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domingo, 22 de abril de 2018

Onde mora o sofrimento, não há amor

Esta tarde, se me permitis, gostaria de falar sobre o tempo, o sofrimento e a morte. E um vasto campo a percorrer numa hora. E a comunicação é sempre difícil. A comunicação profunda requer uma certa intensidade — um encontro de duas mentes ao mesmo nível, ao mesmo tempo e com a mesma intensidade. De outro modo a comunhão não é possível. Intelectualmente ou verbalmente, pode-se concordar ou discordar, mas isso não é comunhão. Comunhão é um relacionamento extraordinariamente intenso. E essa intensidade no relacionamento entre as duas mentes deve existir ao mesmo tempo e ao mesmo nível; se assim não for, a comunhão torna-se meramente verbal, interpretativa, superficial. Falar da morte, do sofrimento e do tempo requer infinita paciência. Paciência não é aquilo que cultivamos para adquirir uma certa técnica ou formar um certo hábito. Para se investigar profundamente uma coisa, especialmente no campo psicológico, requer-se uma certa disposição da mente, para avançar passo a passo sem saltar para qualquer conclusão, em momento algum, sem nunca criar conceitos ou fórmulas, mas prosseguir apenas de observação em observação, de compreensão em compreensão, cada vez mais esclarecedoras. É neste sentido que estou a usar a palavra paciência. Isso precisa de um extraordinário estado da mente — não uma mente superficial, que concorda ou discorda, ou que compara o que está a ouvir com o que já leu ou ouviu; essa mente não está num estado de comunhão.

Temos que conversar esta tarde sobre uma coisa que requer extraordinária atenção — não concentração — uma atenção em que não há nenhuma exclusão, nem sequer daquele terrível barulho que se está a ouvir, uma atenção em que ele não pode interferir. Só nesse estado de atenção, podemos estar em perfeita comunhão para investigar algo que é extraordinariamente difícil.

Mas, para compreender qualquer coisa temos de experimentá-la diretamente, e não verbalmente. Na realidade, para experimentarmos uma coisa é preciso que vós e eu estejamos juntos, para termos uma só visão, um só ouvido, um só olhar, uma só voz, para compreender; de outro modo, vós e eu não estaremos no mesmo ponto, ao mesmo nível, com a mesma intensidade. Temos de compreender este problema do “tempo”. Porque, se o não compreendermos, não compreenderemos essa coisa extraordinária que se chama “morte”.

Com a palavra compreender não estou a referir-me a uma compreensão verbal, intelectual, fragmentária, ou a uma mente cheia de informação, que acumulou grande quantidade de conhecimentos e que compra, julga, avalia, em função daquilo que acumulou — essa mente não está num estado de compreensão; não está capaz de compreender. Aliás, compreender é outro extraordinário fenômeno da mente. Só compreendemos quando escutamos totalmente, completamente, com todo o nosso ser — com a mente, o coração, o corpo, os olhos, os nervos, inteiramente — só então compreendemos uma coisa por completo; nunca nos entregamos inteiramente à compreensão. Nunca nos damos completamente à coisa alguma.

Temos de dar-nos completamente a esta compreensão do tempo, do sofrimento e da morte. E não podemos dar-nos se não houver compreensão do medo e do tempo. A morte tem de ser um fenômeno muito extraordinário, tal como a vida. E para a compreendermos, para a examinarmos com o coração e não com as palavras, precisamos de uma mente penetrante, lúcida, que possa raciocinar logicamente, equilibradamente, com inteira confiança — não a confiança de quem vos está a falar, mas a vossa própria confiança. De outro modo, não poderemos fazer a viagem àquela terra desconhecida, e se não pudermos fazer essa viagem, não teremos vivido.

Assim, vamos falar sobre o tempo. Provavelmente, a maior parte de nós nunca pensou sobre ele ou, se o fez, pensou no que nos acontecerá amanhã ou daqui a dez anos. Provavelmente, não pensamos nele como um fator na vida. Com a palavra “tempo” refiro-me ao tempo psicológico e não ao tempo cronológico, que é indicado pelo relógio — ontem, hoje, amanhã, a próxima hora, e o que cada um irá fazer depois desta reunião. Provavelmente, pensamos nisso, porque fomos forçados a fazê-lo, mas não fomos mais além, para investigar, para descobrir, por nós mesmos, o extraordinário significado do tempo. Nunca levamos o tempo a uma crise.

Evitamo-lo sempre. Nunca pesquisamos com cuidado isso a que se chama passado, presente e futuro, essa continuidade de existência que é o passado, o presente e o futuro, com toda a confusão, a ansiedade, sentimentos de culpa, dores, alegrias e tudo o mais por que a mente passa, ao longo deste período de tempo chamado ontem, hoje e amanhã.

Se não compreendermos plenamente o significado do tempo, não seremos capazes de compreender o que é o sofrimento.

E onde há sofrimento, não há amor; e sem amor, nunca compreenderemos o que é a morte. Assim, tendes de fazer a viagem com este que vos está a falar — mas não verbalmente, porque isso é muito superficial e nada significa. Temos de fazer a viagem com a totalidade do nosso ser, sem nenhuma resistência ou concordância, dando-nos completamente a essa compreensão.

O tempo, para quase todos nós, é um movimento do passado, que se expressa no presente e condiciona o futuro. E o tempo é também um mecanismo gradual de realização. Servimo-nos do “tempo” para adiar; servimo-nos dele como meio de mudarmos “isto” para “aquilo”. Mas será possível não haver “tempo nenhum”?

O tempo só existe para o homem que pensa em termos de passado, o qual se projeta, através do presente, no futuro — as suas realizações pessoais, o seu cultivar da virtude e das suas capacidades, a sua aquisição de técnicas, etc. Tudo isto pertence ao nível da realização pessoal, do desenvolvimento e da acumulação. Assim, servimo-nos do tempo, e a mente que está enredada neste uso do tempo é incapaz de compreender isto — que provavelmente não existe tempo algum.

Consideremos um homem que tem estado num emprego trinta ou quarenta anos da sua vida — como cientista, engenheiro, físico, burocrata, etc. Como pode um homem, que só tem vivido para o emprego, durante este longo período de anos, compreender profundamente alguma coisa que não seja o emprego, a rotina? As suas células cerebrais estão exaustas, emperradas, distorcidas, gastas; não estão frescas, jovens, vibrantes, despertas, cheias de vitalidade. As suas reações são lentas. Tem sido, provavelmente, movido pela ambição, pela avidez, pelo desejo de posição, de poder e sempre a servir-se do tempo. O tempo fá-lo murchar, deteriora-lhe a mente. Essa mente — e geralmente as nossas mentes são assim — quando aborda este problema do tempo, é incapaz de compreender o seu pleno significado. Mas essa mente precisa de compreender o tempo, e só poderá compreendê-lo quando tiver consciência do problema e de que tem estado a ser destruída por quarenta anos de rotina. Quando essa mente perceber isso, ela pode “comprimir” a totalidade do tempo num só minuto — e compreender inteiramente — isso é levar o tempo a uma crise.

O tempo é existência contínua — o que “foi”, o que “será” e o que “é”. Só conhecemos isso. As nossas lembranças, as nossas experiências, as coisas que ouvimos e armazenamos, as experiências com que nos encontramos no passado, e que dão mais força ao passado — tudo isso nos dá continuidade de existência. A memória, o prazer, as dores, os insultos, as iras, as desumanidades, os virulentos estados de ódio, a inveja o ciúme, a competição, o ímpeto da ambição, e o desejo impiedoso — é a essa continuidade de existência que chamamos vida. Nunca reduzimos toda essa existência a um só minuto, para a compreendermos, e continuamos a repetir, a repetir, a repetir... e isso a que chamamos vida fica preso na rede do tempo, e assim há sempre um amanhã, cheio de dor, de ansiedade, de sofrimento.

É o tempo que dá a dor e o prazer. Porque o pensamento tem continuidade: pensamos em qualquer coisa que nos dá prazer — sexo, posição social, ou o que vamos alcançar — e continuamos a pensar nisso, dando-lhe assim continuidade. É o que acontece quando pensamos numa dor, como evitá-la, etc. — esse pensar dá continuidade à dor. Observemo-nos a nós mesmos, por favor: observemos como damos continuidade à existência a que chamam vida, e que é cheia de ansiedade, de desespero, de agonia, com prazeres passageiros porque pensamos constantemente nisso. Portanto, estamos a viver no tempo, no tempo psicológico. E, assim, o passado, com todas as suas lembranças, com todas as suas cicatrizes, de prazer, de dor, com todas as coisas que adquiriu, que ouviu, e com a tradição — molda o presente, e o presente molda o futuro. E assim nos tornamos escravos do tempo.

Temos de descobrir por nós mesmos — sem nos ser dito por outro — se o tempo realmente existe. Se na realidade não tivéssemos “amanhã”, toda a nossa vida se transformaria imediatamente; então deitaríamos fora todas as inutilidades que nos ocupam a mente, todas essas coisas que acumulamos, “aprendemos” e ouvimos dizer; e ficaríamos assim com imensa energia. Quando isso acontece, não temos nenhum “tempo” e, portanto, não existe “tempo”.

E, então, a mente que não tem tempo pode olhar a morte com olhos completamente diferentes. A morte não é então algo distanciado por um intervalo de anos, com a velhice, com inúmeras agonias e dores; ela não está lá e nós aqui — esse espaço é que é o tempo. E este “tempo” que nos apavora, é dele que temos medo e não da morte. E esse tempo traz decadência; não traz enriquecimento, não traz maturidade. Não o comparemos com o fruto de uma árvore — esse precisa de tempo, de sol, de chuva, de sombra, de alimento; e então, quando esse fruto está maduro cai. Mas nós não temos tempo. Se contamos com o tempo, ficamos envolvidos em sofrimento. Estamos então a pensar em termos do que “foi”, do que “será”, do que “deveria ser”. E para compreendermos o sofrimento, a dor, a dor física, a ansiedade emocional, o desgosto de ter perdido alguém — não devemos depender do tempo, não devemos ter tempo.

Não sei se conheceis realmente o sofrimento. Quase todos nós evitamos encarar o sofrimento, ou o veneramos ou o aceitamos. Entra-se numa igreja, na Europa ou neste país, e vemos como se presta culto ao sofrimento! E aqui, neste país, temos explicações para o sofrimento: o karma, etc., nunca recusamos totalmente, com todo o nosso ser, o sofrimento psicológico, aceitamo-lo — e é isto o que há de triste no sofrimento.

Que é o sofrimento? Algum de vós conhece realmente o sofrimento? A palavra “sofrimento” está associada a certas lembranças — as lembranças relacionadas com a autopiedade, a lembrança das coisas passadas, das coisas que se fizeram ou não se fizeram, na companhia do amigo, da mulher, do filho, de quem quer que seja. A lembrança, o retrato, a palavra, o símbolo que faz sentir sofrimento; e então dizemos, “temos de o evitar, temos de encontrar uma razão para ele”; e então começamos a inventar a olhar o futuro — como meio de dominar alguma coisa. Se não existisse nenhum tempo, nenhum “amanhã”, então não aceitaríamos o sofrimento, pois não passaríamos em nenhum “tempo” — e é o pensamento que gere o sofrimento. Não sei se já reparastes que o sofrimento ou é pessoal ou é o sofrimento do ser humano — o ser humano que sofre, que é coagido, forçado a fazer coisas, a crer e a aceitar isto ou aquilo, por meio de uma propaganda de mil ou dez mil anos. Há o sofrimento do homem como um todo, e o sofrimento de um determinado ser humano. O meu filho morre: tenho na mente o seu retrato. Nesse filho investira todas as minhas esperanças, todos os meus prazeres; era o meu “eu” prolongando-se nessa pessoa, e ela morreu. E fico despojado de tudo o que tinha; vejo-me subitamente sozinho, subitamente isolado de tudo.

Sabeis o que significa estar sozinho? Alguma vez tivestes, realmente, a experiência desse estado de completo isolamento, em que não há relação com coisa alguma, nenhuma identificação com alguém — com a nossa mulher, com os filhos, com a terra de onde somos — um estado em que se está completamente separado de tudo? Quando uma pessoa se sente sozinha, o seu passado nada significa, as suas experiências perderam a sua importância; o seu trabalho, a sua família nada significam; mesmo que esteja rodeada de uma multidão, não está em relação com coisa alguma. Não sei se já passastes realmente por esse estado de isolamento. Se não, nunca conhecereis o fim do sofrimento. Porque esse é o caminho que faz parte de vós — esse intenso e completo isolamento, essa separação. E consciente ou inconscientemente, estamos sempre a fugir desse isolamento — por meio da bebida, do sexo, dos deuses, das orações, por meio de toda a espécie de ilusão.

Este isolamento tem de ser compreendido. Cada um de nós, no segredo da mente, conhece este isolamento, não no sentido de o experimentar, mas de o conhecer verbalmente, através dos sinais interiores — de ocasionais vislumbres dele. Conhecemo-lo mas não somos capazes de o compreender, de “viver com ele”, de o enfrentar, fugimos dele e tentamos preencher-nos de muitas maneiras. Mas ele continua inexoravelmente presente. Assim, quando o meu filho morre, fico confrontado com isso, mas traduzo o meu sofrimento em todo o gênero de fugas a esse isolamento. Conhecemos dúzias de fugas — penso em encontrar o meu filho no céu, tenho certas conclusões e explicações, como a reencarnação. Mais uma vez o “tempo” se introduz — ou seja, hei de encontrar-me com o meu filho, farei isto com ele, é o meu karma, é isto, é aquilo. Ao fugirmos, damos entrada ao tempo. E no momento em que admitimos o tempo, abrimos também a porta ao sofrimento e, assim, o sofrimento e o tempo causam o declínio, a deterioração da mente.

Assim, quando há sofrimento, não devemos fugir do isolamento, mas compreendê-lo completamente. Sabeis o que significa “viver com uma coisa” desagradável ou agradável? “Viver com uma coisa” exige muita energia. Viver com uma árvore, com a família, com a sujidade, a sordidez, com qualquer coisa, exige enorme energia; de outro modo, habituamo-nos a isso. Provavelmente já vos habituastes ao pôr do sol, à água do rio que corre calmo, a refletir o céu. Quando nos habituamos a alguma coisa não mais reparamos nela. No momento em que nos habituamos a ela, não estamos a viver, e é isso que fazemos.

Acomodamo-nos aos governos, às nossas famílias, aos nossos conflitos, ao nosso sofrimento, à sujidade, à sordidez, à miséria, a tudo, porque nos habituamos a essas coisas. A princípio, há um choque, dor; e depois, gradualmente, encontramos maneiras e meios de nos habituarmos a isso, o que significa tempo. Acostumo-me à morte do meu filho; portanto, aceito o sofrimento, e daí vem a autopiedade. Se não houver autopiedade, compreenderemos o sofrimento, saberemos enfrentá-lo imediatamente, porque o sofrimento deve terminar.

E o fim do sofrimento é o começo da sabedoria. Não se pode ter sabedoria lendo livros ou frequentando escolas. A sabedoria só vem ao homem quando o sofrimento acaba. Isso significa que temos de compreender este problema do pensamento e do tempo. Gostamos do sofrimento! Se retirássemos o retrato daquele que amamos da parede do nosso quarto ou da “parede” da nossa mente, consideraríamos isso uma coisa terrível. Não amamos realmente essa pessoa; amamos a lembrança da pessoa que outrora nos dava satisfação. Não pensamos na pessoa, em que todas as suas fases, dos nossos conflitos com ela, na nossa ansiedade, na nossa rivalidade. Nada disso guardamos. Apenas queremos conservar o retrato de que gostamos e de que não queremos abandonar. Por que se o abandonamos, ficamos sozinhos, isolados, perdidos. E assim o sofrimento começa de novo.

Mas o homem que rejeita o sofrimento, que não o aceita, que não tem nenhuma “filosofia”, nenhuma igreja, nem fórmulas, nem crenças — só esse homem pode olhar essa coisa extraordinária chamada sofrimento — e para que o sofrimento deixe de existir, tem de se investigar todo este problema da memória, e compreender quando a memória é necessária e quando é prejudicial. Se uma pessoa chega até aqui, não verbalmente, mas de fato, pode então encarar a morte.

Há a velhice, e as penas da velhice — a deterioração das capacidade físicas. Passamos quarenta anos a desgastar-nos num emprego e a nossa mente perde a sua agilidade, a sua frescura. Já as perdemos na juventude. Observai-vos, por favor. Não escuteis apenas o “orador”; o que ele está a dizer será de muito pouco valor se não estiverdes a observar-vos realmente a vos mesmos. Cada um tem, pois, de observar o mecanismo, o decorrer do seu pensamento, não o rejeitando, não condenando mas observando o fluir, o mecanismo real do seu próprio pensamento.

Nunca penetramos no problema da morte. Encontramos sempre crenças e consolações, ideias e fórmulas para nos protegerem contra a morte. Mas a morte existe para todos — desde o maior dos filósofos à pobre mulher que passa na rua. Para a maior parte das pessoas, a morte é algo separado da vida, porque não compreendem a vida. A vida é um enorme campo de batalha, onde vamos existindo. O sofrimento, a dor, a ansiedade, a afeição, a simpatia, o ódio, o medo constante, os falsos deuses, os templos, a corrupção, a competição — tudo isso é a vida. Não a compreendemos. Mas agarramo-nos desesperadamente a ela, porque isso e tudo o que conhecemos. Não conhecemos mais nada e nada mais queremos conhecer.

E assim, não compreendemos o viver, evitamos a morte, e pomo-la à distância, longe de vós e de mim. Mas para compreender a vida temos de dar-nos à vida. Para compreender a dor, a ansiedade, o desespero, a afeição, temos de dar-nos, de dar todos o nosso ser, a essa compreensão. Veremos, então, que o viver e o morrer não são separados. Para viver, temos de morrer todos os dias; de outro modo, não podemos viver. Viver meramente da memória, de retratos, de fórmulas, de crenças — não é viver. No momento em que compreendermos, no momento em que dermos o nosso ser à vida, veremos que estamos a morrer — não no sentido de desaparecer, declinar, degenerar. Estou a falar de morrer psicologicamente.

Quando morremos psicologicamente, estamos sempre a viver com a morte. E então a morte não é uma coisa distante, temível, que nos apavora. Porque, para viver completamente, em cada minuto, em cada dia, temos de morrer para o passado, para cada minuto, para cada dia — e isso é exatamente o que de fato ira acontecer quando morrermos fisicamente. Então, não poderemos discutir com a morte, não podemos adia-la, pedindo-lhe o favor de mais um ano. Ela lá estará, quer nos agrade, quer não. O homem que tem medo da morte não está a viver, porque tem medo da vida.

Compreendei este fato tão simples da vida: não sabemos viver, se estamos sempre a viver na dor e na ansiedade, no medo, na esperança e no desespero; essa “vida” é um campo de batalha. Viver, segundo entendo, é o viver em que nada disso existe, quando já não se esta a competir com ninguém, quando há um total, completo — e não fragmentário — findar do sofrimento. E isso é possível — o completo fim do sofrimento. E quando assim vivermos, veremos que, para viver, temos de morrer para tudo o que conhecemos. Então, a vida e a morte não estão separadas.

Espero que estejais a escutar não apenas as palavras, não com a intenção de colher algumas ideias, para as refutar ou confirmar, ou para dizer que o “orador” tem ou não tem razão. Estamos a fazer uma viagem juntos e para viajar, não podeis viajar com palavras; tendes de andar de verdade; ouvindo não só o som dos vossos passos, mas também escutando as vossas palavras, os vossos pensamentos, os vossos sentimentos.

Vereis então que quando vos libertais do conhecido do passado, morreis para ele, e então não vos importará saber se ha ou não reencarnação. E, além disso, que é que continua? Só o vosso pensamento, a vossa memória e que continua — não a chamada “essência espiritual”. Se e a essência espiritual, não é possível pensar sobre ela. No momento em que se pensa a seu respeito ela é trazida para o campo do tempo, o campo do sofrimento; portanto, não se trata da essência espiritual mas meramente de um produto do pensamento. Quando falamos da alma como algo que continuará, estamos ainda na esfera do pensamento. Onde só o pensamento domina, esse pensamento cria o medo. E fica-se então aprisionado em todo esse círculo vicioso do tempo, do sofrimento e do medo da morte.

Assim, para compreender a morte, o sofrimento e o tempo, temos de dar-nos à vida. E para viver temos de ser altamente sensíveis — em vez de vivermos agarrados as nossas tradições. Temos de ser sensíveis com os nervos, com os olhos, com todo o corpo, com a mente, com o coração. E não podemos ser sensíveis se ficamos habituados a alguma coisa — habituados ao sexo, à cólera, à família que temos à nossa volta, a sujidade de uma rua, ao encanto do pôr do sol, na limpidez do céu, ou habituados às nossas próprias vulgaridades, às nossas crueldades, aos nossos gestos e palavras que nunca observamos.

Temos, pois, de estar extremamente espertos e sensíveis. Saberemos então o que significa morrer, e o que significa viver totalmente — no sentido de que a nossa mente não tem futuro, não tem “amanhã”, porque não tem passado, está liberta dele; já não procura “vir a ser” — está simplesmente a fluir, esta a viver está em movimento. E para uma coisa que esta em movimento, que flui, não há morte. A morte só existe para quem deseja a continuidade. Mas se em cada minuto morremos para tudo — para cada prazer, para cada dor, para cada hábito, bom ou mau — então saberemos por nós mesmos, o que existe além da morte, o que existe além da agonia desta vida. Alem, existe algo — não porque o digo. Vós é que tendes de descobri-lo. Mas, para descobrir, não deve haver sofrimento; porque onde mora o sofrimento, não existe o amor. E sem amor nunca compreenderemos o que e a morte.

Krishnamurti, Madrasta, 26 de janeiro de 1964,
O despertar da sensibilidade

sábado, 21 de abril de 2018

A autopiedade é a raiz de todo sofrimento

A autopiedade é a raiz de todo sofrimento

Esta manhã talvez possamos deixar de lado os nossos problemas — problemas econômicos, problemas atinentes a nossas relações pessoais, problemas de doença, e também os mais importantes que nos rodeiam, de ordem nacional e internacional: a guerra, a fome, as revoltas populares, etc. Não queremos fugir deles, mas se pudermos pô-los de parte, por esta manhã, pelo menos, talvez possamos capacitar-nos para considerá-los de maneira diferente com a mente mais fresca, percebimento mais penetrante — e, assim, atacá-los de maneira nova, com maior vigor e clareza.

A mim me parece que só o amor pode produzir a revolução correta, e que qualquer outra forma de revolução — isto é, revolução baseada em teorias econômicas, em ideologias sociais, etc. só pode acarretar mais desordem, mais confusão e aflição. Não há esperança de resolvermos o básico problema humano mediante reformas e reorganizações parciais. Só quando há um grande amor podemos ter uma visão total e, por conseguinte, uma ação plena, em vez dessa atividade fragmentária, parcial, que atualmente chamamos revolução, e que a nada conduz.

Hoje desejo falar sobre uma coisa que abarca a totalidade da vida — algo que não é fragmentário, porém constitui um acesso total à existência humana; e, para podermos entrar com certa profundeza nesta matéria, devemos libertar-nos de todas as teorias, e crenças, e dogmas. Em geral, aramos sem cessar o solo da mente, mas parece que nunca semeamos; analisamos, examinamos, “desmontamos” as coisas, mas não compreendemos o movimento da vida.

Pois bem; penso haver três coisas que devemos compreender profundamente, para podermos sentir o movimento total da vida. São elas: o tempo, o sofrimento e a morte. Compreender o tempo, compreender o pleno significado do sofrimento, e “viver com a morte” — tudo isso exige a clareza do amor. O amor não é uma teoria, e tampouco um ideal. Ou uma pessoa ama, ou não ama. Ele não pode ser ensinado. Não podeis tomar lições para aprender a amar, nem nenhum método existe mediante cuja prática diária chegueis a saber o que é o amor. Mas, eu acho que se pode chegar ao amor, natural, fácil, espontaneamente, quando se compreende realmente o significado do tempo, a extraordinária profundeza do sofrimento, e a pureza que vem com a morte. Assim, talvez possamos considerar — realmente, e não teórica ou abstratamente — a natureza do tempo, a natureza ou estrutura do sofrimento, e essa coisa extraordinária que chamamos “a morte”. Essas três coisas não são separadas. Se compreendermos o que é o tempo, compreenderemos o que é a morte, bem como o que é o sofrimento. Mas, se considerarmos o tempo como coisa separada do sofrimento e da morte, e tentarmos ocupar-nos dele isoladamente, nosso acesso será então fragmentário e, por conseguinte, nunca perceberemos a maravilhosa beleza e a vitalidade do amor.

Vamos, pois, tratar do tempo, não como abstração, porém como coisa real — sendo o tempo duração, a continuidade da existência. Há o tempo cronológico, horas e dias que se estendem a milhões de anos; e foi o tempo cronológico que produziu a mente com a qual funcionamos. A mente é um resultado do tempo como continuidade da existência, e o seu aperfeiçoamento ou polimento através dessa continuidade chama-se progresso. Tempo é também a duração psicológica criada pelo pensar como um meio de preenchimento. Servimo-nos do tempo para progredir, preencher-nos, “vir a ser”, produzir um certo resultado. De ordinário, o tempo é para nós uma escada que leva a alguma coisa de maior importância — ao desenvolvimento de certas faculdades, ao aperfeiçoamento de determinada técnica, à realização de um fim, de um objetivo, louvável ou não; assim, julgamos que o tempo é necessário para a compreensão do verdadeiro, de Deus, daquilo que excede todo o esforço humano.

Em regra, considera-se o tempo como o período de duração entre o momento presente e um certo momento no futuro, quando teremos realizado nossos alvos; e desse tempo nos servimos para cultivar o caráter, livrar-nos de um certo hábito, desenvolvermos um músculo ou a visão das coisas. Há dois mil anos a mente cristã vem sendo condicionada para crer num Salvador, no inferno, no céu, e, no Oriente, idêntico condicionamento se verifica há muito mais tempo. Pensamos que o tempo é necessário para tudo o que temos de fazer ou compreender, e, por conseguinte, ele se torna uma carga, uma barreira ao percebimento real; impede-nos de ver imediatamente a verdade relativa a qualquer coisa, porque pensamos que para isso o tempo é necessário. Dizemos “amanhã, ou daqui a anos, compreenderei essa coisa com extraordinária clareza”. No momento em que admitimos o tempo, estamos cultivando a indolência, aquela peculiar preguiça que nos impede de ver prontamente a coisa tal como é.

Supomos que necessitamos de tempo para romper o condicionamento que a sociedade — com suas religiões organizadas, seus códigos de moralidade, seus dogmas, sua arrogância e seu espírito de competição — nos impôs. Pensamos em termos de tempo, porque o pensamento é produto do tempo. O pensamento é reação da memória — sendo memória o fundo que foi acumulado, herdado, adquirido pela raça, pela comunidade, pelo grupo, pela família, e pelo indivíduo. Esse fundo é produto do mecanismo aditivo da mente, e sua acumulação levou tempo. Para a maioria das pessoas, a mente é memória, e sempre que há um desafio, uma exigência, é a memória que “responde”. Sua “resposta” é como a “resposta” do cérebro eletrônico, que funciona por associação. E sendo a reação da memória, o pensamento é, por sua própria natureza, produto do tempo e o criador do tempo.

Notai que o que estou dizendo não é uma teoria, uma coisa em que deveis refletir. Sobre ela não precisais refletir, porém, antes vê-la, porque assim é. Não vou entrar nos seus complicados pormenores, mas já vos apontei os fatos essenciais, e vós os vedes ou não os vedes. Se me estais seguindo, não apenas no sentido verbal, discursivo ou analítico, porém vendo realmente que assim é, percebereis como é enganador o tempo; e a questão é então — se o tempo pode parar. Se somos capazes de ver todo o mecanismo de nossa própria atividade — ver sua profundeza, sua superficialidade, sua beleza, sua fealdade — não amanhã, porém imediatamente, então esse próprio percebimento é a ação que destrói o tempo.

Se não compreendermos o tempo, não compreenderemos o sofrimento. Eles não são, como procuramos torná-los, duas coisas diferentes. Exercer um cargo, estar com a família, gerar prole — não são incidentes separados, isolados. Pelo contrário, estão profunda e intimamente relacionados; não podemos perceber essa extraordinária intimidade de relação sem a sensibilidade oriunda do amor.

Para compreender o sofrimento, devemos, com efeito, compreender a natureza do tempo e a estrutura do pensamento. O tempo tem de parar, porque, do contrário, ficaremos meramente repetindo as informações que temos acumulado, exatamente como um cérebro eletrônico. A menos que o tempo termine — o que significa o fim do pensamento — haverá mais repetição, ajustamento, modificação contínua. Nunca existirá nada novo. Somos cérebros eletrônicos “glorificados” — um pouco mais independentes, talvez, mas sempre máquinas, em nossa maneira de funcionar.

Assim, para compreender a natureza do sofrimento e como ele pode terminar, temos de compreender o pensamento. Os dois não existem separadamente. Ao compreender-se o tempo, atinge-se o pensamento; e a compreensão do pensamento é a extinção do tempo e, por conseguinte, o término do sofrimento. Se isto está perfeitamente claro, podemos então olhar o sofrimento e, não, adorá-lo, como o fazem os cristãos. O que não compreendemos, adoramos ou destruímos. Colocamo-lo num templo, numa igreja, ou num “canto escuro” da mente, onde lhe rendemos um culto de temor; ou desprezamo-lo e repudiamo-lo; ou fugimos. Mas aqui não estamos fazendo nada disso. Vemos que há milênios o homem luta com o problema do sofrimento, sem ter podido resolvê-lo até agora; assim, deixou-se calejar por ele, aceitou-o, considerando-o uma parte inevitável da vida.

Ora, o mero aceitar do sofrimento não só é insensato, mas também concorre para embotar-nos. Faz a mente insensível, brutal, superficial, e a vida, por conseguinte, se torna falsa, um mero mecanismo de trabalho e de recreação. Leva o homem uma existência movimentada, como negociante, cientista, artista, sentimentalista, como pessoa dita religiosa, etc. Mas, para compreendermos o sofrimento e dele nos libertarmos, temos de compreender o tempo e, por conseguinte, o pensamento. Não se pode negar o sofrimento ou fugir dele, recorrendo a distrações, a igrejas, a crenças organizadas; tampouco devemos aceitá-lo e divinizá-lo; e, para se evitar isso, requer-se muita atenção, que é energia.

O sofrimento está enraizado na autopiedade. Para o compreendermos, cumpre extinguir essa autopiedade. Não sei se já observastes como tendes pena de vós mesmo ao dizerdes; “Estou sozinho no mundo!” — Havendo autopiedade, está preparado o solo em que o sofrimento lançará suas raízes. Ainda que justifiqueis a autopiedade, ainda que a racionalizeis, que procureis poli-la, revesti-la com ideias, ela continuará existente, minando-vos profundamente. Assim, para que o homem possa compreender o penar, deverá livrar-se dessa brutal e egocêntrica trivialidade que é a pena de si mesmo. Podeis sentir autopiedade por motivo de doença, pela morte de um ente querido, ou por não vos terdes realizado e, por conseguinte, vos sentirdes frustrado; mas, independentemente de sua causa, a autopiedade é a raiz do sofrimento. E, uma vez livre desse sentimento, podereis encarar o sofrer sem lhe renderdes culto, sem dele fugir, ou sem lhe dardes uma significação sublime, espiritual, como, por exemplo, dizendo que deveis penar para achar Deus — o que é puro contrassenso. Só a mente embrutecida, estúpida, se conforma com a amargura. Por conseguinte, não devemos aceitá-la, em nenhuma forma, nem rejeitá-la. Ao libertar-vos da autopiedade, vos despojais de toda a sentimentalidade e emocionalismo que ela suscitou, e estareis pronto para olhar o sofrimento com total atenção.

Espero que o estejais fazendo, junto comigo, nesta viagem, e não aceitando apenas verbalmente os dizeres do orador. Tende cuidado com a passiva aceitação do sofrimento, a racionalização dele, as escusas, a autopiedade, a sentimentalidade, a atitude emocional ante o amargor, porquanto tudo isso é dissipação de energia. Para compreenderdes o sofrimento, deveis aplicar-lhe toda a atenção, e nesta atenção não há lugar para escusas, para sentimento, racionalização, não há lugar para nenhuma espécie de comiseração própria.

Suponho estar sendo bem claro ao ressaltar a necessidade de darmos inteira atenção ao sofrimento. Nessa atenção, não há esforço para resolvê-lo ou compreendê-lo. A pessoa só está olhando, observando. Todo esforço para compreender, racionalizar ou fugir, impede aquele estado imparcial de completa atenção, no qual pode ser compreendida essa coisa chamada sofrimento.

Não estamos analisando, nem investigando analiticamente o sofrimento com o intuito de dele nos livrarmos, pois isso é apenas mais uma artimanha mental. A mente que o analisa supõe tê-lo compreendido e que está liberta. Puro contrassenso. Podeis libertar-vos de determinada forma de sofrimento; mas ele ressurgirá de outra maneira. Estamos falando do sofrimento em sua totalidade, o sofrimento em si, seja vosso, seja meu ou de outro qualquer ente humano.

Como disse, para se compreender o sofrimento é necessário compreender o tempo e o pensamento. Requer-se um percebimento não seletivo de todas as formas de fuga, de toda a autopiedade, de todas as verbalizações, de modo que a mente se aquiete diante de uma coisa que deve ser compreendida. Não há então divisão entre o observador e a coisa observada. Não há aquele que — como observador, como pensador — observa o sofrimento; só há o estado de sofrimento. Esse “estado de sofrimento”, não-dividido, é necessário, porque, quando olhais o sofrimento como observador, criais o conflito que embrutece a mente e dissipa a energia e, por conseguinte, não há atenção.

Quando a mente compreende a natureza do tempo e do pensamento, quando desarraigou a autopiedade, a sentimentalidade, o emocionalismo, etc., então o pensamento — que criou toda essa complexidade — termina, e o tempo já não existe; assim, ficais direta e intimamente em contato com essa coisa a que chamais sofrimento. O sofrimento só se conserva ao fugirmos dele, ao desejarmos evitá-lo ou divinizá-lo. Mas, quando não houver nada disso, porque a mente estará em direto contato com o sofrimento e, por conseguinte, completamente silenciosa em relação a ele, descobrireis, então, que ela dele se libertou. Desde que estejamos em direto contato com o penar, este fato, por si só, dissolve todos os fatores que o produzem, inerentes ao tempo e ao pensamento. E, assim, cessa de todo o sofrer.

Como, agora, compreender essa coisa que chamamos “a morte”, e que tanto nos assusta? O homem tem criado muitas maneiras tortuosas de considerar a morte — divinizando-a, negando-a, apegando-se a inumeráveis crenças, etc. Mas, para compreender a morte, deveis por certo considerá-la de maneira nova; porque em verdade nada sabeis a respeito da morte, sabeis? Podeis ter visto pessoas morrerem e ter observado em vós mesmo ou em outro a aproximação da velhice, com a concomitante deterioração. Sabeis que há o findar da vida física, por velhice, acidente, doença, assassínio ou suicídio, mas não conheceis a morte como conheceis o sexo, a fome, a crueldade, a brutalidade. Ignorais o que é morrer e, enquanto não o souberdes, a morte nenhuma significação terá. O que temeis é uma abstração, algo que não conheceis. Desconhecendo a plenitude da morte, ou o que ela implica, a mente tem-lhe medo — medo do pensamento, e não do fato que ela desconhece.

Vejamos isso com certa profundeza.

Se morrêsseis repentinamente, não teríeis tempo para pensar na morte e temê-la. Mas, há um intervalo entre agora e o momento em que se apresentará a morte, e durante esse intervalo tendes bastante tempo para vos preocupar e para racionalizar. Desejais “transportar” para a próxima vida — se há uma próxima vida — todas as ansiedades e desejos e conhecimentos que tendes acumulado, e, assim, inventais teorias ou credes numa certa espécie de imortalidade. Considerais a morte algo separado da vida. A morte está lá e vós aqui, ocupado em viver — em guiar vosso carro, em ter relações sexuais, em alimentar-se, em exercer vossa atividade, acumular conhecimentos, etc. Não desejais, morrer porque ainda não concluístes o livro que estais escrevendo, ou porque ainda não sabeis tocar violino com “virtuosidade”. Por isso, separais a vida da morte, dizendo: “Agora compreenderei a vida, e oportunamente compreenderei a morte”. Mas, as duas não estão separadas — e eis o que importa compreender em primeiro lugar. A vida e a morte constituem um todo, estão intimamente relacionadas, e não podeis isolar uma delas e procurar compreendê-la separadamente da outra. Isso é o que em regra fazemos. Dividimos a vida em compartimentos estanques. Se sois economista, então a ciência econômica é tudo o que vos interessa, e nada sabeis acerca do resto. Se sois médico especialista de nariz e garganta ou do coração, viveis anos seguidos neste limitado campo de conhecimento e, quando morreis, este é o vosso céu.

Como disse, considerar a vida fragmentariamente é viver em constante confusão, contradição, aflição. Tendes de ver a totalidade da vida; e só se pode ver essa totalidade quando há afeição, quando há amor. O amor é a única revolução que produzirá a ordem. É inútil adquirir constantes conhecimentos de Matemática, Medicina, História, Economia, e depois reunir todos esses fragmentos; isso não resolverá coisa alguma. Sem o amor, a revolução só conduz ao endeusamento do Estado ou à adoração de uma imagem, ou a inumeráveis e tirânicas perversões, e à destruição do homem. Do mesmo modo, quando a mente, medrosa que é, põe a morte à distância, separando-a do viver diário, tal separação só serve para gerar mais medo, mais ansiedade, e uma multiplicidade de teorias a respeito da morte. Para se compreender a morte, é necessário compreender a vida. Mas a vida não é continuidade do pensamento, continuidade essa responsável por todas as nossas aflições.

Assim, pode a mente trazer a morte, da distância em que se acha, para o imediato (o agora)? Entendeis? A morte, com efeito, não se acha em nenhum lugar remoto: ela está aqui e agora. Está presente quando falamos, quando nos divertimos, quando escutamos, quando nos dirigimos ao escritório. Está aqui a cada instante da vida, exatamente como o amor. Percebendo-se esse fato, deixa de haver medo à morte. Tememos, não o desconhecido, porém a perda do conhecido. Tememos perder nossa família, ficar só, sem companheiros; tememos a dor da solidão, ficar privado das experiências, dos haveres acumulados. É o conhecido que temos medo de largar. O conhecido é memória — memória a que nos apegamos. Mas a memória é apenas uma coisa mecânica — como os computadores o provam sobejamente.

Para compreendermos a beleza e a extraordinária natureza da morte, precisamos livrar-nos do conhecido. No morrer para o conhecido, está o começo da compreensão da morte, porque a mente então se torna fresca, nova, e nenhum medo existe; por conseguinte, pode-se entrar naquele estado que se chama “a morte”. Assim, do começo até o fim, a vida e a morte são inseparáveis. O sábio compreende o tempo, o pensamento e o sofrimento, e só ele é capaz de compreender a morte. A mente que morre a cada instante, que não armazena experiência, é imaculada e, por conseguinte, se acha num perene estado de amor.

Desejais fazer perguntas a este respeito, para entrarmos em mais pormenores?


PERGUNTA: Qual a diferença entre o vosso pensar e o pensamento cristão sobre o amor?

KRISHNAMURTI: Sinto não poder dizê-lo. Eu não penso no amor. Não se pode pensar no amor; se o fazeis, não se trata de amor. Como deveis saber, há enorme diferença entre o sexo, e o pensamento a respeito do sexo, que estimula a sensação. A mente que se ocupa da mera satisfação sexual, que pensa no sexo, que se excita por meio de imagens, de figuras, de pensamentos, é de qualidade destrutiva. Já “a outra coisa” (o amor) difere muito: sentimo-la sem a interferência do pensamento. Analogamente, não se pode pensar a respeito do amor, de acordo com o padrão de nossa memória ou conforme o que tendes ouvido dizer: que ele é bom, profano, sagrado, etc. Porque esse pensar não é amor. O amor não é cristão nem hinduísta, não é oriental nem ocidental, não é vosso nem meu. Só quando uma pessoa se liberta de todas essas ideias de nacionalidade, raça, religião, etc. — só então saberá o que é amar.

Vede, estive falando nesta manhã acerca da morte, a fim de bem a compreenderdes — não apenas enquanto estais aqui, neste pavilhão, mas durante a nossa vida — e por conseguinte ficardes livre do sofrimento, livre do medo, e saberdes realmente o que significa morrer. Se agora, e nos dias vindouros, vossa mente não continuar vigilante, ilesa, sã, então o mero escutar de palavras será completamente fútil. Mas, se vos achais profundamente atento, ciente de vossos pensamentos e sentimentos; se não estais interpretando o que diz o orador, porém observando realmente, por vós mesmo, enquanto ele vai descrevendo e penetrando o problema, então, após sairdes daqui, vivereis — não só com exultação, mas também com a morte e o amor.

Krishnamurti, Saanen, 28 de julho de 1964,

A mente sem medo



sexta-feira, 20 de abril de 2018

Compreender o sofrimento é viver com ele

Compreender o sofrimento é viver com ele

[...] Se não há compreensão do sofrimento, não há sabedoria; o fim do sofrimento é o começo da sabedoria. Para se compreender o sofrimento e dele se ficar livre completamente, requer-se compreensão, não só do sofrimento individual, particular, mas também do imenso sofrer humano. Para mim, se não estamos totalmente livres do sofrimento, não pode haver sabedoria e tampouco terá a mente possibilidade de investigar deveras essa imensidade que se pode chamar Deus, ou outro nome qualquer.

A maioria de nós está sujeita ao sofrimento em diferentes formas: nas relações, quando ocorre a morte de alguém, quando não podemos preencher-nos e decaímos até nos reduzirmos a nada, ou quando tentamos realizar algo, tornar-nos importantes e tudo redunda em completo malogro. E temos também o "mecanismo" do sofrimento no plano físico: doença, cegueira, invalidez, paralisia, etc. Por toda a parte se encontra essa coisa extraordinária chamada "sofrimento" — com a morte à espreita em cada volta do caminho. E não sabemos enfrentar o sofrimento e, assim, ou o divinizamos ou o racionalizamos, ou, ainda, tratamos de evitá-lo. Ide a qualquer igreja cristã e vereis que lá se diviniza o sofrimento, tornam-no algo de grandioso, de sagrado, e diz-se que só pelo sofrimento, só pela mão de Cristo, o Crucificado, se pode encontrar Deus. No Oriente, há métodos próprios de fuga, outras maneiras de evitar o sofrimento; e é, para mim, um fato singular serem tão raros — tanto no Oriente como no Ocidente — os que estão verdadeiramente livres do sofrimento.

Seria maravilhoso se, no processo de nosso escutar — sem emocionalismo nem sentimentalismo — o que nesta manhã se está dizendo, pudéssemos, antes de sairmos daqui, compreender realmente o sofrimento e dele ficar completamente livres; porque, então, já não haveria automistificação, nem ilusões, nem ansiedades, nem medo, e o cérebro poderia funcionar clara, penetrante, logicamente. E, então, talvez chegássemos a conhecer o amor.

Ora, para se compreender o sofrimento é necessário investigar todo o "mecanismo" do tempo. Tempo é sofrimento, não só sofrimento do passado, mas também sofrimento que inclui o futuro — a ideia de chegar, a esperança de algum dia nos tornarmos algo, com sua inevitável sombra de frustração. Para mim, essa ideia de consecução, de "vir a ser" algo no futuro (e isso é tempo psicológico) representa o sofrer máximo — e não o fato de perder um filho, de ser abandonado pela mulher ou marido, ou de se não alcançar êxito na vida. Tudo isso me parece bastante trivial, se se me permite empregar esta palavra, que espero não seja mal compreendida. Há um sofrimento muito mais profundo, que é o tempo psicológico: o pensar que mudarei em anos futuros; que, se se me dá tempo, me transformarei, quebrarei as cadeias do hábito, alcançarei a liberdade, a sabedoria, Deus. Tudo isso exige tempo — e este, para mim, é o sofrimento máximo. Mas, para podermos aprofundar o problema, temos de descobrir porque há sofrimento dentro em nós — essa onda de sofrimento que nos envolve e aprisiona. Compreendendo, primeiramente, o sofrimento existente em nós, talvez possamos também compreender o sofrimento humano coletivo, o desespero da humanidade.

Porque sofremos? E tem fim o sofrimento? Há tantas maneiras de sofrermos! A doença é uma forma de sofrimento — a incapacidade de pensar, por debilidade do cérebro, e tantas outras variedades da dor física. Temos, depois, todo o campo do sofrimento psicológico — o sentimento de frustração, por não se poder realizar nada, ou a falta de capacidade, de compreensão, de inteligência, e também esta constante batalha dos desejos antagônicos, da autocontradição, com suas ânsias e desesperos. E há, ainda, a ideia de nos transformarmos através do tempo, de nos tornarmos melhores, mais nobres, mais sábios — ideia que também encerra infinito sofrimento. E, por último, o sofrimento ocasionado pela morte, o sofrimento da separação, do isolamento, o sofrimento de nos vermos completamente sós, isolados e sem relação com coisa alguma.

Todos conhecemos essas variadas formas de sofrimento. Os eruditos, os intelectuais, os virtuosos, os religiosos de todo o mundo, veem-se tão torturados como nós pelo sofrimento, e se dele existe alguma saída, ainda não a encontraram. Investigar bem profundamente em nós mesmos é saber que esta é a primeira coisa que desejamos: pôr fim ao sofrimento; mas não sabemos de que maneira começar. Estamos muito bem familiarizados com o sofrimento, vemo-lo em outros e em nós mesmos, e ele se acha no próprio ar que respiramos. Ide a qualquer parte, recolhei-vos a um mosteiro, caminhai pelas ruas apinhadas — o sofrimento está sempre presente, declarado ou oculto, expectante, vigilante.

Ora, de que maneira enfrentamos o sofrimento? Que fazemos em relação a ele? E como teremos possibilidade de nos libertarmos dele, não apenas superficialmente, porém totalmente, de modo que se torne completamente inexistente? Estar completamente livre de sofrimento não significa ausência de sentimento, de amor, de compaixão, falta de bondade, de compreensão de outrem. Pelo contrário, na completa liberdade, nesse estado livre de sofrimento, não há indiferença. E uma liberdade que traz grande sensibilidade, receptividade; e, como se alcança essa liberdade? Todos conheceis o sofrimento, não lhe sois estranhos. Ele está sempre presente. E como o enfrentais? Apenas superficialmente, verbalmente?

Tende a bondade de seguir isto. Passo a passo, caminhemos juntos, até o fim. Tentai, nesta manhã, escutar com atenção completa, estar bem apercebidos de vossas reações e penetrar profundamente, junto comigo, este problema do sofrimento. Mas, isto não significa seguir-me — coisa extremamente absurda. Mas se, juntos, pudermos compreender esta coisa, investigá-la ampla e profundamente, então, talvez, ao sairdes daqui, possais olhar para o céu e nunca mais serdes atingidos pelo sofrimento. Então, não mais haverá medo; e, uma vez livres de todo temor, aquela Imensidade poderá tornar-se vossa companheira.

Assim, como enfrentais o sofrimento? Parece-me que, em geral, o enfrentamos muito superficialmente. Nossa educação, nossa instrução, nosso conhecimento, as influências sociológicas a que estamos expostos — tudo isso nos torna muito superficiais. A mente superficial é aquela que se refugia na igreja, em alguma conclusão, conceito, crença ou ideia. Tudo isso são refúgios para a mente em sofrimento. E, quando nenhum refúgio encontrais, construís em torno de vós uma muralha e vos tornais acrimoniosos, duros, indiferentes, ou buscais a fuga em alguma reação neurótica, fácil. Todas essas fugas ao sofrimento impedem a investigação mais aprofundada. Espero me estejais acompanhando, porque é justamente isto o que faz a maioria de nós.

Pois bem; observai um cérebro superficial — ou mente; notai, por favor que, quando digo "mente" ou "cérebro", refiro-me à mesma coisa. Outro dia estivemos considerando a distinção entre "mente" e "cérebro", mas tal distinção é só verbal, sem importância. Empregarei a palavra "mente" e espero que sigais e compreendais o que se irá dizer.

A mente superficial não pode resolver este problema do sofrimento, porque sempre procura evitar o sofrimento. Foge ao fato — o sofrimento — por meio de uma reação fácil e imediata. Se tendes uma forte dor de dentes, naturalmente logo tratais de procurar o dentista, porque desejais livrar-vos dessa dor física; e isso é uma reação normal e correta. Mas, a dor psicológica é muito mais profunda e sutil, e não há médico, não há psicólogo, não há nada que vos possa extingui-la. No entanto, vossa reação instintiva é fugir dela. Tratais de ligar o rádio, de ver televisão, de ir ao cinema — sabeis quantas distrações a civilização moderna inventou. Qualquer espécie de entretenimento, seja uma cerimônia religiosa, seja uma partida de futebol, é essencialmente a mesma coisa. É mera fuga à vossa aflição, ao vosso vazio interior; e é isto o que estamos fazendo em toda a parte: buscando em diferentes formas de entretenimento o auto-esquecimento.

E, também, é a mente superficial que procura explicações. Diz: "Desejo saber porque sofro. Porque devo eu sofrer, e vós não?" Está apercebida de não ter praticado, na vida, nenhuma iniquidade e, assim, aceita a teoria de vidas passadas e a ideia disso que na Índia se chama karma — causa e efeito. Diz ela: "Pratiquei antes alguma ação injusta, e agora estou pagando por ela"; ou "Estou agora fazendo algo de bom, e colherei no futuro os correspondentes benefícios". E assim que a mente superficial se deixa enredar nas explicações.

Observai, por favor, vossa própria mente, observai como vos livrais de vossos sofrimentos com explicações, como vos absorveis no trabalho, em ideias, ou vos apegais à crença em Deus ou numa vida futura. E, se nenhuma explicação ou crença tiver sido satisfatória, recorreis à bebida, ao sexo, ou vos tornais mordaz, duro, acrimonioso, melindroso. Consciente ou inconscientemente, é isso o que de fato ocorre com cada um de nós. Mas, a ferida do sofrimento é muito profunda. Ela vem sendo transmitida de geração em geração, de pais a filhos, e a mente superficial nunca retira a atadura que cobre essa ferida: ela não sabe, em verdade, o que é o sofrimento, não o conhece intimamente. Tem apenas uma ideia a seu respeito. Tem uma imagem, um símbolo do sofrimento, mas nunca se encontra com ele próprio; só se encontra com a palavra "sofrimento". Compreendeis? Ela conhece a palavra "sofrimento", mas não estou certo se conhece o sofrimento.

Conhecer a palavra "fome" e sentir realmente fome, são duas coisas muito diferentes, não? Quando sentis fome, não vos satisfazeis com a palavra "comida". Quereis comida — o fato. Ora, quase todos nos satisfazemos com palavras, símbolos, ideias, e com as nossas reações a essas palavras, de modo que nunca estamos em intimidade com o fato. Quando subitamente nos vemos frente-a-frente com o fato do sofrimento, isso nos causa um choque, e nossa reação é a fuga a esse fato. Não sei se já notastes isso em vós mesmo. Tende a bondade de observar o estado de vossa própria mente, e não fiqueis meramente escutando as palavras que estão sendo proferidas. Nunca nos encontramos com o fato, nunca "vivemos com ele". Vivemos com uma imagem, com a memória do que foi, e não com o fato. Vivemos com uma reação.

Ora, se ao enfrentar o sofrimento a mente tem um motivo, isto é, se deseja fazer algo a respeito do sofrimento, não é possível compreendê-lo, assim como também não é possível haver amor, se há motivo para amar. Entendeis? Em geral, temos um motivo quando encaramos o sofrimento: desejamos fazer alguma coisa em relação a ele. Isto é, suponhamos que eu tenha perdido alguém, por morte; profundamente, psicologicamente, já não posso obter o que dessa pessoa desejava, e vejo-me a sofrer. Se nenhum motivo tenho, ao olhar o sofrimento, ele é ainda sofrimento, ou coisa totalmente diferente?

Estais seguindo?

Digamos que meu filho morre, e eu estou a sofrer porque me vejo só. Nele eu depositara todas as minhas esperanças e, agora, todo o meu mundo desabou. Desejara estabelecer para mim próprio uma certa espécie de imortalidade, uma continuidade, através de meu filho; ele deveria herdar meu nome, meus haveres, continuar com o meu negócio, e o acabar de tudo isso causou-me um choque. Ora, posso compreender o sofrimento em que me acho, se algum motivo existe, que me impele a olhá-lo? E, se existe, atrás do amor, algum motivo, isso é amor? Por favor, não concordeis comigo: observai-vos, apenas. Por certo, não deve haver motivo algum, se desejo compreender o sofrimento, se desejo descobrir a profundeza plena e a significação do sofrimento — ou do amor, pois os dois andam sempre juntos. A morte, o amor e o sofrimento são inseparáveis, estão sempre juntos, e também os acompanha a criação; mas, esta é outra questão, que examinaremos noutra oportunidade. Se desejo compreender profundamente, completamente, o fato do sofrimento, não posso ter um motivo a ditar minha reação ao fato. Só posso viver com o fato e compreendê-lo, quando nenhum motivo tenho. Entendeis? Se não, podeis fazer-me perguntas, depois, a respeito deste ponto.

Se vos "amo" porque podeis dar-me alguma coisa — vosso corpo, vosso dinheiro, vossa lisonja, vossa companhia, o que quer que seja — isso, por certo, não é amor, é? É claro que também vós obtendes algo de mim, e essa permuta, para a maioria de nós, se chama "amor". Sei que encobrimos isso com palavras bonitas, mas, atrás dessa fachada, está a ânsia de ter, possuir, ser dono.

Agora, sofrimento não é autopiedade? De certa maneira, fostes despojado de alguma coisa, vossas relações com outro redundaram em fracasso, não vos preenchestes no sentido de serdes reconhecido como pessoa importante, em atividades de reforma social, em atividades artísticas e tantas outras coisas mais — e todas as correspondentes frivolidades; assim, há sofrimento. Compreender o sofrimento é viver com ele, olhá-lo, conhecê-lo como realmente é; mas não tendes possibilidade de conhecê-lo quando o olhais com um motivo — que supõe o tempo. A mente superficial, incessantemente ocupada em melhorar-se, em lastimar-se, em torturar-se numa dada relação; desejosa de libertar-se do sofrimento sem enfrentar o fato — essa mente prosseguirá sofrendo indefinidamente. O fato é que estais sozinho. Em virtude de vossa educação, de vossas atividades, pensamentos e sentimentos, vos isolastes profundamente em vosso interior e não sois capaz de viver com esse extraordinário sentimento de solidão, não sabeis o que ele significa, porque dele sempre vos abeirais com uma palavra que desperta o medo.

Estais vendo, pois, a dificuldade — as maneiras sutis com que a mente preparou suas vias de fuga, tornando-se incapaz de viver com essa coisa extraordinária que chamamos "sofrimento". Para se ser livre do sofrimento, é necessário compreender, consciente e inconscientemente, todo o seu "mecanismo", e isso só é possível vivendo-se com o fato, olhando-o sem motivo. Deveis perceber as manhas de vossa mente, suas fugas, as coisas aprazíveis a que estais apegado e as coisas desagradáveis de que desejais livrar-vos com rapidez. Cumpre observar o vazio, o embotamento e a estupidez da mente que só trata de fugir. E pouca diferença faz, se se foge para Deus, para o sexo, ou para a bebida, porquanto todas as fugas são essencialmente a mesma coisa. Compreendeis?

Que sucede quando perdeis alguém, arrebatado pela morte? A reação imediata é uma sensação de paralisia, e ao sairdes desse estado vos encontrais com o sofrimento. Ora, que significa esta palavra — "sofrimento"? — A camaradagem, os colóquios ditosos, os passeios e tantas outras coisas agradáveis que fizestes e planejáveis fazer em companhia um do outro — tudo isso vos foi arrebatado num segundo, e ficastes vazio, desamparado, sozinho. E contra isso que estais protestando, é contra isto que vossa mente se revolta: ter ficado subitamente a sós consigo, isolada, vazia, sem amparo. Ora, o que verdadeiramente importa é viver com esse vazio, com ele viver sem reação alguma, sem racionalizá-lo, sem dele fugir com recorrer a médiuns espíritas, à doutrina da reencarnação, e outras futilidades que tais; viver com ele, com todo o vosso ser. E se, passo a passo, examinardes bem o fato, vereis que há um findar do sofrimento — um findar real, e não simplesmente verbal, não o findar superficial, resultante de fuga, de identificação com um conceito ou devotamento a uma ideia. Vereis que nada há para proteger, porquanto a mente está toda vazia e já não reage no sentido de preencher o seu vazio; e quando assim o sofrimento termina completamente, tereis encetado uma outra jornada — jornada sem fim e sem começo. Existe uma imensidade que ultrapassa todas as medidas, mas nesse mundo não ingressareis sem a prévia e total extinção do sofrimento.

PERGUNTA: O bom humor é uma fuga ao sofrimento?[...]

INTERROGANTE: E se sofremos, não por nós mesmos, mas por outro?

KRISHNAMURTI: Antes de examinar esta pergunta, consideremos a anterior: "O bom-humor é uma fuga ao sofrimento?". Se podeis rir-vos de vosso sofrimento, isso é fuga? Há essa coisa terrível que chamamos "sofrimento"; e percebeis a que a reduzistes com vossa pergunta? Quando em sofrimento, talvez possais rir-vos disso, mas o sofrimento continua existente. Vê-se sofrimento, tortura, por todo o mundo: o tormento de não ter o que comer, de temer a morte, de ver e invejar o rico que passa em seu luxuoso carro, a brutalidade, a tirania existente no Oriente, etc. etc. Podeis rir-vos disso? Quer-me parecer que não estais verdadeiramente apercebidos de vosso próprio sofrimento.

A segunda pergunta é: Que dizer do pesar que sentimos pelo sofrimento de outrem? Quando vedes alguém a sofrer, não sofreis também? Quando vedes um cego, um homem que não tem o que comer ou não tem quem o ame, todo envolvido em agonia, luta, confusão, não sofreis com ele? Sei que é coisa sancionada, tradicional, respeitável, o dizer: "Eu sofro juntamente convosco". Mas, porque deveis sofrer? Se tendes pouco, dais desse pouco. Dais vossa compaixão, vossa afeição, vosso amor. Mas, porque sofrer? Se meu filho contrai poliomielite e está à morte, porque devo sofrer? Sei que isso vos parecerá terrivelmente cruel. Se fiz todo o possível por alguém, se lhe dei meu amor, minha compaixão, trouxe-lhe o médico, forneci-lhe os remédios, se fiz sacrifícios (trata-se realmente de "sacrifício"? É esta a palavra justa?), se fiz tudo o que pude, porque devo sofrer? Quando sofro por alguém, isso é sofrimento? Refleti nisto, profundamente; não aceiteis simplesmente o que estou dizendo. Quem vai à Índia e a outros lugares do Oriente, vê imensa pobreza — pobreza de que não se faz a mais ligeira ideia no Ocidente. Quando anda pelas ruas, roça com pessoas cobertas de lepra ou portadoras de outras doenças. Pode uma pessoa fazer tudo o que estiver a seu alcance, mas que necessidade tem de sofrer? O amor sofre? Oh! deveis considerar bem tudo isso. O amor, decerto, nunca sofre.

PERGUNTA: Pode o sofrimento profundo transformar-se em profunda alegria?

KRISHNAMURTI: Podeis fazer uma tal pergunta, quando estais sofrendo? Dizei-me, por favor, de que estais falando?

INTERROGANTE: Falo de o sofrimento transformar-se, por si mesmo, em alegria.

KRISHNAMURTI: Se o sofrimento se transforma em alegria, em que ficais, no final de tudo? Senhor, certas pessoas — feliz ou infelizmente — me vêm ouvindo há quarenta anos, o conheço bem tais pessoas. Temo-nos encontrado aqui e ali, através dos anos. Eu sofro porque elas não têm compreensão? Continuam a fazer perguntas relativas à autoridade, à expressão pessoal, a respeito de Deus — sabeis quantas puerilidades se perguntam. E eu sofro por isso? Sofreria, se dessas pessoas esperasse alguma coisa; ver-me-ia desapontado se me tivesse colocado na situação de assim me sentir, isto é, de considerar-me um homem que está dando algo a outro homem. Espero estejais compreendendo o que quero dizer. Notai, por favor, que o importante não é transformar sofrimento em alegria, ou se o sofrimento pode transformar-se em alegria, ou se devemos sofrer quando vemos outros sofrendo — todas estas questões nenhuma importância têm. O importante é compreenderdes vós mesmo o sofrimento, extinguindo-o assim. Só então, descobrireis o que existe além do sofrimento. De outro modo, ficareis como quem está deste lado da montanha a especular sobre o que existirá do outro lado. Estais apenas a falar, adivinhar. Não atacais o problema, não o enfrentais, não penetrais fundo em vós mesmo, para observar, investigar, compreender; e não o fazeis porque isso, em verdade, significaria que teríeis de abandonar muitas coisas — vossas ideias favoritas, vossas tradicionais, respeitáveis reações.

INTERROGANTE: A gente sofre com a impossibilidade de socorrer a outrem.

KRISHNAMURTI: Se podeis socorrer alguém, material ou economicamente, fazei-lo, e está acabado. Mas, porque sofreis, se não podeis fazê-lo? Se vós mesmo não resolvestes o problema básico, quem sois vós para "socorrer" a outrem? Os sacerdotes, em todo o mundo, estão "socorrendo" os outros — e isso significa o quê? Que estão ajudando a condicionar outros em conformidade com suas próprias crenças e dogmas. Dar de comer, desinteressadamente, aos que têm fome, criar uma comunidade melhor, um mundo melhor — isto é ajuda. Mas dizer-se a outro: "Eu te ajudarei psicologicamente" — que presunção! Quem sois, psicologicamente, para socorrer a outro? Deixai isso aos comunistas, que pensam ser a Providência e ter o poder de ditar a milhões de indivíduos o que devem fazer. Mas, porque deveis sofrer, se não podeis socorrer a outrem? Fazeis tudo o que podeis, que pode não ser muito, para ajudar ou socorrer; mas, porque passar pela tortura do sofrimento? Oh! não estais percebendo, não aprofundastes deveras o problema real.

PERGUNTA: Percebo que, para libertar-se completamente do sofrimento, a pessoa tem de estar totalmente vigilante, plenamente atenta, a todas as horas. Tenho raros momentos de lucidez total, mas no tempo restante vejo-me aprisionado num estado de desatenção: É este meu destino para o resto da vida e, portanto, nunca terei possibilidade de libertar-me do sofrimento?

KRISHNAMURTI: Como diz o interrogante, estar livre do sofrimento é estar totalmente atento. A atenção, em si mesma, é virtude. Mas, infelizmente, não posso estar sempre atento. Estou atento hoje, mas amanhã não estou, e torno a ficar atento depois de amanhã. Durante o período intermediário estou desatento, e ocorrem atividades de toda ordem, das quais não estou plenamente apercebido. Assim, o interrogante indaga: "Vejo-me aprisionado num estado de desatenção, e significa isso que estou condenado a nunca ficar livre do sofrimento?"

Ora, senhor, a ideia de ficar livre para sempre, supõe o tempo, não? Dizemos, "Não sou livre agora, mas, se me tornar atento, serei livre, e eu desejo que essa liberdade perdure até o fim de meus dias". Estamos, assim, interessados na continuidade da atenção. Dizemos: "De alguma maneira devo estar sempre atento, porque, do contrário, estarei sempre em sofrimento". Desejamos que esse estado de atenção prossiga, dia após dia.

Ora, que é que continua? Que é que tem continuidade? Não me respondais, por favor; escutai, apenas, por alguns minutos, e vereis algo extraordinário. Que é que tem continuidade? Por certo, é quando penso numa coisa, agradável ou dolorosa, que ela tem continuidade. Compreendeis? Quando penso num prazer ou numa dor, meu pensar a respeito disso lhe dá continuidade. Se gosto de vós, penso em vós, e meu pensar em vós dá continuidade à imagem aprazível que de vós formei; assim, pela continuidade do pensamento, da associação, da memória, minha reação relativa à vossa pessoa, se torna mecânica, não é verdade? É como a reação do computador, que responde na base da "memória", da associação, na base de uma imensa quantidade de dados armazenados.

Ora, com essa mesma mentalidade, dizemos: "Devo manter a continuidade da atenção". Estais seguindo, senhor? Mas, se vemos o que está implicado tanto na atenção como na continuidade, nunca juntaremos as duas coisas. Não sei se compreendestes o que estou tentando transmitir. O erro que estamos cometendo é o de relacionar a continuidade com a atenção. Desejamos que o estado de atenção tenha continuidade; mas o que terá continuidade será o nosso pensamento relativo a esse estado, e, por conseguinte, isso não será atenção. E o pensamento que dá continuidade a isso que chamamos "atenção"; mas, quando o pensamento dá continuidade à atenção, não há o estado de atenção. Se a isso aplicardes, por inteiro, a vossa mente, e o compreenderdes, descobrireis um peculiar estado de atenção sem continuidade, fora do tempo.

PERGUNTA: Até que ponto é atenuado o sofrimento pela aceitação dele?

KRISHNAMURTI: Porque devo aceitar o sofrimento? Isso é apenas uma outra atividade superficial da mente. Não desejo aceitar o sofrimento, nem atenuá-lo, nem fugir a ele. Quero compreendê-lo, ver o que significa, conhecer-lhe a beleza, a fealdade, a prodigiosa vitalidade. Não desejo convertê-lo numa coisa que ele não é. Aceitando o sofrimento ou dele fugindo, ou, ainda, dele me abeirando com um conceito, uma fórmula, não estou em contato com ele. Assim, a mente que deseja compreender o sofrimento, nada pode fazer em relação a ele; não pode transformar o sofrimento ou amenizá-lo. Para ficardes livre do sofrimento, nada deveis fazer em relação a ele. E porque sempre estamos fazendo alguma coisa, em relação ao sofrimento, que ainda nos encontramos neste estado.

Krishnamurti, Saanen, 18 de julho de 1963,
Experimente um novo caminho


quinta-feira, 19 de abril de 2018

O amor não pode ser separado do sofrimento


O amor não pode ser separado do sofrimento

[...] Para a maioria de nós, a morte é o fulcro do medo. Tememos a morte e, por essa razão, nunca lhe compreendemos o imenso significado. O medo, invariavelmente, deforma a percepção, faz-nos fugir àquilo que tememos; e quando fugimos do fato que é a morte ou ficamos acabrunhados de dor pela morte de um amigo, é-nos impossível aprofundar ou compreender, no seu todo, o problema da morte.

Já discorremos sobre o medo e o sofrimento e penso que devemos estar agora aptos a considerar sensata e profundamente este problema da morte. Como já salientei, o amor, o sofrimento e a morte “andam juntos”, são inseparáveis. Isto não é mero conceito filosófico — não estou “fazendo filosofia”. Mas, se vos investigardes com profundeza, vereis que o amor não pode ser separado do sofrimento e o sofrimento não pode desligar-se da morte, pois os três, na realidade, são um só todo. Também não há nenhuma possibilidade de se compreender a beleza e a imensidão da morte, se existe qualquer vestígio de temor.

Para compreendermos a morte, acho que devemos examinar a questão do pensar negativo e da renúncia. Porém, não tomeis isso por algo teórico, impraticável. É a mente indolente que tudo rejeita como teórico, ou o reduz a um sistema ou padrão de ação, perdendo, assim, a essência real, o significado profundo do que estou dizendo. Eis porque vos peço que escuteis de espírito aberto, amigavelmente, sem concordar nem discordar, sem nenhum motivo. Se formos capazes de escutar com calma e prazer, sem motivo algum, o problema da morte, então talvez apreendamos o pleno significado dessa coisa imensa que está à nossa espera.

Primeiramente, gostaria de considerar junto convosco isso a que se pode chamar “pensamento negativo”. Bem poucos são os que pensam negativamente, e o pensar negativo é a mais elevada forma de pensamento; é ver o falso como falso, ver o que é verdadeiro no falso, e ver o que é verdadeiro na verdade. Não podemos ver o que é falso, se meramente consideramos o falso como oposto do verdadeiro; só podemos ver o que é falso quando não há nenhum contraste, nenhuma comparação. O contraste e a comparação nascem do pensar positivo. Se desejo compreender meu filho, por exemplo, tenho de desistir de comparar; devo olhá-lo assim como é. Se o considero em termos de aprovação ou reprovação — e tanto uma como outra coisa se baseiam na minha aceitação de um padrão estabelecido pela tradição, pela experiência, pela opinião, etc. — nesse caso, o chamado pensamento positivo e a chamada ação positiva me impedem a compreensão. Só podemos compreender quando não há comparação, nem julgamento, mas a simples percepção do fato real; e essa percepção é pensar negativo.

Desejaria explicar um pouco mais esse pensar negativo, porque, para percebermos sua extraordinária beleza e vitalidade, precisamos em primeiro lugar compreender o estado da mente que se acha livre do “conhecido”. Cumpre escutar o que se está dizendo, não como se fosse uma exposição filosófica, ou um sistema que deveis seguir, porém escutá-lo para descobrirdes, por vós mesmo, a verdade contida na questão. Aí sentados, como estais, experimentai realmente o que se está dizendo. Não deixeis para pensar nisso posteriormente — “posteriormente” não significa nada. Para o compreenderdes tendes de vivê-lo agora, no momento presente.

Falei do “pensar negativo” e disse ser a mais elevada forma de pensamento. Nós, em geral, nunca nos achamos num estado no qual digamos “Não sei” — a não ser num sentido muito superficial. Há dois estados de “não saber”. Num deles, a mente diz “Não sei”, mas espera ou procura uma resposta. Nesse estado a mente traduz o que encontra conforme seu próprio fundo ou condicionamento. No escutar, peço-vos experimenteis convosco, para verdes que realmente é assim. Mas há um outro estado em que a mente diz: “Não sei”, e não espera nem procura resposta nenhuma. Está ela, então, completamente vazia, seu estado é de negação total, e só para essa mente é que pode despontar aquela coisa extraordinária denominada “criação”.

Espero ter esclarecido bem os dois estados: o da mente positiva, que diz: “Não sei”, mas quer saber, e o da mente que diz “não sei” e nenhuma resposta está procurando. Em regra, é-nos extremamente difícil acharmo-nos no estado de “não saber”, em que não se procura resposta, porque não gostamos da incerteza. Mas a mente que tem certeza está ainda enredada no “conhecido”, e é necessário estarmos completamente livres do conhecido para compreendermos o incognoscível, que é a morte. Vejamos, pois, o que se implica na negação da “vida do conhecido”.

Para a maioria de nós, a vida é conflito, dor. Há luta incessante, efêmera alegria, muitas pressões e tensões, um fundo de memória acumulada que “responde” a cada desafio, e cuja resposta é sempre inadequada. Há o preenchimento e o sofrimento decorrente do não preenchimento; há avidez, inveja, cólera, ódio, angústia; há o denominado “amor”, uma chama toda envolta na fumaceira do apego, da dependência, do ciúme. O tédio de ir para o emprego diariamente, a familiaridade e o desdém existentes em nossas relações, a constante “corrente subterrânea” do medo — eis a nossa vida, para a qual desejamos continuidade. Nossa vida cotidiana se tornou um hábito. Ela é superficial, vazia, e procuramos preencher esse vazio com crenças e dogmas religiosos, com santos, salvadores, mestres. Nossa vida, com seus apetites sexuais, sua ânsia de fama, seu desejo de conforto, poder, posição, prestígio — é um círculo fechado de esperança e desespero. Eis tudo o que conhecemos; e quando a morte chega, tememos deixar o “conhecido”, deixar esta nossa insignificante vida, porque com ela estamos tão acostumados! Eis porque há conflito entre o viver e o morrer. As posses a que estamos apegados, nosso dinheiro, nossa casa, nossa família, nosso nome, nosso caráter, nossa experiência, nossa lembrança das coisas que fizemos e que não fizemos — tudo isso constitui o “conhecido” e, quando se aproxima a morte, temos medo de deixá-lo. Queremos a continuidade de todas as insignificâncias que conhecemos.

Ora bem. Podeis ter ideias, teorias, a respeito da reencarnação, da ressurreição, ou podeis estar apegados a alguma outra crença, mas a morte é o fim da “vida do conhecido”; e o mais importante é rejeitarmos a “vida do conhecido” — rejeitá-la sem motivo algum. Por “vida do conhecido” entendo nossa vida de mesquinhez, ciúmes, nossa ambição, nossa avidez. Temos de rejeitar totalmente essa vida, cortá-la pela raiz, mas sem haver motivo algum para fazê-lo; porque, se temos algum motivo, esse próprio motivo dá continuidade à “vida do conhecido” e, por consequência, não há possibilidade de se experimentar a extraordinária profundeza da morte.

Em geral, é com amargor que chegamos ao “fim do conhecido”; chegamos ao fim de nosso cativeiro, cheios de ansiedade e medo. Não morremos felizes, calmos, belamente. A ideia da morte nos põe num estado de desespero e, por essa razão, se somos sutis, inventamos uma filosofia do desespero, ou recorremos à “filosofia da esperança”, como o faz a maioria das pessoas chamadas religiosas. Ora, o relevante é rejeitarmos tudo isso por o termos compreendido, quer dizer, rejeitarmos, sem qualquer razão, a vida que conhecemos; e veremos, então, que nossa mente se achará num estado em que começará a libertar-se do “conhecido”. Essa é uma das coisas que precisamos fazer, a fim de podermos compreender a imensidade e a potência criadora da morte.

E agora consideremos a questão do tempo. Há tempo cronológico e tempo psicológico. Não estou falando do tempo cronológico, do tempo marcado pelo badalar do sino daquela igreja. Refiro-me à terminação do tempo psicológico, e essa terminação só pode verificar-se quando a mente não está buscando, obtendo, “chegando”; compreendeu inteiramente esse “mecanismo” e, por conseguinte, não há o amanhã como resultado das experiências de hoje.

O tempo em cujo decurso vamos para o emprego, nos dirigimos a um encontro com alguém, tomamos um ônibus, etc., é coisa completamente diferente do tempo psicológico, que formamos com a esperança; eu não sei, mas saberei; estou enraivecido, mas me encontrarei finalmente num estado de paz; sou nacionalista, estreito, fanático, mas o tempo gradualmente trará a libertação desse estado de mediocridade. O tempo, a mente o utiliza para mover-se, psicologicamente, daqui para ali. E enquanto existir em cada um de nós esse tempo psicológico, não haverá possibilidade de compreendermos o que é a morte.

Para compreender o que é a morte, a mente deve estar completamente livre do medo. Deve achar-se num estado em que diz para si própria: “Eu não sei” — e não procura nem deseja resposta alguma. Esse é o estado livre do conhecido. Significa que a mente já não busca, psicologicamente, preparar-se para, através do tempo, “vir a ser alguma coisa”. Vereis, então, se aí chegardes, que toda ideia de continuidade cessa por inteiro. Morre a mente para todas as suas insignificantes ansiedades, apetites, invejas, vaidades — morre para tudo isso imediatamente, e nesse morrer nenhuma ideia existe de continuidade. Só quando há um fim, pode haver um novo começo. Com o “fim do passado”, desponta algo totalmente novo.

O que chamamos “pensamento” dá à mente a ideia da continuidade — e eis o que é “tempo psicológico”, porquanto todo pensamento resulta de nosso condicionamento, nossa memória, nossa experiência. Todo desafio provoca uma “resposta” desse fundo, e essa resposta é o pensamento “em ação”, por conseguinte, não há espontaneidade, jamais há “resposta” que esteja livre do passado. Mas, quando tem fim o nosso pensamento, nossa avidez, nossa inveja, nossa ambição e sede de poder, toda a estrutura psicológica da sociedade, que constitui o “eu” — quando tudo isso termina, sem motivo algum, a mente se acha num estado de “não saber”, completamente vazia; e só então há morte.

Que sucede, na realidade, quando morreis fisicamente? Deixais tudo para trás; nada podeis levar convosco. Não importa quantos motivos tenhais para viver, com a morte não se discute. Não podeis dizer à morte: “Ainda preciso fazer isto e aquilo, dai-me mais um mês, mais um ano”. Quando a morte chega, ela lá está, absoluta, peremptória. Podeis crer na reencarnação ou noutra forma de ressurreição, no futuro, mas todas as crenças são irrelevantes ao terdes pela frente o fato da morte. E se, interiormente, morrerdes para a estrutura psicológica da sociedade, para todas as acumulações do passado, podereis ver que a morte é criação — não a criação do escritor, do músico, do pintor, do cientista, porém criação que não tem começo nem fim. E, se não estamos nesse estado de criação, que é morte, que é amor, nossa vida pouco significa.

Por conseguinte, não tomeis o que estou dizendo por uma certa filosofia lógica ou superlógica, mas penetrai realmente em vós mesmo, compreendendo-vos completamente. Negai totalmente tudo o que até agora considerastes vida — vossas experiências, vossa ambição, vossa avidez, vossa inveja — e vereis que nesse findar se encontra uma morte que é “criação atemporal” e que, se desejardes dar-lhe nome diferente, se pode chamar “Deus”, o “imensurável”, o “desconhecido”.

Krishnamurti, Saanen, 7 de agosto de 1962,
O homem e seus desejos em conflito

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"Quando você compreende, quando chega a saber,
então traz toda a beleza do passado de volta
e dá a esse passado o renascimento, renova-o,
de forma que todos os que o conheceram
possam estar de novo sobre a terra
e viajar por aqui, e ajudar as pessoas." (Tilopa)



"Nos momentos tranqüilos da meditação, a vontade de DEUS pode tornar-se evidente para nós. Acalmar a mente, através da meditação, traz uma paz interior que nos põe em contato com DEUS dentro de nós. Uma premissa básica da meditação, é que é difícil, senão impossível, alcançar um contato consciente, à não ser que a mente esteja sossegada. Para que haja um progresso, a comum sucessão ininterrupta de pensamentos tem de parar. Por isso, a nossa prática preliminar será sossegar a mente e deixar os pensamentos que brotam morrerem de morte natural. Deixamos nossos pensamentos para trás, à medida que a meditação do Décimo Primeiro Passo se torna uma realidade para nós. O equilíbrio emocional é um dos primeiros resultados da meditação, e a nossa experiência confirma isso." (11º Passo de NA)


"O Eu Superior pode usar algum evento, alguma pessoa ou algum livro como seu mensageiro. Pode fazer qualquer circunstância nova agir da mesma forma, mas o indivíduo deve ter a capacidade de reconhecer o que está acontecendo e ter a disposição para receber a mensagem". (Paul Brunton)



Observe Krishnamurti, em conversa com David Bohn, apontando para um "processo", um "caminho de transformação", descrevendo suas etapas até o estado de prontificação e a necessária base emocional para a manifestação da Visão Intuitiva, ou como dizemos no paradigma, a Retomada da Perene Consciência Amorosa Integrativa...


Krishnamurti: Estávamos discutindo o que significa para o cérebro não ter movimento. Quando um ser humano ESTEVE SEGUINDO O CAMINHO DA TRANSFORMAÇÃO, e PASSOU por TUDO isso, e esse SENTIDO DE VAZIO, SILÊNCIO E ENERGIA, ele ABANDONOU QUASE TUDO e CHEGOU AO PONTO, à BASE. Como, então, essa VISÃO INTUITIVA afeta a sua vida diária? Qual é o seu relacionamento com a sociedade? Como ele age em relação à guerra, e ao mundo todo — um mundo em que está realmente vivendo e lutando na escuridão? Qual a sua ação? Eu diria, como concordamos no outro dia, que ele é o não-movimento.

David Bohn: Sim, dissemos que a base era movimento SEM DIVISÃO.

K: Sem divisão. Sim, correto. (Capítulo 8 do livro, A ELIMINAÇÃO DO TEMPO PSICOLÓGICO)


A IMPORTÂNCIA DA RENDIÇÃO DIANTE DA MENTE ADQUIRIDA
Até praticar a rendição, a dimensão espiritual de você é algo sobre o que você lê, de que fala, com que fica entusiasmado, tema para escrita de livros, motivo de pensamento, algo em que acredita... ou não, seja qual for o caso. Não faz diferença. Só quando você se render é que a dimensão espiritual se tornará uma realidade viva na sua vida. Quando o fizer, a energia que você emana e que então governa a sua vida é de uma frequência vibratória muito superior à da energia mental que ainda comanda o nosso mundo. Através da rendição, a energia espiritual entra neste mundo. Não gera sofrimento para você, para os outros seres humanos, nem para qualquer forma de vida no planeta. (Eckhart Tolle em , A Prática do Poder do Agora, pág. 118)


O IMPOPULAR DRAMA OUTSIDER — O encontro direto com a Verdade absoluta parece, então, impossível para uma consciência humana comum, não mística. Não podemos conhecer a realidade ou mesmo provar a existência do mais simples objeto, embora isto seja uma limitação que poucas pessoas compreendem realmente e que muitas até negariam. Mas há entre os seres humanos um tipo de personalidade que, esta sim, compreende essa limitação e que não consegue se contentar com as falsas realidades que nutrem o universo das pessoas comuns. Parece que essas pessoas sentem a necessidade de forjar por si mesmas uma imagem de "alguma coisa" ou do "nada" que se encontra no outro lado de suas linhas telegráficas: uma certa "concepção do ser" e uma certa teoria do "conhecimento". Elas são ATORMENTADAS pelo Incognoscível, queimam de desejo de conhecer o princípio primeiro, almejam agarrar aquilo que se esconde atrás do sombrio espetáculo das coisas. Quando alguém possui esse temperamento, é ávido de conhecer a realidade e deve satisfazer essa fome da melhor forma possível, enganando-a, sem contudo jamais poder saciá-la. — Evelyn Underhill