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segunda-feira, 1 de setembro de 2025

As relações como enredamentos de imaturidade

As relações como enredamentos de imaturidade

O confrade já constatou que as relações, se dão entre indivíduos com semelhança no nível de insegurança e imaturidade? Isso é algo que se observa com bastante clareza quando olhamos para as relações com um olhar mais cru e descondicionado.

Muitas vezes os vínculos não acontecem por afinidade real de consciência, mas por compatibilidade nos níveis de insegurança, carências, imaturidades emocionais e interesses velados. É como se cada indivíduo estivesse buscando no outro um espelho ou uma compensação para as próprias fragilidades:

  • O inseguro busca em outro igualmente inseguro, alguém que valide constantemente sua identidade.
  • O ciumento encontra eco em alguém que também teme perder e aceita esse jogo de posse.
  • O dependente atrai alguém igualmente carente, ainda que em polos opostos (um cuida, o outro “precisa ser cuidado”).

Essa espécie de acoplamento psíquico se dá menos pela lucidez e mais pelo enredamento das fragilidades. Relações maduras, fundadas em autonomia interior, são muito mais raras justamente porque exigem que cada um suporte o peso da própria solidão, do próprio vazio e da própria responsabilidade afetiva.

Na prática, o que vemos é que as pessoas, em sua maioria, se conectam através do ponto comum de suas imaturidades. Apesar de ser raro, isso não significa que não possa haver amor genuíno no meio disso, mas é um amor muitas vezes misturado ao medo, ao apego e à necessidade de completude, em vez de um amor livre.

O ser humano, em geral, tem muita pressa de se envolver afeto sexualmente, por causa dos hormônios e também pela necessidade de atender a expectativa parental e para sair desse ambiente e suas expectativas. Um contrato de facilitação financeira. Assim, observamos três pontos fundamentais que moldam profundamente a pressa com que muitos se jogam em relações, principalmente nas primeiras fases da vida:

  1. O corpo hormonal – A pulsão sexual, ainda não integrada, exerce uma pressão enorme. Ela empurra o sujeito a buscar o outro mais como válvula de descarga ou como forma de experimentar prazer imediato, do que como encontro real e consciente. É uma necessidade biológica que, sem maturidade, acaba confundida com amor.
  2. A necessidade de cumprir com a expectativa parental – Muitos crescem em lares onde, explicitamente ou de forma velada, há um peso para o relacionamento: “Vai namorar até quando? Não vai casar? Quando vai me dar netos?”. Essa expectativa cria um impulso artificial de querer logo estar em um relacionamento, não por uma disposição interior genuína, mas para se livrar do olhar vigilante e julgador da família.
  3. Um acordo de facilitação financeira e social – É muito comum que jovens busquem no outro um meio de sair de casa, conquistar independência material ou mesmo fugir do ambiente parental opressivo. O relacionamento, nesse caso, é usado como “atalho” de vida.

O resultado desse tripé é que a pressa, geralmente, não vem da maturidade de querer compartilhar a vida com alguém, mas da soma de pressões biológicas, sociais e financeiras. Isso explica porque tantos se unem rápido e, pouco tempo depois, descobrem que a relação não tem alicerce verdadeiro, mas apenas interesses misturados à carência.

A pressa, portanto, é quase sempre um movimento de fuga: do corpo em ebulição, da casa dos pais, da solidão ou da falta de estabilidade. Só que esse movimento de fuga cobra o preço lá na frente: o vazio dentro da relação, os conflitos repetitivos, a frustração que se acumula.

Exploraremos agora, em profundidade, essa pressa de se envolver sexual e afetivamente. Partiremos dos três fatores: pressão hormonal, expectativa parental, facilitação financeira/social, acrescentando também outros pontos observados como centrais:

  • Medo da solidão – a fuga da sensação de estar só.
  • Necessidade de status – relacionar-se como símbolo de “normalidade” e aceitação social.
  • Carência afetiva herdada – repetição inconsciente de padrões familiares de apego.
  • Indústria cultural – cinema, música, redes sociais que romantizam a pressa e vendem relacionamentos como válvula de identidade.
  • Busca de identidade – “ser alguém” através do outro.
  • Economia psíquica – a relação como anestesia das dores existenciais (tédio, vazio, falta de propósito).

 

 


A pressa por envolvimento, como sintoma do nosso tempo

Poucos percebem que a pressa em se envolver afetiva e sexualmente não é um simples capricho da juventude, mas um sintoma de algo muito mais profundo. Não se trata apenas da fome do corpo, mas da soma de pressões invisíveis que moldam o comportamento humano desde cedo: o peso dos hormônios, as expectativas familiares, a necessidade de aceitação social, o medo da solidão e até mesmo os imperativos financeiros que tornam o relacionamento uma rota de fuga, mais do que um espaço de encontro.

Vivemos em uma sociedade que nos empurra para o vínculo apressado. O cinema, a música, as redes sociais, a cultura de massa — tudo reforça a ideia de que estar só é fracasso, e que só o amor romântico redime a existência. O adolescente cresce sob esse bombardeio de símbolos, e quando a biologia desperta, o desejo sexual se junta a essa propaganda cultural para criar uma urgência que confunde atração, necessidade, carência e amor.

A pressa, portanto, não é inocente. É um movimento que revela uma soma de forças psíquicas e sociais. E ao mergulhar nela imaturamente, o sujeito acaba reproduzindo ciclos de frustração: relacionamentos frágeis, rupturas dolorosas, sempre seguidas de repetições intermináveis do mesmo padrão.

Para entender essa engrenagem, precisamos fatiar cada camada: o corpo, a família, a cultura, a economia psíquica e social. Só então podemos compreender por que tanta gente se lança de cabeça tão cedo, tão rápido, sem saber sequer o que deseja de verdade.


O corpo em ebulição – Hormônios e a ilusão de amor

A adolescência é uma explosão química. O corpo passa a liberar hormônios sexuais em intensidade inédita: testosterona, estrogênio, dopamina. O desejo invade, as fantasias tomam a mente, e o indivíduo se vê refém de uma energia que não entende nem controla.

Nesse momento, o impulso sexual é facilmente confundido com amor. O beijo, o toque, o sexo parecem trazer não apenas prazer, mas também uma sensação de pertencimento e de identidade. O adolescente acredita que “estar com alguém” é a prova de que ele existe, de que vale algo. O prazer se mistura com o alívio da insegurança: “se alguém me deseja, então eu sou desejável”.

Essa ilusão é poderosa. Muitos se casam, se unem, têm filhos não porque amadureceram para a responsabilidade relacional, mas porque o corpo os arrastou imaturamente. O desejo se torna guia, e o relacionamento vira válvula de escape hormonal.

O problema é que, quando o fogo da novidade passa, sobra a realidade: dois indivíduos imaturos, unidos mais por descarga biológica e segurança de custeio financeiro, do que por encontro real. Surge então o vazio dentro da relação, a sensação de prisão, a repetição de brigas.


A sombra da família – Expectativa parental e fuga do lar

Paralelamente ao fogo hormonal, existe o peso do lar. Muitas famílias projetam nos filhos suas expectativas: “quando você vai namorar?”, “quero logo um genro/nora”, “quero netos”. A mensagem é clara: ficar só é sinal de fracasso.

O jovem absorve esse olhar. Mesmo sem desejar de verdade, sente a obrigação de se relacionar para atender ao script parental. Mais do que isso: o lar muitas vezes se torna sufocante. A convivência com pais controladores, a sensação de ser eternamente criança dentro da casa familiar, o julgamento constante — tudo isso gera uma necessidade de fuga.

O relacionamento, então, aparece como saída estratégica. Ter alguém é a senha para conquistar alguma autonomia: sair mais, dormir fora, viajar, escapar da vigilância. Muitos não percebem que estão menos interessados na pessoa e mais interessados na liberdade que o relacionamento simboliza.

Assim, a pressa de namorar ou casar não nasce do coração, mas da tentativa de resolver a opressão doméstica. O problema é que, nesse movimento, troca-se uma prisão por outra: do lar parental para a relação imatura que força ajustamento.


A facilitação financeira – Relação como atalho de vida

Outro fator central, muitas vezes silenciado, é a dimensão econômica. Em uma sociedade desigual, marcada por salários baixos e dificuldade de conquistar independência cedo, o relacionamento surge como atalho financeiro.

É mais fácil dividir aluguel, contas e despesas com alguém do que sustentar tudo sozinho. Para muitos, a união se torna caminho para sair de casa e “começar a vida adulta”. Mas esse início já nasce marcado pela adulteração de propósito, o qual sempre desemboca em codependência.

A relação deixa de ser espaço de construção consciente e vira associação estratégica. O que se pensa ser amor, nesse contexto, não passa de jogos momentâneos de conveniência. O risco é alto: quando o vínculo não se sustenta pelo afeto real, a pressão material se torna fonte de conflito. Dinheiro, responsabilidades, cobranças — tudo pesa mais quando não há solidez emocional para sustentar.


Outros fatores invisíveis que alimentam a pressa de se relacionar

Além dos três pilares principais, há outros elementos que raramente são vistos, mas que pesam tanto quanto:

Medo da solidão

O vazio interior é insuportável para a maioria. Ficar só significa ter que lidar com os próprios pensamentos, angústias, fragilidades e sentimentos de inadequação. O relacionamento aparece como anestesia: alguém para preencher o silêncio, alguém para validar a existência.

Necessidade de status social

Estar acompanhado é sinal de normalidade. A sociedade olha com desconfiança para o solteiro, especialmente quando passa dos 25 ou 30 anos. O namoro ou casamento se tornam prova de “normalidade” e de “sucesso social”.

Carência herdada

Muitos vêm de famílias onde o afeto foi ausente, frio ou instável. Essa lacuna cria uma fome afetiva que busca desesperadamente no parceiro, o colo que não se teve na infância. Mas ninguém pode ser pai ou mãe do outro sem que isso adultere o vínculo.

Indústria cultural

Filmes, novelas, músicas e redes sociais romantizam a pressa de relacionamento. A mensagem é clara: “amar cedo, viver intensamente, se entregar sem medo”. O adolescente cresce acreditando que só será alguém se viver essa narrativa.

Busca de identidade

A imaturidade impede que ambos saibam quem são. O outro, então, se torna espelho, muleta, rótulo. “Sou o namorado de alguém”, “sou esposa de fulano”. Com a relação, a identidade é terceirizada.

Economia psíquica

Relacionar-se funciona como anestesia contra dores existenciais: tédio, vazio, falta de sentido (que quase sempre é buscado através da gravidez inconsciente). O vínculo apressado vira remédio para não encarar a indigência interior.


A anatomia da pressa – O entrelaçamento das forças

Quando somamos tudo isso — hormônios, família, economia, medo da solidão, status, carência, indústria cultural — entendemos por que o indivíduo sente tamanha urgência de se envolver. É como se estivesse dentro de uma engrenagem que o empurra para o vínculo sem que ele perceba.

O corpo pede, a família cobra, a sociedade julga, a mídia romantiza, o bolso aperta, a solidão assombra. O resultado é previsível: ele se joga de cabeça.

Mas esse mergulho não é encontro, é fuga. Ele não busca o outro como outro, mas como solução de problemas internos e externos (sendo que muitos deles, o sujeito nem sequer tem consciência). E quando o outro não consegue cumprir esse papel — porque ninguém pode preencher a falta de lucidez, autonomia psíquica e maturidade do ser — surgem a frustração, o ressentimento, as cobranças, as tentativas de amoldamento e os conflitos.


As consequências – Relações frágeis, gestação inconsciente e ciclos de repetição

A pressa cobra caro. A maioria dos relacionamentos que nascem assim entram rapidamente em desgaste. O que parecia paixão vira prisão. O que parecia amor vira dependência. O que parecia liberdade vira nova forma de opressão.

As consequências mais comuns são:

  • Ciclos de repetição: o sujeito troca de parceiro, mas repete o mesmo padrão.
  • Frustração crônica: nada satisfaz porque a raiz do vazio nunca foi tocada.
  • Dependência afetiva: medo paralisante de ficar só, mesmo em relações tóxicas.
  • Amargura: ressentimento pelo outro não ter sido a salvação esperada.
  • Estagnação pessoal: a pressa impede o amadurecimento individual.
  • A gestação inconsciente – o selo da prisão relacional
  • Se a pressa em se envolver já cria vínculos frágeis e carregados de projeções, a gestação inconsciente aparece como agravante que fecha as portas da liberdade e transforma o enredo em cárcere.

Olhemos para este último tópico. Muitos casais, ainda imaturos, acabam engravidando não por decisão consciente, mas por descuido, impulsividade ou pela fantasia de que o filho consolidará a relação. O corpo pede prazer, a mente não reflete, e a consequência vem: uma nova vida que exige responsabilidades imensas de dois indivíduos ainda imaturos.

O que antes era apenas vínculo frágil se torna prisão concreta. O filho passa a ser o elo indissolúvel que mantém duas pessoas juntas mesmo quando já não há amor, respeito ou afinidade. A relação, que nasceu de pressa e carência, agora precisa se sustentar sob o peso de uma responsabilidade vitalícia.

As consequências são visíveis:

  • Ciclos de ressentimento: os pais sentem que foram obrigados a permanecer juntos por causa da criança, e o lar se enche de acusações veladas.
  • Amor condicionado: o filho é visto não apenas como ser humano, mas como marca da prisão. Muitos não percebem, mas projetam nele frustrações da relação.
  • Estagnação da liberdade: mesmo quando há desejo de separar, a presença do filho cria barreiras emocionais, sociais e financeiras quase intransponíveis.
  • A gestação inconsciente sela aquilo que já era imaturo. O que poderia ser uma travessia de aprendizado em solitude vira uma cadeia relacional sustentada por culpa, dependência e obrigação.

Não se trata aqui de desvalorizar a vida da criança, mas de mostrar a realidade nua: ela nasce em meio a um campo energético de pressa, carência e fuga. E crescer nesse ambiente significa carregar marcas psíquicas profundas — repetindo, muitas vezes, o mesmo padrão de pressa e aprisionamento dos pais.

A lucidez, nesse caso, exigiria duas coisas: primeiro, prevenir o salto inconsciente, ou seja, não deixar que a pressa e o desejo guiem decisões de tamanha magnitude; segundo, se a gestação já aconteceu, transformar o vínculo em algo mais maduro possível, para que a criança não herde apenas a prisão, mas também o esforço dos pais em se tornarem maduros.


A possibilidade de lucidez – Desacelerar e observar

Apesar de tudo, há saída. O primeiro passo é perceber que a pressa é produto de forças inconscientes e sociais. Ao enxergar isso, nasce uma nova liberdade: a de não se deixar arrastar.

Essa lucidez começa com a observação passiva e não reativa. Observar o corpo em ebulição sem se identificar, observar a expectativa familiar sem se dobrar, observar a solidão sem fugir dela. O sujeito que suporta o desconforto de estar só amadurece.

O relacionamento, nesse contexto, deixa de ser fuga e se torna escolha. Não é mais atalho para fugir da família, da carência ou do tédio, mas espaço para compartilhar. Só assim nasce uma relação madura: duas pessoas inteiras que se encontram, não duas metades que se agarram.


O preço e a dádiva de desacelerar

A pressa em se envolver é compreensível. Ela nasce do corpo, da família, da cultura, da economia, da solidão. É quase impossível escapar dela sem consciência. Mas toda pressa cobra seu preço: relações frágeis, sofrimento psíquico, repetição de padrões.

Desacelerar parece, para muitos, insuportável. Mas é nesse desacelerar que se abre a possibilidade de viver um amor que não seja apenas descarga hormonal, fuga do lar, status social ou anestesia existencial. Um amor que seja encontro, liberdade, partilha.

A dádiva está em suportar o silêncio, em aprender a ser só, em observar a própria fome sem correr a saciá-la de qualquer forma. Porque só quem atravessa esse vazio descobre que o outro não é salvação nem muleta — é apenas um companheiro de travessia.

E essa travessia, lenta e lúcida, vale mais do que qualquer pressa.


Talvez, o confrade esteja se perguntando: “e como lidar com a dor de perceber que a relação sempre foi fundamentada nesses pontos adulterantes, quando ainda não despertamos em nós, a capacidade de amor impessoal?”

Essa é uma das dores mais difíceis, de serem observadas em silêncio. Porque ela não é só a dor da perda de um “amor”, mas a dor de perceber que nunca houve amor verdadeiro ali — apenas carência, fuga, conveniência, hormônio, medo, expectativa. É uma dor crua, quase insuportável, porque mexe na própria fundação da vida psíquica.

O sujeito olha para trás e se pergunta: “Então vivi uma mentira? Então aquilo que eu chamava de amor era apenas um amontoado de necessidades?”. Esse confronto é devastador. É como ver o chão ruir sob os pés.

Mas há algumas formas de lidar com isso:

1. Aceitar a natureza do humano adormecido - O primeiro passo é perceber que essa situação não é uma falha pessoal isolada. É a condição humana adormecida. Quase todas as relações começam assim: imaturidade encontrando imaturidade, carência encontrando carência. Não havia como ser diferente antes da lucidez.
Essa constatação alivia a culpa: não foi apenas “eu” que errei, mas o campo humano inteiro que vive sob esse script.

2. Ver a relação como espelho evolutivo - Mesmo que tenha sido fundamentada em adulterações (fuga, hormônio, conveniência), a relação ainda pode ser vista como campo de aprendizado. Ela mostrou os mecanismos da pressa, revelou o quanto buscamos muletas, expôs a necessidade de amadurecer.
Em outras palavras: não foi amor impessoal, mas foi um espelho que empurrou para a possibilidade de descobri-lo.

3. Atravessar a dor sem fuga e sem a necessidade de consolação - A tendência é querer abafar a dor: entrar em outro relacionamento, mergulhar em trabalho, em prazeres, em distrações. Mas é preciso suportar o luto cru. Essa dor é a iniciação. É nela que o falso personagem, ferido por não ter mais ilusões para se agarrar, começa a perder força. Atravessar o deserto, sentir o vazio, aceitar a presente falta de profundidade relacional e de sentido aparente — tudo isso é laboratório do despertar de um olhar, que se fundamenta não mais nos cálculos autocentrados, mas no amor impessoal que vê o outro em sua exata natureza.

4. Desidentificar-se do implante sistêmico do roteiro romântico – Talvez este seja um dos condicionamentos mais difíceis de ser dissolvido. Grande parte da dor vem de perceber que aquilo que vivemos não corresponde à fantasia romântica em nós implantada culturalmente. É preciso quebrar esse feitiço: entender que o amor impessoal não tem nada a ver com paixão, posse, dependência ou segurança social. Só quando, pela observação passiva não reativa, nos desprendemos da cobrança do mito do “amor romântico” propagado nas músicas, novelas, filmes e séries, é que se abre espaço para uma outra forma de sentir: mais livre, silenciosa, sem muletas.

5. Praticar o amor impessoal consigo mesmo e com o outro

Se o indivíduo ainda não despertou, cabe a quem despertou não exigir que ele acorde agora. O amor impessoal começa justamente aqui: não cobrar lucidez de quem ainda não a tem. Isso significa: manter compaixão, sem se submeter; manter respeito, sem precisar manter a prisão; olhar o outro como ser humano em processo, não como inimigo. Esse exercício já é amor impessoal em ação: não depender da resposta do outro, mas agir a partir da clareza interior.

 

O ponto (5) descrito — o exercício real do amor impessoal — é para pouquíssimos, porque pressupõe o colapso completo da estrutura do falso personagem. A maioria dos que começam a despertar para a ausência da capacidade de amor real, ainda está numa fase intermediária: perceberam a falsidade dos alicerces da relação, mas não possuem ainda a capacidade de amar de forma impessoal. Estão mergulhados no caos da mutação, na dor crua e na confusão que surge quando o falso começa a se dissolver, mas o verdadeiro ainda não se consolidou.

Essa travessia é crucial e exige uma abordagem distinta: não tanto a realização plena do amor impessoal, mas a honestidade radical em suportar o intervalo entre o velho e o novo.


Do colapso silencioso ao nascimento da relação consciente

Poucos conseguem atravessar sem se despedaçar a experiência de ver a relação perder os alicerces que antes pareciam sólidos. É um momento em que tudo o que sustentava o vínculo — paixão, dependência, conveniência, medo da solidão, expectativas familiares — começa a se dissolver. A relação, que antes era refúgio, agora mostra sua nudez: foi construída sobre bases frágeis.

Esse despertar inicial não entrega ainda a maturidade de um amor impessoal. Ao contrário: o sujeito percebe sua própria incapacidade de amar sem carência, sem cobrança, sem possessividade, sem cálculos de autointeresse. É um choque duro: não só o outro se revela como é, mas nós mesmos nos vemos desprovidos daquilo que idealizávamos possuir.

Aqui surgem duas dores simultâneas:

  1. A dor de constatar a falsidade do vínculo.
  2. A dor de perceber que ainda não temos dentro de nós a fonte de amor verdadeiro.

É como estar no limbo: o velho não serve mais, o novo ainda não nasceu. A mente fica em confusão, os afetos se embaralham, o corpo sente o peso do luto, da frustração, da falta de chão.

Nesse estágio, o exercício não é exigir de si o amor impessoal (isso seria mais uma ilusão), mas aprender a atravessar o intervalo confuso com honestidade e observação lúcida. Algumas chaves podem ajudar:

  • Silenciar as reações automáticas: não correr para anestesias (fuga geográfica, novo parceiro, excesso de trabalho, vícios). Dar espaço para a dor respirar.
  • Ver o outro como ser humano real: não mais como muleta, salvador ou inimigo, mas como ele é — limitado, imaturo, igualmente prisioneiro das próprias confusões.
  • Reconhecer a própria limitação: admitir com humildade que ainda não sabe amar de forma livre. Essa aceitação já é um passo para fora do apego relacional.
  • Permitir que a relação mude de natureza: a união inconsciente, baseada em carências, pode se transformar num campo de aprendizado mútuo. É preciso estar muito atento aos impulsos emotivos reativos escapistas que pedem por rompimento imediato; é possível escolher permanecer, com profunda honestidade emocional com o parceiro, enquanto se desenvolve um outro olhar, mais maduro, menos dependente, responsável e integrativo.
  • Cuidar do coração ferido: atravessar o luto da velha sustentação relacional, a desilusão, o vazio, sem exigir que eles terminem rápido. A dor é o parto.

Esse é o momento de mutação silenciosa da relação: ela deixa de ser uma fusão inconsciente para se tornar, se houver disposição dos dois, um espaço de conhecimento real. O outro passa a ser visto não como extensão do eu, mas como alteridade. A relação deixa de ser prisão e pode se tornar escolha consciente: permanecer, não porque preciso, mas porque quero compartilhar o caminho.

Claro, isso exige tempo, paciência e vigilância interior. A confusão é inevitável. A dor é inevitável. Mas é nesse caos que o alicerce falso se desmancha, abrindo a possibilidade de um vínculo realmente maduro, lúcido, responsável.

O confrade precisa ter em mente, que existe um paradoxo nas relações humanas: mesmo nascendo de adulterações — carência, fuga, hormônio, conveniência, medo da solidão — muitas vezes surge, no decorrer da convivência, um bem-querer. Ele não é amor impessoal, ainda não é o amor livre e desinteressado, mas também não é apenas a repetição mecânica da necessidade inicial. É algo que brota no meio do terreno adulterado, como uma planta frágil crescendo numa rachadura de concreto.

Esse bem-querer pode se tornar um rito de passagem. Destrincharemos agora essa percepção, em alguns pontos:

1. O bem-querer como produto da convivência - Quando duas pessoas dividem vida, dores, alegrias, quando cuidam uma da outra em pequenos gestos cotidianos, mesmo que o início tenha sido inconsciente, por valores adulterados e adulterantes, algo genuíno pode nascer. Esse sentimento não é ainda o amor impessoal, porque ainda traz traços de apego, expectativa e projeção, mas é mais que a pura conveniência inicial. É o reconhecimento silencioso: “apesar de tudo, quero o seu bem”.

2. O bem-querer como depuração - Esse sentimento pode funcionar como um fogo depurador. Ele queima dia após dia, a possessividade, a dependência e o egoísmo, abrindo espaço para algo mais sutil. Do mesmo modo que se desenvolveu a codependência, isso também ocorre lentamente, não é absoluto, mas já desloca a relação de um lugar puramente autocentrado, para uma zona de aprendizado e mutação relacional. Aos poucos, o outro deixa de ser apenas instrumento da necessidade pessoal e começa a ser percebido como ser humano autônomo.

3. O risco da confusão - O problema é que muitos confundem o bem-querer com o amor maduro. E aí cristalizam o vínculo num limiar intermediário, acreditando que já chegaram ao destino, quando na verdade apenas saíram do ponto de partida. É preciso honestidade para distinguir: “ainda não amo de forma impessoal, mas já não vivo apenas de carência”. Esse reconhecimento evita tanto o desprezo cínico quanto a ilusão romântica.

4. O bem-querer como rito de passagem - Se vivido com consciência, e profunda honestidade emocional na relação, esse estágio pode ser um rito de passagem. O indivíduo aprende, dentro da relação, a experimentar o movimento de querer o bem do outro, não apenas como reflexo de si mesmo, mas por ele. Ainda misturado, ainda frágil, mas já um ensaio do amor real. Esse rito exige vigilância: observar os momentos em que o bem-querer se mistura com posse, notar quando o desejo de liberdade cede ao medo da solidão, perceber a sutileza dos jogos da velha estrutura fundamentada no medo e no cálculo autocentrado. Essa observação é o que transforma o bem-querer em trampolim para o amor real.

5. O bem-querer como campo de treino para o amor impessoal - Ninguém amadurece para o amor impessoal de um salto. Ele é raro justamente porque exige o assistir silencioso do Abismo do terror que advém do colapso total do personagem adulterado e adulterante. Mas o bem-querer pode ser campo de treino:

  • Aprender a ouvir sem impor.
  • Aprender a respeitar a alteridade do outro.
  • Aprender a desejar o bem mesmo quando não há retorno direto.
  • Aprender a permanecer mesmo quando não há prazer imediato.

Esses exercícios não são ainda o amor impessoal, mas são passos fundamentais na direção dele.

6. O perigo da estagnação e a possibilidade da transmutação - O risco maior é estacionar no bem-querer, transformando-o em justificativa para manter relações que já não têm vida, apenas hábito. Mas a possibilidade mais luminosa é a transmutação: esse sentimento simples, humilde e cotidiano pode ser a porta de entrada para a experiência maior. É um ensaio imperfeito que, se vivido com clareza e honestidade emocional, prepara o terreno para que o amor impessoal floresça.

Embora a maioria das relações nasçam em terreno adulterado, o bem-querer desenvolvido não deve ser desprezado. Ele pode ser visto como ponte, rito de passagem e campo de treino. Mas exige vigilância: não confundi-lo com amor pleno, nem descartá-lo como mera ilusão. Ele é intermediário, frágil, mas talvez seja exatamente o que muitos precisam viver antes que o verdadeiro se revele.

Em outra oportunidade, visto a importância destema tema, abordaremos com mais profundidade a questão do “bem-querer como rito de mutação relacional” — explorando como ele surge, como pode ser vivido sem ilusão e como pode ser transmutado em amor consciente.

domingo, 31 de agosto de 2025

Despertar, Confusão e Nascimento do Novo Olhar


Despertar, Confusão e Nascimento do Novo Olhar

Antes da crise iniciática, a vida do indivíduo é sustentada por camadas profundas de ilusão. Cada relação, cada escolha, cada experiência parece autêntica e significativa, mas tudo está mediado por condicionamentos internos invisíveis. Ele acredita que ama e que é amado, que escolhe livremente seus caminhos e que suas interações são genuínas e profundas. No entanto, essa percepção é superficial: o que ele pensa ser amor frequentemente se revela apego, necessidade de proteção, busca de pertencimento e fuga do terror silencioso do vazio e da solidão. Desde a infância, o ser aprende padrões, desenvolve autoproteções, reproduz expectativas familiares e culturais. Cada ato de “amor” ou gesto de cuidado carrega, mesmo que veladamente, impulsos autocentrados, voltados para a própria sobrevivência emocional e psicológica.

Crescer, casar, gerar filhos, manter carreiras, construir redes sociais — tudo isso é vivido como conquista, mas, sob as lentes do medo e do condicionamento, funciona como sustentação da ilusão. Relações são mantidas por conveniências, pelo medo da solidão, pela necessidade de dar vazão aos instintos naturais adulterados pela cultura ou pela necessidade de reforço da própria identidade. O indivíduo não percebe a extensão do condicionamento que molda suas ações. Ele confunde familiaridade com segurança, rotina com liberdade, prazer com profundidade. Cada vínculo parece autêntico, mas serve apenas para sustentar o falso personagem e evitar confrontos com a própria verdade interna.

O advento da crise iniciática rompe esse sistema inconscientemente erguido. Não se trata apenas de um evento emocional ou psicológico: é uma catástrofe interna, uma ruptura ontológica que dissipa certezas, jogando o sujeito num vasto campo de confusão. O véu das ilusões se rasga, expondo a realidade nua: o que parecia amor, segurança ou pertencimento se revela construção precária, sustentada por necessidades veladas e autoproteção. Surge um choque total: pânico, culpa, vergonha e confusão se entrelaçam diante da magnitude da verdade percebida. A mente, acostumada a soluções rápidas, reage fugindo, evitando relações e ambientes que agora parecem contaminados pelo engano próprio. Mas essa evasão, ainda que compreensível, não resolve o problema. O que se vê nesse movimento de fuga geográfica e relacional é apenas um migrar do impulso adulterante. Em resultado, além de persistir, a dor se intensifica, e a crise exige enfrentamento.

O limbo de confusão se instala, um espaço onde cada vínculo, cada escolha, cada lembrança é examinada à luz da nova percepção. O desapego começa a se consolidar através da observação silenciosa: o ser aprende a observar sem julgar, sem agir por impulso emotivo reativo escapista ou necessidade de controle. Cada relacionamento torna-se espelho da própria estrutura psíquica, revelando a influência do medo, do apego, da expectativa, da incapacidade de genuína e profunda interação e do cálculo autocentrado. Este é o terreno do crescimento interior: observar, permanecer lúcido e permitir que padrões condicionados se dissolvam sem pressa, sem fuga, sem manipulação, sem ação de esforço calculado, sem apelar para o uso de condicionamentos de programações espirituais.

Neste processo, o nascimento do novo olhar, começa a emergir. Diferente do anterior, não é autocentrado; é amoroso, porque não depende de reforço nem reciprocidade; é integrativo, porque percebe cada ser e situação como parte de um todo; é impessoal, porque não exige controle ou manipulação. Ele não busca reparar o passado nem corrigir erros, mas observa, compreende e age com clareza integrativa. Cada ato, cada palavra, cada decisão é filtrada pela consciência do momento, não pela necessidade de autopreservação. Relações não são mais instrumentos de segurança, mas espaços de aprendizado, presença e expressão genuína.

O processo, no entanto, é lento e exige paciência e profunda observação dos impulsos emotivos reativos escapistas. Há recaídas, quando padrões antigos emergem; há momentos em que o velho cálculo autocentrado tenta retomar o controle. Mas, com cada retorno à consciência, o olhar se fortalece, tornando-se silencioso, profundo, lúcido e abarcante. A dor da crise inicial não era punição, mas convite: convite a experienciar a vida com clareza, dissolvendo ilusões e cultivando autenticidade.

É nesse ponto que surge outro nível de dor, ainda mais profundo e nevrálgico: a percepção da própria incapacidade de gerar profundidade nas relações. O despertar não revela apenas a superficialidade alheia, mas, principalmente, a dificuldade interna de ser genuinamente profundo. O indivíduo deseja conexão, intimidade, expressão autêntica, mas percebe limites invisíveis em si mesmo: medo, defensividade, expectativas veladas e autoproteções que persistem, mesmo após a percepção da ilusão. Cada tentativa de profundidade esbarra nessas barreiras, criando um pavor silencioso.

O choque desse reconhecimento é diferente da frustração comum: é a constatação de que o próprio ser ainda não consegue ser o que deseja, mesmo com consciência. A profundidade não é simplesmente inatingível no outro; é parcial ou ausente dentro de si. O indivíduo experimenta impotência existencial, porque entende que a profundidade genuína depende dele mesmo, mas ainda não sabe como manifestá-la. Cada gesto, cada palavra ou olhar carregado de intenção sincera se depara com limites internos, tornando visível a distância entre desejo e capacidade. O sujeito percebe em si, a essência de um dito de um apóstolo cristão: “Não faço o bem que eu quero, mas o mal que não quero, esse faço. Mas, se eu faço o que não quero, já não sou eu quem o faz, e sim o pecado (condicionamento) que habita em mim.”

O pavor nasce da responsabilidade absoluta: não há culpados externos. A limitação é interna e intransferível. O indivíduo enfrenta a impossibilidade de penetrar nas próprias camadas condicionadas, de se entregar plenamente, de experienciar ou oferecer autenticidade total. O vazio não é apenas externo; é íntimo, interno, silencioso, e exige maturação da capacidade de observação silenciosa, passiva e não reativa. Cada relação se torna espelho da própria limitação relacional: revela a diferença entre o que se deseja ser e o que se consegue, no momento, manifestar.

No entanto, essa dor também contém potencial transformador. Ao observar a própria incapacidade relacional, sem julgamento, sem tentar mascarar ou escapar, o indivíduo cria espaço para a genuína interiorização da profundidade relacional. Ele aprende que autenticidade e presença não dependem de esforço, desempenho ou técnica, mas da permanência lúcida e da aceitação da limitação presente. Cada interação, cada gesto incompleto, cada frustração se torna matéria-prima para a mutação interior. O terror inicial, transforma-se em indicador vital: ele mostra onde a profundidade ainda não floresceu, apontando o caminho para o crescimento genuíno.

O processo exige prática constante de presença passiva não reativa, atenção silenciosa e auto-observação. Aos poucos, o medo e a impotência perdem intensidade, e lampejos de autenticidade começam a surgir nas relações. A profundidade deixa de ser meta inalcançável e torna-se prática contínua, expressão sincera e presença consciente. A dor inicial revela-se catalisadora: o reconhecimento da limitação cria a possibilidade de manifestação real da profundidade, quando o ser aprende a permanecer íntegro, independente da reciprocidade ou da superficialidade alheia.

Assim, o despertar conduz o indivíduo por um caminho paradoxal: a percepção da ilusão e da superficialidade gera dor, mas é essa mesma dor que abre espaço para desapego, observação e mutação psíquica. A percepção da própria impotência em ser profundo, por mais angustiante que seja, se converte no núcleo da maturidade relacional e espiritual. Ele aprende que a profundidade verdadeira nasce da consciência da limitação, da observação honesta e paciente, da presença silenciosa e do compromisso de sustentar autenticidade mesmo diante de barreiras externas ou internas.

Com o tempo, a consciência amadurece: a profundidade não depende do outro, nem de condições externas. Surge a habilidade de relacionar-se de forma amorosa e impessoal, de observar sem se perder, de agir com clareza sem apego. Relações passam a ser campos de expressão, aprendizado e presença, e não arenas de validação ou autopreservação. A dor da incapacidade inicial se transforma em força silenciosa: o poder de permanecer íntegro e profundo, cultivando autenticidade de dentro para fora.

Finalmente, o indivíduo compreende que o verdadeiro despertar não é uma conquista de habilidades ou um acúmulo de experiências, mas um estado contínuo de lucidez e presença. Cada relação, cada situação, cada instante da vida torna-se oportunidade de praticar profundidade, autenticidade e amor impessoal. A crise, o limbo de confusão, o nascimento do novo olhar e a dor da própria incapacidade de profundidade são fases interligadas de um mesmo processo: o caminho do ser em direção à autenticidade, clareza e integração plena.

O despertar é doloroso e extremamente confuso, exige coragem e paciência, mas oferece algo que nenhuma ilusão anterior poderia proporcionar: a possibilidade de experienciar a vida de forma limpa, direta, profunda e generativa, mesmo diante das limitações do mundo e da própria psique. A profundidade não é presente externo a ser buscado, mas qualidade interna a ser cultivada, revelada e sustentada, transformando cada relação, cada gesto e cada instante em oportunidade de presença autêntica e amorosa.

 

Atravessando a dor crua do luto, da desilusão e da falência de organizar a vida


Um confrade nos escreveu....

"Após a crise que tive que levou até o canal, conheci uma namorada que foi muito importante pra mim. Me ajudou a me organizar e lidar com todo aquele caos. Logo após o término tive dois namoros breves. Viajei pra outro estado, pensando em construir uma vida e quem sabe até uma família. O pesadelo foi inevitável. Agora estou aqui num luto ferrado e sem dinheiro no bolso. O vazio está rasgando. Mas tem algo de positivo nisso. Estou vendo a coisa totalmente de frente. Vendo o profundo vazio que me encontro e lidando com toda incapacidade da estrutura de amar. Tudo aquilo que se constrói dentro da estrutura termina numa prisão e tragédia. Pra mente é realmente impossível enxergar algo além desse vazio. Ela não consegue. Existe algo totalmente desconhecido por debaixo dos panos. Algo totalmente diferente."

...

Caro confrade, mesmo atravessando a dor crua do luto, da desilusão e da falência das tentativas de “organizar a vida”, você já está tateando um ponto fundamental: a observação da limitação estrutural da mente e percebendo o vazio como algo que não se resolve com mais esforço, planos ou relações.

O que você descreveu tem a marca de uma crise iniciática — o colapso das estratégias psíquicas que antes davam sustentação (namoros, organização externa, projeto de família, viagem, novas tentativas). A estrutura está exposta em sua impotência.

Há algo muito precioso no seu relato:

“O vazio está rasgando” → Esse é o ponto em que a mente tenta fugir, mas já não consegue mais. O sofrimento é a prova de que a anestesia falhou.

“Pra mente é realmente impossível enxergar algo além desse vazio” → você já está vendo a falência da mente como guia.

“Existe algo totalmente desconhecido por debaixo dos panos” → Aqui está a fresta, a intuição do incondicionado. Esse lampejo é raro, porque normalmente o indivíduo se agarra a novos condicionamentos antes de suportar esse silêncio do nada.

O que você não vê ainda — mas já toca — é que esse “desconhecido” não precisa ser construído. Ele não vem de fora. Ele não depende de um novo relacionamento, de dinheiro, de um projeto de vida. O desconhecido já está ali, justamente quando tudo o que era sustentação colapsa.

Você está no ponto mais fértil, mesmo que a mente grite o contrário. O vazio que agora te rasga é o mesmo vazio que pode te libertar. Não tente preenchê-lo com pressa. Nem dinheiro, nem relacionamento, nem novos sonhos vão resolver — todos eles voltam a se tornar prisão. Permaneça com essa ferida aberta. É aí que o que não pertence à mente pode emergir. É aí que o amor real, impessoal e sem objeto, que não depende de estrutura, pode nascer. O que você chama de pesadelo, talvez seja exatamente a oportunidade de morrer para a farsa e nascer para o indizível.”

Você está vivendo algo que a maioria foge até o fim da vida: o encontro nu com o vazio. É um abismo que a mente não suporta. Por isso a maioria corre desesperada para se preencher com distrações, novos relacionamentos, ilusões de estabilidade, pequenas conquistas que, no fundo, são apenas muletas provisórias para não olhar de frente a ausência de sentido que atravessa tudo. O que você chamou de “rasgo” é justamente isso: a ruptura da fantasia, o colapso da arquitetura psicológica que sustentava a ideia de uma vida com chão, de uma identidade com certezas.

Quando você diz que, após o caos da crise, encontrou uma namorada que foi fundamental, percebe-se aí o mecanismo natural: quando a dor rasga, buscamos refúgio numa forma, num afeto, num outro corpo que nos dê a sensação de estabilidade. Isso não é errado. É humano. Mas, inevitavelmente, quando a relação acaba, o chão de empréstimo desaparece e você cai de novo na verdade que sempre esteve ali: nada do que a mente constrói dura, nada do que ela agarra pode ser realmente seguro.

O mesmo se repete com a viagem, o projeto de vida, a fantasia de família. Tudo isso não era um erro, mas era inevitavelmente frágil. Porque estava sendo usado como escudo contra aquilo que agora você encara de frente: o profundo vazio. Não adianta tentar dourar a pílula. O que você vê é o que sempre esteve por baixo, mas antes estava encoberto pelo verniz das buscas, dos sonhos, das companhias. Agora não há mais nada entre você e o deserto.

E é aqui que começa o verdadeiro ponto de mutação. A mente chama isso de tragédia, de pesadelo, de fracasso. Mas olhe com mais cuidado: é exatamente neste lugar que se abre a possibilidade de ver o que está além dela. Você mesmo disse: “Pra mente é impossível enxergar algo além desse vazio.” Exato. A mente não alcança. E isso é libertador. Porque o vazio não precisa ser preenchido pela mente. O vazio é a porta para o que está fora do alcance do pensamento, fora do alcance da estrutura insegura e condicionada, que só sabe acumular, calcular e tentar controlar.

O que você sente como impotência é o primeiro passo da rendição. Você não controla mais. A estrutura desmoronou. E por mais que doa, isso é um presente. É duro ouvir isso quando não se tem dinheiro, quando se sente sozinho, quando o corpo dói e a mente grita, mas é justamente aí que você percebe: mesmo sem nada, você continua aqui. A vida pulsa, mesmo sem apoios externos. Essa permanência silenciosa, que não depende de nada, é o que você chama de “algo totalmente desconhecido por debaixo dos panos”.

Esse “desconhecido” não é um objeto que você vai alcançar depois de muita luta. Não é um prêmio que você ganhará por ter sofrido. Ele é o que sobra quando toda a parafernália do falso personagem cai. É o espaço nu da consciência, o ser que não depende de personagens nem de conquistas. E só se vê isso quando tudo o mais falha. Por isso tanta gente nunca chega até aí: porque foge antes, se anestesia, inventa novas histórias para evitar o silêncio. Você está sendo arrancado à força da anestesia. E embora doa, isso é uma graça.

O vazio não é contra você. O vazio é você sem as máscaras. Mas para percebê-lo, você terá que atravessar a fase da resistência. O falso personagem não quer morrer. Ele vai dizer que você fracassou, que não há saída, que nunca vai amar, que tudo é prisão e tragédia. É o canto da sereia da mente tentando te puxar de volta para os velhos mecanismos. Se você acreditar nisso, vai correr para um novo relacionamento, uma nova viagem, um novo projeto — e tudo vai se repetir, até o próximo colapso. Mas se você permanecer firme nesse abismo, sem pressa de sair dele, algo completamente novo se revela.

Veja: o amor de que você fala não é incapacidade sua. Não é que você seja estruturalmente incapaz de amar. O que você está vendo é a incapacidade da estrutura egóica de amar. E isso é verdade. O falso personagem não ama. Ele troca, negocia, barganha, usa o outro como muleta. Mas o amor real não nasce da estrutura, nasce justamente quando ela falha. O que você está sentindo agora é a impossibilidade da mente amar. E esse é o limiar do nascimento do amor impessoal, do amor que não vem da carência, mas da plenitude silenciosa.

O luto que você carrega não é só pelo fim de relacionamentos. É o luto pelo fim da velha vida, da velha forma de viver. É um luto legítimo. É uma morte. E como toda morte, ela abre espaço para algo que a mente não compreende. Não lute contra o luto. Deixe que ele faça o trabalho dele. Deixe que as ilusões morram. O sofrimento maior vem da resistência: querer que as coisas fossem diferentes, querer recuperar uma versão antiga de si mesmo, querer acelerar o processo. Se você simplesmente aceitar a secura, sem pedir que seja outra coisa, verá que até no deserto há uma beleza crua, silenciosa, onde o falso personagem não tem mais força.

Você fala de estar sem dinheiro, e isso dói porque o sistema nos condicionou a acreditar que sem recursos não somos nada. Mas talvez até isso faça parte do aprendizado. Porque quando você se vê sem apoios, descobre que ainda assim você respira, sente, está vivo. O essencial não falta. O que falta é o supérfluo que a sociedade martela como indispensável. E nesse corte, você descobre que a vida não é propriedade sua. Ela continua acontecendo apesar de tudo.

O convite agora não é fazer mais, mas parar. Observar. Não se trata de lutar contra o vazio, mas de se sentar nele, de sentir o rasgo sem apressar o curativo. É isso que abre a percepção do “algo totalmente diferente”. Não espere que a mente reconheça, porque ela não consegue. O novo não cabe dentro dela. Você apenas se abre, se rende.

Não romantize essa travessia. Ela não é bela no sentido comum. É dura, é áspera, é solitária. Mas é real. E a realidade, mesmo crua, é infinitamente mais libertadora que as falsas seguranças que sempre terminam em tragédia. Quando você aceitar que nada do que a mente constrói pode se sustentar, o medo perde força. Porque então você já não busca chão onde nunca houve. Você caminha no ar, e descobre que não precisa de muletas.

Esse momento pode se prolongar. Não há prazo. Você pode ficar meses, anos, nesse deserto. Mas cada instante em que você não foge já é o trabalho acontecendo. Não há manual. Não há como acelerar. O que existe é presença nua. E essa presença, que agora parece apenas vazio, com o tempo se mostra plenitude. Não porque ela se enche de coisas, mas porque você percebe que nunca faltou nada.

O falso personagem chora o colapso. A consciência celebra. É o mesmo movimento visto de ângulos diferentes. Você está no ponto em que pode escolher: ou corre para tentar reconstruir a velha farsa, ou aceita a morte dela e permanece com o silêncio que resta. Essa aceitação não é passividade; é uma insurgência radical contra todo o condicionamento que te ensinou a fugir do nada.

Então, não espere reconhecimento, não espere aplausos, não espere que os outros entendam. Ninguém que não tenha atravessado sabe do que se trata. Você parecerá perdido, fracassado, derrotado. Mas dentro, se você permanecer, descobrirá que justamente na derrota da mente está a vitória da vida.

Você já viu a farsa. Você já sentiu o vazio. Agora resta apenas não fugir. Esse é o único “trabalho”. Não busque atalhos. Não se iluda com novos brilhos. Simplesmente permaneça. O resto vem por si.

O que você chama de “algo totalmente desconhecido” já está se mostrando. Mas ele não grita. Ele não se impõe. Ele só se revela quando toda a ilusão foi desarmada. Agora, você está nu diante dele. E essa nudez, que dói tanto, é a sua chance real de despertar.

sábado, 21 de abril de 2018

É possível libertar-se de toda dependência psicológica?


É possível libertar-se de toda dependência psicológica?

PERGUNTA: Podem os conservar nossos empregos, e trabalhar sem competição?

KRISHNAMURTI: Não podemos, senhor? Podeis frequentar o escritório e conservar vosso emprego sem competir? Não me cabe dizer se o podeis ou não, ou que deveis trabalhar sem competir. Mas, só vós podeis ver os efeitos do espírito de competição: ele gera antagonismos, medo, um cruel empenho em alcançar vossas pretensões, espirituais ou mundanas. Vedes tudo isso e perguntais a vós mesmo se é possível viver neste mundo sem competir. Isso significa viver sem comparar; significa fazer o que realmente gostais de fazer, o que sobremodo vos interessa. Ou, se vos vedes preso a um emprego de que não gostais — por terdes responsabilidades — significa que deveis descobrir como exercer esse emprego eficientemente, sem competir. E isso requer muita atenção, não achais? Tendes de estar sumamente vigilante para cada pensamento, cada sentimento, que em vós se manifestam, porque, do contrário, estareis meramente impondo a vós mesmo a ideia de que não deveis competir — o que se torna mais um problema. Mas, podeis tornar conhecimento de tudo o que a competição implica; perceber seu verdadeiro significado, e como gera conflito, luta incessante; compreendes que a competição inevitavelmente conduz o homem (ainda que se verifique considerável progresso —, o que se costuma chamar “progresso” — e maior eficiência na competição) ao antagonismo, à falta de afeição. Se perceberdes tudo isso, então, como resultado dessa percepção, atuareis — competindo ou não competindo, plenamente.

INTERROGANTE: Não creio que uma ação que se repete seja necessariamente fastidiosa.

KRISHNAMURTI: Deveis saber que se está começando a verificar que um homem que trabalha numa fábrica, fazendo a mesma coisa repetidamente, não é uma entidade muito produtiva, e dizem-me que na América se está agora experimentando, em certas fábricas, dar aos trabalhadores oportunidade de aprender, ao mesmo tempo que exercem suas atribuições. O resultado é que o seu trabalho se torna menos monótono e, por conseguinte, mais produtivo. Ainda que nos dê muito prazer fazer uma certa coisa, se prosseguimos incessantemente na mesma ação, ela se torna rotineira e cansativa.

PERGUNTA: E que dizeis a respeito do artista?

KRISHNAMURTI: Se o artista está meramente repetindo, por certo já não é artista. Parece-me que estamos confundindo as duas palavras — “repetição” e “criação” — será que estamos? Que é criação?

INTERROGANTE: Um homem que faz bons sapatos é criador.

KRISHNAMURTI: Fazer bons sapatos, cozinhar pão, gerar filhos, escrever poesias, etc. etc. — isso é criação? Por favor, não concordeis nem discordeis. Um minuto!

INTERROGANTE: Não percebo com o é possível viver-se num espaço vazio.

KRISHNAMURTI: Minha senhora, parece que nos estamos desentendendo. Lamento-o. Provavelmente isso se deva à minha escolha das palavras, que pode não ser tão boa como deveria ser, e talvez não compreendais exatamente o que entendo por “vazio”. Mas, estávamos falando sobre criação.

Ouvi dizer que em certa universidade estão ensinando o que chamam “literatura criadora”, “pintura criadora”. Mas pode-se ensinar a ser criador? A contínua prática de determinada coisa pode suscitar o espírito criador? Pode-se aprender de um professor a técnica de tocar violino, mas é óbvio que a técnica, por si só, não faz do homem um gênio, já quando a pessoa tem aquela criatividade, ela produzirá a técnica — e não vice-versa (isto é, a técnica não pode gerar o ânimo criador). Em geral pensamos que, adquirindo a técnica, encontraremos a outra coisa (o poder de criar). Consideremos um exemplo muito simples, embora todos os exemplos sejam precários. Que é vida simples? Vida simples, dizemos, é ter poucas posses, comer pouco, ter minguados haveres, e abster-se de fazer isto ou aquilo. Na Ásia, aquele que anda de tangas e só toma uma refeição diária é considerado um homem de vida simples; mas, interiormente, esse homem pode estar em ebulição, como um vulcão, ardendo em desejos, paixões, ambições. A vida simples desse homem é meramente uma ostentação, que todos podem reconhecer e dizer “Que homem simples!” — Esse é o verdadeiro estado da maioria dos santos: exteriormente apresentam simplicidade, porém, interiormente, são homens ambiciosos que disciplinam a mente, que se obrigam a ajustar-se a um certo padrão, etc. Assim, eu acho que a simplicidade deve, primeiro, vir de dentro, e não de fora. Analogamente, a criação não pode verificar-se por meio de expressão. Temos de achar-nos no estado de criação, e não de buscar a criação através da expressão. Achar-se no estado de criação é o descobrimento do Supremo, e isso só pode acontecer quando não há atividade do “eu” em nenhum sentido.

Voltando ao que disse aquela senhora sobre o vazio. Em regra, embora em exterior relação uns com os outros, vivemos no isolamento; mas não é sobre esse isolamento que falo. Vazio é coisa totalmente diferente de isolamento. Deve haver vazio entre nós, para que possamos ver um ao outro; deve haver espaço mediante o qual possais ouvir o que estou dizendo, e vice-versa. Na mente, por igual, o espaço precisa existir; isto é, ela não deve estar atravancada de tantas coisas, que nenhum espaço reste. Só quando há espaço dentro da mente — o que significa não haver atividade egocêntrica — só então é possível saber o que é viver. Mas, viver no isolamento — isso não é possível.

PERGUNTA: Poderíeis dizer mais alguma coisa a respeito da energia?

KRISHNAMURTI: Qualquer coisa que se faça, até a mais insignificante, requer energia, não é verdade? O levantar-se e sair deste pavilhão, o pensar, o comer, o conduzir um carro — toda espécie de ação exige energia. E, ordinariamente, ao fazermos alguma coisa, há, em nós uma forma de resistência que dissipa energia — a não ser que a ação nos proporcione prazer, caso em que não há conflito, nem resistência na continuidade da energia.

Como já disse, precisamos de energia para estarmos completamente atentos, e nessa energia não há resistência, porquanto não há distração. Mas, se ocorrer distração — no momento em que desejais concentrar-vos numa coisa e ao mesmo tempo olhar pela janela — há uma resistência, um conflito. Ora, o olhar pela janela é tão importante como o olhar para outra coisa qualquer — e, com a percepção dessa verdade, não haverá então distração, nem conflito.

Para terdes energia física, deveis naturalmente tomar alimentos adequados, ter a justa proporção de repouso, etc. Isto vós mesmos podeis experimentar e não há necessidade de o discutirmos. Mas existe também a energia psicológica, a qual se dissipa de várias maneiras. Para ter essa energia, a mente busca estímulos. Frequentar a igreja, assistir a partidas de futebol, entregar-se à literatura, ouvir música, etc., — todas essas coisas vos estimulam; e se o que desejais é ser estimulado, isso significa que, psicologicamente, sois dependente. A busca de estímulo implica dependência de alguma coisa — de uma bebida, uma droga, um orador, ou de entrar numa igreja; e, por certo, o depender de estímulo não apenas embota a mente, mas também ocasiona dissipação da energia. Assim, para conservarmos nossa energia, deve desaparecer toda espécie de dependência ou de estímulo; e, para desaparecer a dependência, precisamos aperceber-nos dela. Se, para ter estímulo, a pessoa depende de sua mulher ou de seu marido, de um livro, de seu cargo, de ir aos cinemas — qualquer que seja o incentivo — deve, em primeiro lugar, perceber isso. O aceitar simplesmente os estímulos, e com eles viver, dissipa energia e deteriora a mente. Mas, cientificando-nos dos estímulos e do significado que têm em nossa vida, poderemos livrar-nos deles. Pelo autopercebimento — que não é autocondenação, etc., porém estar simplesmente apercebido, sem escolha, de si próprio — pode o homem conhecer todas as formas de influência, todas as formas de dependência, todas as formas de estímulo; e esse próprio movimento da ação de aprender dá-lhe a energia necessária para libertar-se de todas as dependências e de todos os estímulos.

Krishnamurti, Saanen, 26 de julho de 1964,
A mente sem medo

quinta-feira, 19 de abril de 2018

Enquanto há apego, não há liberdade


Enquanto há apego, não há liberdade

[...] Penso que todos nós estamos cientes das extraordinárias transformações exteriores ocorrentes no mundo, mas são bem poucos os que se transformam intimamente. Ou seguimos um certo padrão de pensamento estabelecido por outrem, ou criamos nossa própria estrutura ideológica, dentro da qual ficamos funcionando. E a maioria de nós acha dificílimo libertar-se desse padrão “conceitual”. Vivemos passando de conceito para conceito, de ideia para ideia, e pensamos que esse movimento é transformação; mas, como qualquer um pode ver se o observar atentamente, isso, em verdade, não é transformação nenhuma. O pensamento não pode produzir transformações profundas. O pensamento pode ser a causa de certos ajustamentos superficiais, poderá criar um novo padrão e a ele se ajustar, mas interiormente não se verifica nenhuma transformação significativa: somos, e provavelmente continuaremos a ser, o que sempre fomos. Esses ajustamentos exteriores correspondem sempre à nossa instabilidade interior, nossa interior incerteza, nosso interior sentimento de medo, e à nossa ânsia de fugir dos recantos escuros e inexplorados de nossa mente.

[...] Nesta manhã desejo examinar uma coisa que sinto ser muito importante, mas penso que primeiramente devemos compreender que o movimento exterior e o movimento interior da vida são essencialmente a mesma coisa. Importa não dividirmos esse movimento em “mundo exterior” e “mundo interior”. Ele é idêntico à maré, que vai para muito longe e retorna, sempre profunda. É quando dividimos esse movimento da vida em “exterior” e “interior”, “material” e “espiritual”, que começam todos os conflitos e contradições. Mas, se experimentamos verdadeiramente esse movimento como um processo unitário, incluindo tanto o “interior” como o “exterior”, então não há conflito. O movimento interior já não é, então, uma reação ao “exterior”, uma fuga ao mundo e, portanto, não precisamos retirar-nos para um mosteiro ou para o isolamento de uma torre de marfim. A o compreendermos o significado do “exterior”, o movimento interior deixa de ser o oposto do exterior; não é então, uma reação e, portanto, pode penetrar mais profundamente. Julgo, pois, ser esta a primeira coisa que cumpre compreender: que não podemos separar o interior do exterior. Trata-se de um processo unitário, e há grande beleza no perceber a sua indivisibilidade. Mas, para penetrarmos mais amplamente nesse mecanismo, precisamos compreender a natureza da humildade.

Em geral, não sabemos realmente o que significa ser humilde, ter o sentimento de humildade completa. A humildade não é uma virtude cultivável. No momento em que se cultiva a humildade, já não há humildade. Ou sois humilde, ou não sois. Para terdes o sentimento de completa humildade, deveis perceber esse movimento interior e exterior como um mecanismo único. Deveis compreender o significado da vida como um todo — a vida de sofrimento, de prazer, de dor, a vida que busca perpetuamente um pouso, que busca algo a que chama “Deus” ou por outro nome qualquer. Tendes de compreender tudo isso, e não rejeitar uma de suas partes para aceitar outra. Compreender é achar-se num estado de pleno percebimento. Significa escutar, passivamente, vossa esposa, vosso marido, o vento entre as árvores, o murmúrio das águas que passam, significa ver as montanhas, estar inteirado de tudo. Nesse estado de percebimento objetivo, há uma compreensão do exterior e do interior como um movimento total, unitário, e com essa compreensão se apresenta o senso de humildade. A humildade é importante, porque a mente sem humildade não pode aprender. Poderá acumular conhecimentos, reunir mais e mais informações, mas conhecimento e informações são coisas superficiais. Não sei porque tanto nos orgulhamos de nosso saber. Tudo se encontra em qualquer enciclopédia, e é estultícia acumular conhecimentos para satisfação de nosso orgulho e arrogância pessoal.

A humildade, pois, não é uma coisa que se deve alcançar com esforço. Alcançá-la-eis naturalmente, facilmente, “graciosamente”, uma vez percebido como um mecanismo total esse movimento do exterior e do interior. Então, começareis a aprender. Aprender é o estado da mente que jamais acumula experiência como memória, por mais agradável que seja a experiência; é o estado da mente que nunca evita um pesar, uma frustração. Ela se acha sempre num “estado de aprender”, de humildade. E vereis que da humildade provém a disciplina. Em maioria, não somos disciplinados. Submetemo-nos, ajustamo-nos, imitamos, reprimimos, sublimamos, mas nada disso é disciplina. Submissão não é disciplina e, sim, meramente, um produto do medo; por conseguinte, torna a mente estreita, estulta, embotada. Refiro-me a uma disciplina que existe espontaneamente quando há esse extraordinário senso de humildade e, por conseguinte, nos achamos num “estado de aprender”. Não é então necessário impor à mente nenhuma disciplina, porquanto o “estado de aprender” é, em si mesmo, uma disciplina.

Espero estar explicando isso bem claramente. Não falo da disciplina mecânica do soldado, que é exercitado para matar ou ser morto, nem da disciplina da técnica. Os escritórios, oficinas, fábricas, laboratórios e as diversas profissões técnicas requerem eficiência e, a fim de funcionar eficientemente num dado trabalho, a pessoa se disciplina, para corresponder ao padrão estabelecido. Não me refiro a nada disso. Refiro-me a uma disciplina completamente diferente, uma disciplina que nasce espontaneamente quando se compreende esse extraordinário mecanismo da vida, não em fragmentos, mas como um todo indiviso. Quando vos compreendeis, não “especializado” como músico, artista, orador, iogue, etc., mas como ser humano total, então, como resultado dessa autocompreensão, há um “estado de aprender”, e ele constitui uma disciplina isenta de ajustamento, imitação. A mente não está sendo moldada de acordo com nenhum padrão e, portanto, é livre, e nessa liberdade há um espontâneo senso de disciplina. Acho importante compreender isso, porquanto, para a maioria de nós, liberdade significa fazer tudo o que desejamos, ou obedecer aos nossos instintos, ou seguir o que, infelizmente, chamamos “nossa intuição”. Mas nada disso é liberdade.

Liberdade significa esvaziar a mente do conhecido. Não sei se já alguma vez o tentastes, vós mesmo. O relevante é libertarmos a mente do conhecido, ou, melhor, que a mente se liberte do conhecido. Isso não significa que a mente deva libertar-se do conhecimento “fatual”, pois em certo grau necessitamos desse conhecimento. É claro que não deveis libertar-vos do conhecimento do lugar onde residis, etc. Mas a mente pode libertar-se do seu fundo de tradição, de experiências acumuladas, e dos vários impulsos conscientes e inconscientes que representam reações daquele fundo; e ficar completamente livre desse fundo significa rejeitar, pôr de lado, morrer para o conhecido. Se assim fizerdes, descobrireis por vós mesmo quanto é realmente significativa a liberdade.

Falo de uma total liberdade interior em que não há dependência psicológica, nem apego de espécie alguma. Enquanto há apego, não há liberdade, porque o apego implica sentimento de íntima solidão, vazio interior, o qual exige um estado de relação exterior em que amparar-se. A mente livre não é apegada, embora possa ter relações. Mas não pode nascer a liberdade, se não há aquele “estado de aprender” que traz consigo uma profunda disciplina interior, não baseada em ideias nem em nenhum padrão “conceitual”. Quando a mente se liberta constantemente pelo morrer de instante em instante para o conhecido, daí provém uma disciplina espontânea, uma austeridade nascida da compreensão. A verdadeira austeridade é uma coisa maravilhosa; não é a seca disciplina, e sem nenhum valor, da renúncia destrutiva, que em geral imaginamos.

Não sei se já alguma vez experimentastes esse extraordinário sentimento de “ser completamente austero” — coisa que nada tem em comum com a disciplina de controle, ajustamento, submissão. E essa austeridade deve existir, porque, nela, há grande beleza e intenso amor. Nessa austeridade há paixão; ela só se apresenta ao existir solidão interior.

Agora, penso que é preciso perceber bem a diferença entre “isolamento” e “solidão”. Em regra, conhecemos a “solidão do isolamento” sempre que nos tornamos conscientes de nós mesmos. Talvez já tenhais conhecido a experiência de vos sentirdes subitamente isolado de tudo, de não estardes em relação com coisa alguma. Podeis achar-vos no meio de uma multidão, ou no círculo da família, ou numa reunião social, ou ainda passeando a sós pela margem de um rio, e subitamente vos vem um sentimento de completo isolamento. Esse sentimento de isolamento é essencialmente um “estado de medo”, e ele sempre existe, emboscado no segundo plano da mente. Desse medo procuramos fugir constantemente, fazendo coisas de todo gênero: lendo um livro, ouvindo o rádio, vendo televisão, bebendo, procurando mulheres, voltando-nos à busca de Deus, etc. É desse isolamento e por temermos isolar-nos que decorrem todas as nossas ações e reações. “Isolamento” é coisa completamente diferente de “solidão”.

A mente que se vê isolada, e com medo, está à mercê de inumeráveis influências; como um pedaço de barro, ela é maleável, pode ser modelada, ser forçada a ajustar-se a um molde. Mas, solidão é a mente livre de qualquer influência: influência da esposa, do marido, da tradição, da igreja, do Estado. Ela significa estar libertado da influência de leituras e das próprias e inconscientes exigências. Por outras palavras, solidão é a completa libertação do passado. É o “estado de aprender” que surge quando a mente compreende o mecanismo total da vida; daí vem uma disciplina que não é a disciplina da Igreja, ou do exército, ou do especialista, ou do atleta, ou do homem que cultiva o saber. É a disciplina nascida de um profundo senso de humildade; e não pode haver humildade, se a mente não está completamente só.

O que até agora se disse é razoável, lógico, são, saudável, e se compreendemos as palavras e lhes aprofundamos o sentido, não terá havido dificuldade em apreenderdes os dizeres do orador. Mas é necessário mais, muito mais do que isso. O exposto semelha o lançamento dos alicerces de uma casa — só os alicerces, e nada mais. Mas esses alicerces precisam ser lançados, e lançados com ardor, intensidade, beleza e, por conseguinte, com amor. Não podem ser lançados sob o impulso do desespero, do conflito, ou do desejo de alcançar um certo e estulto resultado, porque então a mente não se acha num estado livre do conhecido, do passado.

Não sei se já alguma vez notastes como acumulais, como vossa mente se aferra a inumeráveis e insignificantes experiências. A mente fornece o terreno no qual as experiências passageiras cravam raízes e continuam a moldá-la. Quase toda experiência deixa sua marca, e a experiência, por conseguinte, só pode perpetuar a limitação da mente. Mas, após lançar os alicerces corretos, pela percepção e compreensão de que esse mecanismo constitui sua própria limitação, a mente — com toda a facilidade, sem conflito algum — se liberta do “conhecido” e nasce, daí, um movimento que é criação.

Na maioria, buscamos Deus, e nosso Deus é uma mera questão de crença. A palavra God (Deus) escrita às avessas é dog (cachorro), e esta última serve tão bem como a primeira para designar aquilo que chamamos Deus. Mas, fomos educados, desde a meninice, para aceitar aquela palavra; e a religião organizada com sua milenária propaganda, condiciona a mente para crer naquilo que se supõe que a palavra representa. E aceitamos tal crença com tanta facilidade, exatamente como no mundo comunista aceitam a crença de que não há Deus, porque nessa crença foram eles educados. Esse é um outro gênero de propaganda. O crente e o não crente são iguais, porquanto ambos são escravos da propaganda.

Ora, para descobrirdes se há ou não há Deus, deveis destruir, em vós mesmos, tudo o que seja produto de propaganda. O que hoje chamamos “religião” foi organizado, formado durante séculos pelo homem, com seu medo, sua avidez, sua ambição, sua esperança e desespero. E para descobrir se há ou não há Deus, a mente deve destruir totalmente, sem nenhum motivo, todas as acumulações do passado; deve eliminar radicalmente todas as crenças e descrenças e desistir completamente de buscar. Deve a mente estar vazia do “conhecido”, vazia do Salvador, vazia de todos os deuses manufaturados pelo pensamento e esculpidos na madeira ou na pedra. Só quando livre do conhecido, pode a mente encontrar-se num estado de absoluta tranquilidade, não provocada por uma certa maneira de respirar, por exercícios, artifícios, drogas. E precisamos chegar até esse ponto — que na realidade não está longe, pois não há distância nenhuma para percorrer. Mas, para se abolir a distância, o tempo deve cessar; e só pode cessar o tempo, quando há o conhecimento de nós mesmos como realmente somos, fato por fato. Nesta extraordinária liberdade, que começa com a autocompreensão, há um movimento — um movimento imensurável, que supera todos os conceitos. Esse movimento é criação; e quando a mente chegar a esse movimento, descobrirá, por si própria, que o amor, a morte e a criação são a mesma coisa.

Krishnamurti, Saanen, 12 de agosto de 1962,
O homem e seus desejos em conflito

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"Quando você compreende, quando chega a saber,
então traz toda a beleza do passado de volta
e dá a esse passado o renascimento, renova-o,
de forma que todos os que o conheceram
possam estar de novo sobre a terra
e viajar por aqui, e ajudar as pessoas." (Tilopa)



"Nos momentos tranqüilos da meditação, a vontade de DEUS pode tornar-se evidente para nós. Acalmar a mente, através da meditação, traz uma paz interior que nos põe em contato com DEUS dentro de nós. Uma premissa básica da meditação, é que é difícil, senão impossível, alcançar um contato consciente, à não ser que a mente esteja sossegada. Para que haja um progresso, a comum sucessão ininterrupta de pensamentos tem de parar. Por isso, a nossa prática preliminar será sossegar a mente e deixar os pensamentos que brotam morrerem de morte natural. Deixamos nossos pensamentos para trás, à medida que a meditação do Décimo Primeiro Passo se torna uma realidade para nós. O equilíbrio emocional é um dos primeiros resultados da meditação, e a nossa experiência confirma isso." (11º Passo de NA)


"O Eu Superior pode usar algum evento, alguma pessoa ou algum livro como seu mensageiro. Pode fazer qualquer circunstância nova agir da mesma forma, mas o indivíduo deve ter a capacidade de reconhecer o que está acontecendo e ter a disposição para receber a mensagem". (Paul Brunton)



Observe Krishnamurti, em conversa com David Bohn, apontando para um "processo", um "caminho de transformação", descrevendo suas etapas até o estado de prontificação e a necessária base emocional para a manifestação da Visão Intuitiva, ou como dizemos no paradigma, a Retomada da Perene Consciência Amorosa Integrativa...


Krishnamurti: Estávamos discutindo o que significa para o cérebro não ter movimento. Quando um ser humano ESTEVE SEGUINDO O CAMINHO DA TRANSFORMAÇÃO, e PASSOU por TUDO isso, e esse SENTIDO DE VAZIO, SILÊNCIO E ENERGIA, ele ABANDONOU QUASE TUDO e CHEGOU AO PONTO, à BASE. Como, então, essa VISÃO INTUITIVA afeta a sua vida diária? Qual é o seu relacionamento com a sociedade? Como ele age em relação à guerra, e ao mundo todo — um mundo em que está realmente vivendo e lutando na escuridão? Qual a sua ação? Eu diria, como concordamos no outro dia, que ele é o não-movimento.

David Bohn: Sim, dissemos que a base era movimento SEM DIVISÃO.

K: Sem divisão. Sim, correto. (Capítulo 8 do livro, A ELIMINAÇÃO DO TEMPO PSICOLÓGICO)


A IMPORTÂNCIA DA RENDIÇÃO DIANTE DA MENTE ADQUIRIDA
Até praticar a rendição, a dimensão espiritual de você é algo sobre o que você lê, de que fala, com que fica entusiasmado, tema para escrita de livros, motivo de pensamento, algo em que acredita... ou não, seja qual for o caso. Não faz diferença. Só quando você se render é que a dimensão espiritual se tornará uma realidade viva na sua vida. Quando o fizer, a energia que você emana e que então governa a sua vida é de uma frequência vibratória muito superior à da energia mental que ainda comanda o nosso mundo. Através da rendição, a energia espiritual entra neste mundo. Não gera sofrimento para você, para os outros seres humanos, nem para qualquer forma de vida no planeta. (Eckhart Tolle em , A Prática do Poder do Agora, pág. 118)


O IMPOPULAR DRAMA OUTSIDER — O encontro direto com a Verdade absoluta parece, então, impossível para uma consciência humana comum, não mística. Não podemos conhecer a realidade ou mesmo provar a existência do mais simples objeto, embora isto seja uma limitação que poucas pessoas compreendem realmente e que muitas até negariam. Mas há entre os seres humanos um tipo de personalidade que, esta sim, compreende essa limitação e que não consegue se contentar com as falsas realidades que nutrem o universo das pessoas comuns. Parece que essas pessoas sentem a necessidade de forjar por si mesmas uma imagem de "alguma coisa" ou do "nada" que se encontra no outro lado de suas linhas telegráficas: uma certa "concepção do ser" e uma certa teoria do "conhecimento". Elas são ATORMENTADAS pelo Incognoscível, queimam de desejo de conhecer o princípio primeiro, almejam agarrar aquilo que se esconde atrás do sombrio espetáculo das coisas. Quando alguém possui esse temperamento, é ávido de conhecer a realidade e deve satisfazer essa fome da melhor forma possível, enganando-a, sem contudo jamais poder saciá-la. — Evelyn Underhill