É possível libertar-se de toda dependência psicológica?
PERGUNTA: Podem os conservar nossos empregos, e trabalhar sem competição?
KRISHNAMURTI: Não podemos, senhor? Podeis frequentar o escritório e conservar vosso emprego sem competir? Não me cabe dizer se o podeis ou não, ou que deveis trabalhar sem competir. Mas, só vós podeis ver os efeitos do espírito de competição: ele gera antagonismos, medo, um cruel empenho em alcançar vossas pretensões, espirituais ou mundanas. Vedes tudo isso e perguntais a vós mesmo se é possível viver neste mundo sem competir. Isso significa viver sem comparar; significa fazer o que realmente gostais de fazer, o que sobremodo vos interessa. Ou, se vos vedes preso a um emprego de que não gostais — por terdes responsabilidades — significa que deveis descobrir como exercer esse emprego eficientemente, sem competir. E isso requer muita atenção, não achais? Tendes de estar sumamente vigilante para cada pensamento, cada sentimento, que em vós se manifestam, porque, do contrário, estareis meramente impondo a vós mesmo a ideia de que não deveis competir — o que se torna mais um problema. Mas, podeis tornar conhecimento de tudo o que a competição implica; perceber seu verdadeiro significado, e como gera conflito, luta incessante; compreendes que a competição inevitavelmente conduz o homem (ainda que se verifique considerável progresso —, o que se costuma chamar “progresso” — e maior eficiência na competição) ao antagonismo, à falta de afeição. Se perceberdes tudo isso, então, como resultado dessa percepção, atuareis — competindo ou não competindo, plenamente.
INTERROGANTE: Não creio que uma ação que se repete seja necessariamente fastidiosa.
KRISHNAMURTI: Deveis saber que se está começando a verificar que um homem que trabalha numa fábrica, fazendo a mesma coisa repetidamente, não é uma entidade muito produtiva, e dizem-me que na América se está agora experimentando, em certas fábricas, dar aos trabalhadores oportunidade de aprender, ao mesmo tempo que exercem suas atribuições. O resultado é que o seu trabalho se torna menos monótono e, por conseguinte, mais produtivo. Ainda que nos dê muito prazer fazer uma certa coisa, se prosseguimos incessantemente na mesma ação, ela se torna rotineira e cansativa.
PERGUNTA: E que dizeis a respeito do artista?
KRISHNAMURTI: Se o artista está meramente repetindo, por certo já não é artista. Parece-me que estamos confundindo as duas palavras — “repetição” e “criação” — será que estamos? Que é criação?
INTERROGANTE: Um homem que faz bons sapatos é criador.
KRISHNAMURTI: Fazer bons sapatos, cozinhar pão, gerar filhos, escrever poesias, etc. etc. — isso é criação? Por favor, não concordeis nem discordeis. Um minuto!
INTERROGANTE: Não percebo com o é possível viver-se num espaço vazio.
KRISHNAMURTI: Minha senhora, parece que nos estamos desentendendo. Lamento-o. Provavelmente isso se deva à minha escolha das palavras, que pode não ser tão boa como deveria ser, e talvez não compreendais exatamente o que entendo por “vazio”. Mas, estávamos falando sobre criação.
Ouvi dizer que em certa universidade estão ensinando o que chamam “literatura criadora”, “pintura criadora”. Mas pode-se ensinar a ser criador? A contínua prática de determinada coisa pode suscitar o espírito criador? Pode-se aprender de um professor a técnica de tocar violino, mas é óbvio que a técnica, por si só, não faz do homem um gênio, já quando a pessoa tem aquela criatividade, ela produzirá a técnica — e não vice-versa (isto é, a técnica não pode gerar o ânimo criador). Em geral pensamos que, adquirindo a técnica, encontraremos a outra coisa (o poder de criar). Consideremos um exemplo muito simples, embora todos os exemplos sejam precários. Que é vida simples? Vida simples, dizemos, é ter poucas posses, comer pouco, ter minguados haveres, e abster-se de fazer isto ou aquilo. Na Ásia, aquele que anda de tangas e só toma uma refeição diária é considerado um homem de vida simples; mas, interiormente, esse homem pode estar em ebulição, como um vulcão, ardendo em desejos, paixões, ambições. A vida simples desse homem é meramente uma ostentação, que todos podem reconhecer e dizer “Que homem simples!” — Esse é o verdadeiro estado da maioria dos santos: exteriormente apresentam simplicidade, porém, interiormente, são homens ambiciosos que disciplinam a mente, que se obrigam a ajustar-se a um certo padrão, etc. Assim, eu acho que a simplicidade deve, primeiro, vir de dentro, e não de fora. Analogamente, a criação não pode verificar-se por meio de expressão. Temos de achar-nos no estado de criação, e não de buscar a criação através da expressão. Achar-se no estado de criação é o descobrimento do Supremo, e isso só pode acontecer quando não há atividade do “eu” em nenhum sentido.
Voltando ao que disse aquela senhora sobre o vazio. Em regra, embora em exterior relação uns com os outros, vivemos no isolamento; mas não é sobre esse isolamento que falo. Vazio é coisa totalmente diferente de isolamento. Deve haver vazio entre nós, para que possamos ver um ao outro; deve haver espaço mediante o qual possais ouvir o que estou dizendo, e vice-versa. Na mente, por igual, o espaço precisa existir; isto é, ela não deve estar atravancada de tantas coisas, que nenhum espaço reste. Só quando há espaço dentro da mente — o que significa não haver atividade egocêntrica — só então é possível saber o que é viver. Mas, viver no isolamento — isso não é possível.
PERGUNTA: Poderíeis dizer mais alguma coisa a respeito da energia?
KRISHNAMURTI: Qualquer coisa que se faça, até a mais insignificante, requer energia, não é verdade? O levantar-se e sair deste pavilhão, o pensar, o comer, o conduzir um carro — toda espécie de ação exige energia. E, ordinariamente, ao fazermos alguma coisa, há, em nós uma forma de resistência que dissipa energia — a não ser que a ação nos proporcione prazer, caso em que não há conflito, nem resistência na continuidade da energia.
Como já disse, precisamos de energia para estarmos completamente atentos, e nessa energia não há resistência, porquanto não há distração. Mas, se ocorrer distração — no momento em que desejais concentrar-vos numa coisa e ao mesmo tempo olhar pela janela — há uma resistência, um conflito. Ora, o olhar pela janela é tão importante como o olhar para outra coisa qualquer — e, com a percepção dessa verdade, não haverá então distração, nem conflito.
Para terdes energia física, deveis naturalmente tomar alimentos adequados, ter a justa proporção de repouso, etc. Isto vós mesmos podeis experimentar e não há necessidade de o discutirmos. Mas existe também a energia psicológica, a qual se dissipa de várias maneiras. Para ter essa energia, a mente busca estímulos. Frequentar a igreja, assistir a partidas de futebol, entregar-se à literatura, ouvir música, etc., — todas essas coisas vos estimulam; e se o que desejais é ser estimulado, isso significa que, psicologicamente, sois dependente. A busca de estímulo implica dependência de alguma coisa — de uma bebida, uma droga, um orador, ou de entrar numa igreja; e, por certo, o depender de estímulo não apenas embota a mente, mas também ocasiona dissipação da energia. Assim, para conservarmos nossa energia, deve desaparecer toda espécie de dependência ou de estímulo; e, para desaparecer a dependência, precisamos aperceber-nos dela. Se, para ter estímulo, a pessoa depende de sua mulher ou de seu marido, de um livro, de seu cargo, de ir aos cinemas — qualquer que seja o incentivo — deve, em primeiro lugar, perceber isso. O aceitar simplesmente os estímulos, e com eles viver, dissipa energia e deteriora a mente. Mas, cientificando-nos dos estímulos e do significado que têm em nossa vida, poderemos livrar-nos deles. Pelo autopercebimento — que não é autocondenação, etc., porém estar simplesmente apercebido, sem escolha, de si próprio — pode o homem conhecer todas as formas de influência, todas as formas de dependência, todas as formas de estímulo; e esse próprio movimento da ação de aprender dá-lhe a energia necessária para libertar-se de todas as dependências e de todos os estímulos.
Krishnamurti, Saanen, 26 de julho de 1964,
A mente sem medo