O problema da transformação radical
Desejo continuar a falar sobre o que estávamos apreciando na quarta-feira passada, ou seja o problema da transformação. Este problema ó importantíssimo e merece ser considerado com profundeza; porque a transformação só parece produzir mais confusão, mais labores e mais sofrimentos, como qualquer de nós pode observar, dia a dia. Desejo investigar, nesta tarde, se é possível modificar, operar uma quebra total do centro, de preferência a nos satisfazermos com superficiais modificações periféricas. É possível operar-se uma transformação no centro, sem se cultivar um certo fundo (background), e sem se reforçar esse fundo, no processo da transformação? É possível mudança, uma quebra completa, uma revolução, sem o cultivo da memória? Geralmente, no processo de nos transformarmos, estamos sempre nutrindo a memória: “Fui isto ontem, serei aquilo amanhã”. Este “serei” é cultivo da memória; por essa razão, não há transformação fundamental, radical, no centro.
Espero tenhais paciência para escutar. A comunicação entre as pessoas é, em qualquer circunstância, difícil, porquanto as palavras têm significação precisa; conscientemente, aceitamos certas definições e procuramos traduzir o que ouvimos em conformidade com tais definições. Se começamos, porém, a definir cada palavra ou se definimos só certas palavras, para aferição, se apenas isso fazemos, a comunicação ficará no nível consciente. O que se está discutindo, parece-me não deve ser compreendido puramente no nível intelectual, mas ser absorvido — se posso empregar este termo — inconscientemente, profundamente, sem o formular de definições. Muito mais importante é escutarmos com toda a profundeza do nosso ser, do que nos contentarmos com simples explicações superficiais. Se somos capazes de escutar com a totalidade do nosso ser, esse escutar, em si, é um ato de meditação.
A meditação que praticamos conscientemente não é meditação, e sim, tão só a “projeção” da mente consciente, da memória. Tendes de escutar com a totalidade do vosso ser, sem esforço algum, sem luta, e com a intenção de compreender, de explorar, de descobrir, de achar realmente a Verdade ou a falsidade do que estou dizendo. Descobrir significa achar-nos num estado mental em que tenha cessado completamente a luta, o conflito consciente para compreender, descobrir. A meu ver, tal ato de escutar é meditação. Para descobrir a verdade relativa a alguma coisa, não de acordo com nosso desejo, nossa simpatia ou antipatia, nem de acordo com determinada tradição em que fomos educados, deve a mente ser capaz não só de compreender o som “superficial” que se está ouvindo, isto é, as vibrações do som, mas também de descer à maior profundidade, através desse som.
É um problema muito difícil, esse, de escutarmos com a totalidade do nosso ser — quer dizer, quando a mente não apenas escuta as palavras, mas é capaz de transcender as palavras. O mero julgamento, pela mente consciente, não é descobrimento nem compreensão da Verdade. A mente consciente não pode, jamais, achar aquilo que é real. Ela só é capaz de escolher, julgar, pesar, comparar. A comparação, o julgamento ou a identificação não é uma maneira de descobrir a verdade. Eis porque é tão importante saber escutar. Ao lerdes um livro, é bem provável traduzais o que ledes de acordo com vossa tendência particular, vosso saber ou idiossincrasia, perdendo, desse modo, a inteira significação daquilo que o autor deseja transmitir; é possível, também escuteis desse modo. Mas, para compreender, descobrir, devemos ouvir sem a resistência da mente consciente, só interessada em debater, discutir, analisar. O debater, o discutir, o analisar é um obstáculo, ao tratar-se de questões que requerem, não meras definições verbais e superficial compreensão, porém compreensão num nível muito mais profundo e fundamental. Essa compreensão, a compreensão da verdade, depende da maneira como escutamos.
O que nos está interessando agora é a necessidade da transformação. Reconhecemos necessária uma revolução fundamental. Não emprego a palavra “revolução” no seu sentido político. No sentido político, se há revolução, isso já não é revolução: é simplesmente uma “continuidade modificada’’. Refiro-me, sim, àquela modificação fundamental que é a única a que se pode chamar “transformação”. É possível operar essa transformação radical pela ação da vontade? A vontade é a continuidade de uma decisão baseada na memória, no conhecimento, ou na experiência; a vontade é a reação da mente condicionada, da mente que vive encerrada na tradição, na experiência, no saber; e o saber é que determina, que cria o padrão pelo qual se operará a transformação. Consequentemente, pode uma transformação operada pela ação da vontade ser radical? Quando sei em que direção me estou transformando e sei quais serão todas as consequências dessa transformação baseada na minha própria experiência, — sendo minha experiência uma reação do meu condicionamento — essa transformação pode ser radical?
Desejo transformar, porque reconheço a importância, a necessidade da transformação, não só em mim mesmo, mas na sociedade; reconheço, lógica e interiormente, a sua imperiosa necessidade, porque a sociedade, tal como está, e eu tal como sou, apenas produzimos mais desordem, mais caos e mais sofrimentos; esse é um fato óbvio, quer o aceiteis, quer não. Já que estamos condicionados, toda ação proveniente de nossa mente condicionada só pode ser produtiva de mais confusão ainda; porque, se eu estou confuso, toda ação oriunda desta minha confusão redunda numa confusão maior ainda. Nós estamos confusos; eis o fato que, em geral, não gostamos de admitir. Não importa se vos intitulais comunista, socialista, cristão, hinduísta, ou budista, o fato é que a vossa mente — se a observardes bem — se acha num estado de contradição, num estado de confusão. Quando tendes uma certa crença, um certo dogma, ficais apegado a esse dogma, a essa crença. Isso, psicologicamente, é claro indício de confusão, porquanto a crença tem a função de um refúgio seguro, onde vos escondeis de vós mesmo. Esse refúgio é vossa própria “projeção”, nascida da vossa confusão.
A mente que procura compreender a necessidade fundamental da transformação deve perguntar constantemente, de si para si: “É possível operar alguma transformação sem a ação da vontade?” Estais compreendendo, senhor, o problema decorrente desta pergunta? Isto é, minha vontade nasceu do meu passado, foi criada pelo meu saber, pelas experiências que acumulei. Esse acumular resulta de meu condicionamento. O condicionamento é o ambiente cultural em que fui criado, a religião, os valores sociais, etc. Desse fundo nasce a vontade de ser, de mudar, de “continuar”. Eis um fato psicológico. Quando se observa a ação da vontade, vê-se que a vontade não pode operar nenhuma transformação radical. Se não pode fazê-lo, que mais poderá produzir a transformação radical? Que coisa terá o poder de quebrar essa constante acumulação de memória, de experiência, de saber, de onde procede a ação? Esta é uma pergunta importante que vos deveis fazer, para achardes a verdade respectiva. Não é suficiente escutardes meramente o que eu digo, porque o problema é vosso. Vós tendes de examiná-lo, compreendê-lo.
A vontade é o “eu”, o processo do “eu”; não podendo operar uma transformação radical, a mente projeta a ideia de Deus, e diz: “Deus tem o poder de transformar”, “existe a graça de Deus”, etc. Isto é, quando a mente se vê na impossibilidade de operar em si mesma uma transformação radical, por suas próprias forças, sua própria volição, ela se “projeta”, identificando-se com uma coisa que irá produzir a transformação. A “projeção”, porém, é ainda ação da vontade, ação do “eu”, que deseja transformar-se; vendo-se incapaz de transformar-se pelas suas próprias atividades, o “eu” se identifica com uma ideia ou uma suposta realidade que ele criou, relativa a Buda, a Cristo, ou quem quer que lhe agrade, e queda-se na esperança de que, por intermédio daquela realidade, virá a transformação. Mas aquela “projeção”, as atividades daquela projeção, e a reação dela proveniente, continuam a fazer parte da ação da vontade; não há, portanto, transformação radical no centro.
O problema agora, certamente, é o seguinte: que coisa poderá produzir a transformação desse centro? Deus, a Bem-aventurança, uma Ideia? Será, essa coisa, algo totalmente diverso, não projetado pela mente, nem, tampouco, fruto de sua atividade? Essa mudança, que é a transformação do centro, do eu, não pode ser realizada pela ação do próprio eu, pela vontade. O eu que se transforma é resultado de sofrimento, de prazer, de experiência e memória; e quando ele diz: “devo transformar-me em algo”, este algo é projeção do eu, corporificada no Mestre, no “Guru”, no Salvador, e assim por diante. Através do Salvador, do “Guru”, — projeções do meu eu — desejo engendrar uma transformação.
Se negais tudo isso e afirmais que as circunstâncias ou o domínio da natureza constituem a única possibilidade de transformação, isso significa que vossa mente está controlada pela chamada educação em moldes comunistas, ou católicos ou hinduístas. Este mecanismo controla o espírito, molda-o; e este moldar da mente não pode produzir aquela radical transformação no centro.
Compreendeis o problema? Desejo transformar-me. Vejo a impossibilidade da transformação pela ação da vontade. Vejo que não pode haver transformação alguma com a projeção do passado no futuro: o “conhecido” projetar-se no futuro, representando o “desconhecido” e sendo, não obstante, “o conhecido”. Vejo, por conseguinte, como a mente pode ser moldada pelas circunstâncias. Pela educação que me é dada, desde a meninice, pode a minha mente ser condicionada de maneira tão completa, que fico funcionando como uma máquina, ajustada para crer ou descrer. Vejo que isso também não é transformação. Para que se possa criar um mundo completamente novo, um Estado novo, uma nova existência, compreender que este mundo não é um “mundo católico” nem um “mundo hinduísta”, mas nosso mundo, (e senti-lo assim, é compreender-lhe toda a riqueza) faz-se necessária uma transformação radical no centro, com a cessação completa da existência do “eu” e do “meu” — minha Índia, minha religião, minha experiência. É lá que deve ser efetuada a transformação radical. Como efetuá-la?
Tende a bondade de prestar atenção. É correta esta pergunta: “Como efetuá-la?” Existe algum método, algum sistema de fazê-la? Qualquer sistema ou método implica a continuidade da memória, o cultivo da memória, e daí, por conseguinte, não resulta transformação nenhuma. Quando pergunto a mim mesmo como é possível quebrar aquele centro e busco um método, esse mesmo método, esse mesmo sistema produzirá o resultado que o sistema dá. Esse resultado, porém, não é a transformação; em lugar do método, do sistema que eu cultivava antigamente, estou a cultivar um método novo, um sistema novo. Nessas condições, o “como” é justamente a negação da transformação radical. Observai, por favor, a vossa própria mente. Posto o problema da transformação radical, a vossa reação imediata, no mesmo instante em que o ouvis, é a seguinte: “Dizei-me o que devo fazer”. Dizer-vos o que deveis fazer não traz nenhuma transformação. Quereis alcançar o estado de segurança, de certeza, através de um método, e justamente o desejo de certeza é a negação da transformação. Se compreenderdes bem isto, não direis no fim desta resposta: “Não nos dissestes o que devemos fazer, sois muito vago”.
O que existe é o problema, e não a solução. Se conhecerdes o fundo do problema, a resposta estará lá. O próprio problema revelará a solução. Mas, uma vez que estais buscando a solução do problema, estais tocando apenas a sua superfície. Temos o problema da transformação, da transformação radical no centro. Não pode essa transformação ser operada pela volição, por nenhum ato de vontade, exercício, ou sistema de meditação. O “mecanismo” mesmo da meditação, como a praticais, significa o cultivo de certa ideia, certa disciplina, e, por consequência, só tem o efeito de reforçar o “eu”, o centro; o qualquer espécie de “projeção” proveniente do fundo (background), ou a experiência de tal projeção, continua a ser uma maneira de fortificar o “eu”. Quando tendes esse problema, quando o tendes realmente diante dos olhos, a vossa mente se torna de todo tranquila. É só quando se quer fazer uma modificação, uma modificação superficial, que a mente se torna agitada, e trabalha, e forceja, e luta. Mas quando se percebe o significado pleno da revolução fundamental, da transformação fundamental, aí, a mente, na presença desse enorme e complexo problema, se torna tranquila. Se escutais devida mente e se compreendestes o problema em sua profundidade, vereis, então, que vossa mente está tranquila. O próprio problema põe a mente tranquila, silenciosa. Quando a mente está quieta diante do problema, há então a transformação no centro. Esse processo total da compreensão do problema, é meditação. Essa meditação não significa sentar-se e ficar lutando com o problema, mas, sim, compreendê-lo — durante um passeio a olhar as estrelas, o mar, as sombras das árvores, um sorriso. É um processo total; porque do problema decorre a compreensão do desenvolvimento do homem. Só então a mente está tranquila, sem fazer nenhum movimento, sem nada “projetar”, desejar, esperar. O silêncio não é uma palavra, mas um “estado de ser”. Ninguém pode tornar-se tranquilo, silente, por mais esforços que faça — exercícios, disciplinas, controle, refreamento. Toda ação desse gênero apenas conduz a resultados. O silêncio não é um resultado, é um “estado de ser”, de momento a momento. Assim, pois, quando a mente compreende o problema da transformação radical, momento por momento, há, então, aquele silêncio que não é silêncio produzido pela acumulação, silêncio produzido pela memória, mas um “estado de ser” — silêncio que está fora do tempo, silêncio que é “atemporal”. Se houver esse silêncio, vereis que haverá uma transformação radical do centro.
Se houverdes escutado corretamente, vereis que a semente da transformação lançou raízes. Se estais, porém, tão somente a resistir, no plano verbal, só tereis então essa resistência, e não a verdade. Em geral, infelizmente, ficam-nos apenas as cinzas da resistência, em lugar da Realidade. Não nos educam, de pequeninos, para escutar, investigar, compreender; nunca nos põem na presença dos problemas; só se nos dão respostas — o que deveria ser, o exemplo, o herói, o santo que devemos imitar, copiar. Assim, jamais nos mostram as implicâncias do problema — e isto, este mostrar, é a verdadeira educação. Como não fomos educados para conhecer as sutilezas dos problemas, para a compreensão dos problemas, vemo-nos confusos quando nos chocamos com um problema, e logo queremos encontrar uma solução. Não há respostas para a vida. A vida é uma “coisa viva”, de momento a momento, e o homem que busca uma resposta para a vida, está buscando a estagnação da mediocridade. A questão, por conseguinte, não é de se achar solução, mas de se compreender o problema; o problema — e não a solução — é que contém a Verdade.
Krishnamurti, Terceira Conferência em Bombaim
Krishnamurti, Terceira Conferência em Bombaim
14 de fevereiro de 1954, As ilusões da Mente