Para se compreender completamente uma coisa, trivial ou importante, tem de se lhe dar uma atenção total, desbloqueada e livre. De outro modo não é possível compreender — especialmente aquelas coisas que requerem cuidadoso estudo e intimo conhecimento. Para se prestar atenção tem de haver liberdade; se assim não for a atenção não é possível. Não podemos dar-nos completamente a uma determinada coisa se não estamos livres. E para compreender essa coisa extraordinária a que se chama Verdade — simples e ao mesmo tempo complexa — temos de dar-lhe essa atenção sem bloqueios. E, como disse, a liberdade é essencial. Porque a Verdade não pertence a nenhuma religião, a nenhum sistema, nem pode ser encontrada em livro algum. Não podemos aprendê-la de outro, nem a ela ser levados por outro. Temos de compreendê-la inteiramente e de entregar-nos a ela assim, temos de chegar à Verdade livres, descondicionados e num estado em que a mente se compreende a si mesma, libertando-se de toda a ilusão.
A liberdade — ser livre — está a tornar-se cada vez mais difícil. À medida que a sociedade vai sendo mais complexa, e a industrialização se torna mais vasta, mais profunda e mais organizada, há cada vez menos liberdade para o homem. Como se pode observar, quando o Estado se torna todo-poderoso ou quando ele alcança bem-estar social, preocupação desse Estado com os cidadãos é tão completa que há cada vez menos liberdade exterior. E exteriormente a pessoa torna-se escrava da sociedade, da pressão da sociedade; nesta pressão da existência organizada, a existência tribal deu lugar ao controlo centralizado, organizado, industrializado. Há cada vez menos liberdade exterior. Onde há mais “progresso” há menos liberdade. Isto é evidente, é um fato observável em toda a sociedade que se torna mais complexa, mais organizada.
Assim, exteriormente há a pressão do controle, a moldagem da mente do indivíduo — tecnologicamente, industrialmente. Sendo exteriormente tão constrangida, a pessoa tende naturalmente a entrincheirar-se psicologicamente, interiormente, cada vez mais, num determinado padrão de existência. Isto é também um fato evidente.
Assim, para quem é bastante sério para investigar se há, de fato, uma Realidade, para descobrir o que é a Verdade — a Verdade não construída pelo homem; com o seu medo, o seu desespero; a Verdade que não é uma tradição, uma repetição, um instrumento de propaganda — para se descobrir isso, tem de haver completa liberdade. Exteriormente, poderá não existir liberdade, mas interiormente, tem de haver absoluta liberdade.
Compreender esta questão da liberdade é das coisas mais difíceis. Não sei se já refletistes profundamente sobre isso. Ainda que já tenhais pensado no assunto, sabeis o que significa ser livre? Por liberdade não entendo uma libertação abstrata, ideal — isso é demasiado teórico e distante, pode não ter qualquer realidade; pode ser uma invenção de uma mente cheia de desespero, de medo, de agonia, que construiu verbalmente, intelectualmente, um modelo, na esperança de alcançar um determinado estado verbal, mas isso não é uma realidade. Não estamos a falar de liberdade como uma abstração mas como uma realidade; falamos da liberdade cotidiana, interior, em que psicologicamente não há sujeição a coisa alguma. Será isso possível? Teoricamente, idealmente, talvez seja possível. Mas aqui não nos interessam ideias, nem teorias, nem esperanças de tipo religioso e especulativo; só nos interessam fatos.
Psicologicamente, interiormente será possível a mente estar totalmente livre? Exteriormente, pode-se ir para o emprego todos os dias, pertencer a uma certa categoria de pessoas, a uma determinada sociedade, etc. — isso é inevitável, é absolutamente necessário para ganhar a vida. Mas deverão as tensões e as pressões do condicionamento exterior, do ajustamento externo ao padrão de uma determinada sociedade — deverá isso dominar a psique, todo o mecanismo do nosso pensamento? E haverá realmente completa liberdade psicológica? Porque sem liberdade, sem absoluta liberdade psicológica, nenhuma possibilidade existe de descobrir a Realidade, de descobrir o que é Deus — se tal ser existe. A liberdade é absolutamente necessária mas a maioria de nós não deseja ser livre — esta é a primeira coisa que temos de reconhecer.
Assim, será possível estarmos psicologicamente livres, de modo a podermos descobrir, por nós mesmos, o que é a Verdade? Porque no próprio mecanismo ou no próprio ato de compreender o que é a Verdade, ficamos capazes de ajudar o nosso semelhante; de outro modo, não podemos ajudar; de outro modo criamos mais confusão, mais sofrimento para o homem — o que, aliás, é óbvio, como mostram todas as coisas que estão a acontecer.
A verdade que é comunicada por outro, que é descrita ou ensinada por outro — por muito sábio ou inteligente que seja — não é Verdade. Somos nós que temos de ir descobri-la, de compreendê-la. Retiro a expressão “ir descobri-la” — não podemos “ir descobrir” a Verdade; não podemos pôr-nos à procura, consciente e deliberadamente, para a encontrar. Temos de encontrar inesperadamente a Verdade “no escuro”, desprevenidamente. Mas não podemos assim encontrá-la se, no íntimo, a nossa mente, a nossa psique, não estiver completa e totalmente livre.
Para descobrir qualquer coisa, mesmo no campo científico, a mente tem de estar livre. Tem de estar descondicionada para ver o que é novo. Mas, em geral, infelizmente, a nossa mente não é fresca, nova, inocente — para ver, observar, compreender. Estamos cheios de experiências, não só das experiências que acumulamos recentemente — com “recentemente” quero dizer nos últimos cinquenta ou cem anos — mas também da experiência humana imemorial. Estamos confusos e bloqueados por tudo isso, que constitui o nosso conhecimento, consciente ou inconsciente; o conhecimento consciente é o que adquirimos através da instrução que recebemos neste mundo moderno, no nosso tempo.
Ora, é importante, quando estais a ouvir estas palavras, que escuteis realmente. Penso que há diferença entre escutar e ouvir. Podemos ouvir palavras e interpretá-las, dando-lhes o nosso próprio significado ou o significado segundo um certo dicionário, e ficar ao nível da comunicação puramente verbal. E quando se ouvem palavras dessa maneira, intelectualmente, há concordância ou discordância. Prestemos um pouco de atenção a isto, por favor. Não estamos a trocar opiniões. Não estamos a investigar dialeticamente a verdade de opiniões. Estamos a investigar, a tentar compreender a Verdade — não a verdade de opiniões, não a verdade do que outros disseram. Se escutarmos — o que é inteiramente diferente de ouvir, apenas — então não há nem concordância nem discordância. Estamos realmente a escutar, para descobrir o que é verdadeiro e o que é falso — e isso não depende do nosso julgamento ou opinião, do nosso conhecimento, ou do nosso condicionamento.
Temos assim de escutar, se queremos ser verdadeiramente sérios. Se se deseja ser superficial, estar apenas entretido com um passatempo intelectual, também está certo. Mas se somos realmente sérios e sentimos a urgência de descobrir o que é a Verdade, temos de escutar. O ato de escutar não implica concordância ou discordância. E é essa a beleza do escutar. Então compreendemos totalmente. Se escutarmos aquele corvo, veremos que estamos a dar atenção tão completamente que não comparamos, que não interpretamos o som, como o som produzido por um corvo. Estaremos a escutar puramente o som, sem interpretação, sem identificação e, portanto, sem comparar. E assim o ato de escutar.
Ora, se estamos a comunicar verbalmente — e isso é o que nos é possível fazer — então temos não apenas de ouvir a palavra — isto é, a natureza e o significado dessa palavra — mas também de escutar, sem concordar ou discordar, sem comparar, sem interpretar, temos realmente de dar toda a atenção. Então, veremos, por nós mesmos, imediatamente, o significado de tudo o que a palavra liberdade implica. Pode-se compreendê-lo instantaneamente. A compreensão, o ato de compreender é imediato, quer aconteça amanhã ou hoje. O estado de compreensão é, portanto, intemporal; não é um mecanismo gradual, um mecanismo acumulativo.
Assim, não estamos só a comunicar verbalmente uns com os outros, mas estamos também, realmente, a escutar-nos uns aos outros. Estais a escutar-vos a vós mesmos, ao mesmo tempo que estais a ouvir este que vos está a falar. O que ele está a dizer não é importante, mas o que escutais é importante — vede, por favor, que isto não é um jogo intelectual. Porque é o ouvinte, cada um de vós, que tem de descobrir o que é a Verdade; é o ouvinte que tem de compreender toda a estrutura, toda a anatomia, toda a profundeza e plenitude da liberdade. O “orador” está apenas a comunicar verbalmente. E se estais só a ouvir as palavras e dizeis: “Essa é a sua opinião”, “Esta é a minha opinião”, “Concordo”, “Discordo”, “Foi isso que Buda ou Shankara disse” — então, vós e eu não estamos a comunicar. Então, estamos apenas a entreter-nos com opiniões — pelo menos vós estais. Assim, temos de ver com muita clareza, logo desde o começo, para que não estejamos só a ouvir a comunicação verbal — a palavra, o significado e a natureza da palavra — mas também a escutar.
Tendes assim uma dupla tarefa — ouvir as palavras e escutar. Naturalmente, a palavra que ouvis tem um significado e esse significado evoca certas respostas, certas lembranças, certas reações. Mas, ao mesmo tempo, tendes de escutar sem reação, sem opiniões, sem julgamento, sem comparação. A vossa tarefa é assim muito maior que a do “orador”, e não o contrário, que é aquilo a que geralmente se está habituado: o orador faz o trabalho todo e fica-se apenas a ouvir, a concordar ou discordar, e depois cada um vai-se embora muito animado e satisfeito, intelectualmente estimulado. Mas tal estado não tem qualquer valor — para isso também se pode ir a um cinema.
Mas, quando uma pessoa é verdadeiramente séria, essa seriedade exige uma atenção completa, uma atenção aprofundada, que vai até ao fim. Essa pessoa sabe certamente a arte de escutar. E se sabeis esta arte, não é preciso dizer mais nada. Então escutareis a voz do corvo, do pássaro, o sussurrar da brisa entre a folhagem; e escutar-vos-eis também a vós mesmos, os murmúrios da vossa mente, o vosso coração, e os sinais vindos do vosso inconsciente. Estareis então num estado de penetrante e intensa escuta e, portanto, já não andareis entretidos com opiniões.
Assim, se somos realmente sérios, escutamos dessa maneira; e precisamos de escutar assim. Porque, como disse, a liberdade é absolutamente necessária para a compreensão do que é a Verdade. Sem essa compreensão, a vida torna-se muito superficial, vazia, tornamo-nos meros autômatos. E no ato de compreender o que é verdadeiro — ou seja, no ato de escutar — a vida começa de maneira nova.
A nossa mente não tem frescura. A nossa mente já viveu milhares de anos — por favor não metamos nisto a reencarnação; se o fizermos não estaremos a escutar. Ao usar as palavras “milhares de anos” não me estou a referir só a “nós”, mas ao homem. Somos o resultado da existência milenar do homem. Somos uma consciência vastíssima; só que nos apropriamos de uma parte dela, construímos um muro à sua volta, confinamo-la, e agora dizemos “Isto é a minha individualidade”. E ao dizer “milhares de anos”, não estou a falar dessa clausura — essa clausura de arame farpado que, na maioria dos casos, cada um de nós é. Estou a falar daquele estado de consciência que é imenso, vasto, que tem passado por milhares de experiências e que está debaixo da crosta, do fardo, do peso da tradição, do conhecimento acumulado, de toda a espécie de esperança, de medo, desespero, ansiedade, agonia, avidez, ambição — não só a ambição dos que estão enclausurados, mas também a ambição do homem. Assim, as nossas mentes estão embotadas pelo passado — isto é, aliás, um fato psicológico; não se trata de uma opinião contra outra opinião.
Assim, com essa mente, com essa psique que tem passado por tantas experiências, que conserva todas as cicatrizes, todas as lembranças, todos os movimentos do pensamento, como memória — com essa mente é que vamos ao encontro da vida. E é com tudo isso que queremos ir ao encontro daquilo que desejamos descobrir — a Verdade. E não podemos, evidentemente.
Como em relação a qualquer outra coisa, temos de ter uma mente fresca, nova. Para olhar uma flor, ainda que a tenhamos visto muitíssimas vezes, para olhar essa flor de maneira nova, como se a estivéssemos a ver pela primeira vez na vida, temos de ter uma mente nova uma mente fresca, inocente, extremamente acordada. De outro modo, não a podemos ver — só vemos as lembranças que projetamos nessa flor, e não vemos lealmente a flor. Por favor, compreendamos isto.
Uma vez que tenhamos compreendido o ato de ver como um ato de escutar, teremos aprendido uma coisa extraordinária na vida, algo que nunca mais nos deixará. Mas a nossa mente está tão gasta, tão embotada, pela sociedade, pelas circunstâncias, pelos nossos medos e desesperos, por todas as desumanidades, pelos insultos e as pressões, que se tornou mecânica, insensível, entorpecida, indolente. E com essa mente queremos compreender; é evidente que não podemos.
Assim, a questão é: Será possível ficarmos livres de tudo isso? De outro modo, nem a flor seremos capazes de ver. Não sei se, quando vos levantais, de manhã cedo, vedes o Cruzeiro do Sul, o céu estrelado. Se já contemplastes realmente o céu — do que duvido — talvez tenhais olhado os astros, talvez conheçais os seus nomes e as posições. E depois de os terdes olhado alguns anos, alguns dias ou semanas, já vos esquecestes de as ver e apenas dizeis: “Aquele ali é Júpiter, Marte”, etc... Mas acordar de madrugada, olhar pela janela ou ir à rua para ver o céu como uma coisa nova, com olhos desnevoados, com uma mente desobstruída — só assim se pode compreender aquela beleza, aquela profundidade, e o silêncio que existe entre nós e aquilo. Só assim somos capazes de ver. E, para isso, temos de estar livres; não podemos trazer toda a carga da nossa experiência, para olhar.
A nossa pergunta é, então: Será possível estarmos libertos do conhecimento? Conhecimento é o que no passado se foi acumulando. Toda a experiência que se tem é imediatamente traduzida, guardada, registrada; e com esse registro vamos fazer face à experiência seguinte. Portanto, nunca compreendemos uma experiência; ficamos só a traduzir cada desafio de acordo com a resposta do passado e, assim, a fortalecer o registro. E o que acontece no cérebro eletrônico, no computador. Só que somos apenas uma pobre imitação desse maravilhoso instrumento mecânico chamado computador. Será possível sermos livres? De outro modo não poderemos descobrir o que é a Verdade — pode-se falar acerca dela incessantemente como os políticos citam o Gita.
Temos pois de investigar. E essa investigação não é meramente verbal, intelectual: é o estado da mente que está a escutar.
O conhecimento acumulado torna-se a nossa autoridade — sob a forma de tradição, de experiência, daquilo que se leu, daquilo que se aprendeu, e da autoridade reivindicada por aqueles que dizem que sabem. No momento em que uma pessoa diz que sabe, não sabe! A Verdade não é algo acerca do qual se possa ter conhecimento acumulado. Tem de ser percebida, de momento a momento — como a beleza de uma árvore, do céu, do pôr do sol.
Assim, o conhecimento torna-se a autoridade que guia, que molda, que encoraja, que dá força para continuar. Por favor, prestemos atenção a tudo isto, porque temos de compreender a anatomia da autoridade — a autoridade do governo, a autoridade da lei, a autoridade do polícia, a autoridade psicológica que é constituída pelas nossas próprias experiências e pelas tradições que nos foram transmitidas, consciente ou inconscientemente; tudo isso se torna o nosso guia, se torna um sinal de advertência quanto ao que “se deve fazer” e o que “não se deve fazer”. Tudo isso se encontra nos domínios da memória. E isso é realmente aquilo que somos. A nossa mente é o resultado de milhares de experiências com as suas lembranças e as suas cicatrizes, o resultado das tradições transmitidas pela sociedade e pela religião, e das tradições educativas. Com essa mente tão carregada de memória, tentamos compreender o que não pode ser compreendido por meio da memória. Precisamos, pois, de libertar-nos da autoridade.
Não sei se compreendeis o significado dessa palavra “autoridade”. O significado da palavra, em si, é o “originador”, aquele que origina algo novo. Reparai na vossa própria religião. Não sei se sois verdadeiramente religiosos — provavelmente não. Vai-se ao templo, murmura-se uma série de palavras, repetem-se certas frases — é a isso que se chama “ser religioso”. Vede que enorme peso de tradição os chamados “guias espirituais” e “homens santos” implantaram nas vossas mentes — tal como o Gitá e os Upanishads; Shankara e outros intérpretes do Gitá. Estes baseiam-se no Gitá, para o interpretar, e vós continuais a interpretar. Considerais essa interpretação uma coisa muito extraordinária e chamais religioso ao homem que interpreta. Mas essa pessoa está condicionada pelos seus próprios medos; presta culto a uma imagem esculpida pela mão ou pela mente. Essa tradição é inculcada em cada um, não por uma propaganda recente, mas por uma propaganda de milênio — as pessoas aceitam-na, e isso molda o seu modo de pensar.
Sendo assim, se desejamos ser livres, temos de pôr de lado tudo isso — pôr de lado os “Shankaras”, os “Budas”, todos os livros e instrutores religiosos — para sermos nós mesmos, para podermos investigar. De outro modo, não poderemos saber a extraordinária beleza e significado da Verdade, e nunca saberemos o que é o Amor.
Assim, podereis vós, que fostes moldados por Shankara, por tantos “homens santos”, pelos templos, apagá-los a todas da vossa mente? Tendes de fazê-lo. Tendes de ficar completamente sós, desajudados, sem desesperar e sem nada temer; só então sereis capazes de investigar. Mas para apagar, para negar totalmente — em vez de dizer negativamente “Deixemos isso” — para negar completamente — temos de compreender toda a anatomia e estrutura, toda a essência de autoridade: temos de compreender o homem que procura a autoridade. Não podemos afastar da autoridade o homem que a deseja porque isso é o seu único refúgio, o seu pão de cada dia — como também o é do político, do sacerdote ou do “filósofo”.
Mas se queremos compreender essa coisa extraordinária chamada Verdade, não devemos aceitar a autoridade psicológica. Porque só a mente fresca, inocente, que é jovem e vibrante, pode compreender estas coisas, e não a mente que se deixa guiar pelo passado, que é moldada, enfraquecida e subjugada por ele. Ou uma coisa ou outra. Ou dizemos “Não é possível ficar-se livre do passado, deste conhecimento, desta autoridade que a mente procura, na sua pobreza, no seu desespero, para se apoiar; a mente nunca poderá ficar livre da autoridade, do passado, das coisas que aprendeu, adquiriu, acumulou”. Ou então dizemos que a mente e capaz de se libertar do passado. Mas temos de investigar; não podemos apenas dizer que a mente pode, ou não pode, ser livre; isso é apenas entretermo-nos com uma opinião, o que não tem nenhum valor temos de deixar isso aos “filósofos”. Se queremos descobrir, temos de investigar se isso é possível ou não; não podemos apenas aceitar ou negar.
Temos, pois, de aprender acerca do conhecimento e da autoridade. Quando estamos a aprender não há contradição, exatamente porque estamos a aprender. Mas se estamos só a adquirir conhecimentos, então não há contradição. Reparemos, nisto, por favor. Se estamos apenas a acumular conhecimentos, ficaremos em conflito, porque a coisa sobre a qual estamos a adquirir conhecimentos é uma coisa viva, que se move, que muda; e, portanto, entre o que acumulamos e a realidade, há contradição. Mas se estamos a aprender sobre ela, então a contradição não existe, portanto não há conflito. Assim, a mente que está a aprender está a enriquecer-se de energia, porque não a dissipa num estado de conflito. Mas quando a mente está a acumular e a adicionar, olhando e observando com base no conhecimento acumulado, então há contradição, então há conflito e, portanto, dissipação de energia.
Assim, o homem que aprende não tem conflito, mas o homem que está apenas a acumular informação, para viver segundo um determinado padrão, estabelecido por ele próprio ou pela sociedade a que pertence, ou por alguma personalidade religiosa, seja ela quem for — esse homem está em contradição e, portanto, em conflito.
E, como dissemos noutro dia, o conflito é a própria essência da desintegração. O conflito não surge apenas do passado, mas também em relação ao presente. Surge também quando temos ideias — que devemos ser isto ou aquilo, que devemos estar em tal ou tal estado — ideais “maravilhosos”, “nobilitantes”. É muito importante compreender a natureza de um ideal. O ideal não é a realidade. Uma ideia projetada pela mente que está em conflito torna-se um ideal, segundo o qual essa mente “deveria” viver; e, portanto, a mente continua em conflito, em contradição. Mas a mente que está a escutar um fato, não um ideal — essa mente não está em conflito, está a mover-se de fato para fato. Portanto, uma mente assim encontra-se num estado de energia. E sem essa energia não podemos ir muito longe; estamos a dissipá-la em contradições, na luta para nos tornarmos “aquilo” e não “isto”.
Temos assim de observar, de escutar, de ver o fato — o que é — e de ficarmos com o fato. E isto é extraordinariamente difícil.
E claro que nunca refletistes sobre tudo isto, ou então nada disto vos acontece naturalmente, tal como as chuvas caem do céu. Provavelmente estais a ouvir estas coisas pela primeira vez, ou lestes alguma coisa a este respeito. Como este “orador” tem falado sobre isto muitas vezes, direis: “Lá volta ele às mesmas coisas”. Mas se estais a escutar, se percebeis a intenção do “orador”, vereis então o fato, isto é, que o que tendes é conhecimento acumulado, e ficareis com esse fato, não fugireis dele. O fato é que sois o passado em relação com o presente; o passado poderá ser modificado, alterado, mas estais ainda a mover-vos, a existir, sempre no passado.
Então, que entendemos por “ficar com o fato”? Ficar, ou viver, com o fato, não é aceitá-lo, nem é negá-lo, mas escutá-lo — escutar todos os seus subtis movimentos, as indicações que diretamente nos dá, as perguntas, as respostas a que ele leva; não é negá-lo, porque não se pode negar um fato — se o fizermos poderemos acabar num hospital de alienados. É isto, pois, o que realmente significa observar o fato e viver com ele.
Ora, quando vivemos com alguma coisa ou pessoa — com a nossa mulher, com os nossos filhos, com uma árvore, com uma ideia que temos — ou nos acostumamos tanto a ela que ela “deixa de existir”, ou vivemos realmente com ela, dando-lhe inteira atenção. No momento em que nos acostumamos a uma coisa, tornamo-nos insensíveis. Se me acostumo àquela árvore, sou insensível a ela. Se sou insensível à árvore, sou também insensível à sujidade, insensível às pessoas, insensível a tudo.
Pelo contrário, estar atento a uma coisa é não ficar habituado a ela, não ficar acostumado, insensível — à sujidade, à miséria, à família, à mulher, aos filhos. Para não nos habituarmos a uma coisa é preciso ter muita atenção e, portanto, muita energia. Espero que estejais a entender isto.
Assim, a mente que quer compreender o que é verdadeiro tem de compreender, mas não de modo idealista, todo o significado do que é a liberdade. A liberdade não é uma libertação a alcançar em algum mundo celestial, mas sim a liberdade cotidiana, que é estar livre do ciúme, do apego, da competição, da ambição — que significa o mais: “Tenho de ser melhor”; “sou isto e tenho de me tornar aquilo”. Mas quando observamos o que somos, não há então o tornarmo-nos alguma coisa mais, além daquilo que somos; então, há uma transformação imediata de aquilo que é.
Sendo assim, a mente que deseja ir muito longe tem de começar pelo que está muito perto. E não podemos ir muito longe se ficamos meramente a verbalizar acerca de algo que o homem cria e a que chama Verdade ou Deus. Temos de começar pelo que está muito perto, para lançar a base correta. E, precisamente, para lançar essa base tem de haver liberdade. Temos pois de ter a nossa base na liberdade, e em plena liberdade — e então já não será uma “base”; será um movimento, e não uma coisa estática.
Só quando a mente compreende a extraordinária natureza do conhecimento, da liberdade e do aprender, é que o conflito cessa; só então a mente se torna perfeitamente lúcida e precisa. Não fica presa em opiniões e pareceres; encontra-se num estado de atenção e, portanto, num estado de completa energia e completo aprender. Só quando a mente está tranquila é capaz de aprender — que não significa “aprender a respeito de quê?”. Só essa mente serena pode aprender, e o importante não é “a respeito de quê” ela aprende, mas sim o estado de aprender; o estado de silêncio em que ela está a aprender.
Krishnamurti, Madrasta, 15 de janeiro de 1964,
O despertar da sensibilidade