Esta tarde, se me permitis, gostaria de falar sobre o tempo, o sofrimento e a morte. E um vasto campo a percorrer numa hora. E a comunicação é sempre difícil. A comunicação profunda requer uma certa intensidade — um encontro de duas mentes ao mesmo nível, ao mesmo tempo e com a mesma intensidade. De outro modo a comunhão não é possível. Intelectualmente ou verbalmente, pode-se concordar ou discordar, mas isso não é comunhão. Comunhão é um relacionamento extraordinariamente intenso. E essa intensidade no relacionamento entre as duas mentes deve existir ao mesmo tempo e ao mesmo nível; se assim não for, a comunhão torna-se meramente verbal, interpretativa, superficial. Falar da morte, do sofrimento e do tempo requer infinita paciência. Paciência não é aquilo que cultivamos para adquirir uma certa técnica ou formar um certo hábito. Para se investigar profundamente uma coisa, especialmente no campo psicológico, requer-se uma certa disposição da mente, para avançar passo a passo sem saltar para qualquer conclusão, em momento algum, sem nunca criar conceitos ou fórmulas, mas prosseguir apenas de observação em observação, de compreensão em compreensão, cada vez mais esclarecedoras. É neste sentido que estou a usar a palavra paciência. Isso precisa de um extraordinário estado da mente — não uma mente superficial, que concorda ou discorda, ou que compara o que está a ouvir com o que já leu ou ouviu; essa mente não está num estado de comunhão.
Temos que conversar esta tarde sobre uma coisa que requer extraordinária atenção — não concentração — uma atenção em que não há nenhuma exclusão, nem sequer daquele terrível barulho que se está a ouvir, uma atenção em que ele não pode interferir. Só nesse estado de atenção, podemos estar em perfeita comunhão para investigar algo que é extraordinariamente difícil.
Mas, para compreender qualquer coisa temos de experimentá-la diretamente, e não verbalmente. Na realidade, para experimentarmos uma coisa é preciso que vós e eu estejamos juntos, para termos uma só visão, um só ouvido, um só olhar, uma só voz, para compreender; de outro modo, vós e eu não estaremos no mesmo ponto, ao mesmo nível, com a mesma intensidade. Temos de compreender este problema do “tempo”. Porque, se o não compreendermos, não compreenderemos essa coisa extraordinária que se chama “morte”.
Com a palavra compreender não estou a referir-me a uma compreensão verbal, intelectual, fragmentária, ou a uma mente cheia de informação, que acumulou grande quantidade de conhecimentos e que compra, julga, avalia, em função daquilo que acumulou — essa mente não está num estado de compreensão; não está capaz de compreender. Aliás, compreender é outro extraordinário fenômeno da mente. Só compreendemos quando escutamos totalmente, completamente, com todo o nosso ser — com a mente, o coração, o corpo, os olhos, os nervos, inteiramente — só então compreendemos uma coisa por completo; nunca nos entregamos inteiramente à compreensão. Nunca nos damos completamente à coisa alguma.
Temos de dar-nos completamente a esta compreensão do tempo, do sofrimento e da morte. E não podemos dar-nos se não houver compreensão do medo e do tempo. A morte tem de ser um fenômeno muito extraordinário, tal como a vida. E para a compreendermos, para a examinarmos com o coração e não com as palavras, precisamos de uma mente penetrante, lúcida, que possa raciocinar logicamente, equilibradamente, com inteira confiança — não a confiança de quem vos está a falar, mas a vossa própria confiança. De outro modo, não poderemos fazer a viagem àquela terra desconhecida, e se não pudermos fazer essa viagem, não teremos vivido.
Assim, vamos falar sobre o tempo. Provavelmente, a maior parte de nós nunca pensou sobre ele ou, se o fez, pensou no que nos acontecerá amanhã ou daqui a dez anos. Provavelmente, não pensamos nele como um fator na vida. Com a palavra “tempo” refiro-me ao tempo psicológico e não ao tempo cronológico, que é indicado pelo relógio — ontem, hoje, amanhã, a próxima hora, e o que cada um irá fazer depois desta reunião. Provavelmente, pensamos nisso, porque fomos forçados a fazê-lo, mas não fomos mais além, para investigar, para descobrir, por nós mesmos, o extraordinário significado do tempo. Nunca levamos o tempo a uma crise.
Evitamo-lo sempre. Nunca pesquisamos com cuidado isso a que se chama passado, presente e futuro, essa continuidade de existência que é o passado, o presente e o futuro, com toda a confusão, a ansiedade, sentimentos de culpa, dores, alegrias e tudo o mais por que a mente passa, ao longo deste período de tempo chamado ontem, hoje e amanhã.
Se não compreendermos plenamente o significado do tempo, não seremos capazes de compreender o que é o sofrimento.
E onde há sofrimento, não há amor; e sem amor, nunca compreenderemos o que é a morte. Assim, tendes de fazer a viagem com este que vos está a falar — mas não verbalmente, porque isso é muito superficial e nada significa. Temos de fazer a viagem com a totalidade do nosso ser, sem nenhuma resistência ou concordância, dando-nos completamente a essa compreensão.
O tempo, para quase todos nós, é um movimento do passado, que se expressa no presente e condiciona o futuro. E o tempo é também um mecanismo gradual de realização. Servimo-nos do “tempo” para adiar; servimo-nos dele como meio de mudarmos “isto” para “aquilo”. Mas será possível não haver “tempo nenhum”?
O tempo só existe para o homem que pensa em termos de passado, o qual se projeta, através do presente, no futuro — as suas realizações pessoais, o seu cultivar da virtude e das suas capacidades, a sua aquisição de técnicas, etc. Tudo isto pertence ao nível da realização pessoal, do desenvolvimento e da acumulação. Assim, servimo-nos do tempo, e a mente que está enredada neste uso do tempo é incapaz de compreender isto — que provavelmente não existe tempo algum.
Consideremos um homem que tem estado num emprego trinta ou quarenta anos da sua vida — como cientista, engenheiro, físico, burocrata, etc. Como pode um homem, que só tem vivido para o emprego, durante este longo período de anos, compreender profundamente alguma coisa que não seja o emprego, a rotina? As suas células cerebrais estão exaustas, emperradas, distorcidas, gastas; não estão frescas, jovens, vibrantes, despertas, cheias de vitalidade. As suas reações são lentas. Tem sido, provavelmente, movido pela ambição, pela avidez, pelo desejo de posição, de poder e sempre a servir-se do tempo. O tempo fá-lo murchar, deteriora-lhe a mente. Essa mente — e geralmente as nossas mentes são assim — quando aborda este problema do tempo, é incapaz de compreender o seu pleno significado. Mas essa mente precisa de compreender o tempo, e só poderá compreendê-lo quando tiver consciência do problema e de que tem estado a ser destruída por quarenta anos de rotina. Quando essa mente perceber isso, ela pode “comprimir” a totalidade do tempo num só minuto — e compreender inteiramente — isso é levar o tempo a uma crise.
O tempo é existência contínua — o que “foi”, o que “será” e o que “é”. Só conhecemos isso. As nossas lembranças, as nossas experiências, as coisas que ouvimos e armazenamos, as experiências com que nos encontramos no passado, e que dão mais força ao passado — tudo isso nos dá continuidade de existência. A memória, o prazer, as dores, os insultos, as iras, as desumanidades, os virulentos estados de ódio, a inveja o ciúme, a competição, o ímpeto da ambição, e o desejo impiedoso — é a essa continuidade de existência que chamamos vida. Nunca reduzimos toda essa existência a um só minuto, para a compreendermos, e continuamos a repetir, a repetir, a repetir... e isso a que chamamos vida fica preso na rede do tempo, e assim há sempre um amanhã, cheio de dor, de ansiedade, de sofrimento.
É o tempo que dá a dor e o prazer. Porque o pensamento tem continuidade: pensamos em qualquer coisa que nos dá prazer — sexo, posição social, ou o que vamos alcançar — e continuamos a pensar nisso, dando-lhe assim continuidade. É o que acontece quando pensamos numa dor, como evitá-la, etc. — esse pensar dá continuidade à dor. Observemo-nos a nós mesmos, por favor: observemos como damos continuidade à existência a que chamam vida, e que é cheia de ansiedade, de desespero, de agonia, com prazeres passageiros porque pensamos constantemente nisso. Portanto, estamos a viver no tempo, no tempo psicológico. E, assim, o passado, com todas as suas lembranças, com todas as suas cicatrizes, de prazer, de dor, com todas as coisas que adquiriu, que ouviu, e com a tradição — molda o presente, e o presente molda o futuro. E assim nos tornamos escravos do tempo.
Temos de descobrir por nós mesmos — sem nos ser dito por outro — se o tempo realmente existe. Se na realidade não tivéssemos “amanhã”, toda a nossa vida se transformaria imediatamente; então deitaríamos fora todas as inutilidades que nos ocupam a mente, todas essas coisas que acumulamos, “aprendemos” e ouvimos dizer; e ficaríamos assim com imensa energia. Quando isso acontece, não temos nenhum “tempo” e, portanto, não existe “tempo”.
E, então, a mente que não tem tempo pode olhar a morte com olhos completamente diferentes. A morte não é então algo distanciado por um intervalo de anos, com a velhice, com inúmeras agonias e dores; ela não está lá e nós aqui — esse espaço é que é o tempo. E este “tempo” que nos apavora, é dele que temos medo e não da morte. E esse tempo traz decadência; não traz enriquecimento, não traz maturidade. Não o comparemos com o fruto de uma árvore — esse precisa de tempo, de sol, de chuva, de sombra, de alimento; e então, quando esse fruto está maduro cai. Mas nós não temos tempo. Se contamos com o tempo, ficamos envolvidos em sofrimento. Estamos então a pensar em termos do que “foi”, do que “será”, do que “deveria ser”. E para compreendermos o sofrimento, a dor, a dor física, a ansiedade emocional, o desgosto de ter perdido alguém — não devemos depender do tempo, não devemos ter tempo.
Não sei se conheceis realmente o sofrimento. Quase todos nós evitamos encarar o sofrimento, ou o veneramos ou o aceitamos. Entra-se numa igreja, na Europa ou neste país, e vemos como se presta culto ao sofrimento! E aqui, neste país, temos explicações para o sofrimento: o karma, etc., nunca recusamos totalmente, com todo o nosso ser, o sofrimento psicológico, aceitamo-lo — e é isto o que há de triste no sofrimento.
Que é o sofrimento? Algum de vós conhece realmente o sofrimento? A palavra “sofrimento” está associada a certas lembranças — as lembranças relacionadas com a autopiedade, a lembrança das coisas passadas, das coisas que se fizeram ou não se fizeram, na companhia do amigo, da mulher, do filho, de quem quer que seja. A lembrança, o retrato, a palavra, o símbolo que faz sentir sofrimento; e então dizemos, “temos de o evitar, temos de encontrar uma razão para ele”; e então começamos a inventar a olhar o futuro — como meio de dominar alguma coisa. Se não existisse nenhum tempo, nenhum “amanhã”, então não aceitaríamos o sofrimento, pois não passaríamos em nenhum “tempo” — e é o pensamento que gere o sofrimento. Não sei se já reparastes que o sofrimento ou é pessoal ou é o sofrimento do ser humano — o ser humano que sofre, que é coagido, forçado a fazer coisas, a crer e a aceitar isto ou aquilo, por meio de uma propaganda de mil ou dez mil anos. Há o sofrimento do homem como um todo, e o sofrimento de um determinado ser humano. O meu filho morre: tenho na mente o seu retrato. Nesse filho investira todas as minhas esperanças, todos os meus prazeres; era o meu “eu” prolongando-se nessa pessoa, e ela morreu. E fico despojado de tudo o que tinha; vejo-me subitamente sozinho, subitamente isolado de tudo.
Sabeis o que significa estar sozinho? Alguma vez tivestes, realmente, a experiência desse estado de completo isolamento, em que não há relação com coisa alguma, nenhuma identificação com alguém — com a nossa mulher, com os filhos, com a terra de onde somos — um estado em que se está completamente separado de tudo? Quando uma pessoa se sente sozinha, o seu passado nada significa, as suas experiências perderam a sua importância; o seu trabalho, a sua família nada significam; mesmo que esteja rodeada de uma multidão, não está em relação com coisa alguma. Não sei se já passastes realmente por esse estado de isolamento. Se não, nunca conhecereis o fim do sofrimento. Porque esse é o caminho que faz parte de vós — esse intenso e completo isolamento, essa separação. E consciente ou inconscientemente, estamos sempre a fugir desse isolamento — por meio da bebida, do sexo, dos deuses, das orações, por meio de toda a espécie de ilusão.
Este isolamento tem de ser compreendido. Cada um de nós, no segredo da mente, conhece este isolamento, não no sentido de o experimentar, mas de o conhecer verbalmente, através dos sinais interiores — de ocasionais vislumbres dele. Conhecemo-lo mas não somos capazes de o compreender, de “viver com ele”, de o enfrentar, fugimos dele e tentamos preencher-nos de muitas maneiras. Mas ele continua inexoravelmente presente. Assim, quando o meu filho morre, fico confrontado com isso, mas traduzo o meu sofrimento em todo o gênero de fugas a esse isolamento. Conhecemos dúzias de fugas — penso em encontrar o meu filho no céu, tenho certas conclusões e explicações, como a reencarnação. Mais uma vez o “tempo” se introduz — ou seja, hei de encontrar-me com o meu filho, farei isto com ele, é o meu karma, é isto, é aquilo. Ao fugirmos, damos entrada ao tempo. E no momento em que admitimos o tempo, abrimos também a porta ao sofrimento e, assim, o sofrimento e o tempo causam o declínio, a deterioração da mente.
Assim, quando há sofrimento, não devemos fugir do isolamento, mas compreendê-lo completamente. Sabeis o que significa “viver com uma coisa” desagradável ou agradável? “Viver com uma coisa” exige muita energia. Viver com uma árvore, com a família, com a sujidade, a sordidez, com qualquer coisa, exige enorme energia; de outro modo, habituamo-nos a isso. Provavelmente já vos habituastes ao pôr do sol, à água do rio que corre calmo, a refletir o céu. Quando nos habituamos a alguma coisa não mais reparamos nela. No momento em que nos habituamos a ela, não estamos a viver, e é isso que fazemos.
Acomodamo-nos aos governos, às nossas famílias, aos nossos conflitos, ao nosso sofrimento, à sujidade, à sordidez, à miséria, a tudo, porque nos habituamos a essas coisas. A princípio, há um choque, dor; e depois, gradualmente, encontramos maneiras e meios de nos habituarmos a isso, o que significa tempo. Acostumo-me à morte do meu filho; portanto, aceito o sofrimento, e daí vem a autopiedade. Se não houver autopiedade, compreenderemos o sofrimento, saberemos enfrentá-lo imediatamente, porque o sofrimento deve terminar.
E o fim do sofrimento é o começo da sabedoria. Não se pode ter sabedoria lendo livros ou frequentando escolas. A sabedoria só vem ao homem quando o sofrimento acaba. Isso significa que temos de compreender este problema do pensamento e do tempo. Gostamos do sofrimento! Se retirássemos o retrato daquele que amamos da parede do nosso quarto ou da “parede” da nossa mente, consideraríamos isso uma coisa terrível. Não amamos realmente essa pessoa; amamos a lembrança da pessoa que outrora nos dava satisfação. Não pensamos na pessoa, em que todas as suas fases, dos nossos conflitos com ela, na nossa ansiedade, na nossa rivalidade. Nada disso guardamos. Apenas queremos conservar o retrato de que gostamos e de que não queremos abandonar. Por que se o abandonamos, ficamos sozinhos, isolados, perdidos. E assim o sofrimento começa de novo.
Mas o homem que rejeita o sofrimento, que não o aceita, que não tem nenhuma “filosofia”, nenhuma igreja, nem fórmulas, nem crenças — só esse homem pode olhar essa coisa extraordinária chamada sofrimento — e para que o sofrimento deixe de existir, tem de se investigar todo este problema da memória, e compreender quando a memória é necessária e quando é prejudicial. Se uma pessoa chega até aqui, não verbalmente, mas de fato, pode então encarar a morte.
Há a velhice, e as penas da velhice — a deterioração das capacidade físicas. Passamos quarenta anos a desgastar-nos num emprego e a nossa mente perde a sua agilidade, a sua frescura. Já as perdemos na juventude. Observai-vos, por favor. Não escuteis apenas o “orador”; o que ele está a dizer será de muito pouco valor se não estiverdes a observar-vos realmente a vos mesmos. Cada um tem, pois, de observar o mecanismo, o decorrer do seu pensamento, não o rejeitando, não condenando mas observando o fluir, o mecanismo real do seu próprio pensamento.
Nunca penetramos no problema da morte. Encontramos sempre crenças e consolações, ideias e fórmulas para nos protegerem contra a morte. Mas a morte existe para todos — desde o maior dos filósofos à pobre mulher que passa na rua. Para a maior parte das pessoas, a morte é algo separado da vida, porque não compreendem a vida. A vida é um enorme campo de batalha, onde vamos existindo. O sofrimento, a dor, a ansiedade, a afeição, a simpatia, o ódio, o medo constante, os falsos deuses, os templos, a corrupção, a competição — tudo isso é a vida. Não a compreendemos. Mas agarramo-nos desesperadamente a ela, porque isso e tudo o que conhecemos. Não conhecemos mais nada e nada mais queremos conhecer.
E assim, não compreendemos o viver, evitamos a morte, e pomo-la à distância, longe de vós e de mim. Mas para compreender a vida temos de dar-nos à vida. Para compreender a dor, a ansiedade, o desespero, a afeição, temos de dar-nos, de dar todos o nosso ser, a essa compreensão. Veremos, então, que o viver e o morrer não são separados. Para viver, temos de morrer todos os dias; de outro modo, não podemos viver. Viver meramente da memória, de retratos, de fórmulas, de crenças — não é viver. No momento em que compreendermos, no momento em que dermos o nosso ser à vida, veremos que estamos a morrer — não no sentido de desaparecer, declinar, degenerar. Estou a falar de morrer psicologicamente.
Quando morremos psicologicamente, estamos sempre a viver com a morte. E então a morte não é uma coisa distante, temível, que nos apavora. Porque, para viver completamente, em cada minuto, em cada dia, temos de morrer para o passado, para cada minuto, para cada dia — e isso é exatamente o que de fato ira acontecer quando morrermos fisicamente. Então, não poderemos discutir com a morte, não podemos adia-la, pedindo-lhe o favor de mais um ano. Ela lá estará, quer nos agrade, quer não. O homem que tem medo da morte não está a viver, porque tem medo da vida.
Compreendei este fato tão simples da vida: não sabemos viver, se estamos sempre a viver na dor e na ansiedade, no medo, na esperança e no desespero; essa “vida” é um campo de batalha. Viver, segundo entendo, é o viver em que nada disso existe, quando já não se esta a competir com ninguém, quando há um total, completo — e não fragmentário — findar do sofrimento. E isso é possível — o completo fim do sofrimento. E quando assim vivermos, veremos que, para viver, temos de morrer para tudo o que conhecemos. Então, a vida e a morte não estão separadas.
Espero que estejais a escutar não apenas as palavras, não com a intenção de colher algumas ideias, para as refutar ou confirmar, ou para dizer que o “orador” tem ou não tem razão. Estamos a fazer uma viagem juntos e para viajar, não podeis viajar com palavras; tendes de andar de verdade; ouvindo não só o som dos vossos passos, mas também escutando as vossas palavras, os vossos pensamentos, os vossos sentimentos.
Vereis então que quando vos libertais do conhecido do passado, morreis para ele, e então não vos importará saber se ha ou não reencarnação. E, além disso, que é que continua? Só o vosso pensamento, a vossa memória e que continua — não a chamada “essência espiritual”. Se e a essência espiritual, não é possível pensar sobre ela. No momento em que se pensa a seu respeito ela é trazida para o campo do tempo, o campo do sofrimento; portanto, não se trata da essência espiritual mas meramente de um produto do pensamento. Quando falamos da alma como algo que continuará, estamos ainda na esfera do pensamento. Onde só o pensamento domina, esse pensamento cria o medo. E fica-se então aprisionado em todo esse círculo vicioso do tempo, do sofrimento e do medo da morte.
Assim, para compreender a morte, o sofrimento e o tempo, temos de dar-nos à vida. E para viver temos de ser altamente sensíveis — em vez de vivermos agarrados as nossas tradições. Temos de ser sensíveis com os nervos, com os olhos, com todo o corpo, com a mente, com o coração. E não podemos ser sensíveis se ficamos habituados a alguma coisa — habituados ao sexo, à cólera, à família que temos à nossa volta, a sujidade de uma rua, ao encanto do pôr do sol, na limpidez do céu, ou habituados às nossas próprias vulgaridades, às nossas crueldades, aos nossos gestos e palavras que nunca observamos.
Temos, pois, de estar extremamente espertos e sensíveis. Saberemos então o que significa morrer, e o que significa viver totalmente — no sentido de que a nossa mente não tem futuro, não tem “amanhã”, porque não tem passado, está liberta dele; já não procura “vir a ser” — está simplesmente a fluir, esta a viver está em movimento. E para uma coisa que esta em movimento, que flui, não há morte. A morte só existe para quem deseja a continuidade. Mas se em cada minuto morremos para tudo — para cada prazer, para cada dor, para cada hábito, bom ou mau — então saberemos por nós mesmos, o que existe além da morte, o que existe além da agonia desta vida. Alem, existe algo — não porque o digo. Vós é que tendes de descobri-lo. Mas, para descobrir, não deve haver sofrimento; porque onde mora o sofrimento, não existe o amor. E sem amor nunca compreenderemos o que e a morte.
Krishnamurti, Madrasta, 26 de janeiro de 1964,
O despertar da sensibilidade