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sábado, 21 de abril de 2018

O pensamento impede a integral comunhão do amor


O pensamento impede a integral comunhão do amor

Há, a meu ver, vasta diferença entre mudança e mutação. A mera mudança não conduz a parte alguma. Uma pessoa pode tornar-se superficialmente adaptável, muito hábil no ajustar-se aos diferentes ambientes e circunstâncias sociais, e existem várias formas de pressão interior e exterior; mas a mutação requer um estado mental bem diferente. Nesta manhã desejo salientar a diferença entre estas duas coisas.

Mudança é alteração, reforma, substituição de uma coisa por outra. Mudança implica ato de vontade, consciente ou inconsciente. E, considerando-se a confusão, a miséria, a opressão, a extrema aflição existente em toda a Ásia subdesenvolvida, torna-se evidente a necessidade de uma mudança radical, revolucionária. Há necessidade, não só de mudança física ou econômica, mas também de mudança psicológica — mudança em todos os níveis de nosso ser, exteriores e interiores, a fim de se proporcionar uma melhor existência ao homem. Isso é óbvio, e até os mais extremados conservadores o admitirão. Mas, ainda que o reconheçamos, em regra não consideramos profundamente a questão da mudança e tudo o que ela encerra. Qualquer ajustamento, substituição, reforma, é de ação profunda, ou consiste meramente num polimento superficial, numa “limpeza”, na moralidade das relações humanas? Penso que devemos compreender plenamente o que está implicado nesse mecanismo de mudança, antes de examinarmos o que considero mutação.

A mudança, embora necessária, me parece sempre superficial. Entendo por mudança todo movimento operado pelo desejo ou pela vontade, toda iniciativa concentrada numa dada direção, visando a uma certa atitude ou ação bem definida. Toda mudança, evidentemente, tem atrás de si um motivo. Esse motivo pode ser pessoal ou coletivo, manifesto ou remoto; pode ser um motivo bondoso, generoso, ou um motivo de medo, desespero; mas qualquer que seja a natureza ou o nível do motivo, a iniciativa ou movimento resultante desse motivo produz uma certa mudança. Isso me parece claro. Em geral somos suscetíveis, individual e coletivamente, de modificar nossas atitudes, sob influência, pressão, e também quando aparece alguma invenção nova que direta ou indiretamente influi em nossa vida. Podemos ser levados a mudar nossos pensamentos, orientá-los em diferente direção, por um artigo de jornal ou pela propaganda que se faz de uma ideia. A religião organizada empenha-se em educar-nos, desde a infância, numa certa forma de crença, condicionando-nos assim a mente, e, pelo resto da vida, toda mudança que operamos fica dentro dos limites “modificados” dessa crença.

Assim, são raros os que mudam, a não ser com um motivo. O motivo poderá ser altruísta ou interesseiro, limitado ou amplo; poderá ser o medo de perder uma recompensa, ou de não atingir um certo e prometido estado para o futuro. O indivíduo se sacrifica à coletividade, ao Estado, a uma ideologia, ou a determinada forma de crença em Deus. Tudo isso implica uma certa mudança, consciente ou inconscientemente produzida.

Pois bem; a chamada mudança é uma "continuidade modificada” do que já existia, e nessa suposta mudança nos tornamos muito hábeis. Estamos constantemente fazendo novas descobertas na Física, na Ciência, na Matemática, inventando coisas novas, preparando-nos para ir à Lua, etc. etc.

Em certos aspectos tornamo-nos extraordinariamente “sabidos”, bem informados; e essa espécie de mudança envolve capacidade de ajustamento ao novo ambiente, às novas pressões que ela cria. Mas, basta isso? Pode-se perceber tudo o que determina essa superficial modalidade de mudança. Entretanto, sabemos, interiormente, profundamente, ser necessária uma mudança radicalmudança não produzida por nenhum motivo ou como resultado de pressão. Percebemos a necessidade de mutação na própria raiz da mente, pois, sem ela, somos apenas uma horda de macacos habilíssimos e dotados de extraordinárias aptidões — e não autênticos entes humanos.

Percebendo-se isso, profundamente, em nós mesmos, que cumpre fazer? Vemos que se necessita de uma mudança revolucionária, de completa mutação na raiz mesma de nosso ser, porque, do contrário, nossos problemas, tanto econômicos como sociais, irão crescendo inevitavelmente, e se tornando cada vez mais críticos. Necessita-se de uma mente nova, fresca — e, para a termos, deve operar-se, na totalidade de nossa consciência, uma mutação não produzida por ato de vontade e, portanto, sem motivo.

Não sei se me estou expressando claramente.

Percebendo a necessidade de mudança, pode uma pessoa exercer a vontade, a fim de produzi-la — sendo “vontade” o desejo fortalecido, em dada direção, pela determinação e posto em movimento pelo pensamento, pelo medo, pela revolta. Mas toda mudança dessa ordem — mudança produzida pela ação do desejo, da vontade — é sempre limitada. É uma “continuidade modificada” do que era antes, como se pode ver pelo que está ocorrendo no mundo comunista, e também nos países capitalistas. Necessita-se, pois, de uma revolução extraordinária, de revolução psicológica no ente humano, no próprio homem; mas, se ele tem um alvo, se sua revolução é planejada, está ainda dentro dos limites do “conhecido” e, por conseguinte, não constitui mudança nenhuma.

Eu posso mudar, posso forçar-me a pensar de outro modo, a adotar um diferente sistema de crenças; posso suprimir um dado hábito, livrar-me do nacionalismo, reformar meu raciocínio, fazer eu próprio a “lavagem” de meu cérebro, em vez de deixá-la para ser feita por um partido ou igreja. Tais mudanças são muito fáceis de operar em mim mesmo; mas percebo sua total inutilidade, porquanto são superficiais e não conduzem à compreensão profunda que deve orientar-nos na vida. Assim, que fazer?

Compreendeis minha pergunta? Acho que fui claro.

Se faço um esforço para mudar, esse esforço tem motivo, significando isso que o desejo inicia um movimento em certa direção. Aí está em ação a vontade, e, por conseguinte, qualquer mudança que seja produzida é uma simples modificação — não é uma mudança real, absolutamente.

Vejo claramente que preciso mudar, e que essa mudança deve ocorrer sem esforço. Todo esforço para mudar anula-se a si próprio, uma vez que supõe a ação do desejo, da vontade, em conformidade com um padrão, uma fórmula, um conceito preestabelecido. Assim sendo, que fazer?

Não sei se sentis como eu a relevância desta questão — o quanto ela nos interessa, não só no sentido intelectual, mas, principalmente, como um fator essencial em nossa vida. Há milhões de anos vem o homem fazendo um esforço incessante para mudar, entretanto continua envolto em aflições, desespero, medo, só tendo raros e fugidios clarões de alegria e deleite. E como pode essa entidade, que há tanto tempo vem sendo fortemente condicionada, alijar sua carga sem nenhum esforço? Esta a pergunta que estamos fazendo a nós mesmos. Mas, “o lançar fora a carga” não deve tornar-se mais um problema; porque, como antes indiquei, problema é algo que não compreendemos, algo que não temos capacidade para examinar até o fim e liquidar de uma vez.

Para se produzir essa mutação — “produzir”, não, esta é uma expressão errônea; a mutação é uma necessidade e tem de verificar-se agora. Introduzindo-se o tempo como fator de mutação, o tempo cria o problema. Não há amanhã, não há tempo nenhum em que eu irei mudar — sendo o tempo pensamento. Isso tem de acontecer agora ou nunca. Compreendeis?

Percebo a necessidade dessa mudança radical em mim, ente humano, parte integrante da humanidade; e percebo, também, que o tempo, que é pensamento, não deve representar nisso um fator. O pensamento não deve representar nisso um fator. O pensamento não pode resolver este problema. Venho exercendo o pensamento há milhares de anos e, no entanto, não mudei. Continuo com meus hábitos, minha avidez, minha inveja, meus temores, e me vejo ainda todo enredado no padrão de competição da existência. Foi o pensamento que criou o padrão; e o pensamento não pode, em circunstância alguma, alterar esse padrão sem criar outro padrão — sendo o pensamento tempo. Portanto, não posso contar com o pensamento, com o tempo, para operar a mutação, a mudança radical. Não pode haver exercício da vontade, e não se pode deixar o pensamento orientar a mudança.

Que me resta, então? Vejo que o desejo, que é vontade, não pode operar em mim uma verdadeira mutação. O homem vem trabalhando nisso há séculos e nele não se produziu nenhuma mudança fundamental. Tem-se servido, também, do pensamento para produzir mudança em si próprio — pensamento como tempo, pensamento como amanhã, com todas as suas exigências, invenções, pressões, influências — e, como vemos, ainda não houve nenhuma transformação radical. Que fazer, pois?

Ora, uma vez compreendida, em sua totalidade, a estrutura e o movimento da vontade, esta deixa de atuar; e, percebendo-se que o emprego do pensamento, do tempo, como instrumento de mudança, não passa de mero adiamento, termina então o mecanismo do pensar. Mas, que queremos exprimir ao dizer que percebemos ou compreendemos uma coisa? A compreensão é meramente intelectual, verbal, ou significa que se está vendo uma coisa como fato? Posso dizer que “compreendo” — mas a palavra não é a coisa real. A compreensão intelectual de um problema não é a solução desse problema. Ao compreendermos uma coisa apenas verbalmente (e isso é o que chamamos compreensão intelectual), a palavra importa muito; mas, havendo verdadeira compreensão, ela perde toda a importância, sendo então simples meio de comunicação. Há contato direto com a realidade, o fato. Se percebemos como um fato a futilidade da vontade, e também a futilidade do pensamento, ou do tempo, no produzir essa radical transformação, então a mente (que rejeitou toda a estrutura da vontade e do pensamento) nenhum instrumento tem com que iniciar a ação.

Bem, até agora vós e eu temos estado em comunicação, e talvez tenhamos também estabelecido entre nós uma certa comunhão. Mas, antes de prosseguirmos, considero importante compreender o que entendemos por comunhão. Se alguma vez andastes entre as árvores de uma floresta, ou pela margem de um rio, e sentistes a quietude, tivestes o sentimento de estar vivendo completamente com todas as coisas, com as pedras, com as flores, com o rio, com as árvores, com o céu — sabereis então o que é comunhão. O “eu” — com seus pensamentos, suas ânsias, seus prazeres, lembranças, desesperos — cessou completamente. Não existis como observador separado da coisa observada; há só aquele estado de completa comunhão. E espero que seja esta a comunhão aqui estabelecida entre nós. Ela não é um estado hipnótico; o orador não vos está hipnotizando, para pôr-vos nesse estado. Explicou certas coisas com todo o cuidado, Mas há algo mais, que não pode ser explicado verbalmente. Até um certo ponto podeis ser informados pelas palavras do orador, mas ao mesmo tempo cumpre ter em mente que a palavra não é a coisa, e que ela não deve interferir na direta percepção do fato. Quando comungais com uma árvore — se alguma vez o fazeis — vossa mente não está ocupada com a espécie dessa árvore, ou a respeito de sua utilidade ou não utilidade. Estais em comunhão direta com a árvore. Analogamente, deve-se estabelecer esse estado de comunhão entre vós e o orador, porque vamos passar agora a um assunto dos mais difíceis de tratar verbalmente.

Como disse, a ação da vontade, e a ação do pensamento como tempo, e o movimento que é iniciado por influência ou pressão de qualquer natureza, cessaram de todo. A mente, por conseguinte, que de fato observou e compreendeu tudo isso, está completamente quieta. Ela não é a iniciadora de qualquer movimento, consciente ou inconsciente. E isso, também, é algo que precisa ser considerado, antes de podermos ir um pouco mais longe.

Conscientemente, podereis não desejar atuar em nenhuma direção determinada, porque já observastes a futilidade de toda espécie de mudança calculada, da mudança promovida pelo comunista ou pelo mais reacionário conservador. Vedes quanto tudo isso é fútil. Mas, interiormente, inconscientemente, há o tremendo peso do passado a impelir-vos numa certa direção. Estais condicionado como europeu, como cristão, como cientista, como matemático, como artista, como técnico; e há a milenar tradição (muito zelosamente explorada pela igreja) que instilou no inconsciente certas crenças o dogmas. Podeis, conscientemente, rejeitar tudo isso, mas, incutis cientemente, o seu peso continua existente. Sois ainda cristãos, inglês, alemão, francês; sois ainda movido pelos interesses nacionais, econômicos, familiais, e pelas tradições da raça a que pertenceis, e, quando se trata de raça antiquíssima, mais profunda ainda é sua influência.

Ora, como eliminar tudo isso? Como purificar o inconsciente, imediatamente, do passado? Creem os analistas que o inconsciente pode ser expurgado, em parte ou no todo, por meio da análise mediante investigação, exploração, a confissão, a interpretação dos sonhos, etc., — de modo que qualquer um pode tornar-se pelo menos um ente humano “normal”, capaz de ajustar-se ao atual ambiente Mas, na análise, há sempre o analista e a coisa analisada, um observador a interpretar a coisa observada — e isso representa uma dualidade, fonte de conflito.

Vejo, pois, que a mera análise do inconsciente a nenhuma parte conduz. Poderá ajudar-me a ser menos neurótico, mais amável com minha mulher, meu próximo — ou outra superficialidade semelhante; mas não é disso que estamos falando. Percebo que o processo analítico (que implica tempo, interpretação, movimento do pensamento que analisa, como observador, a coisa observada) não pode libertar o inconsciente; por conseguinte, rejeito completamente o mecanismo analítico. Assim que percebo esse fato, que a análise não pode, em circunstância nenhuma, afastar o fardo do inconsciente estou fora da análise. Já não analiso. Assim, que aconteceu? Não havendo analista separado da coisa analisada, o próprio analista é essa coisa. Não é uma entidade à parte. Descobre-se, então, que o inconsciente é de pouca importância. Percebeis?

Estive mostrando quanto é trivial o consciente, com suas atividades superficiais, sua perene tagarelice, etc.; e o inconsciente é também trivial. O inconsciente, como o consciente, só se torna importante quando o pensamento lhe dá continuidade. O pensamento tem seu lugar próprio, sua utilidade em assuntos técnicos, etc., mas o pensamento é de todo em todo fútil, quando se trata de operar aquela radical transformação. Se percebo ser o pensamento que dá continuidade ao pensador, termina essa continuidade.

Espero estejais seguindo o que estou dizendo, que requer muita atenção.

O consciente, ou o inconsciente, pouco significam. Eles só se tornam importantes quando o pensamento lhe dá continuidade. Ao perceberdes a verdade de que todo o “mecanismo do pensar” é uma reação do passado e não pode, de modo nenhum, atender à enorme necessidade de mutação, então, tanto o consciente como o inconsciente perdem toda a importância, e a mente deixa de ser influenciada ou impelida por qualquer dos dois. Por conseguinte, já nenhuma iniciativa toma; fica completamente quieta, tranquila, silenciosa. Embora ciente da necessidade de mutação, revolução, de completa e radical transformação de nosso ser, a mente nenhum movimento inicia, em qualquer sentido; e, nesse total percebimento, nesse silêncio completo, opera-se a mutação. A mutação, pois, só pode verificar-se de uma maneira não “diretiva”, isto é, quando a mente nenhum movimento inicia e, por conseguinte, permanece inteiramente tranquila. Nessa tranquilidade há mutação, porque a raiz de nosso ser, ficando exposta, estiola-se. Esta é a única revolução real (e não a revolução econômica ou social) e não pode ser feita pela vontade ou pelo pensamento. Só naquele estado de mutação, pode-se perceber o imensurável, algo de supremo, acima de toda tecnologia e todo reconhecimento.

Espero não tenhais adormecido! Quereis fazer perguntas?

PERGUNTA: Até onde tenho experimentado, o pensamento me condena ao isolamento, porquanto me impede a comunhão com as coisas que me cercam , e também de penetrar as raízes de meu ser. Por conseguinte, pergunto: Porque pensam os entes humanos? Qual a função do pensamento? E porque tanto exageramos a importância do pensar?

KRISHNAMURTI: Supus que isso já tivesse ficado para trás. Está bem, senhor, vou explicar.

Escutar meramente uma explicação não é ver o fato, e não podemos estar em comunhão por meio de uma explicação, a menos que ambos vejamos o fato e não o toquemos, isto é, nos abstenhamos de nele interferir. Então, estamos também em comunhão com o fato. Mas, se interpretais o fato de uma maneira e eu o interpreto diferentemente, não estamos em comunhão nem com o fato nem entre nós.

Ora, como surge o pensamento — o pensamento que isola, que não dá amor, o único meio de comunhão? E, como pode terminar esse pensamento? O pensamento — a totalidade do mecanismo do pensamento tem de ser compreendido, e essa própria compreensão é o seu fim. Examinemos isso.

Surge o pensamento, como reação, quando há um “desafio”. Se nenhum desafio houvesse, vós não pensaríeis. O desafio pode ter a forma de uma pergunta, trivial ou importante, e conforme a pergunta “respondemos”. No intervalo de tempo entre a pergunta e a resposta, começa o mecanismo de pensamento, não é verdade? Se me perguntais alguma coisa com que estou bem familiarizado, minha resposta é imediata. Se me perguntais onde moro, por exemplo, não há intervalo de tempo, porque não tenho de pensar nisso, e imediatamente respondo. Mas, se vossa pergunta é mais complexa há um intervalo (durante o qual fico rebuscando na memória) entre vossa pergunta e minha resposta. Podeis perguntar-me qual a distância entre a Terra e a Lua, e eu digo: “Será que sei alguma coisa a este respeito? Ah! se i...” — e, então, respondo. Entre vossa pergunta e minha resposta há um intervalo de tempo, durante o qual a memória se põe em funcionamento, fornecendo, por fim, a resposta. Assim, quando sou “desafiado”, minha “resposta” pode ser imediata ou pode necessitar de algum tempo. Se me perguntais algo a cujo respeito nada sei, o intervalo é muito mais longo. Digo: “Não sei, mas vou verificar”; e, não encontrando a resposta entre as coisas guardadas na memória, apelo para alguém, a fim de obter a informação, ou procuro-a num livro. Também aqui, durante esse longo intervalo, o “mecanismo de pensamento” está em função. Essas três fases nos são bem familiares.

Pois bem; há uma quarta fase que talvez desconheçais ou nunca tenhais encadeado às outras, e que é a seguinte: Vós me fazeis uma pergunta, e eu realmente não sei a resposta. Minha memória não tem registro dela, e eu não estou contando que outra pessoa me dê a resposta. Não tenho resposta nenhuma, e nenhuma expectativa. Com efeito, eu não sei. Não há intervalo de tempo e, por conseguinte, não há pensamento, porque a mente não está à procura de nada, nem esperando nada. Este estado é, com efeito, uma negação completa, um estado livre de todas as coisas que a mente tem conhecido. E só então o novo pode ser compreendido — sendo o novo o Supremo, ou outra qualquer palavra que preferirdes. Nesse estado, cessou todo o mecanismo do pensamento; não há observador nem coisa observada, não há experimentador nem coisa experimentada. Toda experiência cessou, e nesse silêncio total há completa mutação.

Krishnamurti, Saanen, 19 de julho de 1964,
A mente sem medo

quinta-feira, 19 de abril de 2018

Na mutação mental está o ser humano real

[...] O pensamento não pode, em circunstância nenhuma, cultivar a compaixão. Não estou empregando a palavra "compaixão" para designar o oposto, a antítese do ódio ou da violência. Mas, se cada um de nós não tiver um profundo sentimento de compaixão, tornar-nos-emos cada vez mais brutais e desumanos, uns para com os outros. Teremos mentes mecânicas, semelhantes a computadores, exercitadas unicamente para executar certas funções; continuaremos a buscar a segurança física e psicológica, e perderemos a extraordinária profundeza e beleza, o significado integral da vida.

Falando de compaixão, não me refiro a uma coisa adquirível. Compaixão não é a palavra — mera coisa do passado — porém algo que está no presente ativo; ela é o verbo, e não a palavra, o nome, ou substantivo. Há diferença entre o verbo e a palavra. O verbo é do presente ativo, enquanto a palavra é sempre do passado e, por conseguinte, estática. Podeis dar vitalidade ou movimento ao nome, à palavra, mas isso não é o mesmo que o verbo, sempre ativamente presente. Não estou, absolutamente, empregando o termo "presente" no sentido "existencialista".

Em geral, vivemos num ambiente de agressão, violência, brutalidade e, como os que nos rodeiam, somos impelidos pela ambição, pelo impulso a preencher-nos. Qualquer talento que tenhamos - qualquer insignificante capacidade para pintar quadros, escrever poesias, etc. — exige "expressão", e desta fazemos uma coisa de enorme importância, por meio da qual esperamos conquistar glória ou renome. Em graus diferentes, tal é a vida de todos nós, com todas as suas satisfações, frustrações e desesperos.

Ora, a mutação deve verificar-se na própria semente do pensamento, e não nas expressões exteriores dessa semente; e isso só acontecerá se compreendermos o inteiro mecanismo do pensamento — que é a palavra, a ideia. Tomai, por exemplo, uma palavra: "Deus". A palavra "Deus" não é Deus; e só alcançaremos essa imensidade, essa coisa imensurável, qualquer que ela seja, quando já não existir a palavra, o símbolo, quando já não houver crença nem ideia — quando houver completa independência da segurança.

Referimo-nos, pois, a uma mutação que se deve operar na própria mente, na própria semente do pensamento. Como vimos há dias ao examinarmos esta questão, o que chamamos pensamento é reação, é a "resposta" da memória, a "resposta" de nosso fundo, de nosso condicionamento religioso e social; ele (o pensamento) reflete a influência de nosso ambiente, etc. etc. Enquanto não se extinguir aquela semente, não haverá mutação e, por conseguinte, não haverá compaixão. Compaixão não é sentimentalidade, não é aquela "mole" comiseração ou "empatia" que conhecemos. A compaixão não é cultivável pelo pensamento, pela disciplina, pelo controle, pela repressão, e tampouco pelo sermos amáveis, corteses, gentis, etc. A compaixão só começa a existir quando o pensamento deixou, radicalmente, de existir. Se estais ouvindo esta asserção pela primeira vez, ela poderá não ter significação para vós. Direis: "Como terminar o pensamento?", ou "Que acontecerá à mente que for incapaz de pensar?" Fareis inúmeras perguntas. Mas, já nos estendemos sobre este assunto, já o examinamos suficientemente, embora, talvez, sem entrarmos em minúcias.

O que desejo examinar nesta manhã é a questão relativa à observação do "ego", do "eu". Mas, primeiramente, precisamos compreender o que significa "observar", para em seguida examinarmos o que significa esta palavra — "eu". Considerai a palavra "observação". Que significa ela? Em regra, observamos coisas mortas, coisas passadas, coisas acabadas. Nunca observamos uma coisa viva, em movimento, ativa.

Por favor, enquanto falo, enquanto explico, não vos deixeis enredar na explicação, na palavra, porém observai a vós mesmo; notai como vós vedes, como vós observais. O que agora vai ser considerado é muito importante, e será muito difícil compreendê-lo, se se não compreender primeiramente a beleza da observação.

Em geral, observamos com o "senso" de concentração, isto é, de destacar a coisa observada da contextura da qual faz parte. Há (para nós) "observador" e "coisa observada", e, por conseguinte, surge o conflito entre o observador e a coisa observada — a luta para eliminá-la ou modificá-la; ou, ainda, a pessoa se identifica com aquilo que foi observado, o que inevitavelmente acarretará outros problemas. Tal observação é meramente um mecanismo de análise, a respeito do qual já falamos. É isso o que na generalidade fazemos — analisamos aquilo que observamos. Eu desejo saber, desejo compreender essa entidade extremamente complexa, essa consciência que sou eu próprio, e digo: "Observarei a mim mesmo". E, fazendo-o, fico "olhando" um único pensamento, separadamente do mecanismo total do pensamento. Isso é como observar aquele rio recolhendo numa taça um pouco d'água, e olhá-la separadamente do movimento pleno, do fragor e da força da própria corrente. Para observarmos a corrente, devemos prestar atenção a cada onda que se forma, por mais Insignificante que seja, prestar atenção à curva que descreve essa onda antes de quebrar-se na margem do rio; temos de mover-nos juntamente com aquelas águas extraordinariamente rápidas. Na observação, não há tempo para interpretarmos, não há tempo para dizermos que isto é correto e aquilo errado, que isto é belo, e aquilo feio, que isto deve ser e aquilo não deve ser. Não há censor; quando se observa uma coisa que se move, uma coisa tão vital como aquele rio, não pode de modo nenhum haver um censor, um juiz. Só há censor, juiz, quando separamos uma pequena porção da água do rio, para a olharmos.

Assim, por favor, compreendei bem claramente que, no momento em que separamos uma coisa da contextura de que faz parte, a fim de observá-la, damos nascimento ao censor e, por conseguinte, apresenta-se o conflito, a palavra, todo o “mecanismo de verbalização”, com seu preenchimento e a agonia da frustração. Vós vos separais da coisa que estais observando e, depois, dizeis: "Estive observando a mim mesmo e vi que sou isto, que sou aquilo e aquilo outro, mas não tenho possibilidade de ir mais longe." É óbvio que não, porquanto se trata das observações de um observador exterior, que se separou da corrente, do movimento, da celeridade do pensamento. Se isto não está claro, examiná-lo-emos no fim desta palestra.

Observar a si mesmo, sem conflito, é como seguir a corrente, antecipando-se às cataratas, antecipando-se aos movimentos de cada onda, por mais insignificante, vendo cada seixo que faz a onda quebrar-se. Isto não é teoria. Estou apreciando a questão "cientificamente", objetivamente; não me estou fazendo sentimental, nem formulando ideias ou hipóteses; estou sendo realista. Quando tiverdes apreendido realmente o profundo significado da observação, descobrireis que o próprio mecanismo de observar, de ver, é o fim do conflito, porque se eliminou a separação entre o observador e a coisa observada; apagou-se completamente esta divisão e, por conseguinte, não estais observando o pensamento como entidade separada. Vós sois esse pensamento, e não um pensador que observa o pensamento. Quando estais verdadeiramente seguindo algo que é muito vivo, muito rápido, algo que está em espantoso movimento, não tendes tempo para julgar, para avaliar, para condenar, ou para vos identificardes com essa coisa. Ela é tão dinamicamente vital, que não tendes tempo — e isto é importante — não tendes tempo para verbalizá-la, dar-lhe nome, aplicar-lhe um termo — tudo isso funções separativas.

Assim, se está compreendido isto, examinemos essa coisa complexa chamada "ego" — que é o "eu", o campo da consciência. Estamos tratando de descobrir se é exato — e não apenas uma ideia minha ou vossa — que, para se promover uma completa mutação, uma revolução total na consciência, o pensamento nenhuma interferência pode ter nisso.

O pensamento não é compaixão; seria totalmente absurdo pensar tal coisa. Não se pode cultivar a compaixão, tampouco o amor. Não importa o que façais, não podeis "produzir" amor com a mente, não podeis "fabricá-lo" com o pensamento. Ora, pode-se observar os movimentos tanto conscientes como inconscientes dessa entidade total chamada "ego", tendo-se sempre em mente que o tempo não existe? Tempo é a palavra. No momento em que dizeis: "Isto é cólera", "Isto é ciúme", "Isto é mau" — já separastes a coisa de vós mesmo e estais olhando para uma coisa morta; por conseguinte, não estais observando a vós mesmo. E, se não conhecerdes a vós mesmo, tudo o que vos diz respeito, vosso pensamento não tem razão de ser; em todo movimento de pensamento, em toda ação, estais meramente funcionando às cegas, qual uma máquina. A maioria de nós não pensa de maneira completa, porém fragmentariamente; o que num nível pensamos, é contrariado noutro nível por nosso pensamento. Sentimos uma coisa num dado nível, e a negamos noutro nível, de modo que nossa ação diária é também contraditória, fragmentária, e essa ação gera conflito, aflição, confusão.

Notai, por favor, que tudo isso são evidentes fatos psicológicos e que para os compreenderdes não necessitais de ler um único livro de psicologia ou de filosofia, porque tendes o livro dentro em vós, o livro composto pelo homem através dos séculos.

Estamos, pois, não apenas tratando da ação, mas também da compaixão; porque a ação encerra a compaixão. A compaixão não é uma certa coisa separada da ação, não é uma ideia à qual se ajusta a ação. Tende a bondade de olhar isso, de considerá-lo atentamente, porque, para a maioria de nós, a ideia é importante, e dela nasce a ação. Mas a ideia separada da ação gera conflito. A ação inclui a compaixão; não está apenas no nível tecnológico, ou no nível das relações entre marido e mulher ou entre o indivíduo e a comunidade, porém é um movimento total de nosso ser inteiro. Refiro-me à ação total, e não à ação fragmentada. Quando houver observação, e, por conseguinte, não houver observador — sendo "observador" a ideia, a palavra — e começardes a compreender toda essa complexidade chamada "ego", "eu", conhecereis então essa ação total, e não a ação separativa, fragmentária, em que há conflito.

Não sei se estais compreendendo.

Qual o significado do meu falar? Vós estais ai sentados, e eu falando. Qual o significado disso? Eu não estou falando para me preencher. Não é meu métier, meu ganha-pão. Porque, então, estou falando? Porque estais escutando, e o que é que estais escutando? Vós e eu estamos fazendo juntos uma viagem, para descobrirmos o que é o fato, o que é a Verdade — não uma ideia abstrata da Verdade, uma palavra separada do fato, porém o fato real. Vê-se o estado catastrófico em que se acha o mundo, e sente-se a necessidade de uma tremenda revolução, de completa mutação da mente, de modo que o ente humano seja um verdadeiro ente humano — um ente livre de problemas, livre do sofrimento, ente que viva uma existência plena, rica, completa, e não seja a criatura torturada, coagida, condicionada, que ora é. Eis porque falo, e espero que pela mesma razão me estejais escutando.

Agora, que significa observar, digamos, o movimento da ambição? Estou tomando para exemplo a ambição, como uma das coisas feias de nossa vida — ainda que alguns dentre vós a possam achar bela. Que significa observar a estrutura, a anatomia da ambição (não a palavra, porque a palavra não é a coisa)? A palavra "árvore" não é a árvore. Podeis dizer "Sim, com efeito"; mas, psicologicamente, quando observamos em nós mesmos a ambição, imediatamente nos identificamos com esse estado, com essa palavra, e nela ficamos enredados. É fácil perceber que a palavra "árvore" não é a árvore; mas é outra questão muito diferente observardes em vós mesmos, sem a palavra, esse estado extraordinário chamado "ambição". Esse estado é formado em vós, em vosso pensamento, em vosso próprio ser, pela sociedade, pelo ambiente em que viveis, por vossa educação, pela Igreja, pelo agressivo esforço humano, através de séculos incontáveis, para realizar, avançar, matar, etc. E o importante é observar em vós mesmos esse estado, não só agora em que dele estamos falando, mas também observá-lo quando a caminho do escritório, quando ledes no jornal o elogio de um certo herói ou homem bem sucedido. Se o observardes (esse estado) sem lhe dardes nome, vereis que não é uma coisa estática, porém um movimento não identificado com a palavra e, por conseguinte, não identificado com o nome, com vossa pessoa; e se o observardes com intensidade, com certa celeridade, transcendereis a ambição. Ela terá perdido sua importância — e, todavia, podereis estar totalmente em ação. Mas, é dificílimo observarmos esse estado em nós mesmos, olharmos o pensamento sem o "observador", sem o "pensador" que o observa.

A observação não exige nenhuma acumulação de conhecimento, ainda que o conhecimento seja obviamente necessário, num certo nível: o conhecimento do médico, o conhecimento do cientista, o conhecimento da História, de todos os fatos passados. Afinal de contas, isto é conhecimento: estar informado sobre os acontecimentos passados. Não há conhecimento do amanhã; só podeis conjeturar a respeito do que poderá acontecer amanhã, baseado em vosso conhecimento do passado. A mente que observa com o conhecimento é incapaz de acompanhar com rapidez a corrente do pensamento. Só pelo observar sem o crivo do conhecimento, começareis a ver a estrutura total de vosso próprio pensar. E, nesse observar — que não significa condenar ou aceitar, porém simplesmente observar — vereis que o pensamento terminará. A casual observação de um pensamento não conduz a parte alguma. Mas, se observardes o mecanismo do pensar, sem vos tornardes um observador separado da coisa observada; se perceberdes o inteiro movimento do pensamento, sem aceitá-lo nem condená-lo — então, essa própria observação dará fim imediato ao pensamento — e a mente, por conseguinte, se tornará compassiva, se achará num estado de constante mutação.

Krishnamurti, Saanen, 14 de julho de 1963,
Experimente um novo caminho


quarta-feira, 11 de abril de 2018

A totalidade do mecanismo do conflito


A totalidade do mecanismo do conflito

Se me permitis, continuarei com o assunto de que está­ vamos tratando em nossa reunião de sexta-feira passada. Dizíamos então que era sumamente importante adotarmos uma nova maneira de pensar e, também, que era de toda a necessidade uma nova maneira de viver, neste mundo que se tornou tão superficial, com crescentes problemas e a constante perspectiva de tremendos perigos. Não denotamos perceber — principalmente neste país — quão grave é o problema. Aqui, achamo-nos em relativa segurança; talvez estejamos muito corrompidos, mas temos segurança. Temos nossos problemas: o nacionalismo se intensifica, enquanto noutros países está sendo repudiado; temos ainda líderes, quando noutros países os estão rejeitando; temos também a autoridade da posição, enquanto noutros países a autoridade está sendo posta em dúvida. Aqui muito se fala de religião, mas, na realidade, não somos religiosos, absolutamente; vivemos, como qualquer outro, superficialmente, interessados apenas em ganhar dinheiro, ter êxito, progredir, divertir-nos, como todos os demais habitantes deste mundo, embora falemos em alto som a respeito de Deus, etc.

Nessas condições, parece-me de essencial necessidade o advento de uma nova mentalidade. Não deixareis de reconhecer quanto é urgente essa necessidade, se observardes as condições mundiais, a geral superficialidade, os êxitos mecânicos, o progresso técnico, as tremendas influências postas em ação. Se observamos ainda mais atentamente essas condições, penetrando-as com certa profundeza, não podemos deixar de ver que é indispensável uma nova mentalidade. E essa nova qualidade não pode ser criada por nenhuma espécie de progresso técnico. Cumpre perceber isso bem claramente. E, se me permitis desejo estender-me mais um pouco sobre o que estava dizendo na última sexta-feira.

Como sabeis, vós sois o resultado do passado, de muitos dias que ficaram para trás. Sois o resultado de vosso ambiente, da sociedade em que fostes educados, da propaganda chamada religião que há séculos vem sendo instilada em vós. Podeis falar muito eloquentemente sobre as ideias religiosas e a influência ocidental na mente oriental, na vossa mente; mas tudo isso continua a ser muito perfunctório. Percebendo bem isso, qualquer pessoa verdadeiramente séria não pode deixar de perguntar a si própria: Para onde nos está levando tudo isso, qual a finalidade disso? Ao fazerdes com toda a seriedade esta pergunta, podereis retornar ao vosso condicionamento e responder que tudo “dará certo”, que se trata apenas de uma temporária mutação pela qual o homem está passando, e que no fim desta confusão tudo sairá certo, porque há Deus, porque há Justiça, Beleza, Amor. Mas tudo isso são só palavras sem muita significação. O homem faminto não se satisfaz com palavras: ele quer comida. Se fizerdes seriamente aquela pergunta a vós mesmo, vereis que, como já salientamos, sois o resultado do passado — o autêntico resultado — e que não há nada novo.

Toda tentativa para alcançar o novo é realmente uma reação do “velho”, projeção de uma certa parte do velho, sendo “o velho” a religião em que fostes criado, o meio cultural, a influência da família, da tradição, etc. Assim, não há nada novo. E, entretanto, as circunstâncias da vida — a crise atual, a presente confusão, miséria, sofrimento, fome — exigem o aparecimento de uma nova mentalidade; não de uma nova ordem de ideias, pois não se necessita de novas ideias ou ideais, porém, antes, de “um novo acesso à vida”, de todo diferente. E esse “novo acesso” não é de modo nenhum questão de tempo. Isto é, precisamos de mutação, de imediata transformação, de uma nova qualidade mental, para produzir uma ação de qualidade diferente, novos valores.

E como irá efetuar-se essa mutação? Era sobre isso que estávamos tentando falar na última sexta-feira, e desejo prosseguir com este tópico. Estivemos dizendo que é importante compreender um fato: o fato de que estamos imitando, de que estamos em busca de êxito, de que somos ambiciosos — que releva vermos esse fato. Porque o próprio ato de ver o fato produz a mutação. O próprio ato de ver uma certa coisa como um fato, sem emitir opinião, nem julgamento, sem condenação, produz o necessário ímpeto, a energia que operará a mutação. Talvez a maioria de vós não compreenda o significado desse ver, desse escutar. E desejo apreciar esse ponto, porquanto, para mim, o ato de ver, o ato de escutar constitui o único meio, o único instrumento que operará uma revolução, a transformação da mente.

Em maioria desejamos o bom êxito. Vou falar a esse respeito, a fim de ajudar-vos a ver o fato — não para o rejeitardes, não para o aceitardes: ajudar-vos a vê-lo, simplesmente. Em regra se adora o sucesso, o sucesso neste mundo; ou, também, desejamos ser bem sucedidos psicologicamente. E para se ser bem sucedido tem de haver imitação, cópia, continuidade do que foi. E, se observardes a vós mesmo, vereis ser isto o que desejais: sucesso; não só neste mundo, mas também interiormente aspirais a um resultado. E esse desejo de resultado implica, por certo, a observância de certo padrão, não é verdade? E quando tendes de observar um padrão, não há possibilidade de transformação fundamental. Todo afastamento do padrão gera medo. E, a fim de evitar o medo, seguis as linhas traçadas pela autoridade, e obedeceis a essa autoridade — que poderá ser o Gita, ou o líder político, ou o guru, ou quem quer que seja — a fim de terdes êxito, para estardes livres de perturbações, evitardes todo e qualquer conflito, sempre tendo em mente um resultado satisfatório, que represente um “sucesso”.[...]

Por que razão todos nós admitimos o conflito como parte da existência? Por que aceitamos o conflito como coisa essencial à vida? Se observardes vossa própria vida, vereis que estais em conflito, não só com vosso próximo e o mundo, mas também psicologicamente; interiormente vos achais num conflito muito maior. Não sabeis o que fazer. Ou, se sabeis o que deveis fazer, vós o fazeis; e o resultado é um problema, é sofrimento, atrito, luta. Tudo isso, como sabemos, é conflito; e estamos sempre procurando evitar esse conflito, fugir dele. Isso é um fato. Não estou tentando dizer-vos como ser livre de conflito — mostrar-vos o caminho, a via de fuga. A fuga, a coisa para a qual fugimos, se torna muito mais importante do que o próprio conflito. Essa coisa — bebida, vossa igreja, vossos deuses, sexo, poder, ambição — se torna importante; tudo isso representa uma fuga do fato de que estais em conflito. Eis a realidade. Por favor, vede esse fato; vede-o no sentido que dou à palavra “ver”; não negueis, não digais: “Que devo fazer com esse fato?”, “Como poderei fugir dele?”; vede o fato de que estais em conflito e de que há esse impulso a fugir do conflito. E que, depois de fugirdes, a coisa para a qual fugistes se torna de suma importância. Vossa religião, vosso nacionalismo, vosso guru, os ideais, os santos — tudo isso são fugas do fato central de que vos achais em conflito, de que vos achais em sofrimento.

Ora, como surge o conflito — não apenas os pequenos conflitos da vida diária, mas também os profundos conflitos interiores, os conflitos inconscientes e conscientes, que ficaram sem solução? Como surge esse conflito? Notai mais uma vez que não deveis aceitar nem rejeitar isso, mas, sim, verificar se o orador está dizendo a verdade, verificar — não concordar — se estais em conflito. Se estais realmente apercebido de vossas próprias condições, deveis ficar apercebido de estardes em conflito. Estais em conflito; por quê? Há conflito, porque há contradição. Quereis fazer uma certa coisa e ao mesmo tempo desejais fazer o oposto dela; isso é uma contradição, como o é o amor e o ódio, o ser ambicioso e ao mesmo tempo fingir-se não ambicioso, o desejar ser rico e simultaneamente fazer o mesmo jogo do político simulando pobreza. Há o fato, “o que sois”, e a ideia de “o que deveríeis ser”; o fato do que realmente é e a ideia do que deveria ser — uma contradição. Sois educado na ideia do que “deveríeis ser”, e de que não deveis enfrentar o fato. Sois educados para serdes não violentos e nunca enfrentardes o fato de que sois violentos. É o que se vem ensinando neste país há anos e anos: que deveis ser não violentos que deveis ser idealistas. E os ideais se tornam mais importantes do que “o que é”. Assim, entre o que é e o que deveria ser abre-se um vão, e o esforço para lançar uma ponte sobre esse vão gera conflito. Observai a vós mesmo. Estou apenas pondo em palavras aquilo que constitui o fato real.

É assim que surge a contradição; da contradição surge o conflito e, depois, vem o esforço. Gostamos de fazer esforços. Para nós o esforço é muito importante. Tudo o que fazemos é resultado de esforço. Isso é um fato. É o que estamos acostumados a fazer. Por que devemos forcejar?

Não é possível viver-se neste mundo sem esforço algum? Só podeis responder a esta pergunta se compreenderdes a totalidade do mecanismo do conflito, tanto exterior como interiormente — conflito entre nações e entre as pessoas, exteriormente; e o conflito, a profunda ansiedade interior. E, quando há conflito, há esse esforço para dominá-lo. Por conseguinte, o conflito surge por causa da contradição. E havendo contradição, com os sofrimentos, as agitações e ansiedades que a acompanham, há o impulso para se fazer esforço a fim de dominar esse conflito; e neste círculo ficamos presos. E todo o nosso interesse se concentra em fugirmos desse fato, resultando, daí, consequentemente, mais conflito — mais esforço em nossas práticas religiosas, com o fim de disciplinar, de moldar, compelir, renunciar, obedecer. Dessa maneira, nossa mente nunca se acha quieta, nunca é capaz de olhar qualquer coisa, de escutar qualquer coisa plenamente, completamente. Ela está sempre agitada.

E como pode a mente agitada compreender o que quer que seja? A vida é uma coisa imensa que precisa ser compreendida. A vida não é simplesmente exercer emprego, gerar filhos, não é meramente sexo, meramente prosperidade; a vida não é uma série de êxitos, não é o preenchimento de ambições; ela é muito mais do que tudo isso. A vida é também investigação, para descobrir se há ou se não há Deus, algo que se encontra além das palavras; para descobrir se o amor existe; descobrir como enfrentar e compreender o desespero, o sentimento de culpa, o imenso sofrimento, a ansiedade jacente no coração do homem. Tudo isso é a vida. E, para compreendê-la, necessita-se de uma mente serena, não uma mente talada pelo conflito, pela agitação.

E que acontece quando nos vemos frente a frente com tudo isso? Volvemos ao passado, ou recorremos a um certo livro, uma certa autoridade; e pensamos ter compreendido toda essa enorme complexidade seguindo uma certa fórmula absurda, ou o Gita, ou um guru, este ou aquele livro. Mas, para compreenderdes essa imensidade é necessário uma revolução em vossa mente — não revolução econômica e social, porém, sim, mutação da qualidade da mente. Essa mutação não pode ser efetuada por volição, porque, quanto mais recorrerdes ao passado, tanto mais condicionamento haverá e, por conseguinte, nenhuma possibilidade de mutação. Vede pois o fato — que é tudo isso — vede quanto nos tornamos mecanizados.

A virtude perdeu seu significado, pois qualquer um pode tornar-se virtuoso com ingerir certas substâncias químicas. Não sei se tendes visto tudo o que se está passando no mundo. A pessoa pode tomar uma pílula e tornar-se tranquila. A tranquilidade, portanto, perdeu sua significação. Podeis tomar um comprimido, um preparado químico, para vos tornardes menos irritadiço, menos ciumento, menos rancoroso, etc. Se sois sexualmente apaixonado, podeis tomar uma pílula e acalmar o amor. Perderam, pois, as virtudes o seu significado. E os computadores, os cérebros mecânicos, essas extraordinárias máquinas eletrônicas estão-se encarregando de pensar por nós; e, de fato, se desempenham de suas tarefas bem melhor ido que o homem. E a ‘'automatização” — máquinas que farão funcionar outras máquinas — está também prestes a surgir. Estamo-nos tornando — não só aqui na Índia, mas também no resto do mundo — muito superficiais, porque nos estamos mecanizando. Considerando-se tudo isso, que são fatos e não invenções minhas, os deuses já nada significam, as religiões perderam toda a sua importância; e estamos na expectativa de iminentes perigos. O futuro é desconhecido; o que tendes é unicamente o passado, e nada mais — o passado, constituído pelo que conheceis, pelo que aprendestes, o passado relativo à bomba atômica, à vossa tradição, etc. etc. Eis o que tendes. Vossa mente é só isso, e nada mais.

Ora, como operar, dessa base, aquela extraordinária mutação, aquela revolução radical? Este é que é o verdadeiro problema. Espero tenhais compreendido a pergunta; não se trata de “o que se deve fazer”. Devemos primeiramente compreender a pergunta e seu verdadeiro significado. Vede, senhores, vós ledes o Gita, sois cristãos, budistas, maometanos ou o que mais seja. O que faz a diferença não é o que o Gita diz, mas o que realmente sois; não são vossos turbantes e casacos, vossa erudição e saber, mas o que sois. Se isso vos é retirado, resta-vos apenas o passado, algo que já existiu, algo que conhecestes, enfim, o mecanismo do passado. E tudo o que fizerdes com base no passado condicionará o futuro e, por conseguinte, será ainda o passado.

Vede, por favor, a importância do que se está dizendo. Se fizerdes qualquer esforço para operar a mutação — e essa mutação é absolutamente necessária no mundo atual — esse impulso provirá do passado e, por conseguinte, condicionará a mutação, que, portanto, já não será mutação, e, sim, meramente, um prolongamento do passado. O que verdadeiramente nos interessa é a mutação, uma mente nova, capaz de perceber a totalidade da existência, e não simplesmente uma parte dela. Houve tempo em que vos diziam, neste país, que não devíeis ser provincialistas, separando-vos do resto da nação; e é estranho constatar que agora vos estais tornando nacionalistas, mas continuais divididos. O que vos deve interessar é o todo da vida; não a Índia, os hindus ou os budistas, mas o homem, o futuro do homem, a mente do homem, de que também fazeis parte. Assim, ao perceberdes esse fato, esse percebimento deve obrigar-vos a indagar fundamentalmente. Mas, se procurardes resposta para aquela pergunta, a resposta procederá do passado; assim, deveis fazer a pergunta sem procurar resposta. E isso é dificílimo: limitar-se a fazer a pergunta, e investigar.

Nosso problema, portanto, é este: Há necessidade de uma radical revolução interior, na mente, na consciência. Ao verificar-se essa revolução, ela atuará na esfera social e econômica, e de forma singular. Ora, como promover essa revolução? Estou empregando a palavra “como”, não para sugerir um método, um sistema— pois, se tendes algum método ou sistema, isso faz parte ainda do passado; estou empregando-a apenas como meio de investigação e não como meio de oferecer um sistema. Como promover essa revolução?

Em primeiro lugar, para se viver plenamente, para se ver claramente qualquer coisa, é preciso que não haja conflito de espécie alguma; por conseguinte, deve haver compreensão de todo o problema da contradição — e isso significa investigar, observar as operações da própria mente e ver que qualquer forma de ambição, de ordem externa ou interna, produz contradição. Sempre que há preenchimento pessoal, sempre que há impulso para o preenchimento — impulso para ser isto ou não ser aquilo — nesse próprio desejo de preenchimento há contradição, ou seja, frustração. Deste modo, a ambição, o sucesso, o preenchimento implicam frustração, e da frustração resulta conflito. Tudo isso são fatos psicológicos, e não invenções minhas. Se vos observardes, verificareis serem esses os fatos que estão ocorrendo.

Assim, a mente que está procurando compreender o que a mutação implica já deixou de ser ambiciosa. Perguntareis, então: Como pode essa mente viver neste mundo — este mundo feito de conflito, de ambição, de crueldade, em que cada um só cuida de si — como pode a mente não ambiciosa viver neste mundo? Não pode. Por conseguinte, quando tiverdes compreendido e abandonado completamente a ambição, vereis que podereis viver sem os preceitos da velha sociedade, pois tereis criado um novo mundo. Compreendeis, senhores, o que estamos dizendo? Um novo mundo precisa vir à existência. E não podereis criar um novo mundo, se apenas dizeis: “Tenho de ajustar-me, para viver neste mundo”. Vós tendes de destruir esta sociedade, para criardes um mundo novo. Não estou falando da destruição de construções, porém da destruição dos valores sociais. E isso não desejais fazer, porque temeis; por conseguinte, novamente vos vedes envolvido em conflito.

Tendes, pois, de ver com clareza que, havendo ambição de qualquer espécie, há também conflito, sofrimento. Mas, como sabeis, somos criados na ambição, na competição. Todo escolar é ensinado a competir. Ensina-se-lhe a adorar o êxito. E como rejeitareis todo esse padrão, o padrão em que fostes educado? Vós o rejeitareis quando perceberdes a importância de rejeitá-lo, quando estiverdes enfrentando uma crise. E a crise atual reclama uma mente nova. É o que ela reclama, e não uma maneira de reformar o velho padrão. Assim, uma vez apercebido da crise, uma, vez apercebido de tudo o que a ambição implica, após terdes penetrado a fundo em vós mesmo para descobrirdes a fonte da ambição — porque sois ambicioso, porque há competição, luta, ânsia de posição, de prestígio pessoal — depois de terdes compreendido toda a anatomia da ambição, ou ficareis com a ambição e suas crueldades, ou saireis dela. E o homem que “saiu” dela cria uma mente nova, um pensar de nova qualidade.

Assim, o que deveras nos interessa é perceber a importância dessa profunda revolução interior e descobrir se ela é possível, ou não, a cada um de nós. A época a exige, as circunstâncias também, vossa própria vida a impõe; e o extraordinário nisso é que não há tempo. Não podeis dizer: “com o tempo eu mudarei, acumularei a energia necessária para efetuar a mutação”. O tempo não vos dá energia. O tempo vos rouba energia; envelheceis, definhais. O que vos dá energia para investigar profundamente é o enfrentar o fato, simplesmente enfrentar o fato, qualquer que seja ele. E vereis que, do enfrentar o fato, nasce a energia. Ela não nasce da negação do fato; esta nunca dá energia. E vós necessitais de tremenda energia, porque não só é necessário enfrentar e compreender as trivialidades da vida, mas é necessário também ultrapassá-las. Há ainda outra coisa mais significativa e que requer toda a vossa atenção: Precisais descobrir por vós mesmo, não por meio de palavras, porém realmente, se alguma coisa existe além dos limites da mente, algo chamado o Imensurável, que transcende a morte, as palavras, o pensamento. Se não descobrimos isso, a vida se torna bem superficial, mecânica; e ela é então toda de sofrimentos e agitações. E para o descobrirdes, necessitais de imensa energia.

Mas essa energia só pode vir quando compreendida a “qualidade de ver”, a “qualidade de escutar”, quando a pessoa é capaz de olhar os fatos, olhar o próprio ciúme, a própria ambição, olhar as próprias paixões e todos os absurdos de que se cercou e a que chama “religião”. E quando temos a capacidade de enfrentar esses fatos e de não reagir, desse enfrentar resulta energia. E é essa qualidade de energia que opera a mutação. E só então a mente se torna algo extraordinário; já não é produto do ambiente, já não é produto da experiência. Fica então apta a renovar-se constantemente; passa a ter aquela qualidade denominada juventude, inocência. E ela necessita dessa qualidade que é a inocência, a perfeita humildade, a fim de descobrir o que se acha além das palavras, além do pensamento, além do tempo.

Krishnamurti, Nova Déli, 28 de janeiro de 1962, A mutação Interior


domingo, 8 de abril de 2018

A importância de uma radical revolução religiosa


A importância de uma
radical revolução religiosa

Acho que, se pudermos compreender o problema da frustração, teremos uma mentalidade que não será meramente intelectual, mas uma atividade “integrada”. Nossas religiões, nossas atividades sociais estão baseadas na frustração e no sofrimento. Se pudermos compreender esta questão da frustração, que é realmente o problema da dualidade, talvez possamos, por nós mesmos e como indivíduos, chegar àquela ação criadora que não é uma simples capacidade ou talento, mas uma ação totalmente diversa. Se pudermos esclarecer esta questão da dualidade e do conflito entre “o que é” e “o que deveria ser”, talvez então compreendamos a mente que é sem raiz, pois a mente da maioria de nós tem raiz.

A própria existência da mente indica — não é verdade? — pensamento com raiz no passado. Esta raiz é que cria a dualidade. É possível não dar continuidade a essa raiz, no presente ou no futuro? Só a mente sem raiz pode ser verdadeiramente religiosa e, portanto, capaz da transformação radical que possibilitará o despontar da realidade. Desejo examinar esta questão, aparentemente um: pouco difícil; mas, se pudermos fazê-lo de maneira simples, não filosoficamente, então talvez estejamos aptos a apreciá-la e compreendê-la por nós mesmos. Mas a dificuldade consiste em que nós, em geral, já lemos tanta coisa sobre este problema da dualidade; conhecemos o problema de acordo com alguma filosofia, algum instrutor, não o conhecemos diretamente, porém, sem que nos tenham chamado para ele a atenção. Se pudermos examinar o problema da dualidade, não intelectual ou filosoficamente, mas observando as atividades de nossa própria mente, enquanto estou falando, talvez então possamos apreciar o problema de maneira diferente. Se puderdes escutar, não a descrição que eu faço, mas as atividades de vossa própria mente, desde o começo de minha descrição ou “verbalização”, isso será então uma experiência direta e, portanto, muito mais vital e significativa do que o mero descobrimento, em todos nós, de um mecanismo dual, apontado por algum filósofo, algum instrutor religioso ou algum livro. Entretanto a dificuldade é que os que aqui estão escutando já chegaram a alguma conclusão ou já ouviram o que eu disse antes e sua mente, por conseguinte, está cheia das cinzas da memória das minhas afirmações; por essa razão, não haverá uma experiência nova, uma coisa real, viva. Os que aqui estão, pela primeira vez só poderão achar enigmático o que estou dizendo, pois é provável que eu empregue palavras com um significado diverso daquele a que estão habituados. Mas, conhecendo-se todas as dificuldades suscitadas pelas cinzas da memória, pela experiência e pelo conhecimento prévios, bem como pela circunstância de se estar aqui pela primeira vez, ouvindo coisas tão altamente “filosóficas” e difíceis — e portanto repelindo-as — temos de escutar com uma mente nova. E não pode nascer essa mente nova, se não observardes o vosso próprio mecanismo de pensamento, desde o momento em que eu começo a falar a respeito deste problema da frustração e da dualidade.

Não vos estou dizendo coisas e, sim, apontando fatos. Vós e eu podemos compreender o fato, apreciá-lo sem condenação, sem julgamento, observá-lo com simplicidade, e estar inteiramente apercebidos dele — não como o observador a observar, mas percebendo o que de fato está acontecendo, “experimentando” realmente o mecanismo pelo qual a mente cria a dualidade e faz nascer a frustração, mecanismo em que estão baseadas nossa cultura, nossas religiões, nossas atividades sociais. Se pudermos compreender esse mecanismo, descobriremos o que é a verdadeira liberdade.

A dificuldade é que a maioria de vós considera estas minhas palestras como conferências, coisas para serem ouvidas e lembradas, coisas que vos proporcionarão muitas experiências, sensações, excitações emocionais. Mas tal não é a intenção, absolutamente, pelo menos de minha parte. O mais importante é que se tenha a revolução religiosa, uma transformação religiosa radical, fundamental, porque todas as outras modificações são sem significação, todas as outras revoluções só redundam em novos sofrimentos. Se pudermos perceber a verdade desta asserção, perceber a importância de uma revolução religiosa radical, e que só ela poderá promover uma modificação nas nossas relações com todos os homens, estão estas palestras não serão um simples meio de excitamento ou divertimento intelectual ou emocional, mas algo de verdadeira significação em nossa vida diária. Por conseguinte, temos de ouví-las como se fosse a primeira vez que as ouvimos, isto é, num “estado de novo”; esse “estado de novo” não poderá existir se não observardes a vossa própria mente, desde o momento em que eu começo a falar, a penetrar o problema.

O problema é o problema da luta, do conflito, da luta incessante entre “o que eu sou” e “o que deveria ser”, e conflito entre “o que é” e “o que poderia ser. A mente está sempre e sempre a forcejar, a lutar, acomodar, ajustar, controlar, em conformidade com “o que deveria ser”. Isto é tudo o que sabemos. “O que deveria ser” é para nós mais importante do que “o que é”. Temos esses padrões ideológicos a que o espírito se está constantemente ajustando. Esse ajustamento é ação da vontade, mediante compulsão, persuasão. E daí resulta luta, e a luta produz frustração. Isto não é simplificação exagerada, é o que de fato acontece com cada um de nós: “eu sou isto, e no futuro deverei ser aquilo”. Mas o futuro, o que deveria ser, o ideal, é um oposto, uma contradição do que é. A mente percebe que eu odeio e diz “devo amar”; a mente, por isso, fica perenemente ocupada em ajustar-se, forçar-se, disciplinar-se, para alcançar um estado a que eia chama amor. Eu não conheço o amor, mas a minha mente está perseguindo o que ela pensa ser o amor, e que é só uma ideia, o oposto daquilo que eu sou. A projeção de uma ideia do que seja o amor não é o amor e, sim, uma reação daquilo que eu sou, que é: “eu odeio”. Na minha luta para apoderar-me daquele amor, eu sou violento e tenho a ideia da não violência; e, assim, faço exercícios, disciplino, controlo, moldo a minha vida, segundo aquela ideia, aquele padrão, mas nunca chego a preencher o padrão. Isso acontece porque, quando o alcanço, logo a minha mente inventa outro padrão. E assim prossegue, a mudar de padrão continuamente. Por essa razão, a minha vida é uma série de frustrações, sofrimentos e lutas por uma coisa após outra. É, pois, a minha vida uma sucessão de lutas e desditas, que é só o que eu conheço.

O importante não é “o que deveria ser” mas “o que é”. “O que é”, o que eu conheço, este é que é o fato. A outra coisa não existe. Se minha mente puder dar toda a atenção ao que é, sem criar o oposto, descobrirá então o que é o amor — não o amor como oposto do ódio. Mas o problema de compreender o que é o ódio requer percebimento sem condenação. Porque, no momento em que o condeno, estou odiando, já criei o oposto. Espero esteja expondo a questão com clareza e simplicidade. Quando se pode ver essa coisa, isto, com efeito, é uma extraordinária libertação de todas as frustrações que temos criado. Somos um povo infeliz; nossa religião é infeliz, sendo produto da infelicidade, da luta, da frustração; nossos deuses e até a nossa cultura resultam dessa frustração. Temos, pois, de compreender, não apenas verbalmente, intelectualmente, mas mui profundamente o fato que diz respeito ao que “eu sou”, “o que é”. O fato é este: “eu odeio; eu seu violento” — só isso. Mas a mente não quer aceitar esse fato e, por essa razão, cria o oposto; isto é, condena o fato, criando, assim, o oposto. Essa condenação é justamente o mecanismo de criação da dualidade. Mas se eu puder perceber que a minha mente condena e que pela condenação eu crio o oposto e, portanto, dou origem à luta, essa própria compreensão do fato de que a condenação cria o oposto e, conseguintemente, o conflito, esse próprio percebimento põe fim ao mecanismo da condenação — não pela compulsão, mas simplesmente pelo percebimento do fato. Tenho, pois, diante dos olhos só o fato de que odeio, sem nenhuma projeção mental do oposto.

Compreendeis, senhores, que liberdade extraordinária é esta, quando não temos nenhum oposto? Pode-se então apreciar o fato. E então a coisa que eu chamava “ódio” — visto que não a condeno mais — já não é ódio. Mas eu condeno o ódio e desejo transformá-lo em amor, porque minha mente tem sua raiz cravada no passado. Essa avaliação é o julgamento proveniente do passado; e com esse “fundo” é que eu aprecio o ódio e desejo transformar esse ódio naquilo que chamo amor; isso produz conflito, luta, com todas as suas disciplinas, controles e supostas meditações.

Ora, pode haver um estado livre do passado? Pode haver um estado livre do pensamento que se projeta no futuro? Eu odeio; esse ódio é o resultado do passado, uma reação; e o pensamento, então, o condena, e o projeta no futuro, assim formulado: “devo amar”. Eis como o pensamento se enraíza no passado e no futuro, tornando-se contínuo; e nessa continuidade há a luta para prosseguir, na forma do oposto. O que estou procurando averiguar é se a mente pode em algum tempo ser totalmente livre, e não ter raiz alguma. Quando a mente tem raiz, ela tem de “projetar-se”, estender-se; esse estender-se é o oposto; por isso o pensamento é contínuo, nunca chega a um fim; ele é a continuidade de meu condicionamento, do meu “fundo”, estendida para o futuro; e por essa razão não há liberdade. Estou procurando averiguar se é possível a mente achar-se num estado em que se não esteja enraizando mediante as experiências. Sem se achar naquele estado, a mente não é livre, vendo-se sempre em conflito. Por conseguinte, para a mente que tem raiz, há sempre frustração; e, não importa qual seja a sua atividade — social, cultural, religiosa — essa atividade é sempre produto da frustração; não é, por conseguinte, a verdadeira transformação religiosa, em que há a cessação de todas as projeções do pensamento que se enraízam na mente.

Pode a mente existir, sem raiz alguma? O mais que se pode fazer é averiguar, ver se a mente pode existir sem raiz — viver, existir, como o mar, sem raiz alguma, sem estar firmada num determinado lugar, numa determinada experiência, num determinado pensamento. Senhor, só a mente que não tem raiz pode conhecer o Real. Porque, no momento em que a mente experimenta e instala a experiência na memória, esta memória se torna a raiz, o passado; e esta memória, então, fica a pedir mais e mais experiências; por esta razão, há a constante frustração do presente. A frustração implica — não é verdade? — a condenação do estado da mente, tal como ela é. A mente, tal como é, está cheia da tradição, do tempo, de lembranças, ódio, ciúme. Pode-se compreender essa mente, sem condenação — isto é, sem se criar o oposto? No momento em que condenamos “o que é”, não o compreendemos. A compreensão do que é só pode ocorrer quando não há condenação; só então se pode estar livre do que é. Para mim, a mente que não tem a luta da dualidade é que é a mente verdadeiramente religiosa, e não a que está lutando para vencer a cólera, não a mente que está lutando para se tornar não violenta; esta só está vivendo na luta do oposto. É só a mente verdadeiramente religiosa que não tem o conflito do oposto; ela não conhece a frustração; não luta para se tornar alguma coisa; é “o que é”. Com a compreensão do que ela realmente é, a mente já se não está enraizando na memória.

Tende a bondade de escutar o que estou dizendo, não importa se verdadeiro ou falso — procurai descobrir o fato por vós mesmos. A mente que tem continuidade na memória, estará sempre frustrada, estará sempre a lutar para ser algo. “Vir a ser” é enraizar-se — numa ideia, numa pessoa, num objeto. Quando a mente se enraíza, surge o problema: “Como poderá ela libertar-se?”. A sua libertação assume então a forma do oposto, e daí resulta a luta para achar a maneira como libertá-la. Se se perceber, porém, se se compreender, se se estiver apercebido de como a mente está sempre a enraizar-se em cada experiência, em cada reação, então, nesse percebimento, não há escolha, não há condenação, por conseguinte não há a criação do oposto, consequentemente não há luta. Então, a mente não tem nenhuma raiz, mas está viva; não tem continuidade, mas se acha num “estado de ser” em que não existe o tempo. Parece-me importante compreender isto, não apenas verbal ou intelectualmente, mas vendo, de fato, como a mente está criando a luta e o mecanismo dual.

A ação da mente sem raiz é criadora, porque essa mente já não se acha num estado de frustração, de onde pinta, escreve, ou busca a Realidade. Essa mente não busca, o buscar supõe a dualidade; o buscar é luta, é estender o pensamento do passado para o futuro e deixá-lo firmar-se na raiz do futuro. Se a mente puder perceber esse fato, estar apercebida desse fato, dar-se-á uma extraordinária libertação de tudo quanto é luta; por consequência, haverá felicidade e bem-aventurança; e essa felicidade e bem-aventurança não é o oposto do sofrimento, da desgraça ou da frustração. Isto não são meras palavras; falo de estados diretos de que a mente se apodera, instalando-se na experiência; estados que, com efeito, não podem ser conhecidos por uma mente que luta para se tornar o oposto.

Tudo isso requer — não é verdade? — o percebimento do mecanismo mental. Refiro-me ao percebimento do mecanismo total da existência: sofrimento, dor, amor, ódio, sentimento, ilusões — pois tudo isso constitui a mente. Não e, pois, importante ver como a vossa mente funciona, ver como opera, como “projeta”, como se apega ao passado, à tradição, às inumeráveis experiências, impedindo assim a experiência da Realidade? Estar apercebido disso tudo não é saber o que dizem os modernos ou antigos instrutores, ou os psicólogos, ou os gurus. Nenhum valor tem estar-se informado sobre o que outros disseram, porque cada um tem de descobrir por si mesmo o mecanismo de sua própria mente. Esse descobrimento não é possível se nos retiramos para uma caverna nas montanhas, mas sim no viver de dia para dia. É preciso também perceber que aquilo que descobrimos já se pode ter tornado a raiz que determina as nossas ações; isto é, temos de descobrir como a mente pode servir-se dos seus próprios descobrimentos como uma experiência que determina o que ela pensa, de modo que essa experiência se torna o nosso obstáculo, levando-nos à frustração. Ver tudo isso é percebimento. Esse percebimento só pode ocorrer quando não há condenação — o que, com efeito, significa a quebra completa de todo o condicionamento da mente, para que a mente possa achar-se num estado em que já não crie raízes, sendo por conseguinte uma mente sem âncora e havendo, por­tanto, a experiência real. Só esta mente é capaz de ver e conhecer aquilo que é eterno.

Senhores, quando eu estiver respondendo a estas perguntas, observai a vossa própria mente criando a dualidade. Vede como a mente espera uma resposta. Ela faz uma pergunta por causa de sua própria frustração, de seu sofrimento, de suas tribulações e confusão. Faz a pergunta e a converte num problema, e fica à espera de uma resposta. Ao receber a resposta, diz: “como posso chegar lá?” O como é a luta — a luta entre o problema e a solução, entre “o que é” e “o que deveria ser”. O método é o como, o método é luta; o método, por conseguinte, pela sua própria natureza, produz a frustração. É, portanto, o mais estúpido dos espíritos aquele que diz: “como posso fazer isso?”, “como posso chegar lá?”, “Eu sou isto e desejo ser aquilo, mas como?”.

O importante é “o que é”, não “o que deveria ser”. A compreensão do que é requer a cessação da condenação, e nada mais. Não digais “como posso deixar de condenar?” — porque então vos vereis de novo dentro do mesmo antigo processo. Mas vede a verdade contida na asserção de que o condenar produz a luta e, portanto, a dualidade, e portanto a luta em direção ao oposto. Vede isso, simplesmente, percebei simplesmente o fato; ocorre então a revelação do é, que é o problema.

Krishnamurti, Sexta Conferência em Bombaim
24 de fevereiro de 1954, As ilusões da Mente

O problema da transformação radical

O problema da transformação radical

Desejo continuar a falar sobre o que estávamos apreciando na quarta-feira passada, ou seja o problema da transformação. Este problema ó importantíssimo e merece ser considerado com profundeza; porque a transformação só parece produzir mais confusão, mais labores e mais sofrimentos, como qualquer de nós pode observar, dia a dia. Desejo investigar, nesta tarde, se é possível modificar, operar uma quebra total do centro, de preferência a nos satisfazermos com superficiais modificações periféricas. É possível operar-se uma transformação no centro, sem se cultivar um certo fundo (background), e sem se reforçar esse fundo, no processo da transformação? É possível mudança, uma quebra completa, uma revolução, sem o cultivo da memória? Geralmente, no processo de nos transformarmos, estamos sempre nutrindo a memória: “Fui isto ontem, serei aquilo amanhã”. Este “serei” é cultivo da memória; por essa razão, não há transformação fundamental, radical, no centro.

Espero tenhais paciência para escutar. A comunicação entre as pessoas é, em qualquer circunstância, difícil, porquanto as palavras têm significação precisa; conscientemente, aceitamos certas definições e procuramos traduzir o que ouvimos em conformidade com tais definições. Se começamos, porém, a definir cada palavra ou se definimos só certas palavras, para aferição, se apenas isso fazemos, a comunicação ficará no nível consciente. O que se está discutindo, parece-me não deve ser compreendido puramente no nível intelectual, mas ser absorvido — se posso empregar este termo — inconscientemente, profundamente, sem o formular de definições. Muito mais importante é escutarmos com toda a profundeza do nosso ser, do que nos contentarmos com simples explicações superficiais. Se somos capazes de escutar com a totalidade do nosso ser, esse escutar, em si, é um ato de meditação.

A meditação que praticamos conscientemente não é meditação, e sim, tão só a “projeção” da mente consciente, da memória. Tendes de escutar com a totalidade do vosso ser, sem esforço algum, sem luta, e com a intenção de compreender, de explorar, de descobrir, de achar realmente a Verdade ou a falsidade do que estou dizendo. Descobrir significa achar-nos num estado mental em que tenha cessado completamente a luta, o conflito consciente para compreender, descobrir. A meu ver, tal ato de escutar é meditação. Para descobrir a verdade relativa a alguma coisa, não de acordo com nosso desejo, nossa simpatia ou antipatia, nem de acordo com determinada tradição em que fomos educados, deve a mente ser capaz não só de compreender o som “superficial” que se está ouvindo, isto é, as vibrações do som, mas também de descer à maior profundidade, através desse som.

É um problema muito difícil, esse, de escutarmos com a totalidade do nosso ser — quer dizer, quando a mente não apenas escuta as palavras, mas é capaz de transcender as palavras. O mero julgamento, pela mente consciente, não é descobrimento nem compreensão da Verdade. A mente consciente não pode, jamais, achar aquilo que é real. Ela só é capaz de escolher, julgar, pesar, comparar. A comparação, o julgamento ou a identificação não é uma maneira de descobrir a verdade. Eis porque é tão importante saber escutar. Ao lerdes um livro, é bem provável traduzais o que ledes de acordo com vossa tendência particular, vosso saber ou idiossincrasia, perdendo, desse modo, a inteira significação daquilo que o autor deseja transmitir; é possível, também escuteis desse modo. Mas, para compreender, descobrir, devemos ouvir sem a resistência da mente consciente, só interessada em debater, discutir, analisar. O debater, o discutir, o analisar é um obstáculo, ao tratar-se de questões que requerem, não meras definições verbais e superficial compreensão, porém compreensão num nível muito mais profundo e fundamental. Essa compreensão, a compreensão da verdade, depende da maneira como escutamos.

O que nos está interessando agora é a necessidade da transformação. Reconhecemos necessária uma revolução fundamental. Não emprego a palavra “revolução” no seu sentido político. No sentido político, se há revolução, isso já não é revolução: é simplesmente uma “continuidade modificada’’. Refiro-me, sim, àquela modificação fundamental que é a única a que se pode chamar “transformação”. É possível operar essa transformação radical pela ação da vontade? A vontade é a continuidade de uma decisão baseada na memória, no conhecimento, ou na experiência; a vontade é a reação da mente condicionada, da mente que vive encerrada na tradição, na experiência, no saber; e o saber é que determina, que cria o padrão pelo qual se operará a transformação. Consequentemente, pode uma transformação operada pela ação da vontade ser radical? Quando sei em que direção me estou transformando e sei quais serão todas as consequências dessa transformação baseada na minha própria experiência, — sendo minha experiência uma reação do meu condicionamento — essa transformação pode ser radical?

Desejo transformar, porque reconheço a importância, a necessidade da transformação, não só em mim mesmo, mas na sociedade; reconheço, lógica e interiormente, a sua imperiosa necessidade, porque a sociedade, tal como está, e eu tal como sou, apenas produzimos mais desordem, mais caos e mais sofrimentos; esse é um fato óbvio, quer o aceiteis, quer não. Já que estamos condicionados, toda ação proveniente de nossa mente condicionada só pode ser produtiva de mais confusão ainda; porque, se eu estou confuso, toda ação oriunda desta minha confusão redunda numa confusão maior ainda. Nós estamos confusos; eis o fato que, em geral, não gostamos de admitir. Não importa se vos intitulais comunista, socialista, cristão, hinduísta, ou budista, o fato é que a vossa mente — se a observardes bem — se acha num estado de contradição, num estado de confusão. Quando tendes uma certa crença, um certo dogma, ficais apegado a esse dogma, a essa crença. Isso, psicologicamente, é claro indício de confusão, porquanto a crença tem a função de um refúgio seguro, onde vos escondeis de vós mesmo. Esse refúgio é vossa própria “projeção”, nascida da vossa confusão.

A mente que procura compreender a necessidade fundamental da transformação deve perguntar constantemente, de si para si: “É possível operar alguma transformação sem a ação da vontade?” Estais compreendendo, senhor, o problema decorrente desta pergunta? Isto é, minha vontade nasceu do meu passado, foi criada pelo meu saber, pelas experiências que acumulei. Esse acumular resulta de meu condicionamento. O condicionamento é o ambiente cultural em que fui criado, a religião, os valores sociais, etc. Desse fundo nasce a vontade de ser, de mudar, de “continuar”. Eis um fato psicológico. Quando se observa a ação da vontade, vê-se que a vontade não pode operar nenhuma transformação radical. Se não pode fazê-lo, que mais poderá produzir a transformação radical? Que coisa terá o poder de quebrar essa constante acumulação de memória, de experiência, de saber, de onde procede a ação? Esta é uma pergunta importante que vos deveis fa­zer, para achardes a verdade respectiva. Não é suficiente escutardes meramente o que eu digo, porque o problema é vosso. Vós tendes de examiná-lo, compreendê-lo.

A vontade é o “eu”, o processo do “eu”; não podendo operar uma transformação radical, a mente projeta a ideia de Deus, e diz: “Deus tem o poder de transformar”, “existe a graça de Deus”, etc. Isto é, quando a mente se vê na impossibilidade de operar em si mesma uma transformação radical, por suas próprias forças, sua própria volição, ela se “projeta”, identificando-se com uma coisa que irá produzir a transformação. A “projeção”, porém, é ainda ação da vontade, ação do “eu”, que deseja transformar-se; vendo-se incapaz de transformar-se pelas suas próprias atividades, o “eu” se identifica com uma ideia ou uma suposta realidade que ele criou, relativa a Buda, a Cristo, ou quem quer que lhe agrade, e queda-se na esperança de que, por intermédio daquela realidade, virá a transformação. Mas aquela “projeção”, as atividades daquela projeção, e a reação dela proveniente, continuam a fazer parte da ação da vontade; não há, portanto, transformação radical no centro.

O problema agora, certamente, é o seguinte: que coisa poderá produzir a transformação desse centro? Deus, a Bem-aventurança, uma Ideia? Será, essa coisa, algo totalmente diverso, não projetado pela mente, nem, tampouco, fruto de sua atividade? Essa mudança, que é a transformação do centro, do eu, não pode ser realizada pela ação do próprio eu, pela vontade. O eu que se transforma é resultado de sofrimento, de prazer, de experiência e memória; e quando ele diz: “devo transformar-me em algo”, este algo é projeção do eu, corporificada no Mestre, no “Guru”, no Salvador, e assim por diante. Através do Salvador, do “Guru”, — projeções do meu eu — desejo engendrar uma transformação.

Se negais tudo isso e afirmais que as circunstâncias ou o domínio da natureza constituem a única possibilidade de transformação, isso significa que vossa mente está controlada pela chamada educação em moldes comunistas, ou católicos ou hinduístas. Este mecanismo controla o espírito, molda-o; e este moldar da mente não pode produzir aquela radical transformação no centro.

Compreendeis o problema? Desejo transformar-me. Vejo a impossibilidade da transformação pela ação da vontade. Vejo que não pode haver transformação alguma com a projeção do passado no futuro: o “conhecido” projetar-se no futuro, representando o “desconhecido” e sendo, não obstante, “o conhecido”. Vejo, por conseguinte, como a mente pode ser moldada pelas circunstâncias. Pela educação que me é dada, desde a meninice, pode a minha mente ser condicionada de maneira tão completa, que fico funcionando como uma máquina, ajustada para crer ou descrer. Vejo que isso também não é transformação. Para que se possa criar um mundo completamente novo, um Estado novo, uma nova existência, compreender que este mundo não é um “mundo católico” nem um “mundo hinduísta”, mas nosso mundo, (e senti-lo assim, é compreender-lhe toda a riqueza) faz-se necessária uma transformação radical no centro, com a cessação completa da existência do “eu” e do “meu” — minha Índia, minha religião, minha experiência. É lá que deve ser efetuada a transformação radical. Como efetuá-la?

Tende a bondade de prestar atenção. É correta esta pergunta: “Como efetuá-la?” Existe algum método, algum sistema de fazê-la? Qualquer sistema ou método implica a continuidade da memória, o cultivo da memória, e daí, por conseguinte, não resulta transformação nenhuma. Quando pergunto a mim mesmo como é possível quebrar aquele centro e busco um método, esse mesmo método, esse mesmo sistema produzirá o resultado que o sistema dá. Esse resultado, porém, não é a transformação; em lugar do método, do sistema que eu cultivava antigamente, estou a cultivar um método novo, um sistema novo. Nessas condições, o “como” é justamente a negação da transformação radical. Observai, por favor, a vossa própria mente. Posto o problema da transformação radical, a vossa reação imediata, no mesmo instante em que o ouvis, é a seguinte: “Dizei-me o que devo fazer”. Dizer-vos o que deveis fazer não traz nenhuma transformação. Quereis alcançar o estado de segurança, de certeza, através de um método, e justamente o desejo de certeza é a negação da transformação. Se compreenderdes bem isto, não direis no fim desta resposta: “Não nos dissestes o que devemos fazer, sois muito vago”.

O que existe é o problema, e não a solução. Se conhecerdes o fundo do problema, a resposta estará lá. O próprio problema revelará a solução. Mas, uma vez que estais buscando a solução do problema, estais tocando apenas a sua superfície. Temos o problema da transformação, da transformação radical no centro. Não pode essa transformação ser operada pela volição, por nenhum ato de vontade, exercício, ou sistema de meditação. O “mecanismo” mesmo da meditação, como a praticais, significa o cultivo de certa ideia, certa disciplina, e, por consequência, só tem o efeito de reforçar o “eu”, o centro; o qualquer espécie de “projeção” proveniente do fundo (background), ou a experiência de tal projeção, continua a ser uma maneira de fortificar o “eu”. Quando tendes esse problema, quando o tendes realmente diante dos olhos, a vossa mente se torna de todo tranquila. É só quando se quer fazer uma modificação, uma modificação superficial, que a mente se torna agitada, e trabalha, e forceja, e luta. Mas quando se percebe o significado pleno da revolução fundamental, da transformação fundamental, aí, a mente, na presença desse enorme e complexo problema, se torna tranquila. Se escutais devida­ mente e se compreendestes o problema em sua profundidade, vereis, então, que vossa mente está tranquila. O próprio problema põe a mente tranquila, silenciosa. Quando a mente está quieta diante do problema, há então a transformação no centro. Esse processo total da compreensão do problema, é meditação. Essa meditação não significa sentar-se e ficar lutando com o problema, mas, sim, compreendê-lo — durante um passeio a olhar as estrelas, o mar, as sombras das árvores, um sorriso. É um processo total; porque do problema decorre a compreensão do desenvolvimento do homem. Só então a mente está tranquila, sem fazer nenhum movimento, sem nada “projetar”, desejar, esperar. O silêncio não é uma palavra, mas um “estado de ser”. Ninguém pode tornar-se tranquilo, silente, por mais esforços que faça — exercícios, disciplinas, controle, refreamento. Toda ação desse gênero apenas conduz a resultados. O silêncio não é um resultado, é um “estado de ser”, de momento a momento. Assim, pois, quando a mente compreende o problema da transformação radical, momento por momento, há, então, aquele silêncio que não é silêncio produzido pela acumulação, silêncio produzido pela memória, mas um “estado de ser” — silêncio que está fora do tempo, silêncio que é “atemporal”. Se houver esse silêncio, vereis que haverá uma transformação radical do centro.

Se houverdes escutado corretamente, vereis que a semente da transformação lançou raízes. Se estais, porém, tão somente a resistir, no plano verbal, só tereis então essa resistência, e não a verdade. Em geral, infelizmente, ficam-nos apenas as cinzas da resistência, em lugar da Realidade. Não nos educam, de pequeninos, para escutar, investigar, compreender; nunca nos põem na presença dos problemas; só se nos dão respostas — o que deveria ser, o exemplo, o herói, o santo que devemos imitar, copiar. Assim, jamais nos mostram as implicâncias do problema — e isto, este mostrar, é a verdadeira educação. Como não fomos educados para conhecer as sutilezas dos problemas, para a compreensão dos problemas, vemo-nos confusos quando nos chocamos com um problema, e logo queremos encontrar uma solução. Não há respostas para a vida. A vida é uma “coisa viva”, de momento a momento, e o homem que busca uma resposta para a vida, está buscando a estagnação da mediocridade. A questão, por conseguinte, não é de se achar solução, mas de se compreender o problema; o problema — e não a solução — é que contém a Verdade.

Krishnamurti, Terceira Conferência em Bombaim
14 de fevereiro de 1954, As ilusões da Mente


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"Quando você compreende, quando chega a saber,
então traz toda a beleza do passado de volta
e dá a esse passado o renascimento, renova-o,
de forma que todos os que o conheceram
possam estar de novo sobre a terra
e viajar por aqui, e ajudar as pessoas." (Tilopa)



"Nos momentos tranqüilos da meditação, a vontade de DEUS pode tornar-se evidente para nós. Acalmar a mente, através da meditação, traz uma paz interior que nos põe em contato com DEUS dentro de nós. Uma premissa básica da meditação, é que é difícil, senão impossível, alcançar um contato consciente, à não ser que a mente esteja sossegada. Para que haja um progresso, a comum sucessão ininterrupta de pensamentos tem de parar. Por isso, a nossa prática preliminar será sossegar a mente e deixar os pensamentos que brotam morrerem de morte natural. Deixamos nossos pensamentos para trás, à medida que a meditação do Décimo Primeiro Passo se torna uma realidade para nós. O equilíbrio emocional é um dos primeiros resultados da meditação, e a nossa experiência confirma isso." (11º Passo de NA)


"O Eu Superior pode usar algum evento, alguma pessoa ou algum livro como seu mensageiro. Pode fazer qualquer circunstância nova agir da mesma forma, mas o indivíduo deve ter a capacidade de reconhecer o que está acontecendo e ter a disposição para receber a mensagem". (Paul Brunton)



Observe Krishnamurti, em conversa com David Bohn, apontando para um "processo", um "caminho de transformação", descrevendo suas etapas até o estado de prontificação e a necessária base emocional para a manifestação da Visão Intuitiva, ou como dizemos no paradigma, a Retomada da Perene Consciência Amorosa Integrativa...


Krishnamurti: Estávamos discutindo o que significa para o cérebro não ter movimento. Quando um ser humano ESTEVE SEGUINDO O CAMINHO DA TRANSFORMAÇÃO, e PASSOU por TUDO isso, e esse SENTIDO DE VAZIO, SILÊNCIO E ENERGIA, ele ABANDONOU QUASE TUDO e CHEGOU AO PONTO, à BASE. Como, então, essa VISÃO INTUITIVA afeta a sua vida diária? Qual é o seu relacionamento com a sociedade? Como ele age em relação à guerra, e ao mundo todo — um mundo em que está realmente vivendo e lutando na escuridão? Qual a sua ação? Eu diria, como concordamos no outro dia, que ele é o não-movimento.

David Bohn: Sim, dissemos que a base era movimento SEM DIVISÃO.

K: Sem divisão. Sim, correto. (Capítulo 8 do livro, A ELIMINAÇÃO DO TEMPO PSICOLÓGICO)


A IMPORTÂNCIA DA RENDIÇÃO DIANTE DA MENTE ADQUIRIDA
Até praticar a rendição, a dimensão espiritual de você é algo sobre o que você lê, de que fala, com que fica entusiasmado, tema para escrita de livros, motivo de pensamento, algo em que acredita... ou não, seja qual for o caso. Não faz diferença. Só quando você se render é que a dimensão espiritual se tornará uma realidade viva na sua vida. Quando o fizer, a energia que você emana e que então governa a sua vida é de uma frequência vibratória muito superior à da energia mental que ainda comanda o nosso mundo. Através da rendição, a energia espiritual entra neste mundo. Não gera sofrimento para você, para os outros seres humanos, nem para qualquer forma de vida no planeta. (Eckhart Tolle em , A Prática do Poder do Agora, pág. 118)


O IMPOPULAR DRAMA OUTSIDER — O encontro direto com a Verdade absoluta parece, então, impossível para uma consciência humana comum, não mística. Não podemos conhecer a realidade ou mesmo provar a existência do mais simples objeto, embora isto seja uma limitação que poucas pessoas compreendem realmente e que muitas até negariam. Mas há entre os seres humanos um tipo de personalidade que, esta sim, compreende essa limitação e que não consegue se contentar com as falsas realidades que nutrem o universo das pessoas comuns. Parece que essas pessoas sentem a necessidade de forjar por si mesmas uma imagem de "alguma coisa" ou do "nada" que se encontra no outro lado de suas linhas telegráficas: uma certa "concepção do ser" e uma certa teoria do "conhecimento". Elas são ATORMENTADAS pelo Incognoscível, queimam de desejo de conhecer o princípio primeiro, almejam agarrar aquilo que se esconde atrás do sombrio espetáculo das coisas. Quando alguém possui esse temperamento, é ávido de conhecer a realidade e deve satisfazer essa fome da melhor forma possível, enganando-a, sem contudo jamais poder saciá-la. — Evelyn Underhill