Se você se sente grato por este conteúdo e quiser materializar essa gratidão, em vista de manter a continuidade do mesmo, apoie-nos: https://apoia.se/outsider - informações: outsider44@outlook.com - Visite> Blog: https://observacaopassiva.blogspot.com

Mostrando postagens com marcador percepção. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador percepção. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 20 de abril de 2018

O desejo de libertação produz condicionamento

O desejo de libertação produz condicionamento

[...] PERGUNTA: Como pode ser mantida a atenção decorrente do percebimento?

KRISHNAMURTI: Senhor, peço vênia para dizer, mui respeitosamente, que acho que fizestes uma pergunta algo incorreta. Porque desejar manter a atenção? Que existe atrás desta palavra — "manter"? Desejo manter um certo estado de relação com minha mulher, meu marido, um amigo. Desejo conservá-lo vivo, em um certo nível, num certo grau de "afinação", de modo que possamos sempre amar-nos e corresponder-nos completamente. Ou desejo conservar um certo sentimento. E como o conservarei? Dizendo "Quero mantê-lo vivo" — isto é, mediante a volição, a vontade. E que acontece quando mantendes alguma coisa pela ação da vontade? Essa coisa se torna quebradiça e é destruída. Pode-se manter o amor pela volição, pela vontade? Ora, deve haver uma maneira diferente de atender a esta questão.

Digamos que percebo, num rápido instante, o que significa "estar lúcido". Percebo-o a pleno, e não apenas verbalmente. Surpreendi-me num momento de lucidez sem escolha, e compreendi o que isso significa verdadeiramente. Por um segundo, estou lúcido, e percebo a extraordinária liberdade, a beleza e alegria existentes nesse estado. Digo então de mim para comigo: "Preciso manter isso"; e, no momento em que desejo manter esse estado, ele se torna memória. O que estou mantendo não é o fato, porém a memória do fato e, por conseguinte, uma coisa morta. Vede isto, por favor!

Lembro-me de meu irmão, meu filho, minha mulher, meu marido, que morreu, e estou vivendo nessa memória, conservando-a, com todos os seus deleites, desesperos, ânsias — sabeis de tudo por que passamos. Mas não tratei de descobrir o que significa morrer uma pessoa; não estou ciente do significado da morte. É preciso, pois, estar-se apercebido do significado do fato, e não, simplesmente, viver numa memória. Compreendeis, senhor? "Não viver numa memória" significa: nunca dizer, a respeito de uma experiência ligada a certa relação: "Quero conservar isto, quero que isto continue". Então, a morte de alguém não tem importância. Isto não é insensibilidade ou indiferença. Estai atento ao presente, a cada minuto — e vereis.

Transmiti-vos alguma coisa?

A verdade não tem continuidade, porque está além do tempo; e o que tem continuidade não é a Verdade. A Verdade é para ser percebida instantaneamente, e esquecida — "esquecida", no sentido de que não a levemos conosco como lembrança da Verdade que foi percebida. E porque vossa mente está livre da memória, a qualquer instante — no próximo minuto, no dia seguinte ou um pouco mais tarde — a Verdade reaparecerá.

Como não tem continuidade, a Verdade só pode ser vista quando a mente toda inteira está livre desse mecanismo, de manter, de rememorar, de reconhecer. Isso exige extraordinária atenção, já que é muito fácil dizer-se: "Ontem eu vi isso, e quero viver com isso". Se ficardes "vivendo com isso", estareis vivendo com uma memória, coisa morta e sem significação, que vos impedirá de ver a Verdade, sempre nova e fresca. Para ver a Verdade, ou a beleza daquela montanha, vossa mente deve estar sobremodo sensível, não ter sido embotada pela memória de coisas passadas; e isso exige — como sabereis se vos observardes — penetrante atenção. Por conseguinte, não deveis permitir que vosso corpo se torne embotado, indolente. Deveis ter um corpo altamente alertado, sensível; porque as condições do corpo influem no cérebro, e o cérebro influi em vosso pensamento. Psicossomaticamente, é necessário estar-se plenamente lúcido.

A memória é mecânica, e tem naturalmente seu lugar próprio. Sem a memória, não saberíeis onde morais, não saberíeis ler e escrever, etc. Mas, com a maioria de nós acontece que a memória — que é o passado — interfere na observação. Quando tiverdes compreendido este fato, tereis espaço para observar; e nesse espaço, por uma fração de segundo, por dez minutos, por uma hora — o período não importa — há percebimento. Mas, se converterdes esse percebimento em memória, nunca mais tornareis a ver.

Em geral, vivemos de memórias: memórias dos ditosos tempos da juventude, lembranças relativas ao sexo, lembranças de nossas alegrias e desesperos, etc. Vivemos no passado e, por isso, nossa mente é insensível; e nosso preparo técnico, portanto, contribui para nos tornarmos autômatos. Estou falando de coisa muito diferente: tornar a mente sobremodo ativa e sensível, pelo percebimento de tudo o que fazeis e deixais de fazer.

INTERROGANTE: Quando estou escutando o que aqui se diz, sinto-me muito vivo e sensível; mas, quando me vou, a sós, ou quando me acho em casa, essa sensibilidade desaparece.

KRISHNAMURTI: Se só tendes sensibilidade enquanto aqui vos achais, nesse caso estais sendo influenciado, e isso nenhum valor tem. O que estais ouvindo é, então, mera propaganda e, por conseguinte, deveis evitá-lo, rejeitá-lo, destruí-lo, pois é assim que se criam os Mestres, os instrutores, as autoridades. Mas se, ouvindo-me falar, estivestes apercebido de vossas próprias reações, a cada minuto, acompanhando o que estivemos dizendo durante mais de uma hora; se estivestes atento não só às palavras do orador, mas também aos movimentos de vosso próprio pensamento e sentimento, então, ao sairdes daqui, sozinho, conhecereis o estado de vossa mente e nunca vos deixareis colher cegamente em suas redes.

PERGUNTA: Não achais que o desejo de libertação é, em parte, a causa de nosso condicionamento?

KRISHNAMURTI: Naturalmente, senhor; o desejo de nos libertarmos de condicionamento só pode favorecer o condicionamento. Mas se, em lugar de tentarmos reprimir o desejo, compreendermos o seu inteiro "mecanismo", então, nessa própria compreensão, surge a liberdade, a libertação do condicionamento. A libertação do condicionamento não é um resultado direto. Compreendeis? Se me aplico deliberadamente a livrar-me de meu condicionamento, esse próprio desejo cria seu peculiar condicionamento. Posso destruir uma forma de condicionamento, mas fico enredado noutra. Já se houver compreensão do próprio desejo — inclusive, também, o desejo de libertação — então, essa mesma compreensão destrói completamente o condicionamento. A libertação do condicionamento é um resultado acessório, e sem importância. O importante é compreender o que cria o condicionamento.

Krishnamurti, Saanen, 24 de julho de 1963,
Experimente um novo caminho

Da percepção nasce a atenção

[...] Para o homem religioso não existem teorias, nem crenças ou ideais de qualquer espécie, porque esse homem está sempre vivendo com plenitude, no presente ativo. Toda dependência de ideia, toda dependência de padrão, todo ajustamento a qualquer teoria ou crença, é coisa totalmente estranha à mente que busca o verdadeiro.

Ora, para a maioria de nós, certas palavras — tais como "morte", "sofrimento", "conflito'', "oração", "Deus" — estão "carregadas" de especial significado; têm para a mente extraordinária significação, e vivemos sob a influência dessas palavras. Elas nos moldam a vida, obrigando-nos a ajustar-nos, a imitar, a disciplinar-nos de acordo com certo e consagrado padrão. E esta manhã vou empregar uma dessas palavras — palavra talvez para muitos um pouco estranha; para outros, entretanto, que porventura leram algo sobre o assunto, terá ela alguma significação. É a palavra "meditação". A meditação, para a maioria dos Ocidentais, é algo de exótico, estranho, asiático; e para as pessoas, em geral, seja no Oriente, seja no Ocidente, é algo que se precisa praticar quando se deseja encontrar a Verdade ou Deus. Sobre isso vou falar, porque, para mim, uma vida sem meditação é uma vida perdida. Se se desconhece o profundo significado e importância da meditação, torna-se muito superficial o viver de cada dia. Mas, para se compreender o conteúdo dessa palavra, e passar além da palavra, requer-se um pensar muito claro, e uma mente alertada, ativa.

Antes de entrarmos nesta questão da meditação, precisamos ter uma noção bem clara do significado da disciplina. Para a maioria de nós, disciplina supõe controle, ajustamento de nosso pensamento e atividade a um certo padrão "ideacional". Ajustar-se, reprimir, seguir, imitar — tudo isso está implicado na palavra "disciplina".

Peço-vos, agora, acompanhar-me muito atentamente, pois isto vai tornar-se muito difícil, árduo, e, se não me seguirdes bem de perto, ativando ao máximo a vossa mente, vos perdereis completamente no caminho. Necessitareis, com efeito, de vossa energia total, para seguirdes o que este orador vai dizer.

Sucede, com a maioria de nós, que nossa mente foi condicionada por meio de disciplina, moldada por inumeráveis influências, pensamentos, experiências, ações, de maneira que a disciplina se nos tornou uma quase segunda natureza. Começamos a disciplinar-nos na escola e do mesmo modo prosseguimos pelo resto da vida, ajustando-nos às exigências da sociedade, submetendo-nos ao padrão consagrado — moral e social — refreando-nos por medo, ajustando-nos à opinião pública, ao que consideramos correto, etc. Está condicionada nossa mente para buscar a segurança mediante disciplina e, apesar disso, pensamos que pela disciplina seremos capazes de descobrir o que é a Verdade. Mas, por certo, para descobrir o que é a Verdade, precisa o indivíduo estar livre de toda disciplina que lhe foi imposta ou que a si próprio impôs. Só pode verificar-se o descobrimento do verdadeiro quando se está livre de ajustamento e de qualquer espécie de medo; há, então, uma disciplina de natureza toda diferente. Já não é disciplina, no sentido de imitação, repressão ou ajustamento a padrão. E um movimento livre, pois não significa fazer algo pelo desejo de um certo resultado, ou por medo. Deve, pois, ficar claramente entendido que qualquer espécie de disciplina que conhecemos denota desejo de ajustar-nos, de pôr-nos em segurança, e que, atrás desse desejo, está o medo — o medo à insegurança, de não obter o que se deseja, de não descobrir a verdade final, etc. etc.

Outra coisa muito necessária é estarmos apercebidos de quanto estamos condicionados pela sociedade, pelas inúmeras experiências que temos tido — e isso significa que devemos estar totalmente apercebidos de nossa consciência integral, e não apenas de certas partes dela. "Estar apercebido" requer espaço para a observação — isto é, que haja em nossa mente espaço, de modo que possamos observar sem opinião, sem avaliação, sem conclusão. Em geral, nenhum espaço temos na mente, porque nos chegamos a tudo o que observamos com uma conclusão, uma ideia, uma opinião, um juízo, uma avaliação; condenamos, aprovamos ou justificamos o que vemos, ou com isso nos identificamos, de modo que nenhum espaço existe dentro do qual possamos observar.

Por favor, não façais disso uma teoria ou coisa que se tem de praticar, pois isso seria terrível, já que tudo o que se pratica se torna hábito. Infelizmente, quase todos vivemos numa série de hábitos, agradáveis ou desagradáveis — o que é extremamente destrutivo da inteligência. Pela observação de vós mesmos, percebereis a verdade ou a falsidade desta asserção.

Sabeis o que é aprender? Aprender — no genuíno sentido da palavra — não é adicionar. Não é acumular conhecimento se, depois, pelo observar, pelo experimentar, acrescentar o que se aprendeu antes. Quando só se trata de acumular conhecimentos e de adicioná-los ao que já se sabe, nunca há liberdade para observar; por conseguinte, não se está aprendendo. Compreendeis? Se não, discutiremos sobre isso, depois.

Por "percebimento", entendo um estado de vigilância em que não há escolha. Estamos simplesmente observando o que é. Mas ninguém pode observar o que é, se tem alguma ideia ou opinião a respeito do que vê, dizendo-o "bom" ou"mau", ou de outro modo o avaliando. A pessoa tem de estar totalmente apercebida dos movimentos de seu próprio pensamento, de seu próprio sentimento, tem de observar suas próprias atividades, tanto conscientes como inconscientes, sem avaliação. Isso requer mente alertada e ativa no mais alto grau. Mas, acontece que a mente da maioria de nós está embotada, semi-adormecida; só certas partes dela se acham ativas — as partes especializadas, pelas quais funcionamos automaticamente, pela associação, pela memória, tal como um cérebro eletrônico. A mente, para ser vigilante, sensível, necessita de espaço, no qual possa olhar as coisas sem nenhum fundo de conhecimentos prévios; e uma das funções da meditação é levar a mente a um extraordinário estado de alerta, atividade, sensibilidade.

Estais seguindo bem isto?

Estar vigilante é o indivíduo observar a própria atividade corporal, a própria maneira de andar, de sentar-se, os movimentos das próprias mãos; é ouvir as palavras que emprega, observar todos os seus pensamentos, todas as suas emoções, todas as suas reações. Inclui o percebimento do inconsciente com suas tradições, seu conhecimento instintivo, e o imenso sofrer que ele acumulou — não apenas o sofrer pessoal, mas também o sofrer humano. De tudo isso deveis estar apercebido; e não o podeis, se estais meramente a julgar, a avaliar, a dizer: "Isto é "bom", aquilo é "mau"; conservarei isto e rejeitarei aquilo" — já que todas essas coisas tornam a mente embotada, insensível.

Do percebimento nasce a atenção. A atenção deflui do percebimento, quando nesse percebimento não há escolha; quando não se está escolhendo nem experimentando pessoalmente (sobre isto falarei mais adiante), porém simplesmente observando. E para se poder observar, necessita-se, na mente, de uma vasta porção de espaço. A mente que está toda enredada na ambição, na avidez, na inveja, na busca do prazer e do auto-preenchimento — com os inevitáveis pesares, dores, desespero, e aflição, que ocasionam — não dispõe de espaço, para observar. Está repleta de seus próprios desejos, a dar voltas e mais voltas nas águas represadas de suas próprias reações. Não podeis estar atento, se vossa mente não é altamente sensível, penetrante, racional, lógica, sã, vigorosa, sem a mais leve sombra de neurose. Deve a mente explorar todos os seus próprios recessos, sem deixar um só por descobrir; porque, se houver um só recesso mental que temermos investigar, daí brotará a ilusão.

O cristão que vê Cristo em sua meditação, em sua contemplação, pensa ter alcançado um estado maravilhoso, mas suas visões são meras "projeções" de seu próprio condicionamento. O mesmo acontece com o hinduísta que, sentado à margem de um rio, entra num estado de êxtase. Tem, também ele, visões nascidas de seu próprio condicionamento, e o que vê, por conseguinte, não constitui uma verdadeira experiência religiosa. Mas, pelo percebimento, pela observação livre de escolha — a qual só é possível quando há na mente espaço para observar — dissolvem-se todas as formas de condicionamento e, então, já se não é hinduísta, nem budista, nem cristão, porque todas as ideias, crenças, esperanças e temores desapareceram definitivamente. Daí vem a atenção, não atenção aplicada a uma certa coisa, porém um estado de atenção em que não há "experimentador" e, por conseguinte, não há experiência. Isto é de enorme importância e deve ser compreendido por todo aquele que se está realmente esforçando por descobrir o que é a Verdade, o que é religião, o que é Deus, o que existe além das coisas construídas pela mente.

No estado de atenção, não há reação: a pessoa está, simplesmente, atenta. A mente explorou e compreendeu todos os seus próprios recessos, todos os inconscientes motivos, exigências, preenchimentos, ânsias, pesares; por conseguinte, no estado de atenção há espaço, há vazio; não há experimentador a experimentar alguma coisa. Achando-se vazia, a mente não está "projetando", buscando, desejando, esperando. Compreendeu todas as suas próprias reações e "respostas", sua profundidade, sua superficialidade, e nada mais resta. Não há divisão entre o observador e o que ele observa. No momento em que há separação entre "observador" e "coisa observada", há conflito que é o próprio intervalo entre ambos. Já examinamos isso, e vimos quanto é importante estarmos completamente livres de conflito.

Isso talvez seja um pouco mais complicado do que as coisas que estais acostumados a ouvir, pois estou falando sobre a meditação — algo que transcende todas as palavras.

Ora, é só no estado de atenção que podeis ser vossa própria luz, e então todas as ações de vossa vida diária nascerão dessa luz — todas as ações, quaisquer que sejam: exercer o emprego, cozinhar, lavar, remendar roupas, etc. Todo esse mecanismo constitui a meditação, e sem ela a religião nada significa, torna-se mera superstição explorada pelos sacerdotes.

Para a maioria das pessoas que praticam o que chamam "meditação", esta é uma espécie de auto-hipnose. Tendo tomado "lições de meditação" ou lido livros sobre a matéria, põem se sentadas, de pernas cruzadas e percorrem toda a série de "habilidades" que aprenderam — respirar com a máxima regularidade, controlar os pensamentos, etc. etc. Há muitos sistemas de meditação, mas se compreenderdes um só deles, tereis compreendido todo o seu conjunto, porque todos eles visam ao autocontrole ou à auto-hipnose, como meios de se alcançarem certas experiências consideradas maravilhosas, porém, em verdade, ilusórias. Essa forma de meditação é de todo em todo infantil, sem nenhuma significação. Podeis praticá-la durante dez mil anos, e nunca descobrireis o que é verdadeiro. Podeis ter visões, "experimentar" o que pensais ser Deus, a Verdade, etc., mas tudo será coisa "projetada" por vossas próprias reações, por vosso próprio condicionamento e, por conseguinte, sem significação alguma.

Mas, eu estou falando de coisa completamente diferente: O libertar da mente, pela intensa vigilância, de todas as suas reações, e produzir, assim, sem o exercício de controle, de vontade deliberada, um estado de quietude interior. Só a mente muito ardorosa, altamente sensível, pode achar-se verdadeiramente quieta, e não aquela que está paralisada pelo medo, pelo sofrimento, pela alegria, ou entorpecida pelo ajustamento a inumeráveis exigências sociais e psicológicas.

A verdadeira meditação é inteligência em sua forma mais elevada. Não é questão de se ficar sentado a um canto, de pernas cruzadas e olhos fechados, ou ficar de pernas para o ar, apoiado na cabeça, ou o que mais seja. Meditar é estar completamente apercebido, quando se está passeando, quando viajando de ônibus, trabalhando no escritório ou na cozinha; é estar o indivíduo completamente apercebido das palavras que emprega, dos gestos que faz, de sua maneira de falar, de comer, seu costume de empurrar os outros. Estar apercebido, sem escolha, de tudo o que se passa em torno de vós e dentro em vós — isto é meditação. Se dessa maneira ficardes apercebido da incessante propaganda política e religiosa, das numerosas influências que vos rodeiam, vereis com que rapidez sereis capaz de compreender cada influência com que entrardes em contato, e dela vos libertar.

Mas, são raríssimos os que vão tão longe, já que quase todos estamos condicionados por nossas tradições. Isso é verdade, principalmente para quem vive na Índia, onde é absolutamente necessário fazer certas coisas — controlar completamente o corpo e, consequentemente, controlar completamente o pensamento. Por meio desse controle, espera-se alcançar o Supremo, mas o que for alcançado será o resultado da própria auto-hipnose de cada um. No mundo cristão faz-se mesma coisa, de maneira diferente. Mas, eu me estou referindo a algo que requer inteligência em sua mais elevada forma.

Ora, a mente que deseja experiência não é inteligente; e, se observardes, vereis que a maioria de nós deseja experiência. Cansados dos rotineiros "desafios e respostas" que há tanto tempo conhecemos, apelamos para a chamada meditação, ou ingressamos em tal ou qual igreja, esperando que por esse ou qualquer outro meio misterioso, iremos ter novas e mais profundas experiências. Mas a mente que se acha no estado de "desejo de experiência" — por mais exaltada que seja tal experiência — não é inocente; por conseguinte, não há isso que se chama "experiência religiosa". Só a mente que está desejando, buscando, tateando, ansiosa, desesperada — só essa pede experiência. A mente que é altamente sensível, já que é a luz de si própria, não tem desejo nem necessidade de experiência, essa mente, por conseguinte, se acha num estado de inocência; e só a mente inocente e altamente sensível pode estar quieta. Quando a mente está totalmente quieta, porque cada uma de suas partes é viva, sensível, acha-se então num estado de meditação; e daí pode prosseguir, até descobrir o que é a Verdade. Mas, enquanto não se achar nesse estado de meditação, toda tentativa que a mente faça para descobrir o que é a Verdade, o que é Deus, o que é "essa coisa" existente além dela própria (da mente) — será pura perda de tempo, e conducente à ilusão. O achar-se nesse estado de meditação requer extraordinária energia; e vós tereis pouquíssima energia, enquanto estiverdes em conflito, enquanto tiverdes os problemas do desejo. Por essa razão é que, como tenho dito desde o começo, todo conflito, toda exigência de preenchimento, com sua esperança e seu desespero, têm de ser compreendidos e dissolvidos. A mente, então, não tem ilusões, porque já não tem o poder de criar ilusões.

A mente que está toda enredada em problemas, no medo, no desespero, no desejo de preenchimento próprio, está sempre criando a ilusão e, por conseguinte, se encontra num estado de neurose. Esta é a primeira coisa que é necessário compreender. Mas, quando a mente é altamente sensível e está livre de todas as ilusões, então, nessa claridade, nessa sensibilidade, há inteligência; e só então pode a mente estar quieta, completamente e sem esforço algum. Esse estado de quietude completa e livre de esforço é o começo da meditação.

Assim, pois, há primeiramente um percebimento, uma observação sem escolha, de todos os vossos pensamentos e sentimentos, de tudo o que fazeis. Nasce, daí, um estado de atenção sem fronteiras, mas em que a mente pode concentrar-se; e desse estado de atenção resulta a quietude mental. E quando a mente está totalmente quieta, sem nenhuma ilusão, sem qualquer espécie de auto-hipnose, vem à existência algo que não foi formado pela mente.

Apresenta-se-nos agora a dificuldade de expressar em palavras algo que é inexprimível — e é esse algo que estamos buscando. Todos desejamos encontrar algo transcendental, fora deste mundo de agonias, de tirania, de força e subjugação, mundo tão indiferente, empedernido e brutal. Com nossas ambições, nossos nacionalismos, nossa diplomacia, nossas mentiras, estamos continuamente precipitando os horrores da guerra; e, cansados de tudo isso, desejamos a paz. Desejamos encontrar em alguma parte um estado de tranquilidade, de bem-aventurança e, assim, inventamos um Deus, um Salvador, ou um outro mundo que nos ofereça a paz que desejamos, contanto que façamos ou creiamos em certas coisas. Mas uma mente condicionada, por mais que deseje a paz, só provoca a própria destruição; é o que se observa no mundo atual. Todos os políticos do mundo, tanto da esquerda como da direita, usam a palavra "paz", mas esta palavra nada significa. Falo, porém, de algo existente muito além de tudo isso.

A meditação, pois, é o esvaziar da mente de todas as coisas que juntou. Se o fizerdes — talvez não desejeis fazê-lo, mas, sem embargo, escutai! — vereis abrir-se um extraordinário espaço em vossa mente, e esse espaço é liberdade. Assim, deveis exigir a liberdade justamente no começo, e não ficar aguardando, esperando alcançá-la no fim. Deveis buscar o significado da liberdade em vosso trabalho, em vossas relações, em tudo o que fazeis. Vereis, então, que meditação é criação.

"Criação" é uma palavra que empregamos tão levianamente, tão facilmente! Um pintor espalha umas poucas tintas sobre uma tela e por causa disso se põe num extraordinário estado de entusiasmo. Trata-se de seu preenchimento, de seu meio de "expressão"; do "mercado" em que irá ganhar dinheiro ou reputação. E a isso ele chama "criação"! Todo escritor "cria'', e há escolas onde se ensina a escrever "criadoramente"; mas nada disso tem a mínima relação com a criação. Tudo é só reação condicionada de uma mente que vive em determinada sociedade.

A criação a que me refiro é coisa inteiramente diferente. É a mente no estado de criação. Ela poderá expressar ou deixar de expressar tal estado. A expressão é de muito pouco valor. Aquele estado de criação não tem causa e, por conseguinte, a mente que nele se acha está, a cada momento, morrendo e vivendo e amando e sendo. Tudo isso é meditação.

Desejais discutir sobre isto?

Krishnamurti, Saanen, 24 de julho de 1963,
Experimente um novo caminho



quinta-feira, 19 de abril de 2018

A suprema sensibilidade da percepção sem pensamento

A suprema sensibilidade da percepção sem pensamento

[...] A mente vulgar, superficial, pode também tornar-se muito "séria"; mas, quando se torna "séria", torna-se também algo absurda. Não sei se já notastes como as pessoas de mente vazia se mostram, frequentemente, muito sérias. São muito loquazes, tomam ares importantes, e para essa mente tudo se torna um problema que cumpre estudar, analisar, penetrar; entretanto, continua a ser uma mente muito pouco profunda. E há, também, a mente muito lida, muito hábil no argumentar, no analisar, capaz de aduzir citações, extraídas de seu vasto reservatório de conhecimentos. Como muito bem sabeis, esse tipo de mente é solerte, incisivo, hábil, mas eu não a chamaria uma mente séria, como assim não o chamaria à mente superficial que quer mostrar-se séria. E há, ainda, a mente sentimental, emotiva, que facilmente se apaixona e se deixa levar a um sentimento de superficial qualidade, chamado "devoção"; mas essa mente, para mim, também não é séria.

Por mente séria entendo aquela que é profundamente religiosa. A mente religiosa pode ser intelectual, ser capaz de argumentar, de discutir, mas suas bases se acham num nível completamente diferente. A mente religiosa não pertence a nenhuma sociedade, grupo ou religião organizada, em particular. Os componentes de tais grupos não são sérios, em absoluto, ainda que se tornem monges e freiras, ainda que frequentem a igreja todos os dias ou três vezes ao dia, ou o que quer que façam. Não quero parecer dogmático ou intolerante, mas ireis perceber, ao prosseguirmos, quanto é necessário, urgente, termos uma mente que não esteja simplesmente a buscar; porque a mente que busca está sempre em conflito. Apreciarei toda esta matéria no decorrer destas dez palestras.

O importante é termos uma mente que tenta — ou, pensando melhor, prefiro não empregar a palavra "tentar", que é uma palavra burguesa, se assim me posso expressar, sem denotar condenação. Não dou à palavra “burguês” o sentido que lhe dão os comunistas. Quero apenas indicar que é uma mente vulgar, embotada, aquela que diz “tentarei”. Seriedade não é questão de tentar, é questão de ser.

Chamo séria à pessoa que está constantemente olhando, observando, atenta a si própria e a outros, observando seus próprios gestos, palavras, sua maneira de falar, sua maneira de andar; e que está também atenta às coisas que a cercam, às pressões, às tensões, à influência do ambiente, da "cultura" em que se criou, e à totalidade de seu próprio condicionamento. A mente da pessoa que está totalmente atenta, eu chamo mente séria. Só essa mente é capaz de exame refletido, de dedicar sua energia a descobrir algo além das coisas construídas pelo homem — algo que se possa chamar Deus, ou como quiserdes.

[...] Como disse, em geral pensamos ser sérios; mas, a meu ver, a qualidade que consideramos como seriedade deve ser radicalmente modificada, porque, no sentido em que estou empregando a palavra, nós não somos sérios. Muitos dentre vós me têm ouvido falar repetidas vezes — feliz ou infelizmente — nestes últimos quarenta anos e, se deveras fossem sérios, se teriam transformado completamente. E o mundo tem necessidade de tal transformação, de total mutação da mente. Mas essa mutação não pode ocorrer mediante uma certa prática deliberada, ou pelo aderir a um dado conjunto de sutis ideias teológicas ou práticas. A transformação a que me refiro não se produz por meio de ideia — sendo "ideia" uma conclusão "racionalizada", lógica, um sistema de palavras e pensamentos, convenientemente organizados. Por mais que possamos organizar o pensamento e atuar em conformidade com ele, por meio desse pensamento e desse atuar não é possível a mutação. Trata-se de coisa toda diferente, de uma qualidade completamente diversa; é a esse respeito que vou falar nesta série de reuniões.

Ora, uma das perguntas mais importantes que devemos fazer a nós mesmos é esta: até onde, até que profundidade pode a mente penetrar em si mesma? Esta é a qualidade de seriedade a que me refiro, porquanto implica que estamos atentos a toda a estrutura de nosso próprio ser psicológico, como seus impulsos e "compulsões", seu desejo de preenchimento e consequentes frustrações, suas angústias, tensões e ansiedades, suas lutas, e pesares, e inumeráveis problemas. A mente que está perpetuamente às voltas com problemas não é, de modo nenhum, uma mente séria; mas a mente que compreende cada problema que surge e imediatamente o dissolve, para que não seja "transportado" para o dia seguinte, essa é a mente séria.

Mas, por infelicidade, nós somos educados erroneamente. Nunca nos mostramos verdadeiramente sérios, a não ser quando se apresenta uma crise, uma exigência tremenda, ou quando recebemos um golpe terrível. Então, tentamos tornar-nos sérios, fazer alguma coisa — porém tarde demais. Crede-me, senhores, por favor: isto não é sarcasmo de minha parte; estou apenas apontando-vos fatos.

Em que está interessada a maioria de nós? Se temos dinheiro, voltamo-nos para as chamadas "coisas espirituais", ou buscamos entretenimento intelectual, ou discutimos sobre arte, ou damos para pintar, a fim de expressarmos nossa personalidade. Se não temos dinheiro, a maior parte de nosso tempo se consome, dia após dia, em ganhá-lo, e ficamos presos nessa rede de aflição, de interminável rotina e tédio. Em grande parte, somos preparados para funcionar mecanicamente, numa certa ocupação, entra ano e sai ano. Temos responsabilidades, mulher e filhos para sustentar e, vendo-nos completamente embaraçados nas redes deste mundo insano, tentamos tornar-nos sérios, tornar-nos religiosos; frequentamos a igreja, ingressamos nesta ou naquela organização — ou, talvez, ouvindo falar a respeito destas reuniões, e estando em férias, vimos ter aqui. Mas nada disso poderá realizar aquela extraordinária transformação da mente.

O mundo se acha num estado de crise, e observa-se desintegração, degeneração. Vemo-nos arrastados por essa onda de degeneração e parecemos totalmente incapazes de mover-nos para fora dela. Pois bem, para que estas palestras tenham algum valor, alguma significação, temos de averiguar o que é necessário fazer, para sairmos desta onda de degeneração. Em maioria, estamos envelhecendo; aqueles que, feliz ou infelizmente, me têm escutado nestes últimos trinta ou quarenta anos, estão evidentemente muito mais velhos do que estavam quando começaram a ouvir-me. Fisicamente, degeneraram e, mentalmente... bem, eles próprios sabem melhor do que eu se degeneraram. E durante estas palestras e subsequentes perguntas e respostas, iremos tratar de descobrir por nós mesmos, sem nenhuma sombra de dúvida, aquela extraordinária energia que surge espontânea e que, natural e inevitavelmente, nos impelirá para fora da onda de degenerescência. Isso não quer dizer que iremos rejuvenescer, fisicamente — esta é uma "daquelas" ideias absurdas, fantásticas, românticas. Eu me refiro a um estado mental interior que não degenera.

Vem a degeneração sempre que há conflito de alguma espécie, e é o conflito o que faz de vós isso que comumente se chama "um indivíduo". Pelo conflito, desenvolve-se o caráter e, como dentro da estrutura psicológica da atual sociedade sempre há conflito, temos de ter caráter. Vede: caráter significa resistência. Para abandonar o mundo e tornar-se monge, um homem necessita de caráter. Mas, não estamos falando a respeito de caráter, coisa relativamente fácil de adquirir. Estamos falando a respeito da mente que está completamente livre de conflito; pois só essa mente — a mente totalmente livre de toda espécie de conflito, consciente e inconsciente — nenhum problema tem. Se algum problema surge, ela é capaz de enfrentá-lo e de dissolvê-lo imediatamente. Essa mente é individual, no genuíno sentido da palavra; é única. E parece-me sobremodo importante que sejamos indivíduos assim; mas, não o somos.

Falando de individualidade, refiro-me à mente que está de todo só. Ainda que tenha passado por mil experiências, ainda que haja tido mil memórias, vivido mil anos, essa mente olhou a si própria, frente a frente, e já não é escrava da estrutura psicológica da sociedade. Ela está só — o que não significa estar isolada. Há enorme diferença entre esses dois estados. A mente que se isola torna-se neurótica. A mente isolada identificou-se com determinada ideia ou crença, isto é, com uma certa forma de conforto psicológico; e, quanto mais assim se isola, tanto mais espera ficar livre de conflito. Mas, o próprio mecanismo de isolamento é conflito, é resistência. Examinaremos tudo isso enquanto formos prosseguindo; agora, porém, estamos falando a respeito da mente que se individualizou, pelo percebimento de seu próprio "mecanismo", pela compreensão da estrutura, da psique própria, tanto consciente como inconsciente. É possível ultrapassar o inconsciente; mas este não é o momento oportuno para entrarmos em minúcias sobre a natureza do inconsciente e sobre a maneira de ultrapassá-lo. O que nesta manhã nos interessa é estabelecer as bases para nossa ulterior investigação.

Ora, só a mente que está completamente só pode achar a realidade. E existe uma realidade — não uma realidade teórica, não uma certa coisa inventada pelos cristãos ou pelos hinduístas ou experimentada por uns poucos santos, conforme o peculiar condicionamento de cada um, porém uma realidade, uma imensidade que só pode ser descoberta pela mente que percebeu seus próprios movimentos e compreendeu a si própria.

É maravilhoso uma pessoa descobrir por si mesma o que significa compreender uma coisa imediatamente, sem necessidade de palavreados; ver um fato como fato, completamente, sem argumentação. Desse ato de perceber pode-se passar à arguição, à discussão, ao exame das minúcias; mas é necessário ter, primeiramente, essa extraordinária intensidade de percebimentopercebimento sem pensamentoque produz a transformação. Isso poderá parecer um tanto absurdo, mas não o é, como vereis quando mais tarde o examinarmos.

Olhamos para as coisas, escutamo-las, tal como agora estamos fazendo. O que escutamos são apenas palavras, e estas produzem certas reações, conscientes ou inconscientes; e estas reações interpretam o que escutais. Vós já sabeis a respeito de que o orador está falando, pois o vindes escutando há trinta anos; ou, também, tendes lido muito, não só sobre o assunto de que está tratando o orador, senão também sobre outros mais. Nesse fundo em vós existente, as palavras provocam uma reação, e essa reação vos impede o escutar, vos impede o ver. Não sei se alguma vez já observastes, ao verdes subitamente algo muito belo — uma montanha majestosa, um rio de águas rápidas, ou um lindo sorriso de criança — não sei se já observastes de que maneira olhais isso, de que maneira o vedes. No primeiro momento da percepção, nenhum pensamento existe — trata-se de algo tão maravilhoso, que não há palavras que o expressem. Mas, um segundo após, entra em ação a verbalização, e começais a interpretar, a traduzir, a recorrer à memória. Essa ação impede o ver, impede o escutar.

Pois bem: Mesmo que já me tenhais ouvido muitas vezes, não podemos, no prosseguimento destas palestras, três vezes por semana, descobrir, por nós mesmos o que é esse ato de ver, esse ato de escutar? Se pudermos fazê-lo, tudo o mais virá por si, porque o próprio ato de ver produz transformação. Mas, para ver, para escutar, deve a mente estar completa e espontaneamente quieta — sem ter sido forçada, disciplinada para a quietude. Só a mente verdadeiramente quieta pode escutar, pode ver, e não aquela que tem uma infinidade de problemas. Ao perceber a mente que não pode ver, por causa de seus numerosos problemas, esse reconhecimento da própria incapacidade de ver dá origem ao ato de ver.

Tudo isso requer excepcional atenção. Quando sois capaz de atenção completa, não-dividida — não apenas atenção intelectual ou verbal — capaz de estar atento com a totalidade de vosso ser — corpo, mente, emoção — vos achais, então, num estado de suprema sensibilidade. Só então é a mente virtuosa.

Escutai isto, por favor: O homem que luta para alcançar a virtude não é virtuoso. O homem que luta para ser bom, generoso, não é bom nem generoso, porque a bondade, a generosidade, ou amor, só vem quando a mente se acha tão completamente atenta, que nenhum conflito tem.

Krishnamurti, Saanen, 7 de julho de 1963,
Experimente um novo caminho

O estado de inocência e de inteligência desperta


O estado de inocência e de inteligência desperta

[...] PERGUNTA: A inocência que tendes descrito difere da meditação?

KRISHNAMURTI: Em algumas de nossas reuniões, aqui, tive ocasião de falar a respeito do estado de “inocência”. Disse que a mente inocente é aquela que não está aprisionada na estrutura psicológica da sociedade e, por conseguinte, se acha livre de conflito; sobre ela não pesam as lembranças de coisas passadas — o que, entretanto, não significa um estado de amnésia. Já não a prende nenhuma técnica, embora a técnica seja necessária. E o interrogante deseja saber se há diferença entre esse “estado de inocência” e a meditação, sobre que estive falando esta manhã.

Uma de nossas dificuldades, assim me parece, é que nos apoderamos de uma palavra, tal como “inocência”, ou “imensidade”, ou “criação”, e depois procuramos relacionar todas as coisas com essa palavra. Como já disse, a palavra não é a realidade. A palavra “meditação” não é a própria meditação; a palavra “inocência” não é o estado de inocência. Mas, quando existe esse estado de inocência, ele é também estado de meditação. Não podeis alcançar essa inocência enquanto fordes ambicioso, enquanto vossa mente for medíocre, enquanto estiverdes aprisionado na estrutura psicológica da sociedade e nada fordes senão uma técnica “corporificada”, como o somos na generalidade. Exercemos certa atividade, pois temos de ganhar o sustento, e pouco melhores somos do que máquinas, por mais talentosos, sagazes e sutis que sejamos. Uma mente “maquinal” não é uma mente “inocente”. Os computadores, os cérebros eletrônicos provavelmente são “inocentes”, mas são feitos de metais e não são entes vivos como nós. Com o tempo poderá ser inventada uma máquina com uma determinada espécie de vida própria — e talvez não estejamos muito longe disso. Mas, quando nos reduzimos ao ponto de funcionar como máquinas em nosso esforço tecnológico, nossa aquisição de saber, nosso acumular de experiência — assim não haverá inocência. A inocência é aquele estado no qual a mente é sempre jovem e fresca. A mente inocente nenhum medo tem da morte, nem de coisa alguma e está, portanto, livre do tempo.

PERGUNTA: Talvez possamos ficar nesse estado de inocência, ou meditação, enquanto despertos; mas que acontece quando dormimos?

KRISHNAMURTI: Estamos despertos durante o dia? Presumimos que sim. Achamo-nos despertos se deixamo-nos aprisionar em hábitos de pensamento, em atividades e condutas rotineiras? Se constantemente condenais, comparais, julgais, avaliais, ou vos considerais como pertencente a uma certa raça, nacionalidade, “cultura” ou religião — estais desperto? Se o hábito vos domina e, por conseguinte, não vos achais desperto durante o dia, o sono, nesse caso, é apenas uma continuação desse mesmo estado mental. Faz, então, muito pouca diferença se, fisicamente, estais dormindo ou acordado. Podeis frequentar assiduamente a igreja, recitar orações, ou cantar um mantra, como acontece na Índia, ou entregar-vos a qualquer das outras práticas como habitualmente fazem as chamadas pessoas religiosas; ou podeis repetir chavões (slogans), como os políticos, ou contemplar a vida do ponto de vista artístico; mas constitui qualquer dessas coisas um estado de inteligência desperta? Encontrar-se nesse estado de “inteligência desperta” é ser a luz de si mesmo. Não se tem então nacionalidade, nem igreja, nem Deus; não se depende da música, da pintura, da beleza das montanhas; não se depende da família, do marido, da mulher, dos filhos. E quando, interiormente, uma pessoa se acha desperta, que é então o sono? Que significação tem o sono quando tanto o consciente como o inconsciente se mantêm totalmente despertos?

É a pessoa embotada, envolvida em conflito, que sonha. Os sonhos são apenas sugestões do inconsciente. Conservando-nos atentos durante o dia, tudo observando, dentro e em redor de nós — mas não de um centro de julgamento ou condenação, se assim nos achamos, ao dormir, não sonhamos. Se quando estais desperto — tomando um ônibus, ouvindo um concerto, passeando a sós, conversando com amigos — percebeis, de imediato e sem reação, as sugestões ou mensagens do inconsciente; se todas as coisas que se passam interior e exteriormente são de pronto observadas, reconhecidas, compreendidas, então, ao dormirdes vossa mente estará quieta; e, porque está quieta, pode alcançar grandes profundidades. E vereis que esse estado de profundo silêncio durante o sono traz frescor, purificação, e, assim, o dia seguinte é um dia diferente, traz consigo algo novo. Mas tudo isso requer uma extraordinária percepção interior.

Krishnamurti, Saanen, 9 de agosto de 1962,
O homem e seus desejos em conflito


A mente religiosa e a percepção direta


A mente religiosa e a percepção direta

[...] Mente religiosa não é a mente confusa, estagnada, prisioneira da crença, do dogma, do ritual. Ela não é escrava de nenhuma autoridade. Não pertence a nenhum grupo, nenhuma religião organizada, não recorre a nenhum Salvador, Mestre, ou Guia. Ela é a luz de si mesma.

Religiosa é a mente que está livre de toda influência. O ser dominada por qualquer espécie de influência deforma a mente. Não podemos eliminar as influências, mas cumpre cientificar-nos delas. Devemos perceber o quanto influem em nossa mente, consciente ou inconscientemente, as leituras sobre a meditação, isto é, acerca dos vários sistemas de meditar que prometem ao “meditador” certos resultados, desde que se ajuste a um determinado modo de praticá-la. Precisamos conscientizar-nos de tudo isso e, em seguida, pô-lo de lado.

A mente religiosa é simples, sem complicações. Para mim a palavra “simplicidade” significa “não estar envolvido em conflito”. Não significa tomar só uma refeição por dia, andar de tanga, ou retirar-se para um mosteiro. Isso não é simplicidade, absolutamente. A mente está então apenas se ajustando a um padrão por ela própria ou por outro estabelecido, como reação à complexidade da vida.

A mente religiosa é simples, direta; não está enredada em palavras e não cria nenhum intervalo de tempo entre o que é e o que deveria ser. Percebe diretamente os fatos psicológicos de sua própria natureza e, por conseguinte, não oferece o solo no qual se enraízam os problemas.

Krishnamurti, Saanen, 9 de agosto de 1962,
O homem e seus desejos em conflito


O silêncio não pode ser experimentado pelo “eu”


O silêncio não pode ser experimentado pelo “eu”

[...] PERGUNTA: Se a compreensão não é permanente, se só se apresenta “num clarão”, que acontece no intervalo entre “clarões”?

KRISHNAMURTI: É preciso compreender a natureza íntima da experiência. Para a maioria de nós a experiência é uma reação, é a “resposta” de nossa memória a um desafio. Essa memória das coisas que conhecemos pode ser antiga ou moderna, superficial ou profunda, e nós “experimentamos” de acordo com esse fundo. As novas experiências vão sendo acumuladas, armazenadas, e tornam, assim, cada vez mais forte o fundo.

Ora, quando há um “clarão de compreensão”, isso não constitui nenhuma “resposta” daquele fundo. Nesse momento, o fundo se mantém em silêncio. Se ele não está em silêncio, não há compreensão, porque, então, apenas interpretais em termos do “velho” aquilo que ouvis ou vedes. O “clarão da compreensão” não é contínuo, não é permanente. A continuidade ou permanência pertence inteiramente ao fundo de experiência e conhecimento que, perpetuamente, está respondendo aos desafios. A compreensão só vem num clarão; e como surge esse clarão? Esse clarão não pode verificar-se na mente indolente, deformada, tradicional, embotada, entorpecida, nem tampouco naquela que visa ao poder, à posição, ao prestígio. O clarão da compreensão só pode ocorrer na mente alertada; e que continua alertada, mesmo quando nenhum clarão ocorre. Essa mente está sempre desperta, vigilante. Estar vigilante, sem diferenciar, observando cada movimento de pensamento e de sentimento, vendo tudo o que se passa — isso é bem mais importante do que aguardar o clarão da compreensão.

[...] PERGUNTA: Quando a mente está perfeitamente quieta, silenciosa, quem está consciente desse silêncio?

KRISHNAMURTI: Quando sois alegre, feliz, no momento em que vos cientificais desse estado, já não sois feliz. Já notastes isso? Não? No momento em que vos identificais com a felicidade, acabou-se a felicidade. Ela é então, apenas, uma lembrança. O silêncio não pode ser experimentado pelo “eu”. Talvez examinemos esta questão quando eu voltar a falar sobre a meditação.

INTERPELANTE: Uma das causas de conflito em mim é a questão de saber o que é correto fazer.

KRISHNAMURTI: Senhor, que é compaixão? Não é um estado de simpatia, piedade, consideração? E nele, por certo, não há o sentimento de ajuda a outrem. Estou aqui ajudando a todos os que me ouvem? Espero que não. Digo-o a sério. Se tenho o sentimento de vos estar ajudando, nesse caso considero-me uma pessoa de maior saber e, desse modo, torno-vos meus seguidores. Não nos referimos a ajudar-nos uns aos outros mas, sim, procuramos descobrir o verdadeiro; e esse descobrimento exige imensa compaixão. Nesse estado de compaixão, podemos dar ajuda, dar simpatia a outro, mas não há conflito interior.

Krishnamurti, Saanen, 7 de agosto de 1962,
O homem e seus desejos em conflito

Como ler a totalidade do livro do inconsciente?


Como ler a totalidade do livro do inconsciente?

[...] Em geral não estamos inteirados de nossos há­bitos e, por isso, eles se tornaram inconscientes. No momento em que percebemos um hábito, arrancamo-lo do inconsciente, não é verdade? Se, toda vez que hesito a respeito de uma coisa, coço a cabeça, sem saber que o estou fazendo, se esse ato é automático e dele não estou ciente, então, obviamente, trata-se de um hábito inconsciente. Mas, desde que me torno plenamente apercebido desse hábito e não resisto a ele, mas me limito a observá-lo, então foi ele “arrancado” do inconsciente.

Ora, é porque os nossos hábitos, em regra, são inconscientes, que nós não os destruímos. Se estamos acostumados a conduzir um carro, ligamos o motor instintivamente e acionamos a alavanca de “mudança”, sem a isso aplicar nenhuma reflexão. Esse é o hábito inerente à técnica; mas, em geral, estamos igualmente inconscientes de como procedemos com os nossos semelhantes. Ao percorrermos uma rua muito movimentada, não notamos quando empurramos alguém, etc. A questão, pois, é de como nos tornarmos plenamente apercebidos de todos os hábitos, “animalísticos” e cultos, que em parte nos foram impostos pela sociedade e em parte nós mesmos cultivamos, inconscientemente. Como empreendereis esse trabalho?

Um indivíduo é hinduísta, cristão, alemão, russo, suíço, americano, etc., com o respectivo conjunto de hábitos, do qual comumente está inconsciente. E como poderá o indivíduo perceber esse condicionamento? Como podereis vos aperceber do inconsciente, onde se encontra essa imensa série de hábitos não revelados? Como cientificar-vos do padrão inconsciente que em vós se acha profundamente enraizado? Ireis procurar um psicanalista, pagando-lhe cinquenta dólares ou cem libras, ou qualquer que seja o preço, para que ele vos “arranque” o padrão do inconsciente? Isso adiantará? Ou vós mesmos vos analisareis?

Que subentende o mecanismo de auto-análise? Quando vos analisais, há divisão entre o observador e o objeto observado, não é verdade? E o observador está tão condicionado como aquilo a que observa; há, pois, conflito entre ambos, entre o analista e a coisa analisada. O analista está sujeito a interpretar erroneamente o que examina e, se resiste a um dado hábito ou procura transformá-lo de acordo com suas próprias idiossincrasias, etc., com isso só dará mais força ao hábito. Por conseguinte, a auto-análise não é, tampouco, o caminho que se deve seguir. Que fazer então?

Tende presente, por favor, que estamos falando sobre como abrir o livro do inconsciente, de modo que se traga à luz todo o seu conteúdo. A análise por parte do profissional não é a maneira correta de abri-lo — a não ser que tenhais dinheiro e lazer e um tão descomunal interesse em ajustar-vos à sociedade, que estejais disposto a recorrer a essa espécie de entretenimento. E, como já expliquei, a análise introspectiva também não é o caminho correto. Se isso está claro, que fareis?

OUVINTE: Nada.

KRISHNAMURTI: E que significa isso, senhor? Se já não estais enredado nessa falaciosa ideia da análise, só há então observação, não é verdade? Há só o estado de ver, sem se traduzir o que se vê. Então, vê-se, apenas.

Mas, geralmente, que nos acontece quando vemos a nós mesmos exatamente como somos? Se percebo que sou brutal, rancoroso, mesquinho, cheio de vaidade, sinto-me deprimido. Digo “que coisa horrível” — e ponho-me em agitação, tentando modificá-la. Ora, essa tentativa de modificar a coisa, essa tentativa de fazer algo em relação a ela, está ainda no terreno da análise. Mas se, ao contrário, limito-me a observar, sem escolha — e isso significa estar observando negativamente — já não há, então, nenhuma série de análises do inconsciente; estou completamente fora do terreno da análise, porque quebrei o padrão.

O importante é romper essa muralha de condicionamento, de hábito. E quase todos nós achamos que poderemos rompê-la por meio da análise, quer feita por nós mesmos, quer por outro; mas isso não é possível. A muralha do hábito só pode ser rompida quando a pessoa está completamente apercebida, sem escolha, negativamente vigilante.

Senhor, quando, subitamente, vedes uma montanha em toda a sua imensidade e beleza, suas imponentes alturas e seus abismos, que podeis fazer em relação a esse espetáculo? Nada, absolutamente. Vós apenas o contemplais, não é assim? Mas, que é que geralmente acontece? Olhais para a montanha em um rápido segundo, e dizeis, em seguida, quanto é bela; e, com essa própria verbalização, já não a olhais, já lhe voltastes as costas. Se olhais realmente para uma certa coisa, vossa mente se toma muito quieta, porque então já não estais julgando, já não estais traduzindo o que vedes em termos de comparação. Apenas olhais — e é isso o que eu entendo por observar negativamente. E se puderdes olhar-vos dessa maneira, todos os hábitos e condicionamentos inconscientes se reduzirão a uma só coisa, que, pela compreensão direta, eliminareis completamente. Isso não são meras palavras. Experimentai-o, e vós mesmo o comprovareis.

INTERPELANTE: Nossa vida de cada dia é cheia de contradições e conflitos, e há tantas coisas que temos de fazer; tudo isso se acha em estranho contraste com o que sentimos e percebemos ao virmos aqui para escutar-vos.

KRISHNAMURTI: Por que criar divisão entre nossa vida diária e aquilo que estamos a escutar? Por que separar as duas coisas? A vida são todas as coisas, não é verdade? A vida é nossa existência de cada dia com sua rotina, seu tédio, seus conflitos, como também o estarmos aqui escutando. A vida é, por igual, o escutarmos as árvores, os pássaros, o rio; é a alegria passageira, o sofrimento, a mágoa. Tudo isso é a vida; mas nós a dividimos em “vida diária” e “outra coisa mais”. Por quê? Por que não olhamos a vida totalmente, e não por fragmentos? Falamos sobre a vida da Wall Street, a vida da cidade, a vida do eremita, etc. Assim falamos há anos e anos; e isso não é também um hábito?

Enfrentar a vida é encará-la como um todo, e não fragmentariamente; e isso só podeis fazer ao vos conhecerdes. É porque não conheceis o inteiro mecanismo de vós mesmo que dividis a vida em fragmentos e, dessa maneira, perpetuais o conflito e o sofrimento. Não se pode construir um todo harmonioso juntando fragmentos, mas com o autoconhecimento alcança-se uma plenitude, um senso de totalidade.

Krishnamurti, Saanen, 31 de julho de 1962,
O homem e seus desejos em conflito

A “explosiva” realização da atenção total

[...] Há o cérebro e há a mente. Notai, por favor, que estou empregando estas duas palavras muito cautelosamente. Há séculos que o cérebro se ocupa com sua própria conservação; ele é produto do tempo, resultado de todos os esforços “animalísticos” do homem. O cérebro humano é ainda como o animal que luta para a própria conservação, e ele é o justo centro do “eu”: minhas posses, minha casa, minha mulher, minha religião. Todos nós o conhecemos. Todos temos esse cérebro que busca a própria conservação; herdamo-lo do passado.

Agora, consoante os biologistas, a parte posterior do cérebro constitui o cérebro animal, e é muito ativa, enquanto que a parte anterior ainda está por desenvolver. Isso não significa que eu leio biologia, mas tenho amigos que o fazem e me disseram que a parte anterior do cérebro não está ainda totalmente desenvolvida, e que o cérebro humano deverá converter-se de “animalístico” em algo novo, maravilhoso. E meu desejo é salientar-vos que para se alcançar a totalidade da mente, que inclui o limitado cérebro, o tempo não é necessário. A mente integral é uma coisa que tem de ser compreendida; não se pode especular a seu respeito, porquanto não se trata de uma simples ideia religiosa, como a ideia de Deus, ou a ideia da alma, ou a ideia do céu. E podemos saltar daquele limitado estado da mente que é produto do passado e se desenvolveu através do tempo, diretamente para o atemporal, o completo, o total? É possível saltar do limitado para o ilimitado? Eis a questão. Eu digo que é possível — mas cumpre romper “explosivamente” com o passado. Precisa-se daquela extraordinária energia sobre a qual estive falando e que não é resultado de ajustamento, de resistência, de conflito. Deve a pessoa estar inteirada de seus próprios instintos animais, ciente do medo, da ambição, das buscas inspiradas pelo desejo; cumpre dar plena atenção a tudo isso. Descobre-se, assim, que o tempo como fator de evolução deixa de existir. Não estou dizendo que não há evolução — pois, de fato, há; mas vós tereis ultrapassado as fronteiras do tempo. O tempo já não será um meio de chegar a alguma parte, um meio de se alcançar gradualmente o Sublime, a mais elevada forma da criação. A o verificar-se essa “explosiva” realização da atenção total, o cérebro, sempre muito ativo no afã de adquirir, torna-se quieto; essa quietude lhe é necessária para superar o mecanismo do tempo.

Notai que a tranquilidade do cérebro faz parte da meditação. Não desejo discorrer agora sobre a meditação; fá-lo-emos dentro em pouco. Mas é preciso percebermos a importância de termos o cérebro tranquilo, pois isso significa ficar livre da estrutura psicológica da sociedade. A estrutura psicológica da sociedade é ainda animalística; ela torna o cérebro ambicioso, ávido, invejoso, ciumento, apegado, e, em tais condições, o cérebro não conhece o amor. Podeis estreitar nos braços um homem ou uma mulher, podeis casar-vos, segurar a mão de um amigo, fazer o que quer que seja, mas não haverá amor enquanto o cérebro ainda constituir uma parte do passado “animalístico”, que constitui a estrutura psicológica da sociedade. A compreensão dessa estrutura, em nós mesmos, faz também parte da meditação; e, se chegardes até aí, descobrireis que, com aquela compreensão, se apresenta uma imensidade, um impulso criador que nada tem em comum com o escrever livros, poesias, ou pintar quadros, nem com nenhum dos absurdos e exigências infantis de uma sociedade em que tanto valor se atribui à fama. É uma criação que se verifica no imensurável — a culminância da existência. Mas, tal só será realizável quando a estrutura “animalística”, a estrutura psicológica da sociedade tiver sido de todo rejeitada — significando isso que a mente, o cérebro, já não é ambiciosa, apegada, dependente, já não deseja preencher-se, já não deseja ser alguém, já não busca o poder, a posição, o prestígio.

Respondi à vossa pergunta, senhor?

OUVINTE: Destes-me algo sobre que pensar.

KRISHNAMURTI: Não penseis nisso, senhor. Pensar sobre uma coisa implica tempo. Dizeis “Não percebo isso agora, mas vou refletir a seu respeito e posteriormente o perceberei”. O pensamento não vos fará perceber nada; o tempo não vos dará compreensão. No momento em que dizeis que ides pensar acerca de uma coisa, criastes a estrutura do “por enquanto vou tentar” — e estais, então, completamente perdido. O importante é cada um escutar com todo o seu ser; e esta é realmente a nossa dificuldade. “Escutar com todo o ser” não é apenas ouvir as palavras do orador, mas também ver, imediatamente, por si mesmo, a verdade ou a falsidade do que se está dizendo; e esse escutar exige extraordinária energia. Não se trata, pois, de “tentar, por enquanto”. Ou a pessoa escuta com todo o seu ser, ou nada escuta. Se escutardes com todo o vosso ser, vereis que ocorrerá uma “explosão” interior, não amanhã ou no fim do dia, porém instantaneamente. Foi sobre isto que estive falando: esta “explosiva” transformação que deverá verificar-se no presente imediato.

Notai que, se apenas ficais pensando sobre isso, todas as vossas reações defensivas entram em cena e, assim, continuais a ajustar-vos ao padrão de vossa existência diária, a submeter-vos a esse padrão sempre que seja inconveniente rejeitá-lo. E isso é tudo o que o pensamento pode fazer: dar voltas e mais voltas, infinitamente. O pensamento, pois, não é o instrumento da percepção, não é a dinamite que destruirá o passado. Tendes de dar vosso coração ao escutar — é isso mesmo que quero dizer: tendes de dar vosso coração ao escutar, e não, simplesmente, ouvir palavras com o intelecto. Pode uma pessoa ser extraordinariamente sutil, capaz de falar com eloquência, de citar muitos livros, mas nada disso operará o milagre. O milagre está no “escutar totalmente”.

Krishnamurti, Saanen, 31 de julho de 1962,
O homem e seus desejos em conflito

A liberdade do mecanismo formador de hábitos


A liberdade do mecanismo formador de hábitos

[...] Psicologicamente, não pode haver nenhuma liberdade se não for compreendido inteiramente o mecanismo defensivo do pensamento. E a liberdade — que não é reação a alguma coisa, nem tampouco significa o oposto de não-liberdade — é essencial, porque só em liberdade podemos fazer descobrimentos. Só a mente livre pode perceber o verdadeiro.

A verdade não é uma coisa que tem continuidade e que pode ser mantida pela prática ou a disciplina, porém algo perceptível num clarão. Esse percebimento da verdade não ocorre por meio de nenhuma forma de pensar condicionado e, por conseguinte, é impossível ao pensamento imaginar, conceber ou formular o verdadeiro.

Para se compreender integralmente o que é verdadeiro, necessita-se de liberdade. Para a maioria de nós, a liberdade é apenas uma palavra, ou uma reação, ou uma ideia intelectual de que nos servimos como fuga à nossa escravidão, nosso sofrimento, nossa entediante rotina diária; mas isso de modo nenhum é liberdade. A liberdade não se obtém por meio de busca, pois não se pode procurar a liberdade — ela não é para ser achada. Só vem a liberdade quando compreendemos a totalidade do mecanismo da mente que cria suas próprias barreiras, suas próprias limitações, suas próprias projeções, provindas de um fundo condicionado e condicionante. Muito importa à mente religiosa compreender o que se encontra além da palavra, além do pensamento, além de toda experiência; e para compreender o que transcende qualquer experiência, para “ficar com isso”, vê-lo com profundeza, num clarão, a mente deve ser livre. Sobre tudo isso já falamos e vimos como a ideia, o conceito, o padrão, a opinião, o juízo, ou qualquer disciplina formulada, impede a liberdade de espírito. E essa liberdade traz sua própria disciplina — que não é a disciplina do conformismo, da repressão ou ajustamento, porém uma disciplina não produzida pelo pensamento, por um motivo.

Decerto, num mundo confuso onde há tanto conflito e sofrimento, urge compreender que a liberdade é o requisito primordial da mente humana — e não o conforto, não o passageiro momento de prazer ou a continuidade desse prazer: uma liberdade total, pois só desta pode surgir a felicidade. Porque a felicidade não é um fim em si; como a virtude, ela deriva da liberdade. A pessoa livre é virtuosa; mas o homem que apenas pratica a virtude pelo ajustar-se ao padrão social nunca saberá o que é liberdade e, por conseguinte, jamais será virtuoso.

[...] liberdade não é uma coisa para ser buscada; não resulta de pensamento ou de anseios emocionais, histéricos. A liberdade vem sem ser buscada, quando há plena atenção. A atenção total é a qualidade própria de uma mente que não tem limites, não tem fronteiras e, por conseguinte, é capaz de receber toda e qualquer impressão, de ver e ouvir todas as coisas. E isso é possível, não é algo sobremodo difícil. Só é difícil porque nos achamos senhoreados pelos hábitos...

A maioria de nós tem hábitos inúmeros. Temos hábitos e idiossincrasias, de ordem física, e ao mesmo tempo hábitos de pensamento. Cremos nisto e não cremos naquilo; somos patriotas, nacionalistas; pertencemos a um certo grupo ou partido e observamos tenazmente o seu especial padrão de pensamento. Todas essas coisas se tornam hábitos; e a mente gosta de viver mergulhada nos hábitos, porquanto os hábitos dão-nos certeza, sentimento de segurança, sentimento de não temermos. Uma vez firmada numa série de hábitos, a mente parece funcionar um pouco mais livremente, mas na realidade ela é irrefletida, desatenta.

[...] observai, como num espelho, a vossa própria mente, para verdes quanto está enredada em seus hábitos. Os hábitos, que dão o sentimento de segurança, só podem tornar a mente embotada; por mais sutis que eles sejam, e quer estejamos cientes deles, quer não, eles invariavelmente obscurecem a mente. Isso é um fato psicológico; quer gosteis, quer não, é isso que acontece.

Em parte devido a nossa educação escolar, em parte devido ao condicionamento que a sociedade psicologicamente nos impõe, e também em virtude de nossa própria indolência, a nossa mente funciona numa série de hábitos. Se não aprovamos determinado hábito de que estamos conscientes, lutamos para quebrá-lo, e quando quebramos um hábito formamos outro. Parece não haver momento em que estejamos livres do hábito. Se vos observardes, vereis quanto vos é difícil não vos enredardes no hábito.

[...] mediante conflito ou resistência podeis eliminar um certo hábito, mas isso não liberta vossa mente do mecanismo formador de hábitos; o mecanismo que os cria não deixa de existir. E eu estou falando, não como livrar-nos de determinado hábito, porém sobre o deixarmos de criar hábitos.

[...] O importante é dar-vos conta de todo esse mecanismo, sem resistir-lhe, sem rejeitá-lo, sem desejardes ficar livre dele — estando, apenas, inteirado de cada movimento inerente a esse hábito.

[...] quando se introduz o fator tempo, não há possibilidade de libertação do hábito. Ou de pronto quebramos um hábito, ou ele continua existente, embotando de maneira gradual a própria mente, criando-se com isso novos hábitos.

Observai vossos próprios hábitos e vossa atitude em relação a eles.

Temos hábitos de pensamento, hábitos sexuais — oh, uma infinidade de hábitos, que tanto podem ser conscientes como inconscientes; e é sobretudo difícil percebermos os hábitos inconscientes. Socialmente e na escola e no colégio, somos educados nesse elemento do tempo. Toda a nossa psicologia baseia-se no tempo...

Ora, é possível a mente libertar-se instantaneamente dessa ideia de “chegar gradualmente a uma parte”, de gradualmente transcender uma coisa, gradualmente tornar-nos livres? Para mim, a liberdade não é uma questão de tempo; não há nenhum amanhã, no qual ficaremos livres de um hábito ou adquiriremos uma certa virtude. E se não há nenhum amanhã, também não há medo. Há só um “viver completo” agora; o tempo deixou de existir completamente e, por conseguinte, não há formação de hábito. Com a palavra “agora” refiro-me ao presente imediato, e esse estado “imediato” não é uma reação ao passado nem um evitar do futuro. Há só o momento de total percepção, toda a nossa atenção está aqui, no agora. Ora, por certo, toda existência se acha no agora; quer experimenteis imensa alegria, quer intenso sofrer, seja o que for, tudo isso só acontece no presente imediato. Entretanto, por meio da memória, a mente acumula a experiência do passado e a projeta no futuro.

Conscientizai-vos de vossa própria mente; observai como é que ela opera, pois, assim, podereis ir muito longe.

Poderemos libertar-nos do passado? O passado, na realidade, é a essência do hábito, constituído de todos os conhecimentos, sofrimentos, insultos, das inumeráveis experiências que tivestes, não só individualmente, mas também racial e coletivamente. Precisais sair dessa estrutura do passado, psicologicamente, realmente, porque, do contrário, não há liberdade. Mas não podeis fazê-lo se existe, na vossa mente, a ideia da continuidade. Para a maioria de nós, a continuidade importa muito; mas, afinal de contas, a continuidade, nas relações, é simples hábito. É a continuidade do pensamento que sustenta as limitações da mente; e é possível destruirmos, “numa explosão”, essa ideia da continuidade e ficarmos livres do passado?

Se não estamos livres do pretérito, não há liberdade nenhuma, porque, assim, a mente nunca está nova, fresca, ilesa. Só a mente nova, “inocente”, é livre. A liberdade nada tem que ver com a idade da pessoa, nada tem que ver com a experiência; e quer-me parecer que a própria essência da liberdade reside na compreensão de todo o mecanismo do hábito, consciente e inconsciente. A questão não é de acabar com o hábito, porém, antes, de ver-lhe totalmente a estrutura. Deveis observar como se formam os hábitos e como, pela rejeição de um hábito ou pela resistência a ele, outro hábito se forma. O relevante é estardes totalmente apercebido do hábito; porque então, como vós mesmos vereis, já não há formação de hábitos. O resistir ao hábito, o combatê-lo, ou rejeitá-lo, só pode dar-lhe continuidade. Quando lutais contra um hábito, dais vida a ele e, também, o próprio batalhar contra ele se torna um novo hábito. Mas, se ficais simplesmente apercebido de toda a estrutura do hábito, sem resistência nenhuma, verificais então que estareis livre dele e que, nessa liberdade, ocorre uma coisa nova.

É só a mente embotada, sonolenta, que cria o hábito e a ele se apega. A pessoa atenta de momento em momento — atenta para o que ela própria diz, atenta para o movimento de suas mãos, de seus pensamentos, de seus sentimentos — deixa de formar hábitos. É muito importante compreender isso, porque, evidentemente, enquanto a mente está empenhada em quebrar um hábito e, com esse próprio “mecanismo” criando outro hábito, ela nunca poderá ser livre; e só a mente livre pode perceber algo além de si própria. Essa mente é religiosa. Quem se limita a frequentar a igreja, a recitar orações, a apegar-se a dogmas, ou a abandonar uma seita para ingressar noutra, não tem uma mentalidade religiosa, mas, simplesmente, entorpecida. Religiosa é a mente livre, e a mente livre acha-se num estado de constante “explosão”; e nesse estado de constante explosão há o percebimento daquela verdade que ultrapassa as palavras, o pensamento, e toda experiência.

Krishnamurti, Saanen, 31 de julho de 1962,
O homem e seus desejos em conflito

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...
"Quando você compreende, quando chega a saber,
então traz toda a beleza do passado de volta
e dá a esse passado o renascimento, renova-o,
de forma que todos os que o conheceram
possam estar de novo sobre a terra
e viajar por aqui, e ajudar as pessoas." (Tilopa)



"Nos momentos tranqüilos da meditação, a vontade de DEUS pode tornar-se evidente para nós. Acalmar a mente, através da meditação, traz uma paz interior que nos põe em contato com DEUS dentro de nós. Uma premissa básica da meditação, é que é difícil, senão impossível, alcançar um contato consciente, à não ser que a mente esteja sossegada. Para que haja um progresso, a comum sucessão ininterrupta de pensamentos tem de parar. Por isso, a nossa prática preliminar será sossegar a mente e deixar os pensamentos que brotam morrerem de morte natural. Deixamos nossos pensamentos para trás, à medida que a meditação do Décimo Primeiro Passo se torna uma realidade para nós. O equilíbrio emocional é um dos primeiros resultados da meditação, e a nossa experiência confirma isso." (11º Passo de NA)


"O Eu Superior pode usar algum evento, alguma pessoa ou algum livro como seu mensageiro. Pode fazer qualquer circunstância nova agir da mesma forma, mas o indivíduo deve ter a capacidade de reconhecer o que está acontecendo e ter a disposição para receber a mensagem". (Paul Brunton)



Observe Krishnamurti, em conversa com David Bohn, apontando para um "processo", um "caminho de transformação", descrevendo suas etapas até o estado de prontificação e a necessária base emocional para a manifestação da Visão Intuitiva, ou como dizemos no paradigma, a Retomada da Perene Consciência Amorosa Integrativa...


Krishnamurti: Estávamos discutindo o que significa para o cérebro não ter movimento. Quando um ser humano ESTEVE SEGUINDO O CAMINHO DA TRANSFORMAÇÃO, e PASSOU por TUDO isso, e esse SENTIDO DE VAZIO, SILÊNCIO E ENERGIA, ele ABANDONOU QUASE TUDO e CHEGOU AO PONTO, à BASE. Como, então, essa VISÃO INTUITIVA afeta a sua vida diária? Qual é o seu relacionamento com a sociedade? Como ele age em relação à guerra, e ao mundo todo — um mundo em que está realmente vivendo e lutando na escuridão? Qual a sua ação? Eu diria, como concordamos no outro dia, que ele é o não-movimento.

David Bohn: Sim, dissemos que a base era movimento SEM DIVISÃO.

K: Sem divisão. Sim, correto. (Capítulo 8 do livro, A ELIMINAÇÃO DO TEMPO PSICOLÓGICO)


A IMPORTÂNCIA DA RENDIÇÃO DIANTE DA MENTE ADQUIRIDA
Até praticar a rendição, a dimensão espiritual de você é algo sobre o que você lê, de que fala, com que fica entusiasmado, tema para escrita de livros, motivo de pensamento, algo em que acredita... ou não, seja qual for o caso. Não faz diferença. Só quando você se render é que a dimensão espiritual se tornará uma realidade viva na sua vida. Quando o fizer, a energia que você emana e que então governa a sua vida é de uma frequência vibratória muito superior à da energia mental que ainda comanda o nosso mundo. Através da rendição, a energia espiritual entra neste mundo. Não gera sofrimento para você, para os outros seres humanos, nem para qualquer forma de vida no planeta. (Eckhart Tolle em , A Prática do Poder do Agora, pág. 118)


O IMPOPULAR DRAMA OUTSIDER — O encontro direto com a Verdade absoluta parece, então, impossível para uma consciência humana comum, não mística. Não podemos conhecer a realidade ou mesmo provar a existência do mais simples objeto, embora isto seja uma limitação que poucas pessoas compreendem realmente e que muitas até negariam. Mas há entre os seres humanos um tipo de personalidade que, esta sim, compreende essa limitação e que não consegue se contentar com as falsas realidades que nutrem o universo das pessoas comuns. Parece que essas pessoas sentem a necessidade de forjar por si mesmas uma imagem de "alguma coisa" ou do "nada" que se encontra no outro lado de suas linhas telegráficas: uma certa "concepção do ser" e uma certa teoria do "conhecimento". Elas são ATORMENTADAS pelo Incognoscível, queimam de desejo de conhecer o princípio primeiro, almejam agarrar aquilo que se esconde atrás do sombrio espetáculo das coisas. Quando alguém possui esse temperamento, é ávido de conhecer a realidade e deve satisfazer essa fome da melhor forma possível, enganando-a, sem contudo jamais poder saciá-la. — Evelyn Underhill