A mente religiosa e o correto estado de relação
[...] Para mim, o mais importante na vida é termos uma mente religiosa, porque, então, tudo o mais entra no correto estado de relação — tudo; ocupações, saúde, casamento, sexo, amor, e os inumeráveis problemas e tribulações que a vida nos oferece — tudo é compreendido. A mente religiosa não é uma coisa facilmente alcançável, mediante a leitura de uns poucos livros, a audição de uma série de palestras, ou pelo nos exercitarmos para uma certa postura. Mas, eu acho que nós precisamos de uma mente assim, e Oxalá possamos encontrá-la no decorrer destas palestras — não deliberadamente, não mediante qualquer espécie de cultivo, ou pelo desenvolvimento de certa capacidade, mas encontrá-la "no escuro", inesperadamente, sem o sentirmos.
A mente, que inclui tanto o consciente como o inconsciente, é, como já observamos, um vasto campo de contradição. Está toda envolvida em ingente luta, dilacerada por muitos conflitos, batalhas, choques do desejo; e, em tais condições, a mente não tem possibilidade de compreender o que significa ser religioso. O que quer que faça — se vai à igreja, se lê livros sagrados, ou se executa qualquer das demais coisas que costumamos fazer, em nossas pueris tentativas para descobrir se há Deus, se há vida futura, etc. — essa mente nunca encontrará aquele extraordinário estado religioso. Eis porque acho tão importante, principalmente durante estas três semanas, que estejamos profundamente apercebidos deste campo interior de conflito. Parece-me que são raros os que estão perfeitamente apercebidos desta batalha incessante que se trava continuamente dentro de cada um de nós; e, como estive mostrando outro dia, o importante não é o que cumpre fazer em relação a isso, porém o importante é que o vejamos, porque o próprio ato de ver a coisa é libertador.
Desejo, pois, nesta manhã, apreciar o fato relativo ao conflito e à degeneração — pois os dois andam juntos, não são separados. Onde há conflito, consciente ou inconsciente, profundo ou superficial, ele destrói a sensibilidade, a sutileza, a agilidade da mente. O conflito produz embotamento, insensibilidade. Por conflito entendo "ter problemas"; e, para estarmos livres de conflito, de contradições, temos, por certo, de compreender essa coisa que se chama "consciência", "mente" — a coisa que somos.
Vou examinar isso, não teórica, abstratamente ou de maneira explicativa, mas examiná-lo — assim espero — com vossa cooperação. Isto é, vós e eu iremos "viajar" juntos; não ireis apenas escutar-me, porém, no próprio ato de escutar, observar o mecanismo de vossa própria consciência.
Como sabeis, há duas maneiras de olhar uma coisa. Ou a olhamos, porque nos disseram que devemos olhar e o que devemos procurar; ou olhamos porque desejamos descobrir, e, assim, pomo-nos a caminho para descobrir. Quando sentis fome, tratais de comer, ninguém precisa dizer-vos nada. Mas, o dizerem-vos que deveis comer e o sentirdes fome são duas coisas inteiramente diferentes. Este ponto, pois, nos deve ficar bem claro. Não estou dizendo que deveis olhar ou o que deveis procurar, mas vamos olhar juntos, e juntos vamos descobrir. Isso será para cada um de nós uma experiência "de primeira mão", porque nenhum de nós está dirigindo o outro. Espero que isto esteja claro.
Este é um problema muito complexo, e para o examinarmos necessitamos de uma mente que seja capaz de olhar, de observar, sem logo dizer: "O que estou vendo me agrada, gosto disso", ou "Não me agrada, não gosto disso." Necessitamos de uma mente "científica", uma mente que não desfigure, que não dê colorido àquilo que vê. O importante é produzir uma transformação no mesmo mecanismo de nosso pensar, na própria matriz, na própria composição da mente. É necessária uma revolução — não revolução econômica ou social, porém revolução na consciência, no verdadeiro centro de nosso ser; e tal revolução só pode ocorrer quando se compreende esta questão do conflito. O conflito, em qualquer nível da consciência, superficial ou profundo, é o fator da deterioração.
Não aceiteis isto, simplesmente; não aceiteis nada do que diz este orador. Mas tratemos de examinar juntos este problema do conflito, palavra que para mim significa auto-contradição, autopiedade, e impulso para o preenchimento, com sua inevitável frustração. Há ajustamento, imitação, e a contradição inerente ao desejar alterar o que é para outra coisa que chamamos "o ideal" — a contradição entre o que eu sou e o que eu deveria ser. A contradição envolve competição, o desejo de ser uma pessoa admirável, famosa, com todas as concomitantes lutas, o batalhar, o ansiar, o medo de não ser algo, a agonia do desespero; tudo isso, e muito mais ainda, está contido na palavra "contradição", e é o fator da deterioração.
Somos educados para viver em conflito perpétuo: econômica, moral e espiritualmente, nossa sociedade está baseada no conflito, e todos os instrutores religiosos nos têm dito que devemos disciplinar-nos, que devemos lutar para sermos ou nos tornarmos algo. Temos sempre o modelo, o herói nacional ou religioso; imitamos o santo, o Salvador, aquele que atingiu a meta; há sempre esse abismo entre o homem que sabe e o homem que não sabe e se acha numa luta perpétua para saber: o estúpido que luta para se tornar inteligente. Tal é a estrutura psicológica de nossa sociedade. Somos impelidos pela ambição, adoramos o sucesso e condenamos o malogro; multiplicamos nossas angústias e vivemos numa luta incessante para nos libertarmos delas.
Esta batalha se trava continuamente, quer estejamos dormindo, quer acordados, quer saiamos a passeio, quer fiquemos sentados, imóveis. Tal é nosso destino; para ele fomos educados, e o aceitamos. É o estado em que vivemos. Nessas condições, a mente nunca está lúcida, porém sempre confusa, sempre em contradição consigo mesma.
Observai, por favor, vosso próprio estado. Mas, de que maneira vos observais? Observais como um observador que observa algo separado dele próprio, caso em que há uma divisão, uma contradição entre o observador e a coisa observada? Ou observais sem a presença do observador? Segui isto, por favor, porque é importante. Quando estamos observando o mecanismo extremamente complexo de nossa própria consciência, cuja vera essência é o conflito, devemos compreender o que entendemos por olhar, observar. Estou certo que a maioria de nós observa como alguém que o faz pelo lado de fora a olhar para dentro. Estais apercebidos de vossos conflitos, e estais a observá-los como censor, como juiz, como observador separado da coisa observada. É isso o que em geral fazemos, e é isso o que nos impede de compreender esta coisa tão complexa que se chama "conflito" — seu enorme peso e conteúdo, suas variedades. Quando observais como quem está de fora a olhar para dentro, criais, sem dúvida, conflito, não achais? Não estais compreendendo o conflito, porém, apenas, tornando-o maior. Apercebido do conflito existente em si próprio, o observador diz: "Preciso alterar isto; não gosto de conflito. Gosto do prazer". O observador, pois, tem sempre essa atitude de julgar, de censurar, e, quando se observa dessa maneira, não se está compreendendo o conflito; pelo contrário, ele está sendo multiplicado. Tornei bem claro este ponto?
Para mim, todo o mecanismo psicanalítico redunda em intensificação do conflito, e não pode dar a libertação do conflito. Eu gostaria que percebêsseis este fato, de uma vez por todas, que percebêsseis sua verdade e beleza, pois saberíeis, então, o que significa olhar, não com olhos de censor, porém, olhar, simplesmente. Se olhardes com olhos de censor, ireis aumentar vosso conflito; mas, se observardes, sem ser de um centro, começareis a compreender esse "mecanismo" extraordinário que se chama a consciência, que é a própria essência do conflito, da luta, que é um lutar incessante para "vir a ser", reprimir, alcançar.
Observais aquelas montanhas cobertas de neve, aqueles morros e vales, e a terra verde; e como os observais? Vede-os de um centro que analisa? Ou vedes, simplesmente, sua beleza extraordinária? Há, decerto, diferença entre percepção e análise. Se se vê com certa clareza esta diferença, então, ficará também claro que a análise não produz nenhuma revolução. A análise poderá ajudar-vos a ajustar-vos à sociedade, a remover algumas de vossas peculiaridades, de vossas idiossincrasias, de vossas neuroses; mas não é disso que estamos tratando. Estamos falando de coisa muito mais fundamental do que o mero ajustamento a uma sociedade corrompida. Análise supõe analista e coisa analisada. O analista é o censor, o juiz que examina, que interpreta, que condena ou aprova o que se está vendo, e, por conseguinte, cria mais conflito. Não é isso, absolutamente, o que estamos fazendo; estamos fazendo coisa completamente diferente, isto é, tratando de compreender o conflito existente, não só no exterior, no mundo, mas também em nosso interior. Estou empregando a palavra "compreender" no sentido de "observar sem tomar posição". Quando assim procedeis, já tendes um campo de observação em que não existe conflito. Não sei se estais percebendo a verdade disso.
Sabeis tão bem como eu que há conflito exterior. Uma nação está colocada contra outra nação, e os governos soberanos, com seus exércitos, se acham constantemente na iminência de guerra. Vemos competição, antagonismo criado pelas divisões de raça e de classe, e a batalha constante do Oriente com o Ocidente, dos que estão bem nutridos com os milhões que padecem fome na Ásia. Observa-se um "explosivo" aumento de população, com sua ameaça de fome geral, e a sombra temerosa de uma guerra nuclear. Tudo isso são fatos óbvios, está nos lábios de todos os políticos, de todos os reformadores — a guerra fria que ora se verifica e que, a qualquer momento, poderá tornar-se "quente".
E há, também, a batalha interior que se trava em cada um de nós: autocontradições, problemas não resolvidos e aqueles que só foram temporariamente resolvidos — produzindo, tudo isso, sua marca na mente. Desejamos ser pessoa importante, famoso pintor, escritor, orador, importante homem de negócios, e, se não o conseguimos, sentimo-nos frustrados — o que acarreta mais outra forma de conflito.
Temos, pois, conflito exterior e conflito interior; e o exterior não difere essencialmente do interior. São ambos parte do mesmo movimento, semelhante ao vaivém da maré. Separá-los é coisa absurda, estúpida, porque são uma só e mesma coisa. Deveis atender ao problema como um todo, e não dividi-lo em "interior" e "exterior"; do contrário, nunca sereis capaz de compreendê-lo. No momento em que separais o exterior do interior, aumentastes o conflito em que vos vedes envolvido.
Ora bem, vendo-se essa batalha incessante, essa autocontradição de cada um, que cumpre fazer? O conflito interior poderá envidar um certo esforço, produzir um certo resultado. Pode, e não raro o faz, produzir quadros, poemas, literatura, movimentos religiosos (assim chamados), mas tudo isso permanece no campo do conflito, é fator de degeneração. "Ajuda" outros a degenerar. Isto é bem óbvio. Assim, toda forma de conflito, quer dele estejamos apercebidos, quer não, e toda ação resultante desse conflito, constituem fator de degeneração.
Por favor, não aceiteis o que estou dizendo, porque, aceitá-lo significa apenas concordar verbalmente; e aqui não estamos para concordar ou discordar verbalmente. Isto aqui não é uma sociedade de debates.
Vede, há séculos e séculos que estamos sendo criados nesta ideia de que precisamos lutar para ser ou alcançar algo. Lutamos para ter êxito neste mundo, e pensamos também que pelo conflito alcançaremos a divindade, ou criaremos algo, no sentido artístico ou religioso. Vede os inumeráveis santos que consigo mesmos batalharam para alcançar um estado considerado espiritual, e como tal reconhecido pelas igrejas. O conflito, pois, é uma "instituição" veneranda, coisa divinizada por nós. Vemo-lo representado em antigas pinturas egípcias e nas cavernas de Lescaux, onde se retrata o homem em batalha com os animais, o bem contra o mal, na esperança de que o bem prevaleça sobre o mal. O conflito é um processo histórico; é como uma vaga descomunal que constantemente nos colhe — e dessa vaga fazemos parte.
Ora, para vermos o conflito — esse mecanismo histórico-social de que fazemos parte — como fator deteriorante, necessitamos de muita atenção e de verdadeira inteligência. Em maioria, não reconhecemos o conflito como fator de deterioração, porque nos habituamos a ele. Na escola, nos negócios, em tudo o que fazemos, o conflito, a rivalidade é nossa maneira de vida, e ninguém quer admitir que ele seja profundamente destrutivo. Uns poucos poderão admiti-lo teoricamente, mas não de fato. Assim, examinemos isso.
Como disse, há muitas variedades de conflito. As pessoas ditas religiosas têm suas variadas disciplinas. Controlam, subjugam a si próprias; ajustam-se a um padrão que chamam espiritual, ou imitam um certo herói; aceitam a autoridade de um salvador, de um instrutor e, de acordo com seus ditames, lutam para viver. Se são verdadeiramente sérias — como os monges cristãos e certas pessoas da Índia que renunciaram ao mundo — sua vida é uma perene batalha de autocontrole, autodisciplina.
E, consideremos nossa própria vida. Alguns dentre vós talvez fumem. Podeis achar absurdo ser-se escravo de um hábito; entretanto, quanto vos é difícil abandonar uma coisa tão insignificante como o hábito de fumar, quantas torturas isso vos custa! Daí resulta conflito; e, naturalmente, quando se trata de coisas mais emocionais, como o sexo, etc., o conflito se torna indizível agonia. Mas, estais acostumados com o conflito, que se vos tornou hábito, vossa maneira de vida. O conflito foi santificado, tornou-se respeitável; e, se vem uma pessoa, como eu, dizer-vos que se pode viver sem conflito, ou vos tornais sardônico e dizeis "Pobre coitado!", ou procurais imitar sua maneira de vida e, por conseguinte, de novo vos vedes em conflito.
Como disse, quer estejamos apercebidos disso, quer não, a totalidade da consciência, tudo isso que chamamos pensamento, é conflito — pensamento como palavra, como símbolo, pensamento como reação da memória, não só a memória de ontem, mas a de muitos milhares de dias passados. E, se não pensásseis, que aconteceria? Ficaríeis vegetando, satisfeito com o que sois, qual uma vaca? Ou "não pensar nada" representa um estado extraordinariamente vital, significando que compreendestes e vos libertastes completamente dessa reação mecânica da memória, que é o cérebro, a "responder" com todas as suas acumulações de experiência, na forma de conhecimento?
Em geral, desistimos do esforço de nos libertarmos do conflito e deixamo-nos levar pela corrente, permitindo, assim, que a mente se embote; e se o conflito se torna demasiado doloroso, recorremos a uma crença em Deus, esperando, dessa maneira, encontrar a paz; mas isso, mais cedo ou mais tarde, se torna outra fonte de conflito. Ou, receando que, se nenhum conflito tivéssemos, iríamos vegetar, embotar-nos, quedar-nos satisfeitos, conservamos bem afiado o gume do conflito, argumentando intelectualmente com outros, lendo e instruindo-nos sobre as mais variadas matérias. Mas, há uma maneira de nos abeirarmos deste problema, que requer inteligência na forma mais elevada, a mais alta sensibilidade, e esta maneira é: observar, estar apercebido da totalidade desse mecanismo de conflito, sem fazer escolha. Se nele entrardes, vereis que, nesse estado de percebimento, vossa mente compreende imediatamente todo problema que surge, de modo que não se proporciona ao conflito solo para enraizar-se.
Pois bem. É sobre isto que vou falar, e não sobre como fugir ao conflito — o que, afinal, é o que fazeis, recorrendo ao vosso deus predileto ou ao vosso analista favorito; vou falar sobre como compreender negativamente todo esse mecanismo de conflito. Por compreensão negativa entendo o estado em que a mente olha um problema, ou uma montanha, sem "verbalizar": ela, apenas, olha. É o estado da mente que não interpreta, que não censura ou escolhe, mas está apercebida sem escolha. A mente, então, não diz: "Gosto disto e não gosto daquilo" — porém apenas observa com uma atenção total; e nesse estado mental vereis que toda espécie de conflito, em qualquer nível de vosso ser, terminará. A mente sem conflito é a única mente religiosa; mas, ainda não conheceis esse estado. E por mais encantados que vos sintais com minha descrição, isso nenhum valor tem.
Para o homem ou a mulher que deseja verdadeiramente compreender a beleza, o extraordinário significado de uma vida livre de conflito — e eu digo que essa vida é possível — a coisa mais importante é que se esteja totalmente apercebida da totalidade do conteúdo da consciência. Estar "totalmente apercebido" não significa analisar, porém, simplesmente, observar. E aí está nossa maior dificuldade, porquanto, através de um milênio de hábito, vimos sendo exercitados para julgar, para condenar, para comparar, para identificar-nos; esta é nossa reação instintiva e, por conseguinte, nunca observamos realmente.
Assim, podeis, vós que viveis num mundo feito de conflito, que mantém o conflito através de preenchimentos e frustrações, e que exige que também vivais em conflito, num estado de auto-contradição — podeis, pela compreensão, pela sensibilidade a todo esse mecanismo, ficar totalmente livres de conflito? Por certo, só a mente sem problemas, sem as cicatrizes do conflito, é inocente; e só a mente inocente pode conhecer o Imensurável.
Krishnamurti, Saanen, 9 de julho de 1963,
Experimente um novo caminho