Como ler a totalidade do livro do inconsciente?
[...] Em geral não estamos inteirados de nossos hábitos e, por isso, eles se tornaram inconscientes. No momento em que percebemos um hábito, arrancamo-lo do inconsciente, não é verdade? Se, toda vez que hesito a respeito de uma coisa, coço a cabeça, sem saber que o estou fazendo, se esse ato é automático e dele não estou ciente, então, obviamente, trata-se de um hábito inconsciente. Mas, desde que me torno plenamente apercebido desse hábito e não resisto a ele, mas me limito a observá-lo, então foi ele “arrancado” do inconsciente.
Ora, é porque os nossos hábitos, em regra, são inconscientes, que nós não os destruímos. Se estamos acostumados a conduzir um carro, ligamos o motor instintivamente e acionamos a alavanca de “mudança”, sem a isso aplicar nenhuma reflexão. Esse é o hábito inerente à técnica; mas, em geral, estamos igualmente inconscientes de como procedemos com os nossos semelhantes. Ao percorrermos uma rua muito movimentada, não notamos quando empurramos alguém, etc. A questão, pois, é de como nos tornarmos plenamente apercebidos de todos os hábitos, “animalísticos” e cultos, que em parte nos foram impostos pela sociedade e em parte nós mesmos cultivamos, inconscientemente. Como empreendereis esse trabalho?
Um indivíduo é hinduísta, cristão, alemão, russo, suíço, americano, etc., com o respectivo conjunto de hábitos, do qual comumente está inconsciente. E como poderá o indivíduo perceber esse condicionamento? Como podereis vos aperceber do inconsciente, onde se encontra essa imensa série de hábitos não revelados? Como cientificar-vos do padrão inconsciente que em vós se acha profundamente enraizado? Ireis procurar um psicanalista, pagando-lhe cinquenta dólares ou cem libras, ou qualquer que seja o preço, para que ele vos “arranque” o padrão do inconsciente? Isso adiantará? Ou vós mesmos vos analisareis?
Que subentende o mecanismo de auto-análise? Quando vos analisais, há divisão entre o observador e o objeto observado, não é verdade? E o observador está tão condicionado como aquilo a que observa; há, pois, conflito entre ambos, entre o analista e a coisa analisada. O analista está sujeito a interpretar erroneamente o que examina e, se resiste a um dado hábito ou procura transformá-lo de acordo com suas próprias idiossincrasias, etc., com isso só dará mais força ao hábito. Por conseguinte, a auto-análise não é, tampouco, o caminho que se deve seguir. Que fazer então?
Tende presente, por favor, que estamos falando sobre como abrir o livro do inconsciente, de modo que se traga à luz todo o seu conteúdo. A análise por parte do profissional não é a maneira correta de abri-lo — a não ser que tenhais dinheiro e lazer e um tão descomunal interesse em ajustar-vos à sociedade, que estejais disposto a recorrer a essa espécie de entretenimento. E, como já expliquei, a análise introspectiva também não é o caminho correto. Se isso está claro, que fareis?
OUVINTE: Nada.
KRISHNAMURTI: E que significa isso, senhor? Se já não estais enredado nessa falaciosa ideia da análise, só há então observação, não é verdade? Há só o estado de ver, sem se traduzir o que se vê. Então, vê-se, apenas.
Mas, geralmente, que nos acontece quando vemos a nós mesmos exatamente como somos? Se percebo que sou brutal, rancoroso, mesquinho, cheio de vaidade, sinto-me deprimido. Digo “que coisa horrível” — e ponho-me em agitação, tentando modificá-la. Ora, essa tentativa de modificar a coisa, essa tentativa de fazer algo em relação a ela, está ainda no terreno da análise. Mas se, ao contrário, limito-me a observar, sem escolha — e isso significa estar observando negativamente — já não há, então, nenhuma série de análises do inconsciente; estou completamente fora do terreno da análise, porque quebrei o padrão.
O importante é romper essa muralha de condicionamento, de hábito. E quase todos nós achamos que poderemos rompê-la por meio da análise, quer feita por nós mesmos, quer por outro; mas isso não é possível. A muralha do hábito só pode ser rompida quando a pessoa está completamente apercebida, sem escolha, negativamente vigilante.
Senhor, quando, subitamente, vedes uma montanha em toda a sua imensidade e beleza, suas imponentes alturas e seus abismos, que podeis fazer em relação a esse espetáculo? Nada, absolutamente. Vós apenas o contemplais, não é assim? Mas, que é que geralmente acontece? Olhais para a montanha em um rápido segundo, e dizeis, em seguida, quanto é bela; e, com essa própria verbalização, já não a olhais, já lhe voltastes as costas. Se olhais realmente para uma certa coisa, vossa mente se toma muito quieta, porque então já não estais julgando, já não estais traduzindo o que vedes em termos de comparação. Apenas olhais — e é isso o que eu entendo por observar negativamente. E se puderdes olhar-vos dessa maneira, todos os hábitos e condicionamentos inconscientes se reduzirão a uma só coisa, que, pela compreensão direta, eliminareis completamente. Isso não são meras palavras. Experimentai-o, e vós mesmo o comprovareis.
INTERPELANTE: Nossa vida de cada dia é cheia de contradições e conflitos, e há tantas coisas que temos de fazer; tudo isso se acha em estranho contraste com o que sentimos e percebemos ao virmos aqui para escutar-vos.
KRISHNAMURTI: Por que criar divisão entre nossa vida diária e aquilo que estamos a escutar? Por que separar as duas coisas? A vida são todas as coisas, não é verdade? A vida é nossa existência de cada dia com sua rotina, seu tédio, seus conflitos, como também o estarmos aqui escutando. A vida é, por igual, o escutarmos as árvores, os pássaros, o rio; é a alegria passageira, o sofrimento, a mágoa. Tudo isso é a vida; mas nós a dividimos em “vida diária” e “outra coisa mais”. Por quê? Por que não olhamos a vida totalmente, e não por fragmentos? Falamos sobre a vida da Wall Street, a vida da cidade, a vida do eremita, etc. Assim falamos há anos e anos; e isso não é também um hábito?
Enfrentar a vida é encará-la como um todo, e não fragmentariamente; e isso só podeis fazer ao vos conhecerdes. É porque não conheceis o inteiro mecanismo de vós mesmo que dividis a vida em fragmentos e, dessa maneira, perpetuais o conflito e o sofrimento. Não se pode construir um todo harmonioso juntando fragmentos, mas com o autoconhecimento alcança-se uma plenitude, um senso de totalidade.
Krishnamurti, Saanen, 31 de julho de 1962,
O homem e seus desejos em conflito