Como pode uma pessoa saber se mudou?
PERGUNTA: Como pode uma pessoa saber se mudou?
KRISHNAMURTI: Esse cavalheiro pergunta: Como pode uma pessoa saber se mudou? Ainda que se trate de uma mudança salutar produzida pelos fatos externos — não é ela desejável? Como se sabe de qualquer coisa? “Como sabe um indivíduo que mudou?” é uma pergunta importante — assim o diz o referido cavalheiro. Vamos examiná-la. Como se sabe disso? Sabe-se, quer por experiência direta, quer por intermédio de outrem. Só há duas possibilidades de sabê-lo: ou alguém vo-lo diz, ou vós mesmo experimentais o fato.
Ora, pode a experiência servir-nos de critério, fazer-nos saber? Vossa experiência vos dirá o que é verdadeiro? Vossa experiência é a reação a um desafio, e essa experiência está condicionada ao vosso fundo. Por certo, “respondeis” a cada desafio em conformidade com vosso fundo; e o vosso fundo resulta de inumeráveis influências, de milênios de propaganda; essa propaganda pode ser boa ou pode ser má. Esse fundo provém de vosso condicionamento, esse fundo é vosso condicionamento; e, de acordo com esse condicionamento, “respondeis” a cada desafio, por mais insignificante que seja. É esse o critério do que é bom e do que é mau? Ou o que é bom, realmente salutar, se encontra fora do condicionamento? Entendeis? Este país começa agora a cultuar bandeiras, a adquirir consciência nacional; essa a nova espécie de condicionamento que se está verificando aqui. O nacionalismo, evidentemente, é um veneno, porque irá separar o homem do homem. Em nome da bandeira iremos destruir vidas humanas, não só neste país, mas também noutros países. Pensamos que ele (o nacionalismo) será o “toque de reunir”, o fator que unirá os homens; esta é a mais recente influência, a mais nova forma de pressão, a mais nova propaganda. Ora, se não a contestamos, se aceitamos passivamente a influência da imprensa ou dos líderes políticos, como giremos descobrir se ela é justa, se verdadeira ou falsa, nobre ou ignóbil? Não há influência que seja boa; e toda influência pode ser má. Por conseguinte, vossa mente precisa ser cortante como uma navalha, para penetrar, descobrir, e conservar-se sã num mundo onde se rende culto às coisas falsas.
Eis por que deveis investigar o vosso próprio condicionamento; e essa investigação é o começo do autoconhecimento.
PERGUNTA: Podemos conservar a mente livre quando estamos em contato com a natureza?
KRISHNAMURTI: Pergunta esse cavalheiro: É possível uma pessoa ser livre ao achar-se em contato com a natureza? Não compreendo bem esta pergunta. Talvez ele queira dizer que estamos sendo constantemente estimulados pelos fatos externos, por nossos sentidos e que cada estímulo deixa marca na mente, na forma de lembrança; e como pode uma pessoa ficar livre dessa lembrança? Isto é — deixai-me esclarecer a pergunta para mim mesmo — como pode um ente humano que a todas as horas está recebendo “desafios”, na forma de estímulos, e reagindo a esses desafios, consciente ou inconscientemente, com seu próprio fundo, com sua memória — como pode a mente, em tais condições, ser livre? Tem ela possibilidade de ser livre?
Ora, posso formular a pergunta de outra maneira? Não vou fugir à pergunta, mas, sim, apenas formulá-la diferentemente. Toda experiência deixa marca na mente, na forma de lembrança; qualquer experiência, consciente ou inconsciente, deixa um “arranhão”, que chamamos lembrança, memória; e, enquanto essa memória funciona, pode a mente ser livre?
Que necessidade há de memória? Preciso dela para saber onde moro; do contrário não poderia regressar a casa. É também necessário para a construção de uma casa, para se andar de bicicleta, acionar um motor. Dessa forma, a memória é essencial em relação às coisas mecânicas; e é por isso que críamos hábitos; uma vez formado um hábito, funciono sem pensar, maquinalmente. Assim sendo, nossa vida se torna gradualmente mecânica, mercê do hábito, da memória, das chamadas experiências, que deixam marcas. Distingamos, pois, entre a necessidade da memória mecânica e a daquela memória prejudicial à compreensão. Eu preciso saber escrever— essa memória é boa. O inglês que estou falando resulta da memória, e é indispensável para que eu possa comunicar-me convosco; o conhecimento técnico que adquiri, o saber fazer as coisas, é-me necessário para dirigir um escritório, trabalhar numa fábrica, etc. Mas, quando a sociedade, por meio da cultura, da tradição, impõe à mente uma certa crença e de acordo com ela eu fico funcionando mecanicamente, essa crença e minha consequente atuação mecânica não prejudicam a mente e, por conseguinte, não constituem uma negação da liberdade? Vós sois hinduístas. Há séculos que vos dizem isso; fostes educados desde pequenos para crerdes em certas coisas, e isso se vos tornou automático, mecânico; credes em Deus incondicionalmente; isso é mecânico. Não deveis negar tudo isso para poderdes descobrir? Se observardes bem, podereis negá-lo, apagar de todo essa lembrança de serdes hinduísta.
Há, pois, liberdade no ver as coisas que vos foram impostas ao pensamento — como conceito, como ideia, como crença, como dogma — no negá-las e no examinar todo o processo da negação, o porquê da negação. Daí resulta, então, liberdade, embora continueis a funcionar mecanicamente nos incidentes da vida cotidiana.
Dizem que o homem é mero resultado do ambiente — e com efeito o é. De nada serve alegardes que não o sois, dizerdes que sois Paramatman, pois isso é uma espécie de propaganda que aceitastes passivamente, coisa que vos foi inculcada. Portanto, sois efetivamente resultado do ambiente — do clima, da alimentação, dos jornais, das revistas, da mãe, da avó, da religião, da sociedade, dos valores sociais e morais. Vós sois isso, e nenhum bem vos faz o negardes, dizendo que sois Deus; isso, também, é pura propaganda. Precisamos admitir esse fato, percebê-lo, e libertar-nos dele. Podemos libertar-nos dele? Verbal ou teoricamente, não é possível. Mas, se o examinardes concretamente, passo por passo e negardes de todo que sois hinduísta, ou hindu, ou cristão, ou seja o que for (e isso significa investigar toda a questão do medo, que não vamos examinar agora, porquanto envolve muita coisa), podereis então descobrir se podemos ser livres ou não; mas é de todo inútil o mero especular sobre a liberdade.
PERGUNTA O pensamento não funciona na forma de símbolos?
KRISHNAMURTI: Diz essa senhora que o pensamento funciona na forma de símbolos, que o pensamento é palavra; e é possível eliminar os símbolos e a palavra e, por conseguinte, tornar existente um pensamento novo? Símbolos e palavras vêm-nos sendo impostos há séculos e séculos. Ora, é possível estarmos apercebidos dos símbolos e da respectiva fonte, e passarmos além deles?
Em primeiro lugar, temos de investigar não apenas a mente consciente, mas também a inconsciente. Do contrário, estaremos apenas lidando com palavras — quer dizer, com meros símbolos e não com a realidade. Só há consciência. Dividimos a consciência em “consciente” e “inconsciente” por conveniência, mas, realmente, não há tal divisão. Dividimo-la por comodidade; não há essa divisão de mente consciente e mente inconsciente. A mente consciente é a mente educada, que aprendeu uma nova língua, uma nova técnica, para trabalhar num escritório, acionar um motor; ela foi educada para viver neste mundo. O inconsciente, que compreende as camadas mais profundas dessa mesma mente, é o resultado de séculos de herança racial, de temores raciais, do resíduo da experiência humana — tanto coletiva como individual — das coisas ouvidas na infância, das histórias que a bisavó contava, das influências recolhidas da leitura dos jornais — coisas de que não estamos claramente conscientes. Assim, as influências, o passado, quer imediato, quer de há dez mil anos, tudo isso está enraizado no inconsciente. Não precisais de concordar comigo; trata-se de um fato psicológico e não de uma invenção minha, com a qual podeis concordar ou não concordar. Eis a realidade. Assim é, mas precisais examinar-vos, em vez de lerdes livros, para dizerdes que assim é. Se penetrardes em vós mesmos mui profundamente, não deixareis de encontrar-vos com esse fato. Se meramente ledes livros e chegais a uma conclusão, trata-se então de uma questão de concordar ou discordar — e isso nenhuma importância tem.
Todo o pensar é simbólico. Todo pensar resulta de vossa memória, é reação a vossa memória; essa memória é bem profunda, e ela “responde” por meio de palavras, de símbolos. E essa senhora pergunta: É possível ficar-se livre desses símbolos? É possível o cristão ficar livre do símbolo de Jesus e da Cruz? É possível o hinduísta ficar livre da ideia de Krishna, do Gita, etc.? A referida senhora pergunta também: Como apareceram esses símbolos? Como sabeis, é muito mais fácil nos deixarmos arrebatar pelo símbolo do que pela realidade. O símbolo é instrumento de propaganda, nas mãos do propagandista. O símbolo é a bandeira — e podeis apaixonar-vos terrivelmente por causa da bandeira. Pois bem, o símbolo da Cruz, o símbolo de Krishna, etc., — como surgem eles? Eles surgem, evidentemente, a fim de obrigar o homem a comportar-se dentro de um certo padrão, a submeter-se, por medo, à autoridade — porque este mundo está a deteriorar-se, é um mundo em desordem, um mundo confuso; e a Cruz e Krishna são símbolos graças aos quais podemos fugir a ele. A autoridade diz: “Recorrei a isto, e sereis feliz; cultivai aquilo e vos tornareis nobre”, e outras coisas que tais. Assim, por causa do medo, do desejo de estarmos em segurança, psicologicamente, interiormente, surgem os símbolos.
A mente que interiormente, profundamente, é sem temor, nenhum símbolo tem. Porque deveria ter qualquer símbolo que fosse? Quando a mente já não busca segurança de espécie alguma, que necessidade tem de símbolos para funcionar? Ela se; acha em presença do fato, e não de uma ideia a respeito do fato, ideia que se torna um símbolo. Dessa forma, psicologicamente, interiormente, para a maioria de nós, os símbolos assumem desmedida importância. E essa senhora pergunta: É possível estarmos apercebidos, não só dos símbolos e de sua fonte, mas também do medo? Eu poderia responder “Sim”, mas isso nenhum valor teria, porquanto seria apenas a minha palavra contra a palavra de outrem. Mas, se puderdes penetrar fundamente em vós mesma, se puderdes pensar e estar apercebida de todo o mecanismo de pensamento — porque pensais, como pensais, e se há possibilidade de transcender a imagem — e investigardes bem isso, tratar-se-á, então, de uma experiência direta, vossa. E só a mente que conhece a fonte do símbolo e da palavra, só essa mente pode ser livre.
PERGUNTA: Pode a mente ser livre e ao mesmo tempo ter fé?
KRISHANAMURTI: Pergunta esse senhor: Pode a mente livre ter fé? Claro que não. Fé em que? Porque deve ter fé num fato? Vejo um fato — vejo que sou ciumento; porque devo ter fé e dizer que um dia não serei mais ciumento? Estou em presença do fato, e o fato é que sou ciumento; e eu vou eliminá-lo. Descobrir como fazê-lo — isso é mais importante para mim do que ter fé em que não serei ciumento, fé na ideia.
Assim, a mente que está investigando o que é a liberdade trata de destruir tudo para descobrir. Essa mente, por conseguinte, é uma mente em extremo perigosa. Por conseguinte, a sociedade é sua inimiga.
PERGUNTA: Como fazer a mente parar de condicionar-se?
KRISHNAMURTI: Pergunta esse cavalheiro: Qual a ação concreta que deterá o condicionamento? Qual a ação positiva que fará a mente parar de condicionar-se?
Ela só pode ser detida ao estarmos apercebidos do mecanismo condicionante. Quando ledes o jornal — como o fazeis todos os dias — no qual só se fala em política, o que ledes, obviamente, se imprime na vossa mente. Mas, ler o jornal sem se deixar influenciar, ver o mundo tal como é e não sofrer sua influência, isso exige uma mente vigilante, penetrante, capaz de raciocinar de modo são, racional, lógico; numa palavra, uma mente bem sensível.
Agora, a questão é: como criar uma mente sensível? Senhores, não há nenhum “como”, nenhum método; se algum método houvesse, o mesmo efeito se conseguiria tomando um sedativo, um comprimido para acalmar a vossa agitação, fazer-vos dormir. Quando estais apercebido de todos os problemas (e isso significa conhecê-los, observá-los, senti-los, não verbalmente, porém realmente — conhecê-los assim como conheceis vossa fome, vossos apetites sexuais), esse próprio conhecimento, esse próprio contato com o fato torna a mente sensível. O saberdes que não tendes coragem — não que deveis desenvolver a coragem — saberdes que não sois independente, que sois incapaz de sustentar o que pensais — conhecerdes o fato de que careceis de capacidade — tudo isso vos dará capacidade, e não há necessidade de a procurardes.
Krishnamurti, Varanasi, 01 de janeiro de 1961, A mutação Interior