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segunda-feira, 1 de setembro de 2025

As relações como enredamentos de imaturidade

As relações como enredamentos de imaturidade

O confrade já constatou que as relações, se dão entre indivíduos com semelhança no nível de insegurança e imaturidade? Isso é algo que se observa com bastante clareza quando olhamos para as relações com um olhar mais cru e descondicionado.

Muitas vezes os vínculos não acontecem por afinidade real de consciência, mas por compatibilidade nos níveis de insegurança, carências, imaturidades emocionais e interesses velados. É como se cada indivíduo estivesse buscando no outro um espelho ou uma compensação para as próprias fragilidades:

  • O inseguro busca em outro igualmente inseguro, alguém que valide constantemente sua identidade.
  • O ciumento encontra eco em alguém que também teme perder e aceita esse jogo de posse.
  • O dependente atrai alguém igualmente carente, ainda que em polos opostos (um cuida, o outro “precisa ser cuidado”).

Essa espécie de acoplamento psíquico se dá menos pela lucidez e mais pelo enredamento das fragilidades. Relações maduras, fundadas em autonomia interior, são muito mais raras justamente porque exigem que cada um suporte o peso da própria solidão, do próprio vazio e da própria responsabilidade afetiva.

Na prática, o que vemos é que as pessoas, em sua maioria, se conectam através do ponto comum de suas imaturidades. Apesar de ser raro, isso não significa que não possa haver amor genuíno no meio disso, mas é um amor muitas vezes misturado ao medo, ao apego e à necessidade de completude, em vez de um amor livre.

O ser humano, em geral, tem muita pressa de se envolver afeto sexualmente, por causa dos hormônios e também pela necessidade de atender a expectativa parental e para sair desse ambiente e suas expectativas. Um contrato de facilitação financeira. Assim, observamos três pontos fundamentais que moldam profundamente a pressa com que muitos se jogam em relações, principalmente nas primeiras fases da vida:

  1. O corpo hormonal – A pulsão sexual, ainda não integrada, exerce uma pressão enorme. Ela empurra o sujeito a buscar o outro mais como válvula de descarga ou como forma de experimentar prazer imediato, do que como encontro real e consciente. É uma necessidade biológica que, sem maturidade, acaba confundida com amor.
  2. A necessidade de cumprir com a expectativa parental – Muitos crescem em lares onde, explicitamente ou de forma velada, há um peso para o relacionamento: “Vai namorar até quando? Não vai casar? Quando vai me dar netos?”. Essa expectativa cria um impulso artificial de querer logo estar em um relacionamento, não por uma disposição interior genuína, mas para se livrar do olhar vigilante e julgador da família.
  3. Um acordo de facilitação financeira e social – É muito comum que jovens busquem no outro um meio de sair de casa, conquistar independência material ou mesmo fugir do ambiente parental opressivo. O relacionamento, nesse caso, é usado como “atalho” de vida.

O resultado desse tripé é que a pressa, geralmente, não vem da maturidade de querer compartilhar a vida com alguém, mas da soma de pressões biológicas, sociais e financeiras. Isso explica porque tantos se unem rápido e, pouco tempo depois, descobrem que a relação não tem alicerce verdadeiro, mas apenas interesses misturados à carência.

A pressa, portanto, é quase sempre um movimento de fuga: do corpo em ebulição, da casa dos pais, da solidão ou da falta de estabilidade. Só que esse movimento de fuga cobra o preço lá na frente: o vazio dentro da relação, os conflitos repetitivos, a frustração que se acumula.

Exploraremos agora, em profundidade, essa pressa de se envolver sexual e afetivamente. Partiremos dos três fatores: pressão hormonal, expectativa parental, facilitação financeira/social, acrescentando também outros pontos observados como centrais:

  • Medo da solidão – a fuga da sensação de estar só.
  • Necessidade de status – relacionar-se como símbolo de “normalidade” e aceitação social.
  • Carência afetiva herdada – repetição inconsciente de padrões familiares de apego.
  • Indústria cultural – cinema, música, redes sociais que romantizam a pressa e vendem relacionamentos como válvula de identidade.
  • Busca de identidade – “ser alguém” através do outro.
  • Economia psíquica – a relação como anestesia das dores existenciais (tédio, vazio, falta de propósito).

 

 


A pressa por envolvimento, como sintoma do nosso tempo

Poucos percebem que a pressa em se envolver afetiva e sexualmente não é um simples capricho da juventude, mas um sintoma de algo muito mais profundo. Não se trata apenas da fome do corpo, mas da soma de pressões invisíveis que moldam o comportamento humano desde cedo: o peso dos hormônios, as expectativas familiares, a necessidade de aceitação social, o medo da solidão e até mesmo os imperativos financeiros que tornam o relacionamento uma rota de fuga, mais do que um espaço de encontro.

Vivemos em uma sociedade que nos empurra para o vínculo apressado. O cinema, a música, as redes sociais, a cultura de massa — tudo reforça a ideia de que estar só é fracasso, e que só o amor romântico redime a existência. O adolescente cresce sob esse bombardeio de símbolos, e quando a biologia desperta, o desejo sexual se junta a essa propaganda cultural para criar uma urgência que confunde atração, necessidade, carência e amor.

A pressa, portanto, não é inocente. É um movimento que revela uma soma de forças psíquicas e sociais. E ao mergulhar nela imaturamente, o sujeito acaba reproduzindo ciclos de frustração: relacionamentos frágeis, rupturas dolorosas, sempre seguidas de repetições intermináveis do mesmo padrão.

Para entender essa engrenagem, precisamos fatiar cada camada: o corpo, a família, a cultura, a economia psíquica e social. Só então podemos compreender por que tanta gente se lança de cabeça tão cedo, tão rápido, sem saber sequer o que deseja de verdade.


O corpo em ebulição – Hormônios e a ilusão de amor

A adolescência é uma explosão química. O corpo passa a liberar hormônios sexuais em intensidade inédita: testosterona, estrogênio, dopamina. O desejo invade, as fantasias tomam a mente, e o indivíduo se vê refém de uma energia que não entende nem controla.

Nesse momento, o impulso sexual é facilmente confundido com amor. O beijo, o toque, o sexo parecem trazer não apenas prazer, mas também uma sensação de pertencimento e de identidade. O adolescente acredita que “estar com alguém” é a prova de que ele existe, de que vale algo. O prazer se mistura com o alívio da insegurança: “se alguém me deseja, então eu sou desejável”.

Essa ilusão é poderosa. Muitos se casam, se unem, têm filhos não porque amadureceram para a responsabilidade relacional, mas porque o corpo os arrastou imaturamente. O desejo se torna guia, e o relacionamento vira válvula de escape hormonal.

O problema é que, quando o fogo da novidade passa, sobra a realidade: dois indivíduos imaturos, unidos mais por descarga biológica e segurança de custeio financeiro, do que por encontro real. Surge então o vazio dentro da relação, a sensação de prisão, a repetição de brigas.


A sombra da família – Expectativa parental e fuga do lar

Paralelamente ao fogo hormonal, existe o peso do lar. Muitas famílias projetam nos filhos suas expectativas: “quando você vai namorar?”, “quero logo um genro/nora”, “quero netos”. A mensagem é clara: ficar só é sinal de fracasso.

O jovem absorve esse olhar. Mesmo sem desejar de verdade, sente a obrigação de se relacionar para atender ao script parental. Mais do que isso: o lar muitas vezes se torna sufocante. A convivência com pais controladores, a sensação de ser eternamente criança dentro da casa familiar, o julgamento constante — tudo isso gera uma necessidade de fuga.

O relacionamento, então, aparece como saída estratégica. Ter alguém é a senha para conquistar alguma autonomia: sair mais, dormir fora, viajar, escapar da vigilância. Muitos não percebem que estão menos interessados na pessoa e mais interessados na liberdade que o relacionamento simboliza.

Assim, a pressa de namorar ou casar não nasce do coração, mas da tentativa de resolver a opressão doméstica. O problema é que, nesse movimento, troca-se uma prisão por outra: do lar parental para a relação imatura que força ajustamento.


A facilitação financeira – Relação como atalho de vida

Outro fator central, muitas vezes silenciado, é a dimensão econômica. Em uma sociedade desigual, marcada por salários baixos e dificuldade de conquistar independência cedo, o relacionamento surge como atalho financeiro.

É mais fácil dividir aluguel, contas e despesas com alguém do que sustentar tudo sozinho. Para muitos, a união se torna caminho para sair de casa e “começar a vida adulta”. Mas esse início já nasce marcado pela adulteração de propósito, o qual sempre desemboca em codependência.

A relação deixa de ser espaço de construção consciente e vira associação estratégica. O que se pensa ser amor, nesse contexto, não passa de jogos momentâneos de conveniência. O risco é alto: quando o vínculo não se sustenta pelo afeto real, a pressão material se torna fonte de conflito. Dinheiro, responsabilidades, cobranças — tudo pesa mais quando não há solidez emocional para sustentar.


Outros fatores invisíveis que alimentam a pressa de se relacionar

Além dos três pilares principais, há outros elementos que raramente são vistos, mas que pesam tanto quanto:

Medo da solidão

O vazio interior é insuportável para a maioria. Ficar só significa ter que lidar com os próprios pensamentos, angústias, fragilidades e sentimentos de inadequação. O relacionamento aparece como anestesia: alguém para preencher o silêncio, alguém para validar a existência.

Necessidade de status social

Estar acompanhado é sinal de normalidade. A sociedade olha com desconfiança para o solteiro, especialmente quando passa dos 25 ou 30 anos. O namoro ou casamento se tornam prova de “normalidade” e de “sucesso social”.

Carência herdada

Muitos vêm de famílias onde o afeto foi ausente, frio ou instável. Essa lacuna cria uma fome afetiva que busca desesperadamente no parceiro, o colo que não se teve na infância. Mas ninguém pode ser pai ou mãe do outro sem que isso adultere o vínculo.

Indústria cultural

Filmes, novelas, músicas e redes sociais romantizam a pressa de relacionamento. A mensagem é clara: “amar cedo, viver intensamente, se entregar sem medo”. O adolescente cresce acreditando que só será alguém se viver essa narrativa.

Busca de identidade

A imaturidade impede que ambos saibam quem são. O outro, então, se torna espelho, muleta, rótulo. “Sou o namorado de alguém”, “sou esposa de fulano”. Com a relação, a identidade é terceirizada.

Economia psíquica

Relacionar-se funciona como anestesia contra dores existenciais: tédio, vazio, falta de sentido (que quase sempre é buscado através da gravidez inconsciente). O vínculo apressado vira remédio para não encarar a indigência interior.


A anatomia da pressa – O entrelaçamento das forças

Quando somamos tudo isso — hormônios, família, economia, medo da solidão, status, carência, indústria cultural — entendemos por que o indivíduo sente tamanha urgência de se envolver. É como se estivesse dentro de uma engrenagem que o empurra para o vínculo sem que ele perceba.

O corpo pede, a família cobra, a sociedade julga, a mídia romantiza, o bolso aperta, a solidão assombra. O resultado é previsível: ele se joga de cabeça.

Mas esse mergulho não é encontro, é fuga. Ele não busca o outro como outro, mas como solução de problemas internos e externos (sendo que muitos deles, o sujeito nem sequer tem consciência). E quando o outro não consegue cumprir esse papel — porque ninguém pode preencher a falta de lucidez, autonomia psíquica e maturidade do ser — surgem a frustração, o ressentimento, as cobranças, as tentativas de amoldamento e os conflitos.


As consequências – Relações frágeis, gestação inconsciente e ciclos de repetição

A pressa cobra caro. A maioria dos relacionamentos que nascem assim entram rapidamente em desgaste. O que parecia paixão vira prisão. O que parecia amor vira dependência. O que parecia liberdade vira nova forma de opressão.

As consequências mais comuns são:

  • Ciclos de repetição: o sujeito troca de parceiro, mas repete o mesmo padrão.
  • Frustração crônica: nada satisfaz porque a raiz do vazio nunca foi tocada.
  • Dependência afetiva: medo paralisante de ficar só, mesmo em relações tóxicas.
  • Amargura: ressentimento pelo outro não ter sido a salvação esperada.
  • Estagnação pessoal: a pressa impede o amadurecimento individual.
  • A gestação inconsciente – o selo da prisão relacional
  • Se a pressa em se envolver já cria vínculos frágeis e carregados de projeções, a gestação inconsciente aparece como agravante que fecha as portas da liberdade e transforma o enredo em cárcere.

Olhemos para este último tópico. Muitos casais, ainda imaturos, acabam engravidando não por decisão consciente, mas por descuido, impulsividade ou pela fantasia de que o filho consolidará a relação. O corpo pede prazer, a mente não reflete, e a consequência vem: uma nova vida que exige responsabilidades imensas de dois indivíduos ainda imaturos.

O que antes era apenas vínculo frágil se torna prisão concreta. O filho passa a ser o elo indissolúvel que mantém duas pessoas juntas mesmo quando já não há amor, respeito ou afinidade. A relação, que nasceu de pressa e carência, agora precisa se sustentar sob o peso de uma responsabilidade vitalícia.

As consequências são visíveis:

  • Ciclos de ressentimento: os pais sentem que foram obrigados a permanecer juntos por causa da criança, e o lar se enche de acusações veladas.
  • Amor condicionado: o filho é visto não apenas como ser humano, mas como marca da prisão. Muitos não percebem, mas projetam nele frustrações da relação.
  • Estagnação da liberdade: mesmo quando há desejo de separar, a presença do filho cria barreiras emocionais, sociais e financeiras quase intransponíveis.
  • A gestação inconsciente sela aquilo que já era imaturo. O que poderia ser uma travessia de aprendizado em solitude vira uma cadeia relacional sustentada por culpa, dependência e obrigação.

Não se trata aqui de desvalorizar a vida da criança, mas de mostrar a realidade nua: ela nasce em meio a um campo energético de pressa, carência e fuga. E crescer nesse ambiente significa carregar marcas psíquicas profundas — repetindo, muitas vezes, o mesmo padrão de pressa e aprisionamento dos pais.

A lucidez, nesse caso, exigiria duas coisas: primeiro, prevenir o salto inconsciente, ou seja, não deixar que a pressa e o desejo guiem decisões de tamanha magnitude; segundo, se a gestação já aconteceu, transformar o vínculo em algo mais maduro possível, para que a criança não herde apenas a prisão, mas também o esforço dos pais em se tornarem maduros.


A possibilidade de lucidez – Desacelerar e observar

Apesar de tudo, há saída. O primeiro passo é perceber que a pressa é produto de forças inconscientes e sociais. Ao enxergar isso, nasce uma nova liberdade: a de não se deixar arrastar.

Essa lucidez começa com a observação passiva e não reativa. Observar o corpo em ebulição sem se identificar, observar a expectativa familiar sem se dobrar, observar a solidão sem fugir dela. O sujeito que suporta o desconforto de estar só amadurece.

O relacionamento, nesse contexto, deixa de ser fuga e se torna escolha. Não é mais atalho para fugir da família, da carência ou do tédio, mas espaço para compartilhar. Só assim nasce uma relação madura: duas pessoas inteiras que se encontram, não duas metades que se agarram.


O preço e a dádiva de desacelerar

A pressa em se envolver é compreensível. Ela nasce do corpo, da família, da cultura, da economia, da solidão. É quase impossível escapar dela sem consciência. Mas toda pressa cobra seu preço: relações frágeis, sofrimento psíquico, repetição de padrões.

Desacelerar parece, para muitos, insuportável. Mas é nesse desacelerar que se abre a possibilidade de viver um amor que não seja apenas descarga hormonal, fuga do lar, status social ou anestesia existencial. Um amor que seja encontro, liberdade, partilha.

A dádiva está em suportar o silêncio, em aprender a ser só, em observar a própria fome sem correr a saciá-la de qualquer forma. Porque só quem atravessa esse vazio descobre que o outro não é salvação nem muleta — é apenas um companheiro de travessia.

E essa travessia, lenta e lúcida, vale mais do que qualquer pressa.


Talvez, o confrade esteja se perguntando: “e como lidar com a dor de perceber que a relação sempre foi fundamentada nesses pontos adulterantes, quando ainda não despertamos em nós, a capacidade de amor impessoal?”

Essa é uma das dores mais difíceis, de serem observadas em silêncio. Porque ela não é só a dor da perda de um “amor”, mas a dor de perceber que nunca houve amor verdadeiro ali — apenas carência, fuga, conveniência, hormônio, medo, expectativa. É uma dor crua, quase insuportável, porque mexe na própria fundação da vida psíquica.

O sujeito olha para trás e se pergunta: “Então vivi uma mentira? Então aquilo que eu chamava de amor era apenas um amontoado de necessidades?”. Esse confronto é devastador. É como ver o chão ruir sob os pés.

Mas há algumas formas de lidar com isso:

1. Aceitar a natureza do humano adormecido - O primeiro passo é perceber que essa situação não é uma falha pessoal isolada. É a condição humana adormecida. Quase todas as relações começam assim: imaturidade encontrando imaturidade, carência encontrando carência. Não havia como ser diferente antes da lucidez.
Essa constatação alivia a culpa: não foi apenas “eu” que errei, mas o campo humano inteiro que vive sob esse script.

2. Ver a relação como espelho evolutivo - Mesmo que tenha sido fundamentada em adulterações (fuga, hormônio, conveniência), a relação ainda pode ser vista como campo de aprendizado. Ela mostrou os mecanismos da pressa, revelou o quanto buscamos muletas, expôs a necessidade de amadurecer.
Em outras palavras: não foi amor impessoal, mas foi um espelho que empurrou para a possibilidade de descobri-lo.

3. Atravessar a dor sem fuga e sem a necessidade de consolação - A tendência é querer abafar a dor: entrar em outro relacionamento, mergulhar em trabalho, em prazeres, em distrações. Mas é preciso suportar o luto cru. Essa dor é a iniciação. É nela que o falso personagem, ferido por não ter mais ilusões para se agarrar, começa a perder força. Atravessar o deserto, sentir o vazio, aceitar a presente falta de profundidade relacional e de sentido aparente — tudo isso é laboratório do despertar de um olhar, que se fundamenta não mais nos cálculos autocentrados, mas no amor impessoal que vê o outro em sua exata natureza.

4. Desidentificar-se do implante sistêmico do roteiro romântico – Talvez este seja um dos condicionamentos mais difíceis de ser dissolvido. Grande parte da dor vem de perceber que aquilo que vivemos não corresponde à fantasia romântica em nós implantada culturalmente. É preciso quebrar esse feitiço: entender que o amor impessoal não tem nada a ver com paixão, posse, dependência ou segurança social. Só quando, pela observação passiva não reativa, nos desprendemos da cobrança do mito do “amor romântico” propagado nas músicas, novelas, filmes e séries, é que se abre espaço para uma outra forma de sentir: mais livre, silenciosa, sem muletas.

5. Praticar o amor impessoal consigo mesmo e com o outro

Se o indivíduo ainda não despertou, cabe a quem despertou não exigir que ele acorde agora. O amor impessoal começa justamente aqui: não cobrar lucidez de quem ainda não a tem. Isso significa: manter compaixão, sem se submeter; manter respeito, sem precisar manter a prisão; olhar o outro como ser humano em processo, não como inimigo. Esse exercício já é amor impessoal em ação: não depender da resposta do outro, mas agir a partir da clareza interior.

 

O ponto (5) descrito — o exercício real do amor impessoal — é para pouquíssimos, porque pressupõe o colapso completo da estrutura do falso personagem. A maioria dos que começam a despertar para a ausência da capacidade de amor real, ainda está numa fase intermediária: perceberam a falsidade dos alicerces da relação, mas não possuem ainda a capacidade de amar de forma impessoal. Estão mergulhados no caos da mutação, na dor crua e na confusão que surge quando o falso começa a se dissolver, mas o verdadeiro ainda não se consolidou.

Essa travessia é crucial e exige uma abordagem distinta: não tanto a realização plena do amor impessoal, mas a honestidade radical em suportar o intervalo entre o velho e o novo.


Do colapso silencioso ao nascimento da relação consciente

Poucos conseguem atravessar sem se despedaçar a experiência de ver a relação perder os alicerces que antes pareciam sólidos. É um momento em que tudo o que sustentava o vínculo — paixão, dependência, conveniência, medo da solidão, expectativas familiares — começa a se dissolver. A relação, que antes era refúgio, agora mostra sua nudez: foi construída sobre bases frágeis.

Esse despertar inicial não entrega ainda a maturidade de um amor impessoal. Ao contrário: o sujeito percebe sua própria incapacidade de amar sem carência, sem cobrança, sem possessividade, sem cálculos de autointeresse. É um choque duro: não só o outro se revela como é, mas nós mesmos nos vemos desprovidos daquilo que idealizávamos possuir.

Aqui surgem duas dores simultâneas:

  1. A dor de constatar a falsidade do vínculo.
  2. A dor de perceber que ainda não temos dentro de nós a fonte de amor verdadeiro.

É como estar no limbo: o velho não serve mais, o novo ainda não nasceu. A mente fica em confusão, os afetos se embaralham, o corpo sente o peso do luto, da frustração, da falta de chão.

Nesse estágio, o exercício não é exigir de si o amor impessoal (isso seria mais uma ilusão), mas aprender a atravessar o intervalo confuso com honestidade e observação lúcida. Algumas chaves podem ajudar:

  • Silenciar as reações automáticas: não correr para anestesias (fuga geográfica, novo parceiro, excesso de trabalho, vícios). Dar espaço para a dor respirar.
  • Ver o outro como ser humano real: não mais como muleta, salvador ou inimigo, mas como ele é — limitado, imaturo, igualmente prisioneiro das próprias confusões.
  • Reconhecer a própria limitação: admitir com humildade que ainda não sabe amar de forma livre. Essa aceitação já é um passo para fora do apego relacional.
  • Permitir que a relação mude de natureza: a união inconsciente, baseada em carências, pode se transformar num campo de aprendizado mútuo. É preciso estar muito atento aos impulsos emotivos reativos escapistas que pedem por rompimento imediato; é possível escolher permanecer, com profunda honestidade emocional com o parceiro, enquanto se desenvolve um outro olhar, mais maduro, menos dependente, responsável e integrativo.
  • Cuidar do coração ferido: atravessar o luto da velha sustentação relacional, a desilusão, o vazio, sem exigir que eles terminem rápido. A dor é o parto.

Esse é o momento de mutação silenciosa da relação: ela deixa de ser uma fusão inconsciente para se tornar, se houver disposição dos dois, um espaço de conhecimento real. O outro passa a ser visto não como extensão do eu, mas como alteridade. A relação deixa de ser prisão e pode se tornar escolha consciente: permanecer, não porque preciso, mas porque quero compartilhar o caminho.

Claro, isso exige tempo, paciência e vigilância interior. A confusão é inevitável. A dor é inevitável. Mas é nesse caos que o alicerce falso se desmancha, abrindo a possibilidade de um vínculo realmente maduro, lúcido, responsável.

O confrade precisa ter em mente, que existe um paradoxo nas relações humanas: mesmo nascendo de adulterações — carência, fuga, hormônio, conveniência, medo da solidão — muitas vezes surge, no decorrer da convivência, um bem-querer. Ele não é amor impessoal, ainda não é o amor livre e desinteressado, mas também não é apenas a repetição mecânica da necessidade inicial. É algo que brota no meio do terreno adulterado, como uma planta frágil crescendo numa rachadura de concreto.

Esse bem-querer pode se tornar um rito de passagem. Destrincharemos agora essa percepção, em alguns pontos:

1. O bem-querer como produto da convivência - Quando duas pessoas dividem vida, dores, alegrias, quando cuidam uma da outra em pequenos gestos cotidianos, mesmo que o início tenha sido inconsciente, por valores adulterados e adulterantes, algo genuíno pode nascer. Esse sentimento não é ainda o amor impessoal, porque ainda traz traços de apego, expectativa e projeção, mas é mais que a pura conveniência inicial. É o reconhecimento silencioso: “apesar de tudo, quero o seu bem”.

2. O bem-querer como depuração - Esse sentimento pode funcionar como um fogo depurador. Ele queima dia após dia, a possessividade, a dependência e o egoísmo, abrindo espaço para algo mais sutil. Do mesmo modo que se desenvolveu a codependência, isso também ocorre lentamente, não é absoluto, mas já desloca a relação de um lugar puramente autocentrado, para uma zona de aprendizado e mutação relacional. Aos poucos, o outro deixa de ser apenas instrumento da necessidade pessoal e começa a ser percebido como ser humano autônomo.

3. O risco da confusão - O problema é que muitos confundem o bem-querer com o amor maduro. E aí cristalizam o vínculo num limiar intermediário, acreditando que já chegaram ao destino, quando na verdade apenas saíram do ponto de partida. É preciso honestidade para distinguir: “ainda não amo de forma impessoal, mas já não vivo apenas de carência”. Esse reconhecimento evita tanto o desprezo cínico quanto a ilusão romântica.

4. O bem-querer como rito de passagem - Se vivido com consciência, e profunda honestidade emocional na relação, esse estágio pode ser um rito de passagem. O indivíduo aprende, dentro da relação, a experimentar o movimento de querer o bem do outro, não apenas como reflexo de si mesmo, mas por ele. Ainda misturado, ainda frágil, mas já um ensaio do amor real. Esse rito exige vigilância: observar os momentos em que o bem-querer se mistura com posse, notar quando o desejo de liberdade cede ao medo da solidão, perceber a sutileza dos jogos da velha estrutura fundamentada no medo e no cálculo autocentrado. Essa observação é o que transforma o bem-querer em trampolim para o amor real.

5. O bem-querer como campo de treino para o amor impessoal - Ninguém amadurece para o amor impessoal de um salto. Ele é raro justamente porque exige o assistir silencioso do Abismo do terror que advém do colapso total do personagem adulterado e adulterante. Mas o bem-querer pode ser campo de treino:

  • Aprender a ouvir sem impor.
  • Aprender a respeitar a alteridade do outro.
  • Aprender a desejar o bem mesmo quando não há retorno direto.
  • Aprender a permanecer mesmo quando não há prazer imediato.

Esses exercícios não são ainda o amor impessoal, mas são passos fundamentais na direção dele.

6. O perigo da estagnação e a possibilidade da transmutação - O risco maior é estacionar no bem-querer, transformando-o em justificativa para manter relações que já não têm vida, apenas hábito. Mas a possibilidade mais luminosa é a transmutação: esse sentimento simples, humilde e cotidiano pode ser a porta de entrada para a experiência maior. É um ensaio imperfeito que, se vivido com clareza e honestidade emocional, prepara o terreno para que o amor impessoal floresça.

Embora a maioria das relações nasçam em terreno adulterado, o bem-querer desenvolvido não deve ser desprezado. Ele pode ser visto como ponte, rito de passagem e campo de treino. Mas exige vigilância: não confundi-lo com amor pleno, nem descartá-lo como mera ilusão. Ele é intermediário, frágil, mas talvez seja exatamente o que muitos precisam viver antes que o verdadeiro se revele.

Em outra oportunidade, visto a importância destema tema, abordaremos com mais profundidade a questão do “bem-querer como rito de mutação relacional” — explorando como ele surge, como pode ser vivido sem ilusão e como pode ser transmutado em amor consciente.

terça-feira, 17 de julho de 2018

Sobre o amor


quinta-feira, 19 de abril de 2018

A mente religiosa e o correto estado de relação


A mente religiosa e o correto estado de relação

[...] Para mim, o mais importante na vida é termos uma mente religiosa, porque, então, tudo o mais entra no correto estado de relação — tudo; ocupações, saúde, casamento, sexo, amor, e os inumeráveis problemas e tribulações que a vida nos oferece — tudo é compreendido. A mente religiosa não é uma coisa facilmente alcançável, mediante a leitura de uns poucos livros, a audição de uma série de palestras, ou pelo nos exercitarmos para uma certa postura. Mas, eu acho que nós precisamos de uma mente assim, e Oxalá possamos encontrá-la no decorrer destas palestras — não deliberadamente, não mediante qualquer espécie de cultivo, ou pelo desenvolvimento de certa capacidade, mas encontrá-la "no escuro", inesperadamente, sem o sentirmos.

A mente, que inclui tanto o consciente como o inconsciente, é, como já observamos, um vasto campo de contradição. Está toda envolvida em ingente luta, dilacerada por muitos conflitos, batalhas, choques do desejo; e, em tais condições, a mente não tem possibilidade de compreender o que significa ser religioso. O que quer que faça — se vai à igreja, se lê livros sagrados, ou se executa qualquer das demais coisas que costumamos fazer, em nossas pueris tentativas para descobrir se há Deus, se há vida futura, etc. — essa mente nunca encontrará aquele extraordinário estado religioso. Eis porque acho tão importante, principalmente durante estas três semanas, que estejamos profundamente apercebidos deste campo interior de conflito. Parece-me que são raros os que estão perfeitamente apercebidos desta batalha incessante que se trava continuamente dentro de cada um de nós; e, como estive mostrando outro dia, o importante não é o que cumpre fazer em relação a isso, porém o importante é que o vejamos, porque o próprio ato de ver a coisa é libertador.

Desejo, pois, nesta manhã, apreciar o fato relativo ao conflito e à degeneração — pois os dois andam juntos, não são separados. Onde há conflito, consciente ou inconsciente, profundo ou superficial, ele destrói a sensibilidade, a sutileza, a agilidade da mente. O conflito produz embotamento, insensibilidade. Por conflito entendo "ter problemas"; e, para estarmos livres de conflito, de contradições, temos, por certo, de compreender essa coisa que se chama "consciência", "mente" — a coisa que somos.

Vou examinar isso, não teórica, abstratamente ou de maneira explicativa, mas examiná-lo — assim espero — com vossa cooperação. Isto é, vós e eu iremos "viajar" juntos; não ireis apenas escutar-me, porém, no próprio ato de escutar, observar o mecanismo de vossa própria consciência.

Como sabeis, há duas maneiras de olhar uma coisa. Ou a olhamos, porque nos disseram que devemos olhar e o que devemos procurar; ou olhamos porque desejamos descobrir, e, assim, pomo-nos a caminho para descobrir. Quando sentis fome, tratais de comer, ninguém precisa dizer-vos nada. Mas, o dizerem-vos que deveis comer e o sentirdes fome são duas coisas inteiramente diferentes. Este ponto, pois, nos deve ficar bem claro. Não estou dizendo que deveis olhar ou o que deveis procurar, mas vamos olhar juntos, e juntos vamos descobrir. Isso será para cada um de nós uma experiência "de primeira mão", porque nenhum de nós está dirigindo o outro. Espero que isto esteja claro.

Este é um problema muito complexo, e para o examinarmos necessitamos de uma mente que seja capaz de olhar, de observar, sem logo dizer: "O que estou vendo me agrada, gosto disso", ou "Não me agrada, não gosto disso." Necessitamos de uma mente "científica", uma mente que não desfigure, que não dê colorido àquilo que vê. O importante é produzir uma transformação no mesmo mecanismo de nosso pensar, na própria matriz, na própria composição da mente. É necessária uma revolução — não revolução econômica ou social, porém revolução na consciência, no verdadeiro centro de nosso ser; e tal revolução só pode ocorrer quando se compreende esta questão do conflito. O conflito, em qualquer nível da consciência, superficial ou profundo, é o fator da deterioração.

Não aceiteis isto, simplesmente; não aceiteis nada do que diz este orador. Mas tratemos de examinar juntos este problema do conflito, palavra que para mim significa auto-contradição, autopiedade, e impulso para o preenchimento, com sua inevitável frustração. Há ajustamento, imitação, e a contradição inerente ao desejar alterar o que é para outra coisa que chamamos "o ideal" — a contradição entre o que eu sou e o que eu deveria ser. A contradição envolve competição, o desejo de ser uma pessoa admirável, famosa, com todas as concomitantes lutas, o batalhar, o ansiar, o medo de não ser algo, a agonia do desespero; tudo isso, e muito mais ainda, está contido na palavra "contradição", e é o fator da deterioração.

Somos educados para viver em conflito perpétuo: econômica, moral e espiritualmente, nossa sociedade está baseada no conflito, e todos os instrutores religiosos nos têm dito que devemos disciplinar-nos, que devemos lutar para sermos ou nos tornarmos algo. Temos sempre o modelo, o herói nacional ou religioso; imitamos o santo, o Salvador, aquele que atingiu a meta; há sempre esse abismo entre o homem que sabe e o homem que não sabe e se acha numa luta perpétua para saber: o estúpido que luta para se tornar inteligente. Tal é a estrutura psicológica de nossa sociedade. Somos impelidos pela ambição, adoramos o sucesso e condenamos o malogro; multiplicamos nossas angústias e vivemos numa luta incessante para nos libertarmos delas.

Esta batalha se trava continuamente, quer estejamos dormindo, quer acordados, quer saiamos a passeio, quer fiquemos sentados, imóveis. Tal é nosso destino; para ele fomos educados, e o aceitamos. É o estado em que vivemos. Nessas condições, a mente nunca está lúcida, porém sempre confusa, sempre em contradição consigo mesma.

Observai, por favor, vosso próprio estado. Mas, de que maneira vos observais? Observais como um observador que observa algo separado dele próprio, caso em que há uma divisão, uma contradição entre o observador e a coisa observada? Ou observais sem a presença do observador? Segui isto, por favor, porque é importante. Quando estamos observando o mecanismo extremamente complexo de nossa própria consciência, cuja vera essência é o conflito, devemos compreender o que entendemos por olhar, observar. Estou certo que a maioria de nós observa como alguém que o faz pelo lado de fora a olhar para dentro. Estais apercebidos de vossos conflitos, e estais a observá-los como censor, como juiz, como observador separado da coisa observada. É isso o que em geral fazemos, e é isso o que nos impede de compreender esta coisa tão complexa que se chama "conflito" — seu enorme peso e conteúdo, suas variedades. Quando observais como quem está de fora a olhar para dentro, criais, sem dúvida, conflito, não achais? Não estais compreendendo o conflito, porém, apenas, tornando-o maior. Apercebido do conflito existente em si próprio, o observador diz: "Preciso alterar isto; não gosto de conflito. Gosto do prazer". O observador, pois, tem sempre essa atitude de julgar, de censurar, e, quando se observa dessa maneira, não se está compreendendo o conflito; pelo contrário, ele está sendo multiplicado. Tornei bem claro este ponto?

Para mim, todo o mecanismo psicanalítico redunda em intensificação do conflito, e não pode dar a libertação do conflito. Eu gostaria que percebêsseis este fato, de uma vez por todas, que percebêsseis sua verdade e beleza, pois saberíeis, então, o que significa olhar, não com olhos de censor, porém, olhar, simplesmente. Se olhardes com olhos de censor, ireis aumentar vosso conflito; mas, se observardes, sem ser de um centro, começareis a compreender esse "mecanismo" extraordinário que se chama a consciência, que é a própria essência do conflito, da luta, que é um lutar incessante para "vir a ser", reprimir, alcançar.

Observais aquelas montanhas cobertas de neve, aqueles morros e vales, e a terra verde; e como os observais? Vede-os de um centro que analisa? Ou vedes, simplesmente, sua beleza extraordinária? Há, decerto, diferença entre percepção e análise. Se se vê com certa clareza esta diferença, então, ficará também claro que a análise não produz nenhuma revolução. A análise poderá ajudar-vos a ajustar-vos à sociedade, a remover algumas de vossas peculiaridades, de vossas idiossincrasias, de vossas neuroses; mas não é disso que estamos tratando. Estamos falando de coisa muito mais fundamental do que o mero ajustamento a uma sociedade corrompida. Análise supõe analista e coisa analisada. O analista é o censor, o juiz que examina, que interpreta, que condena ou aprova o que se está vendo, e, por conseguinte, cria mais conflito. Não é isso, absolutamente, o que estamos fazendo; estamos fazendo coisa completamente diferente, isto é, tratando de compreender o conflito existente, não só no exterior, no mundo, mas também em nosso interior. Estou empregando a palavra "compreender" no sentido de "observar sem tomar posição". Quando assim procedeis, já tendes um campo de observação em que não existe conflito. Não sei se estais percebendo a verdade disso.

Sabeis tão bem como eu que há conflito exterior. Uma nação está colocada contra outra nação, e os governos soberanos, com seus exércitos, se acham constantemente na iminência de guerra. Vemos competição, antagonismo criado pelas divisões de raça e de classe, e a batalha constante do Oriente com o Ocidente, dos que estão bem nutridos com os milhões que padecem fome na Ásia. Observa-se um "explosivo" aumento de população, com sua ameaça de fome geral, e a sombra temerosa de uma guerra nuclear. Tudo isso são fatos óbvios, está nos lábios de todos os políticos, de todos os reformadores — a guerra fria que ora se verifica e que, a qualquer momento, poderá tornar-se "quente".

E há, também, a batalha interior que se trava em cada um de nós: autocontradições, problemas não resolvidos e aqueles que só foram temporariamente resolvidos — produzindo, tudo isso, sua marca na mente. Desejamos ser pessoa importante, famoso pintor, escritor, orador, importante homem de negócios, e, se não o conseguimos, sentimo-nos frustrados — o que acarreta mais outra forma de conflito.

Temos, pois, conflito exterior e conflito interior; e o exterior não difere essencialmente do interior. São ambos parte do mesmo movimento, semelhante ao vaivém da maré. Separá-los é coisa absurda, estúpida, porque são uma só e mesma coisa. Deveis atender ao problema como um todo, e não dividi-lo em "interior" e "exterior"; do contrário, nunca sereis capaz de compreendê-lo. No momento em que separais o exterior do interior, aumentastes o conflito em que vos vedes envolvido.

Ora bem, vendo-se essa batalha incessante, essa autocontradição de cada um, que cumpre fazer? O conflito interior poderá envidar um certo esforço, produzir um certo resultado. Pode, e não raro o faz, produzir quadros, poemas, literatura, movimentos religiosos (assim chamados), mas tudo isso permanece no campo do conflito, é fator de degeneração. "Ajuda" outros a degenerar. Isto é bem óbvio. Assim, toda forma de conflito, quer dele estejamos apercebidos, quer não, e toda ação resultante desse conflito, constituem fator de degeneração.

Por favor, não aceiteis o que estou dizendo, porque, aceitá-lo significa apenas concordar verbalmente; e aqui não estamos para concordar ou discordar verbalmente. Isto aqui não é uma sociedade de debates.

Vede, há séculos e séculos que estamos sendo criados nesta ideia de que precisamos lutar para ser ou alcançar algo. Lutamos para ter êxito neste mundo, e pensamos também que pelo conflito alcançaremos a divindade, ou criaremos algo, no sentido artístico ou religioso. Vede os inumeráveis santos que consigo mesmos batalharam para alcançar um estado considerado espiritual, e como tal reconhecido pelas igrejas. O conflito, pois, é uma "instituição" veneranda, coisa divinizada por nós. Vemo-lo representado em antigas pinturas egípcias e nas cavernas de Lescaux, onde se retrata o homem em batalha com os animais, o bem contra o mal, na esperança de que o bem prevaleça sobre o mal. O conflito é um processo histórico; é como uma vaga descomunal que constantemente nos colhe — e dessa vaga fazemos parte.

Ora, para vermos o conflito — esse mecanismo histórico-social de que fazemos parte — como fator deteriorante, necessitamos de muita atenção e de verdadeira inteligência. Em maioria, não reconhecemos o conflito como fator de deterioração, porque nos habituamos a ele. Na escola, nos negócios, em tudo o que fazemos, o conflito, a rivalidade é nossa maneira de vida, e ninguém quer admitir que ele seja profundamente destrutivo. Uns poucos poderão admiti-lo teoricamente, mas não de fato. Assim, examinemos isso.

Como disse, há muitas variedades de conflito. As pessoas ditas religiosas têm suas variadas disciplinas. Controlam, subjugam a si próprias; ajustam-se a um padrão que chamam espiritual, ou imitam um certo herói; aceitam a autoridade de um salvador, de um instrutor e, de acordo com seus ditames, lutam para viver. Se são verdadeiramente sérias — como os monges cristãos e certas pessoas da Índia que renunciaram ao mundo — sua vida é uma perene batalha de autocontrole, autodisciplina.

E, consideremos nossa própria vida. Alguns dentre vós talvez fumem. Podeis achar absurdo ser-se escravo de um hábito; entretanto, quanto vos é difícil abandonar uma coisa tão insignificante como o hábito de fumar, quantas torturas isso vos custa! Daí resulta conflito; e, naturalmente, quando se trata de coisas mais emocionais, como o sexo, etc., o conflito se torna indizível agonia. Mas, estais acostumados com o conflito, que se vos tornou hábito, vossa maneira de vida. O conflito foi santificado, tornou-se respeitável; e, se vem uma pessoa, como eu, dizer-vos que se pode viver sem conflito, ou vos tornais sardônico e dizeis "Pobre coitado!", ou procurais imitar sua maneira de vida e, por conseguinte, de novo vos vedes em conflito.

Como disse, quer estejamos apercebidos disso, quer não, a totalidade da consciência, tudo isso que chamamos pensamento, é conflito — pensamento como palavra, como símbolo, pensamento como reação da memória, não só a memória de ontem, mas a de muitos milhares de dias passados. E, se não pensásseis, que aconteceria? Ficaríeis vegetando, satisfeito com o que sois, qual uma vaca? Ou "não pensar nada" representa um estado extraordinariamente vital, significando que compreendestes e vos libertastes completamente dessa reação mecânica da memória, que é o cérebro, a "responder" com todas as suas acumulações de experiência, na forma de conhecimento?

Em geral, desistimos do esforço de nos libertarmos do conflito e deixamo-nos levar pela corrente, permitindo, assim, que a mente se embote; e se o conflito se torna demasiado doloroso, recorremos a uma crença em Deus, esperando, dessa maneira, encontrar a paz; mas isso, mais cedo ou mais tarde, se torna outra fonte de conflito. Ou, receando que, se nenhum conflito tivéssemos, iríamos vegetar, embotar-nos, quedar-nos satisfeitos, conservamos bem afiado o gume do conflito, argumentando intelectualmente com outros, lendo e instruindo-nos sobre as mais variadas matérias. Mas, há uma maneira de nos abeirarmos deste problema, que requer inteligência na forma mais elevada, a mais alta sensibilidade, e esta maneira é: observar, estar apercebido da totalidade desse mecanismo de conflito, sem fazer escolha. Se nele entrardes, vereis que, nesse estado de percebimento, vossa mente compreende imediatamente todo problema que surge, de modo que não se proporciona ao conflito solo para enraizar-se.

Pois bem. É sobre isto que vou falar, e não sobre como fugir ao conflito — o que, afinal, é o que fazeis, recorrendo ao vosso deus predileto ou ao vosso analista favorito; vou falar sobre como compreender negativamente todo esse mecanismo de conflito. Por compreensão negativa entendo o estado em que a mente olha um problema, ou uma montanha, sem "verbalizar": ela, apenas, olha. É o estado da mente que não interpreta, que não censura ou escolhe, mas está apercebida sem escolha. A mente, então, não diz: "Gosto disto e não gosto daquilo" — porém apenas observa com uma atenção total; e nesse estado mental vereis que toda espécie de conflito, em qualquer nível de vosso ser, terminará. A mente sem conflito é a única mente religiosa; mas, ainda não conheceis esse estado. E por mais encantados que vos sintais com minha descrição, isso nenhum valor tem.

Para o homem ou a mulher que deseja verdadeiramente compreender a beleza, o extraordinário significado de uma vida livre de conflito — e eu digo que essa vida é possível — a coisa mais importante é que se esteja totalmente apercebida da totalidade do conteúdo da consciência. Estar "totalmente apercebido" não significa analisar, porém, simplesmente, observar. E aí está nossa maior dificuldade, porquanto, através de um milênio de hábito, vimos sendo exercitados para julgar, para condenar, para comparar, para identificar-nos; esta é nossa reação instintiva e, por conseguinte, nunca observamos realmente.

Assim, podeis, vós que viveis num mundo feito de conflito, que mantém o conflito através de preenchimentos e frustrações, e que exige que também vivais em conflito, num estado de auto-contradição — podeis, pela compreensão, pela sensibilidade a todo esse mecanismo, ficar totalmente livres de conflito? Por certo, só a mente sem problemas, sem as cicatrizes do conflito, é inocente; e só a mente inocente pode conhecer o Imensurável.

Krishnamurti, Saanen, 9 de julho de 1963,
Experimente um novo caminho


Estamos, de fato, em relação com alguém?


Estamos, de fato, em relação com alguém?

[...] PERGUNTA: Qual a relação do indivíduo com a sociedade?

KRISHNAMURTI: Qual a relação do indivíduo — o indivíduo real, a cujo respeito tenho falado — com a sociedade? E qual a nossa relação atual — a relação do chamado "indivíduo" — com a sociedade? E que se entende por "relação"?

Comecemos com a "relação". Que se entende por esta palavra? Estar em relação é estar em contato, em comunhão com outro que me entende e a quem eu entendo; é ter camaradagem, amizade com outro. Quer se trate da relação de marido e mulher, entre pai e filho, quer da relação do indivíduo com a sociedade, tal palavra tem para nós um sentido de comunhão, de contato, fraco ou forte, superficial ou profundo. Penso ser isso o que em geral entendemos por "relação".

Ora, nós estamos em relação com alguém? Estais em relação com vossa mulher ou marido? Por favor, investigai esta questão, sem meramente presumirdes que estais. Para estardes em relação com alguém, deveis estar em contato com a pessoa, não apenas fisicamente, mas também emocional, intelectualmente — em todos os níveis. E estamos? Parece-me que não. Nossas atitudes, nossas atividades, nossas arrogâncias, nosso orgulho, nos isolam; e, nesse estado de isolamento, procuramos estabelecer uma relação com outro, com a sociedade. Isto é um fato, não é invenção minha. Nós gostaríamos de estar em relação, mas não estamos. Nesse "mecanismo" que chamamos "relações" — as quais constituem a sociedade — julgamo-nos indivíduos, porque temos nome, família, conta no banco; nossos rostos diferem, trajamo-nos diferentemente, etc. etc. Tudo isso nos dá um peculiar sentimento de individualidade. Mas, somos indivíduos reais, ou mero produto condicionado de determinada sociedade, de determinadas influências ambientes?

Ser indivíduo é ser único, interiormente distinto, tranquilo, só. A mente que está só encontra-se liberta de todo o seu condicionamento. E qual a sua relação com a mente que se acha condicionada? Qual a relação de uma mente que é livre, com outra que não o é? Pode haver relação entre elas? Se vós vedes e eu não vejo, que relação há entre nós? Podeis ajudar-me, guiar-me, dizer-me isto, aquilo ou aquilo outro; mas só pode haver entre nós um estado de relação, no exato sentido da palavra, quando ambos vemos, isto é, quando podemos comungar imediatamente, no mesmo nível e ao mesmo tempo. Só então, por certo, há possibilidade de comunhão — que é amor, não achais?

Krishnamurti, Saanen, 7 de julho de 1963,
Experimente um novo caminho

quinta-feira, 9 de junho de 2016

Os problemas do amor

Um relacionamento é um koan*. A menos que você tenha resolvido as coisas mais fundamentais sobre si mesmo, você não pode resolvê-lo.

Os problemas do amor só podem ser resolvidos quando os problemas da meditação forem resolvidos.

Porque são realmente duas pessoas não meditadoras que criam os problemas. Duas pessoas que estão na confusão, que não sabem quem elas são, naturalmente, elas multiplicam a confusão umas das outras. A menos que a meditação seja alcançada, o amor permanecerá uma miséria.

Depois de ter aprendido a viver só, uma vez que você aprende a apreciar a sua existência simples por nenhuma razão, aí sim há possibilidades de resolver o segundo dos problemas mais complicados de duas pessoas estarem juntas.

Apenas dois meditadores podem viver com amor. E o amor não será um koan* e não será um relacionamento também.

É simplesmente um estado de amor não um relacionamento.

Se o amor e a meditação caminham juntos e de mãos dadas, você terá ambas asas. Ame e medite, medite e ame e, pouco a pouco, você vai ver uma nova harmonia surgindo em você. Só essa harmonia vai trazer a você completo contentamento.

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*koan (enigma zen)

Você consegue ficar sozinho e em silêncio?

Respire suave e tranquilamente... Comece, então, a observar seus anseios... A inquietação da sua mente...

Você tem a capacidade de ficar sozinho e em silêncio? Simplesmente em contato consigo mesmo?

Perceba... A capacidade de estar sozinho é a capacidade de amar. E isso pode parecer paradoxal a você, mas não é.

Essa é uma verdade existencial.

Somente pessoas que são capazes de estar a sós, são capazes de amar, de compartilhar. De ir no mais profundo âmago da outra pessoa sem possui-la, sem se tornar dependente do outro, reduzindo o outro a uma coisa e sem ficar viciado no outro, também.

Essas pessoas permitem ao outro liberdade absoluta, pois sabem que se o outro for embora eles serão tão felizes como são agora. A felicidade deles não pode ser tirada pelo outro porque não foi dada pelo outro.

Osho diz:  Solidão é ausência do outro; solitude é sua própria presença.

Perceba... Nascemos sozinhos, vivemos sozinhos e morremos sozinhos. Solitude é nossa própria natureza, mas não estamos conscientes disso. E por não estarmos conscientes disso, em lugar de ver nossa solitude como uma tremenda beleza e êxtase, silêncio e paz; um estar à vontade com a existência... Nós a confundimos com solidão.

A solitude é uma presença, uma presença transbordante. Você está tão pleno de presença que você pode preencher todo o universo com ela, e não há necessidade de alguém mais. O que é necessário não é algo para que você possa esquecer sua solidão. O que é necessário é que você se torne consciente de sua solitude – a qual é uma realidade.

Você não ama sua mulher, está simplesmente usando-a para não estar só. Nem ela também o ama, pois está sob a mesma paranoia; ela está lhe usando para não se sentir sozinha. Tudo em nome do amor.

Todo mundo foge correndo da solidão. Ela é como uma ferida, dói.

Originalmente as pessoas não ficam felizes quando sozinhas. Elas se sentem muito vazias, acham que alguma coisa está faltando. Não podem viver sozinhas por muito tempo – elas buscam um relacionamento. Dessa forma o relacionamento é somente uma fuga de si mesmo.

Existem apenas dois tipos de pessoas: aquelas que fogem de sua solidão – a maioria, 99,99% das pessoas fogem de si mesmas; e o restante – 0,01% são os meditadores, que dizem: “Se a solidão é uma verdade, então é uma verdade; portanto não faz sentido fugir dela. É melhor penetrar nela, encontra-la, encará-la como ela é”.

Osho diz:

Milhões de pessoas continuam mantendo seus relacionamentos mesmo que sejam simplesmente um inferno! Apenas devido ao medo de que serão abandonadas sozinhas; eles continuam apegados.

É uma miséria, um grande sofrimento, é uma tortura, mas ao menos alguém lhe faz companhia. Em comparação com ser deixado só, é melhor ser miserável, mas estar com alguém.

Essa é uma das razões porque milhões de pessoas prosseguem sofrendo e ainda assim se apegam aos mesmos relacionamentos - os quais não dão a eles nenhum conforto. Mas que são simplesmente destrutivos.

Somente o homem ou mulher que seja capaz de estar sozinho, também é capaz de se relacionar sem ser destruído por isso, pois estar sozinho não é mais um medo. Se algum relacionamento gera miséria, você simplesmente sai fora dele - ninguém pode lhe impedir.

É uma situação bem patética que milhões de pessoas estejam apegadas uns aos outros, simplesmente devido ao medo de que sejam abandonados e deixados sozinhos.

E estar só é a nossa natureza; não há nada a temer, você só precisa experienciar isso.

Uma vez que você experiencia no seu profundo silêncio do coração a beleza de sua solitude, o êxtase de sua solitude, todo medo desaparece, e você rirá de seu passado, de quão estúpido você foi e o que você tem feito consigo mesmo.

domingo, 1 de fevereiro de 2015

Deixe uma metade do seu livro aberta

(...) Não vou dizer que a sua vida deveria ser um livro aberto. Alguns capítulos abertos, tudo bem. E alguns capítulos totalmente fechados, um mistério total. Se todo o seu livro estiver aberto, você será unicamente o dia sem noite, verão sem inverno. Onde poderá descansar, concentrar-se e procurar refúgio? Para onde poderá ir quando o mundo se tornar insuportável? Onde ir para orar e meditar? Não, metade de cada é perfeito. Deixe uma metade do seu livro aberta — aberta a toda a gente, à disposição de toda a gente — e deixe que a outra metade do seu livro seja tão secreta que só alguns raros convidados possam ter acesso. Só muito raramente será permitido que entrem no seu templo. É assim que deverá ser. Se houver uma multidão a entrar e a sair, então o templo deixará de ser um templo. Poderá ser uma sala de espera num aeroporto, mas não poderá ser um templo. Só raramente, muito raramente, deixe que alguém entre no seu eu. É isso que é o amor.

Temos sempre vivido com os outros. A partir do momento em que a criança deixa o ventre materno, nunca está sozinha — está com a mãe, com a família, com os amigos, com as pessoas. O círculo dos conhecidos, das amizades, das relações vai-se alargando e à sua volta junta-se uma multidão. É a isso que chamamos vida. E quantas mais pessoas houver na sua vida, mais você julga que tem uma vida cheia.

Quando começa a interiorizar-se, todos esses rostos começam a desvanecer-se, toda essa multidão se dispersa. Terá de dizer adeus a toda a gente: até aos seus amigos mais íntimos, ao seu amante, terá de dizer adeus. Chega um momento em que nem sequer o seu amante poderá estar consigo. Esse é o momento em que você volta a entrar no mesmo espaço, como se estivesse no ventre da sua mãe. Mas nessa altura não conhecia a multidão e por isso nunca se sentia sozinho. A criança sente-se perfeitamente feliz no ventre da mãe, porque não existe comparação, tudo é alegria. E como não conhece o outro, não pode sentir-se triste ou só — não tem qualquer ideia. Esta é a única realidade que a criança conhece.

Mas agora você conhece a multidão, as relações, as alegrias e as misérias das relações, e ambas estão presentes. Ao interiorizar-se, o mundo começa a desaparecer, torna-se como um eco, e em breve até o eco desaparece e a pessoa sente-se completamente perdida. Mas isso não passa de uma interpretação. Se conseguir continuar ainda mais um pouco, encontrar-se-á a si próprio de repente — pela primeira vez encontrar-se-á a si próprio. Depois terá uma surpresa: você andava perdido na multidão; agora já não está perdido. Andava perdido na selva das relações e agora voltou para casa. E depois pode novamente regressar ao mundo, mas nunca mais será o mesmo.

Relacionar-se-á, mas ficará independente; amará, mas o seu amor não será uma necessidade; amará, mas não possuirá nem será ciumento. E o amor é divino quando está isento de sentimentos de ciúme e de posse. Você estará com as pessoas. De fato, só então estará com as pessoas pelo que você é; então pode estar com as pessoas. Primeiro, não estava, pelo que qualquer ideia de estar com as pessoas era puramente ilusória, uma espécie de sonho.

A menos que assim seja, como pode você relacionar-se e estar com o outro? É unicamente uma ficção que nós criamos; é uma ilusão.

A menos que esteja centrado, a menos que saiba quem você é, não pode relacionar-se verdadeiramente. Todo o relacionamento que continua sem o autoconhecimento é apenas uma ilusão. O outro pensa que está a relacionar-se consigo, você pensa que está a relacionar-se com ele; nem você se conhece a si próprio nem o outro se conhece a si próprio. Então que é que se relaciona com quem? Não há ninguém! Apenas duas sombras a brincarem. E ambos são sombras, pelo que não há substância no relacionamento. É isso que vejo constantemente: as pessoas relacionam-se, mas não há nada de substancial. Relacionam-se porque têm medo de, se não se relacionarem, cair na solidão e de se sentirem perdidas, por isso saltam para uma nova relação. Qualquer tipo de relacionamento é melhor do que nenhum relacionamento; é bom, nem que seja uma inimizade; pelo menos a pessoa sente-se ocupada. O seu suposto amor não é mais do que uma espécie de inimizade, uma maneira delicada de lutar, de se debater, de dominar, uma maneira civilizada de se torturar um ao outro, de discutir.

Portanto, você tem de entrar nesse espaço. Ganhe coragem e entre nele. Mesmo que pareça muito triste e muito solitário, não há nada a temer; temos de pagar esse preço. E uma vez alcançada essa fonte, tudo mudará completamente e sairá de lá como um indivíduo. Essa é a diferença que faço entre um indivíduo e uma pessoa: uma pessoa é um fenômeno falso, um indivíduo é uma realidade. As pessoas, as personalidades, são máscaras, são sombras; a individualidade é substância, é realidade. E só os indivíduos se podem relacionar, podem amar — as pessoas podem unicamente brincar.

O amor é um estado de consciência em que você se sente exultante, em que há uma dança em todo o seu ser. Algo começa a vibrar, a irradiar, a partir do seu centro; algo começa a pulsar à sua volta. E começa a atingir as pessoas: pode atingir as mulheres, pode atingir os homens, pode atingir as rochas e as árvores e as estrelas.

Quando me refiro ao amor, refiro-me a esse amor: um amor que não é um relacionamento mas sim um estado do ser. O relacionamento é apenas um aspecto muito menor do amor. Mas a ideia que você faz do amor é basicamente a do relacionamento, como se isso fosse tudo.

O relacionamento só é necessário porque você não consegue estar sozinho, porque não é ainda capaz de meditar. Daí que a meditação seja imprescindível antes de poder amar realmente. Uma pessoa deveria ser capaz de estar sozinha, completamente sozinha, e apesar disso ser imensamente afortunada. Então poderá amar. Então o amor deixa de ser uma necessidade e passa a ser uma partilha. Não se fica dependente daquele que se ama.

Mas o que geralmente acontece no mundo é o seguinte: você não tem amor, a pessoa que você pensa amar também não tem amor no seu ser, e ambos se encontram a pedir amor um ao outro. Dois pedintes a pedirem um ao outro! Daí as guerras, os conflitos, as disputas constantes entre os amantes — sobre coisas banais, irrelevantes, estúpidas! A disputa básica é o marido a pensar que não recebe aquilo a que tem direito e a mulher a pensar que não recebe aquilo a que tem direito. A mulher a pensar que está a ser enganada e o marido a pensar que está a ser enganado. Onde está o amor? Ninguém se preocupa em dar, toda a gente quer receber. E quando todos correm atrás do receber, ninguém recebe. E todos se sentem perdidos, vazios, tensos.

O que falta é o alicerce básico, você começou a construir o templo sem os alicerces. E ele vai cair, vai-se desmoronar a qualquer instante. E você bem sabe quantas vezes o seu amor ruiu e no entanto, continua a fazer as mesmas coisas vezes sem conta. Quanta ignorância... Não vê o que tem andado a fazer à sua vida e à vida dos outros. Continua a repetir o mesmo padrão, como um robô, sabendo perfeitamente que já fez as mesmas coisas antes. E sabe quais foram os resultados, e bem no fundo sabe que tudo acontecerá da mesma maneira — porque não há qualquer diferença. Está a preparar-se para a mesma conclusão, para o mesmo colapso.

Se tiver de aprender alguma coisa com os fracassos do amor, então que seja como se tornar mais consciente, mais meditativo. E por meditação entendo a capacidade de se sentir ditoso sozinho. Muito poucas pessoas são capazes de se sentir ditosas sem qualquer razão especial — simplesmente sentarem-se caladas e ditosas! Os outros julgá-las-ão doidas, porque a ideia de felicidade é que ela tem de nos vir a partir de outra pessoa. Você conhece uma mulher bonita e sente-se feliz ou conhece um belo homem e sente-se feliz. Mas ficar silencioso no seu quarto e sentir-se tão ditoso, tão feliz? Não deve regular muito bem! As pessoas pensarão que estará drogado, com uma pedrada. Sim, é verdade, a meditação é o LSD primário, é libertar os seus poderes psicadélicos. É libertar os seu próprio esplendor prisioneiro. E você fica tão feliz, nasce em si uma tal festa que não precisa de nenhum relacionamento. E contudo pode relacionar-se com as pessoas... e é essa a diferença entre relacionar-se e ter um relacionamento.

O relacionamento é uma coisa: você agarra-se a ele. Relacionar-se é um fluir, um movimento, um processo. Você conhece uma pessoa, é amável, porque tem muito amor para dar — e quanto mais der, mais tem, Esta é a estranha aritmética do amor: quanto mais se dá, mais se tem. O que vai exatamente contra as leis econômicas que operam no mundo exterior. Se quiser ter mais amor e mais alegria, dê e compartilhe, depois compartilhe apenas. E ficará agradecido a quem quer que lhe permita compartilhar a sua alegria consigo. Mas não é um relacionamento; é uma corrente como a dum rio.

O rio passa ao lado duma árvore, cumprimentando-a, e alimenta a árvore, dá de beber à árvore... e continua em frente, continua a dançar. Não se agarra à árvore. E a árvore não lhe diz: "Onde é que tu vais? Somos casados! E antes de me deixares tens de obter o divórcio, ou pelo menos uma separação! E se tinhas de me deixar, porque é que andaste a dançar tão bem à minha volta? E, principalmente, porque é que me alimentaste?" Não, a árvore deixa cair as suas flores no rio em profunda gratidão e o rio continua em frente. E a árvore dá a sua fragrância ao vento.

Isto é relacionar-se. Se algum dia a humanidade crescer, amadurecer, será esta a maneira de amar: pessoas que se conhecem, que compartilham, que continuam o seu caminho, uma qualidade não possessiva, uma qualidade não dominadora. De outro modo, o amor torna-se uma corrida ao poder.

Osho em, Intimidade

sábado, 10 de janeiro de 2015

Compreendendo o campo de batalha chamado relacionamento

Como se pode observar na vida cotidiana, toda a relação com as pessoas, com as ideias, com as coisas, com o que se possui, está cheia de conflito. Todo relacionamento se tornou para nós um campo de batalha, uma luta constante. Desde que nascemos até que morremos, viver é um processo de acumular problemas, sem nunca os resolver, de estar carregado de toda espécie de questões. É fundamentalmente um campo em que os homens estão uns contra os outros. Assim, viver é conflito. Ninguém o pode negar. Quer nos agrade quer não, todos estamos em conflito. 

Como desejamos afastar-nos desse conflito permanente, inventamos então toda espécie de fugas — desde o futebol a uma imagem de Deus. Cada um de nós conhece, não só o fardo desse conflito, mas também o sofrimento, a solidão, o desespero, a ansiedade, a ambição e frustração, o imenso tédio, a rotina. Há ocasionais lampejos de alegria, a que a mente imediatamente se agarra, como algo muito raro, e que quer que se repita; depois, essa alegria torna-se uma lembrança, cinzas. É a isso que chamamos vier. 

Se olharmos para a nossa própria vida — não verbalmente, ou intelectualmente, mas como ela é na realidade — veremos como é vazia. Pensem no que é passar quarenta, cinquenta anos indo todos os dias para o emprego, para juntar dinheiro, para sustentar a família, etc. É a tudo isso que chamamos viver — com a doença, com a velhice e com a morte. E tentamos fugir a esse tormento por meio da religião, por meio da bebida, da erudição, do sexo, por meio de todas as formas de evasão, religiosas ou de outra espécie. A nossa vida é isso, apesar de nossas teorias, dos nossos ideais, da nossa filosofia — vivemos em conflito e sofrimento. 

A nossa vida dá origem a uma cultura, a uma sociedade que se torna a armadilha em que estamos prisioneiros. Somos nós que construímos a armadilha; cada um de nós é responsável por ela. Embora possamos revoltar-nos contra a ordem estabelecida, essa ordem é aquilo que temos feito, aquilo que temos construído. E a mera revolta contra ela tem pouquíssimo significado, porque se criará então uma outra ordem estabelecida, uma outra burocracia. 

Tudo isto, com as diferenças nacionais, raciais, religiosas, as guerras, e o derramamento de sangue e lágrimas. é o que chamamos vida; e não sabemos o que havemos de fazer. Estamos confrontados com isto. E não sabendo o que fazer, procuramos fugir ou tentamos encontrar alguém que nos diga o que devemos fazer, alguma autoridade, algum guru ou instrutor espiritual, alguém que afirme: "este é que é o caminho."

Os instrumentos espirituais, os gurus, os mahatmas, os filósofos têm-nos orientado mal, porque afinal não temos resolvido realmente os nossos problemas; as nossas vidas não são diferentes. Continuamos atormentados, infelizes, carregados de sofrimento. 

(...) Sem sabermos o que é o sofrimento e sem compreendermos a sua natureza e estrutura, não saberemos o que é o amor, porque para nós o amor é sofrimento, aflição, prazer, ciúme. Quando o marido diz à mulher que a ama e ao mesmo tempo é ambicioso, será que esse amor tem algum significado? Um homem poderá amar? E apesar disso falamos de amor, de ternura, de acabar com as guerras, quando afinal somos competitivos, ambiciosos, procurando o nosso avanço pessoal, a nossa posição, etc. Tudo isso traz sofrimento. 

O sofrimento poderá acabar? Só poderá acabar quando a pessoa compreender a si mesma — que é realmente aquilo que é. Então compreenderá por que é que sofre, quer esse sofrimento seja autopiedade, seja medo de estar só, seja o vazio de sua própria existência ou o sofrimento que surge quando se depende de outro. E isto faz parte de nossa vida. 

(...) Intelectualmente estamos limitados e emocionalmente somos inautênticos, deformados, cheios de sentimentalismo, falsidade e hipocrisia. Assim, na vida perdemos toda a liberdade, exceto no sexo. Essa é provavelmente a única coisa livre que se tem. E com ele anda o prazer, a imagem que o pensamento cria a respeito do ato, e ruminamos essa imagem, esse prazer, como uma vaca mastiga repetidamente o alimento. É a única coisa que se tem em que a pessoa se sente realmente livre como ser humano. Em tudo o mais não é livre, porque somos escravos da propaganda(...) E, faltando a liberdade por todo o lado, apenas existe essa, que também não é liberdade, porque se fica aprisionado pelo prazer e pela responsabilidade desse prazer, que é a família. Mas se realmente se amasse a família, se realmente se amassem os filhos, de todo o coração, pensam que teria um único dia de guerra? 

Encontra-se segurança no prazer e por consequência nessa "segurança" há dor, tristeza e confusão; dessa maneira, em tudo, incluindo o sexo, há sofrimento, tortura, dúvida, ciúme, dependência. A única coisa que se tem em que a pessoa se sente livre também se torna uma escravidão. 

Assim, ao vermos tudo isto — de fato, não verbalmente, sem sermos desviados pela descrição, porque a descrição nunca é o que é descrito — ao vermos com os nossos olhos, coração e amente, com completa atenção, saberemos o que é o amor. E saberemos também, o que é a morte e o que é a vida.

Krishnamurti em, O Mundo Somos ´Nós

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"Quando você compreende, quando chega a saber,
então traz toda a beleza do passado de volta
e dá a esse passado o renascimento, renova-o,
de forma que todos os que o conheceram
possam estar de novo sobre a terra
e viajar por aqui, e ajudar as pessoas." (Tilopa)



"Nos momentos tranqüilos da meditação, a vontade de DEUS pode tornar-se evidente para nós. Acalmar a mente, através da meditação, traz uma paz interior que nos põe em contato com DEUS dentro de nós. Uma premissa básica da meditação, é que é difícil, senão impossível, alcançar um contato consciente, à não ser que a mente esteja sossegada. Para que haja um progresso, a comum sucessão ininterrupta de pensamentos tem de parar. Por isso, a nossa prática preliminar será sossegar a mente e deixar os pensamentos que brotam morrerem de morte natural. Deixamos nossos pensamentos para trás, à medida que a meditação do Décimo Primeiro Passo se torna uma realidade para nós. O equilíbrio emocional é um dos primeiros resultados da meditação, e a nossa experiência confirma isso." (11º Passo de NA)


"O Eu Superior pode usar algum evento, alguma pessoa ou algum livro como seu mensageiro. Pode fazer qualquer circunstância nova agir da mesma forma, mas o indivíduo deve ter a capacidade de reconhecer o que está acontecendo e ter a disposição para receber a mensagem". (Paul Brunton)



Observe Krishnamurti, em conversa com David Bohn, apontando para um "processo", um "caminho de transformação", descrevendo suas etapas até o estado de prontificação e a necessária base emocional para a manifestação da Visão Intuitiva, ou como dizemos no paradigma, a Retomada da Perene Consciência Amorosa Integrativa...


Krishnamurti: Estávamos discutindo o que significa para o cérebro não ter movimento. Quando um ser humano ESTEVE SEGUINDO O CAMINHO DA TRANSFORMAÇÃO, e PASSOU por TUDO isso, e esse SENTIDO DE VAZIO, SILÊNCIO E ENERGIA, ele ABANDONOU QUASE TUDO e CHEGOU AO PONTO, à BASE. Como, então, essa VISÃO INTUITIVA afeta a sua vida diária? Qual é o seu relacionamento com a sociedade? Como ele age em relação à guerra, e ao mundo todo — um mundo em que está realmente vivendo e lutando na escuridão? Qual a sua ação? Eu diria, como concordamos no outro dia, que ele é o não-movimento.

David Bohn: Sim, dissemos que a base era movimento SEM DIVISÃO.

K: Sem divisão. Sim, correto. (Capítulo 8 do livro, A ELIMINAÇÃO DO TEMPO PSICOLÓGICO)


A IMPORTÂNCIA DA RENDIÇÃO DIANTE DA MENTE ADQUIRIDA
Até praticar a rendição, a dimensão espiritual de você é algo sobre o que você lê, de que fala, com que fica entusiasmado, tema para escrita de livros, motivo de pensamento, algo em que acredita... ou não, seja qual for o caso. Não faz diferença. Só quando você se render é que a dimensão espiritual se tornará uma realidade viva na sua vida. Quando o fizer, a energia que você emana e que então governa a sua vida é de uma frequência vibratória muito superior à da energia mental que ainda comanda o nosso mundo. Através da rendição, a energia espiritual entra neste mundo. Não gera sofrimento para você, para os outros seres humanos, nem para qualquer forma de vida no planeta. (Eckhart Tolle em , A Prática do Poder do Agora, pág. 118)


O IMPOPULAR DRAMA OUTSIDER — O encontro direto com a Verdade absoluta parece, então, impossível para uma consciência humana comum, não mística. Não podemos conhecer a realidade ou mesmo provar a existência do mais simples objeto, embora isto seja uma limitação que poucas pessoas compreendem realmente e que muitas até negariam. Mas há entre os seres humanos um tipo de personalidade que, esta sim, compreende essa limitação e que não consegue se contentar com as falsas realidades que nutrem o universo das pessoas comuns. Parece que essas pessoas sentem a necessidade de forjar por si mesmas uma imagem de "alguma coisa" ou do "nada" que se encontra no outro lado de suas linhas telegráficas: uma certa "concepção do ser" e uma certa teoria do "conhecimento". Elas são ATORMENTADAS pelo Incognoscível, queimam de desejo de conhecer o princípio primeiro, almejam agarrar aquilo que se esconde atrás do sombrio espetáculo das coisas. Quando alguém possui esse temperamento, é ávido de conhecer a realidade e deve satisfazer essa fome da melhor forma possível, enganando-a, sem contudo jamais poder saciá-la. — Evelyn Underhill