizermos, pensarmos e sentirmos.
Assim, a libertação dos problemas é a questão principal, pelo menos para esta manhã. Pode ser que tornemos a considerá-la de maneira diferente amanhã, mas isso não importa. O importante é perceber que a mente em que há conflito é uma mente destrutiva, porque está sempre a deteriorar-se. A deterioração não depende de nenhuma idade: ela se manifesta quando a mente se acha envolvida em conflito e tem muitos problemas não solucionados. O conflito é o núcleo da deterioração e da decadência. Não sei se percebeis a verdade dessa asserção. Se a percebeis, então o problema é de como resolver o conflito. Mas, primeiramente, é necessário a pessoa perceber por si própria que a mente que tem qualquer espécie de problema, em qualquer nível e de qualquer duração que seja, é incapaz de pensar com clareza, de ver as coisas como são — brutalmente, impiedosamente, sem sentimentalismos nem autopiedade.
Ora, em geral costumamos fugir logo que surge um problema, e achamos dificílimo “ficar com o problema” e observá-lo, sem interpretar, condenar ou comparar, sem tentar alterá-lo ou fazer alguma coisa em relação a ele. Isso requer plena atenção; mas, para a maioria de nós nenhum problema é tão sério que mereça toda a nossa atenção, isso porque levamos uma vida superficial e em regra nos satisfazemos com soluções fáceis e respostas prontas. Queremos esquecer o problema, afastá-lo de nós e ir vivendo com outra coisa qualquer. Só quando o problema nos atinge intimamente, como em caso de morte ou de absoluta falta de dinheiro, ou quando nos vemos abandonado por nosso marido ou nossa mulher — só então o problema pode tornar-se crítico. Mas, nunca permitimos a nenhum problema produzir uma crise real em nossa vida; temos sempre a habilidade de varrê-lo com explicações, com palavras, com vários meios de defesa de que nos servimos.
Já sabemos o que significa um problema. É uma situação que não quisemos examinar até suas últimas consequências e compreender completamente; por conseguinte, o caso não foi liquidado e fica a repetir-se indefinidamente. Para compreender um problema, precisamos compreender as contradições — as contradições extremas e também as contradições triviais de cada dia — de nosso próprio ser. Pensamos de um modo e agimos de outro; dizemos uma coisa e sentimos coisa bem diferente. Há conflito entre o respeito e o desrespeito, a rudeza e a polidez. De um lado, o sentimento de arrogância, de orgulho, de outro lado fazemos exibição de humildade. Conheceis as numerosas contradições, tanto conscientes como ocultas. Ora, como surgem essas contradições?
Como já tenho dito repetidas vezes, peço-vos escutardes não apenas o que o orador diz, mas também o vosso próprio pensamento; que observeis a maneira como se operam vossas próprias reações, e estejais cientes de vossa reação ao ser formulada aquela pergunta (como surgem as contradições?), a fim de vos familiarizardes com vós mesmo.
Quando temos um problema, quase sempre desejamos saber de que maneira resolvê-lo, o que fazer a respeito dele, como transcendê-lo, como nos livrarmos dele, ou qual é a sua solução. Nada disso nos interessa aqui. Eu quero saber como o problema surge; porque, se posso descobrir a raiz de um problema, se posso compreendê-lo de princípio a fim, terei então encontrado a solução de todos os problemas. Se posso olhar completamente um só problema, serei então capaz de compreender qualquer problema que se apresente no futuro. Assim, como surge um problema, um problema psicológico? Consideremos isso em primeiro lugar, uma vez que os problemas psicológicos pervertem todas as atividades da vida. Só quando a mente compreende e resolve um problema psicológico logo que surge, e não transporta o “registro” desse problema para a próxima hora ou dia seguinte, é só então que ela será capaz de enfrentar o próximo “caso” com renovado vigor, com clareza. Nossa vida é uma série de “desafios” e “respostas”, e devemos ser capazes de enfrentar cada desafio de maneira completa, porque, do contrário, cada momento nos trará novos problemas. Compreendeis? Todo o meu interesse é ser livre, não ter problemas — a respeito de Deus, do sexo, do que quer que seja. Se Deus se tornou para mim um problema, então não devo procurá-lo; porque, para descobrir se há Deus, um ser supremo e imensurável, deve a minha mente estar muito clara, purificada, livre, não quebrantada por nenhum problema.
Eis porque eu disse logo de início que a liberdade é necessária. Dizem-me que mesmo Karl Marx — o deus dos comunistas — escreveu que os entes humanos têm direito à liberdade. Para mim, a liberdade é indispensável — liberdade no começo, liberdade no meio, liberdade no fim — e não existe essa liberdade quando “transporto” um problema de um dia para o outro. Isso significa que, não só tenho de descobrir como surge um problema, mas também, como eliminá-lo, de modo que o problema não mais se repita, não seja transferido para mais tarde, e não se sinta nenhuma necessidade de “amanhã” refletir sobre ele e resolvê-lo. Se “transporto” o problema para o dia seguinte, estou contribuindo para que ele se enraíze; e, depois, a extirpação desse problema se torna mais um problema. Por conseguinte, tenho de “operar” pronta e radicalmente, para a completa e definitiva extinção do problema.
Estais vendo, pois, quais são os dois pontos que temos de examinar; descobrir como surge o problema (problema relativo à esposa, aos filhos, problema de falta de dinheiro, ou o problema de Deus — qualquer problema) e, também, como poderemos extirpá-lo imediatamente.
O que estou dizendo não é ilógico. Demonstrei-vos logicamente, racionalmente, a necessidade de se pôr fim ao problema e de nunca “transportá-lo” para o dia seguinte. Desejais fazer perguntas sobre o assunto?
PERGUNTA: Não compreendo porque dizeis que o dinheiro não representa problema.
KRISHNAMURTI: Para muitos, ele constitui um problema. Eu nunca disse o contrário. Notai, por favor, que eu disse que um problema é toda coisa que não compreendemos completamente, quer relacionada com dinheiro, quer com o sexo, Deus, as relações com a nossa esposa ou com alguém que nos odeia — não importa qual seja a coisa. Se tenho uma doença ou muito pouco dinheiro, isso se torna um problema psicológico. Ou pode ser o sexo que se torna um problema. Estamos investigando como surgem os problemas psicológicos, e não como proceder em relação a um dado problema em particular. Entendeis? Santo Deus! Isto é tão simples.
No Oriente, há pessoas que abandonam o mundo e peregrinam de aldeia em aldeia a esmolar. Os brâmanes da Índia estabeleceram, durante séculos, o costume de respeitar, de nutrir e vestir o homem que abandona o mundo. Para esse homem, evidentemente, o dinheiro não constitui problema nenhum; mas não estou advogando esse costume aqui! Estou, simplesmente, apontando que a maioria de nós tem problemas psicológicos. Não tendes problemas, não só de dinheiro, mas também de sexo, Deus e de vossas relações? Não tendes preocupações sobre se sois amado ou não sois amado? Se tenho muito pouco dinheiro e desejo mais, isso naturalmente se torna um problema. Tenho preocupações e ansiedades a esse respeito; ou me torno invejoso, porque vós tendes mais dinheiro do que eu. Tudo isso perverte a percepção, e são estes os problemas que ora consideramos.
Estamos interessados em descobrir como surge um problema dessa natureza. Acho que tornei suficientemente claro este ponto; ou desejais aprofundá-lo mais? Ora, por certo, um problema surge quando há em mim uma contradição. Se não há contradição em nenhum nível, não há problema algum. Se não tenho dinheiro, irei trabalhar, esmolar, pedi-lo emprestado. Farei qualquer coisa, e isso não me será difícil.
PERGUNTA: Mas, que acontece quando nada se pode jazer?
KRISHNAMURTI: Quereis dizer que não podeis fazer nada? Se possuís alguma técnica ou conhecimento especializado, podeis tornar-vos isto ou aquilo. Se sois incapaz de qualquer coisa, podeis cavar a terra.
INTERROGANTE: Depois de certa idade, um homem não pode jazer nenhum trabalho.
KRISHNAMURTI: Para esses casos, há a ajuda do governo.
INTERROGANTE: Não, senhor, não há.
KRISHNAMURTI: Então ele morre, e acabou-se o problema. Mas este é um problema vosso, minha senhora?
INTERROGANTE: Não é um problema pessoal.
KRISHNAMURTI: Então, vos referis a outra pessoa e, assim, isso não nos interessa. Estamos falando aqui a vosso respeito, como ente humano que tem problemas, e não sobre algum parente ou amigo.
INTERROGANTE: Não há ninguém que olhe por ele, senão eu. Como posso vir aqui escutar-vos, deixando-o sem nenhuma assistência?
KRISHNAMURTI: Não venhais, então.
INTERROGANTE: Mas, eu quero vir.
KRISHNAMURTI: Então não façais disso um problema.
PERGUNTA: Quereis dizer que numa situação incômoda ou embaraçosa, como, por exemplo, falta de dinheiro, podemos sobrepor-nos a essa situação?
KRISHNAMURTI: Não. Vede, já me tomastes a dianteira querendo resolver o problema. Quereis saber como proceder com o problema, e ainda não cheguei aí. Só formulei o problema, e não o que a seu respeito se deve fazer. Quando alguém diz que devemos elevar-nos acima do problema, ou pergunta o que se pode fazer por um parente ou amigo, velho, e sem dinheiro — percebeis o que essa pessoa está fazendo? Está fugindo ao fato. Um momento, escutai o que estou dizendo. Não aceiteis nem rejeiteis o que digo — escutai-o apenas. Não tendes vontade de enfrentar o fato — que sois vós, com o vosso problema, e não outrem. Se resolverdes vosso próprio problema de ente humano, ajudareis a outro (ou não o fareis, conforme o caso) a resolver o seu. Mas, no momento em que vos passais para o problema de outro, perguntando “Que devo fazer?” — assumistes uma posição em que não se pode dar nenhuma resposta e, por conseguinte, torna-se existente uma contradição.
Não sei se está tudo claro.
INTERROGANTE: Sou sem instrução em virtude de uma incapacidade da infância, e isso tem sido para mim um problema medonho toda a vida. Como resolvê-lo?
KRISHNAMURTI: Tendes uma terrível preocupação de resolver problemas, não é verdade? Eu não a tenho. Sinto muito. Logo de início eu vos disse que não me interessava resolver problemas, nem vossos, nem meus. Não sou vosso protetor ou guia. Sois vosso próprio instrutor e vosso próprio discípulo. Aqui estais para aprender, e não para perguntardes a outro o que deveis e o que não deveis fazer. A questão não é sobre o que se deve fazer por um inválido, ou por alguém que não tem dinheiro suficiente, ou que é iletrado, etc. etc. Aqui estais para aprender de vós mesmo a respeito dos problemas que tendes, e não para serdes instruído por mim. Portanto, não me coloqueis nessa posição falsa, porque eu não quero instruir-vos. Se o fizesse, me tornaria um guia, um guru, e iria aumentar as numerosas inutilidades com que se explora o próximo já existentes no mundo. Estamos aprendendo, não mediante estudo, porém mantendo-nos vigilantes, despertos, autoconscientes; nossa relação, por conseguinte, difere completamente da relação de mestre e discípulo. Este orador não vos está instruindo, nem dizendo o que deveis fazer — isso seria completa imaturidade.
PERGUNTA: Quando somos incapazes de ver tudo o que um problema envolve, como poderem os penetrar até à raiz desse problema e resolvê-lo?
KRISHNAMURTI: Tão ansiosos vos mostrais por descobrir o que se deve fazer, que ainda não me destes oportunidade de entrar nessa questão. Escutai por alguns minutos, se vos apraz. Não vou dizer-vos o que deveis fazer em relação a vossos problemas. Vou apontar-vos como aprender, e o que é aprender; e vereis então que, ao compreenderdes um problema, o problema termina. Mas se apelais para alguém, pedindo-lhe que vos diga o que deveis fazer acerca de um problema, vos tornareis como uma criança irresponsável, cujos passos são guiados por outro, e tereis mais problemas ainda. Isto é verdadeiro e simples, e, assim sendo, peço-vos de uma vez por todas que lhe deis acolhida em vossa mente e em vosso coração. Aqui estamos para aprender e não para sermos instruídos. Ser instruído é confiar à memória o que se ouve de outro; mas a simples repetição, de memória, não traz a solução de problemas. Só há maturidade no efetivo aprender. O uso do conhecimento, daquilo que foi aprendido meramente de memória, como meio de resolver os problemas humanos, procede da falta de maturidade, e só pode criar mais padrões, mais problemas.
O simples desejo de resolver um problema é uma fuga aos problemas, não achais? Não penetrei o problema, não o estudei, não o explorei, não o compreendi. Não conheço a beleza, ou a fealdade, ou a profundidade do problema; minha única preocupação é resolvê-lo, afastá-lo de mim. Esta ânsia de resolver um problema, sem o ter compreendido, é uma fuga ao problema; por conseguinte, torna-se mais um problema. Toda fuga gera novos problemas.
Pois bem; tenho um problema que desejo compreender completamente. Não desejo fugir dele, não desejo “verbalizar” a seu respeito, não quero falar a outro sobre ele; só quero compreendê-lo. Não estou esperando que ninguém me diga o que devo fazer. Sei que ninguém pode dizer-me o que devo fazer; e que, se alguém o fizesse e eu aceitasse sua instrução, isso constituiria um ato fútil e absurdo. Assim, tenho de aprender sem ser instruído e sem fazer uso da lembrança do que aprendi acerca de anteriores problemas, para atender ao problema presente. Oh, não percebeis a beleza disso!
Sabeis o que significa viver no presente? Parece-me que não, infelizmente. Viver no presente é não ter continuidade nenhuma. Mas isso é coisa de que trataremos noutra ocasião.
Tenho um problema, e desejo compreendê-lo, aprender a respeito dele. Para tanto, não posso trazer as lembranças do passado e, com a ajuda delas, ocupar-me com o problema; porque o problema novo exige uma maneira nova de estudá-lo, e não posso aplicar-me a ele com minhas lembranças mortas, estáticas. O problema é algo atuante, e, portanto, tenho de ocupar-me dele agora. Por conseguinte, o elemento tempo deve ser totalmente afastado.
Desejo descobrir como surgem os problemas — os problemas psicológicos. Como disse, se compreendo toda a estrutura causadora dos problemas e fico, em consequência, livre de criar problemas para mim mesmo, saberei então como agir em relação ao dinheiro, ao sexo, ao ódio, em relação a tudo na vida; e, no lidar com essas coisas, não irei criando novos problemas. Tenho, assim, de descobrir de que modo surge o problema psicológico, e não qual a maneira de resolvê-lo. Entendeis? Ninguém me pode dizer como surge o problema; eu próprio tenho de compreender isso.
Enquanto estou “explorando” dentro em mim, o mesmo deveis fazer em vós, e não ficar apenas ouvindo minhas palavras. A menos que ultrapasseis as palavras e olheis a vós mesmos, as palavras de nada vos servirão; tornar-se-ão meras abstrações, e nunca uma realidade. A realidade é o movimento de vossa própria investigação descobridora, e não a indicação verbal desse movimento.
Está bem claro, até aqui?
Para mim, como disse, a liberdade é da mais alta importância. Mas a liberdade de modo nenhum pode ser compreendida, se não há inteligência; e a inteligência só pode vir ao compreendermos, individualmente, as causas dos problemas. A mente deve estar alertada, atenta, num estado de supersensibilidade, de modo que cada problema seja resolvido assim que se apresenta. De outro modo não há liberdade verdadeira; só há uma liberdade periférica, fragmentária, sem nenhum valor. Isso é o mesmo que um homem rico dizer que é livre. Santo Deus! Ele é um escravo da bebida, do sexo, do conforto, de dúzias de coisas. E o homem pobre que diz: “Sou livre, porque não tenho dinheiro” — esse tem outros problemas. A liberdade, pois, e a manutenção dessa liberdade, não pode ser uma mera abstração: ela deve constituir para vós, como ente humano, uma necessidade absoluta, porque é só quando existe a liberdade que podeis amar. Como podeis amar se sois ganancioso, ambicioso, competidor?
Não concordeis, senhores; assim, estais-me deixando fazer sozinho todo o trabalho.
Eu não tenho interesse em resolver o problema ou em procurar alguém que me diga como resolvê-lo. Nenhum livro, nenhum guia, nenhuma igreja, nenhum sacerdote me pode dizer. Há milênios que nos entretemos com essas coisas, e continuamos carregados de problemas. O frequentar a igreja, a confissão, a oração — nada disso resolverá nossos problemas, que apenas continuam a multiplicar-se, como atualmente está acontecendo. Assim, de que modo surge um problema?
Como já disse, quando não há contradição interior, não há problema algum. A contradição envolve conflito do desejo. Mas o desejo em si não é contraditório. Por certo, o que cria a contradição são os objetos do desejo. Porque pinto quadros, escrevo livros, ou por qualquer coisa estúpida que faço, desejo ser famoso, aplaudido. Quando ninguém me reconhece os méritos, há uma contradição e fico em estado lastimoso. Tenho medo da morte, que não compreendi; e nisso a que chamo “amor”, há contradição. Vejo, pois, que o desejo é o começo da contradição — não o desejo em si, mas os objetos do desejo são contraditórios. Se tento mudar ou negar os objetos do desejo, dizendo que me aterei a uma só coisa e a nada mais, essa coisa, por sua vez, se torna também um problema, porque tenho de resistir, erguer barreiras a tudo o mais. Assim, o que devo fazer não é meramente mudar ou reduzir os objetos de meu desejo, porém compreender o desejo em si.
Direis, talvez: “Que relação tem tudo isso com o problema”? — Pensamos ser o desejo que cria o conflito, a contradição; e eu estou apontando que não é o desejo, porém os objetos ou alvos contraditórios do desejo que criam a contradição. E nenhuma vantagem há em tentar ter um só desejo. Isso é fazer como o sacerdote, que diz: “Só tenho um desejo, o desejo de alcançar a Deus” e que tem uma infinidade de desejos, dos quais nem sequer está consciente. Cumpre, pois, compreender a natureza do desejo, e não tratar meramente de controlá-lo ou negá-lo. Diz a literatura religiosa que não se deve ter desejo, mas sim, destruir o desejo — o que é uma falta de sentido. É preciso compreender como o desejo surge e o que lhe dá continuidade — e não como fazê-lo terminar. Compreendeis o problema? Pode-se ver como o desejo surge; isto é muito simples.
Há a percepção, o contato, a sensação (sensação mesmo sem contato) e da sensação resulta o começo do desejo. Vejo um carro, suas linhas, sua forma, sua beleza me atraem, e eu o desejo. Mas, destruir o desejo significa ficar insensível a tudo. Quando sou sensível, já estou no “mecanismo” do desejo. Vejo um belo objeto, ou uma bela mulher — o que quer que seja — e dá-se o despertar do desejo; ou vejo um homem de extraordinária inteligência, integridade, e quero ser também assim. Da percepção vem a sensação, e da sensação o começo do desejo. É isso o que verdadeiramente acontece; não há nada complicado na coisa. A complexidade só começa quando o pensamento entra em cena e dá o desejo de continuidade. Penso no carro, na mulher, ou no homem inteligente, e desse pensamento o desejo recebe continuidade. De outro modo ele não continua. Posso olhar o carro, e não passa disso. Entendeis? Mas, no momento em que penso no carro, tem então o desejo continuidade e começa a contradição.
PERGUNTA: Pode haver desejo sem objeto?
KRISHNAMURTI: Tal coisa não existe. Não há desejo abstrato.
PERGUNTA: Então, o desejo está sempre relacionado com um objeto. Mas dissestes que temos de compreender o mecanismo do desejo em si, e não nos preocuparmos com o seu objeto.
KRISHNAMURTI: Senhor, eu mostrei como o desejo nasce, e como, por meio do pensamento, lhe damos continuidade.
Sinto muito, mas temos de parar agora. Continuaremos na próxima quinta-feira.
Krishnamurti, Saanen, 14 de julho de 1964,
Experimente um novo caminho