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sábado, 21 de abril de 2018

A autopiedade é a raiz de todo sofrimento

A autopiedade é a raiz de todo sofrimento

Esta manhã talvez possamos deixar de lado os nossos problemas — problemas econômicos, problemas atinentes a nossas relações pessoais, problemas de doença, e também os mais importantes que nos rodeiam, de ordem nacional e internacional: a guerra, a fome, as revoltas populares, etc. Não queremos fugir deles, mas se pudermos pô-los de parte, por esta manhã, pelo menos, talvez possamos capacitar-nos para considerá-los de maneira diferente com a mente mais fresca, percebimento mais penetrante — e, assim, atacá-los de maneira nova, com maior vigor e clareza.

A mim me parece que só o amor pode produzir a revolução correta, e que qualquer outra forma de revolução — isto é, revolução baseada em teorias econômicas, em ideologias sociais, etc. só pode acarretar mais desordem, mais confusão e aflição. Não há esperança de resolvermos o básico problema humano mediante reformas e reorganizações parciais. Só quando há um grande amor podemos ter uma visão total e, por conseguinte, uma ação plena, em vez dessa atividade fragmentária, parcial, que atualmente chamamos revolução, e que a nada conduz.

Hoje desejo falar sobre uma coisa que abarca a totalidade da vida — algo que não é fragmentário, porém constitui um acesso total à existência humana; e, para podermos entrar com certa profundeza nesta matéria, devemos libertar-nos de todas as teorias, e crenças, e dogmas. Em geral, aramos sem cessar o solo da mente, mas parece que nunca semeamos; analisamos, examinamos, “desmontamos” as coisas, mas não compreendemos o movimento da vida.

Pois bem; penso haver três coisas que devemos compreender profundamente, para podermos sentir o movimento total da vida. São elas: o tempo, o sofrimento e a morte. Compreender o tempo, compreender o pleno significado do sofrimento, e “viver com a morte” — tudo isso exige a clareza do amor. O amor não é uma teoria, e tampouco um ideal. Ou uma pessoa ama, ou não ama. Ele não pode ser ensinado. Não podeis tomar lições para aprender a amar, nem nenhum método existe mediante cuja prática diária chegueis a saber o que é o amor. Mas, eu acho que se pode chegar ao amor, natural, fácil, espontaneamente, quando se compreende realmente o significado do tempo, a extraordinária profundeza do sofrimento, e a pureza que vem com a morte. Assim, talvez possamos considerar — realmente, e não teórica ou abstratamente — a natureza do tempo, a natureza ou estrutura do sofrimento, e essa coisa extraordinária que chamamos “a morte”. Essas três coisas não são separadas. Se compreendermos o que é o tempo, compreenderemos o que é a morte, bem como o que é o sofrimento. Mas, se considerarmos o tempo como coisa separada do sofrimento e da morte, e tentarmos ocupar-nos dele isoladamente, nosso acesso será então fragmentário e, por conseguinte, nunca perceberemos a maravilhosa beleza e a vitalidade do amor.

Vamos, pois, tratar do tempo, não como abstração, porém como coisa real — sendo o tempo duração, a continuidade da existência. Há o tempo cronológico, horas e dias que se estendem a milhões de anos; e foi o tempo cronológico que produziu a mente com a qual funcionamos. A mente é um resultado do tempo como continuidade da existência, e o seu aperfeiçoamento ou polimento através dessa continuidade chama-se progresso. Tempo é também a duração psicológica criada pelo pensar como um meio de preenchimento. Servimo-nos do tempo para progredir, preencher-nos, “vir a ser”, produzir um certo resultado. De ordinário, o tempo é para nós uma escada que leva a alguma coisa de maior importância — ao desenvolvimento de certas faculdades, ao aperfeiçoamento de determinada técnica, à realização de um fim, de um objetivo, louvável ou não; assim, julgamos que o tempo é necessário para a compreensão do verdadeiro, de Deus, daquilo que excede todo o esforço humano.

Em regra, considera-se o tempo como o período de duração entre o momento presente e um certo momento no futuro, quando teremos realizado nossos alvos; e desse tempo nos servimos para cultivar o caráter, livrar-nos de um certo hábito, desenvolvermos um músculo ou a visão das coisas. Há dois mil anos a mente cristã vem sendo condicionada para crer num Salvador, no inferno, no céu, e, no Oriente, idêntico condicionamento se verifica há muito mais tempo. Pensamos que o tempo é necessário para tudo o que temos de fazer ou compreender, e, por conseguinte, ele se torna uma carga, uma barreira ao percebimento real; impede-nos de ver imediatamente a verdade relativa a qualquer coisa, porque pensamos que para isso o tempo é necessário. Dizemos “amanhã, ou daqui a anos, compreenderei essa coisa com extraordinária clareza”. No momento em que admitimos o tempo, estamos cultivando a indolência, aquela peculiar preguiça que nos impede de ver prontamente a coisa tal como é.

Supomos que necessitamos de tempo para romper o condicionamento que a sociedade — com suas religiões organizadas, seus códigos de moralidade, seus dogmas, sua arrogância e seu espírito de competição — nos impôs. Pensamos em termos de tempo, porque o pensamento é produto do tempo. O pensamento é reação da memória — sendo memória o fundo que foi acumulado, herdado, adquirido pela raça, pela comunidade, pelo grupo, pela família, e pelo indivíduo. Esse fundo é produto do mecanismo aditivo da mente, e sua acumulação levou tempo. Para a maioria das pessoas, a mente é memória, e sempre que há um desafio, uma exigência, é a memória que “responde”. Sua “resposta” é como a “resposta” do cérebro eletrônico, que funciona por associação. E sendo a reação da memória, o pensamento é, por sua própria natureza, produto do tempo e o criador do tempo.

Notai que o que estou dizendo não é uma teoria, uma coisa em que deveis refletir. Sobre ela não precisais refletir, porém, antes vê-la, porque assim é. Não vou entrar nos seus complicados pormenores, mas já vos apontei os fatos essenciais, e vós os vedes ou não os vedes. Se me estais seguindo, não apenas no sentido verbal, discursivo ou analítico, porém vendo realmente que assim é, percebereis como é enganador o tempo; e a questão é então — se o tempo pode parar. Se somos capazes de ver todo o mecanismo de nossa própria atividade — ver sua profundeza, sua superficialidade, sua beleza, sua fealdade — não amanhã, porém imediatamente, então esse próprio percebimento é a ação que destrói o tempo.

Se não compreendermos o tempo, não compreenderemos o sofrimento. Eles não são, como procuramos torná-los, duas coisas diferentes. Exercer um cargo, estar com a família, gerar prole — não são incidentes separados, isolados. Pelo contrário, estão profunda e intimamente relacionados; não podemos perceber essa extraordinária intimidade de relação sem a sensibilidade oriunda do amor.

Para compreender o sofrimento, devemos, com efeito, compreender a natureza do tempo e a estrutura do pensamento. O tempo tem de parar, porque, do contrário, ficaremos meramente repetindo as informações que temos acumulado, exatamente como um cérebro eletrônico. A menos que o tempo termine — o que significa o fim do pensamento — haverá mais repetição, ajustamento, modificação contínua. Nunca existirá nada novo. Somos cérebros eletrônicos “glorificados” — um pouco mais independentes, talvez, mas sempre máquinas, em nossa maneira de funcionar.

Assim, para compreender a natureza do sofrimento e como ele pode terminar, temos de compreender o pensamento. Os dois não existem separadamente. Ao compreender-se o tempo, atinge-se o pensamento; e a compreensão do pensamento é a extinção do tempo e, por conseguinte, o término do sofrimento. Se isto está perfeitamente claro, podemos então olhar o sofrimento e, não, adorá-lo, como o fazem os cristãos. O que não compreendemos, adoramos ou destruímos. Colocamo-lo num templo, numa igreja, ou num “canto escuro” da mente, onde lhe rendemos um culto de temor; ou desprezamo-lo e repudiamo-lo; ou fugimos. Mas aqui não estamos fazendo nada disso. Vemos que há milênios o homem luta com o problema do sofrimento, sem ter podido resolvê-lo até agora; assim, deixou-se calejar por ele, aceitou-o, considerando-o uma parte inevitável da vida.

Ora, o mero aceitar do sofrimento não só é insensato, mas também concorre para embotar-nos. Faz a mente insensível, brutal, superficial, e a vida, por conseguinte, se torna falsa, um mero mecanismo de trabalho e de recreação. Leva o homem uma existência movimentada, como negociante, cientista, artista, sentimentalista, como pessoa dita religiosa, etc. Mas, para compreendermos o sofrimento e dele nos libertarmos, temos de compreender o tempo e, por conseguinte, o pensamento. Não se pode negar o sofrimento ou fugir dele, recorrendo a distrações, a igrejas, a crenças organizadas; tampouco devemos aceitá-lo e divinizá-lo; e, para se evitar isso, requer-se muita atenção, que é energia.

O sofrimento está enraizado na autopiedade. Para o compreendermos, cumpre extinguir essa autopiedade. Não sei se já observastes como tendes pena de vós mesmo ao dizerdes; “Estou sozinho no mundo!” — Havendo autopiedade, está preparado o solo em que o sofrimento lançará suas raízes. Ainda que justifiqueis a autopiedade, ainda que a racionalizeis, que procureis poli-la, revesti-la com ideias, ela continuará existente, minando-vos profundamente. Assim, para que o homem possa compreender o penar, deverá livrar-se dessa brutal e egocêntrica trivialidade que é a pena de si mesmo. Podeis sentir autopiedade por motivo de doença, pela morte de um ente querido, ou por não vos terdes realizado e, por conseguinte, vos sentirdes frustrado; mas, independentemente de sua causa, a autopiedade é a raiz do sofrimento. E, uma vez livre desse sentimento, podereis encarar o sofrer sem lhe renderdes culto, sem dele fugir, ou sem lhe dardes uma significação sublime, espiritual, como, por exemplo, dizendo que deveis penar para achar Deus — o que é puro contrassenso. Só a mente embrutecida, estúpida, se conforma com a amargura. Por conseguinte, não devemos aceitá-la, em nenhuma forma, nem rejeitá-la. Ao libertar-vos da autopiedade, vos despojais de toda a sentimentalidade e emocionalismo que ela suscitou, e estareis pronto para olhar o sofrimento com total atenção.

Espero que o estejais fazendo, junto comigo, nesta viagem, e não aceitando apenas verbalmente os dizeres do orador. Tende cuidado com a passiva aceitação do sofrimento, a racionalização dele, as escusas, a autopiedade, a sentimentalidade, a atitude emocional ante o amargor, porquanto tudo isso é dissipação de energia. Para compreenderdes o sofrimento, deveis aplicar-lhe toda a atenção, e nesta atenção não há lugar para escusas, para sentimento, racionalização, não há lugar para nenhuma espécie de comiseração própria.

Suponho estar sendo bem claro ao ressaltar a necessidade de darmos inteira atenção ao sofrimento. Nessa atenção, não há esforço para resolvê-lo ou compreendê-lo. A pessoa só está olhando, observando. Todo esforço para compreender, racionalizar ou fugir, impede aquele estado imparcial de completa atenção, no qual pode ser compreendida essa coisa chamada sofrimento.

Não estamos analisando, nem investigando analiticamente o sofrimento com o intuito de dele nos livrarmos, pois isso é apenas mais uma artimanha mental. A mente que o analisa supõe tê-lo compreendido e que está liberta. Puro contrassenso. Podeis libertar-vos de determinada forma de sofrimento; mas ele ressurgirá de outra maneira. Estamos falando do sofrimento em sua totalidade, o sofrimento em si, seja vosso, seja meu ou de outro qualquer ente humano.

Como disse, para se compreender o sofrimento é necessário compreender o tempo e o pensamento. Requer-se um percebimento não seletivo de todas as formas de fuga, de toda a autopiedade, de todas as verbalizações, de modo que a mente se aquiete diante de uma coisa que deve ser compreendida. Não há então divisão entre o observador e a coisa observada. Não há aquele que — como observador, como pensador — observa o sofrimento; só há o estado de sofrimento. Esse “estado de sofrimento”, não-dividido, é necessário, porque, quando olhais o sofrimento como observador, criais o conflito que embrutece a mente e dissipa a energia e, por conseguinte, não há atenção.

Quando a mente compreende a natureza do tempo e do pensamento, quando desarraigou a autopiedade, a sentimentalidade, o emocionalismo, etc., então o pensamento — que criou toda essa complexidade — termina, e o tempo já não existe; assim, ficais direta e intimamente em contato com essa coisa a que chamais sofrimento. O sofrimento só se conserva ao fugirmos dele, ao desejarmos evitá-lo ou divinizá-lo. Mas, quando não houver nada disso, porque a mente estará em direto contato com o sofrimento e, por conseguinte, completamente silenciosa em relação a ele, descobrireis, então, que ela dele se libertou. Desde que estejamos em direto contato com o penar, este fato, por si só, dissolve todos os fatores que o produzem, inerentes ao tempo e ao pensamento. E, assim, cessa de todo o sofrer.

Como, agora, compreender essa coisa que chamamos “a morte”, e que tanto nos assusta? O homem tem criado muitas maneiras tortuosas de considerar a morte — divinizando-a, negando-a, apegando-se a inumeráveis crenças, etc. Mas, para compreender a morte, deveis por certo considerá-la de maneira nova; porque em verdade nada sabeis a respeito da morte, sabeis? Podeis ter visto pessoas morrerem e ter observado em vós mesmo ou em outro a aproximação da velhice, com a concomitante deterioração. Sabeis que há o findar da vida física, por velhice, acidente, doença, assassínio ou suicídio, mas não conheceis a morte como conheceis o sexo, a fome, a crueldade, a brutalidade. Ignorais o que é morrer e, enquanto não o souberdes, a morte nenhuma significação terá. O que temeis é uma abstração, algo que não conheceis. Desconhecendo a plenitude da morte, ou o que ela implica, a mente tem-lhe medo — medo do pensamento, e não do fato que ela desconhece.

Vejamos isso com certa profundeza.

Se morrêsseis repentinamente, não teríeis tempo para pensar na morte e temê-la. Mas, há um intervalo entre agora e o momento em que se apresentará a morte, e durante esse intervalo tendes bastante tempo para vos preocupar e para racionalizar. Desejais “transportar” para a próxima vida — se há uma próxima vida — todas as ansiedades e desejos e conhecimentos que tendes acumulado, e, assim, inventais teorias ou credes numa certa espécie de imortalidade. Considerais a morte algo separado da vida. A morte está lá e vós aqui, ocupado em viver — em guiar vosso carro, em ter relações sexuais, em alimentar-se, em exercer vossa atividade, acumular conhecimentos, etc. Não desejais, morrer porque ainda não concluístes o livro que estais escrevendo, ou porque ainda não sabeis tocar violino com “virtuosidade”. Por isso, separais a vida da morte, dizendo: “Agora compreenderei a vida, e oportunamente compreenderei a morte”. Mas, as duas não estão separadas — e eis o que importa compreender em primeiro lugar. A vida e a morte constituem um todo, estão intimamente relacionadas, e não podeis isolar uma delas e procurar compreendê-la separadamente da outra. Isso é o que em regra fazemos. Dividimos a vida em compartimentos estanques. Se sois economista, então a ciência econômica é tudo o que vos interessa, e nada sabeis acerca do resto. Se sois médico especialista de nariz e garganta ou do coração, viveis anos seguidos neste limitado campo de conhecimento e, quando morreis, este é o vosso céu.

Como disse, considerar a vida fragmentariamente é viver em constante confusão, contradição, aflição. Tendes de ver a totalidade da vida; e só se pode ver essa totalidade quando há afeição, quando há amor. O amor é a única revolução que produzirá a ordem. É inútil adquirir constantes conhecimentos de Matemática, Medicina, História, Economia, e depois reunir todos esses fragmentos; isso não resolverá coisa alguma. Sem o amor, a revolução só conduz ao endeusamento do Estado ou à adoração de uma imagem, ou a inumeráveis e tirânicas perversões, e à destruição do homem. Do mesmo modo, quando a mente, medrosa que é, põe a morte à distância, separando-a do viver diário, tal separação só serve para gerar mais medo, mais ansiedade, e uma multiplicidade de teorias a respeito da morte. Para se compreender a morte, é necessário compreender a vida. Mas a vida não é continuidade do pensamento, continuidade essa responsável por todas as nossas aflições.

Assim, pode a mente trazer a morte, da distância em que se acha, para o imediato (o agora)? Entendeis? A morte, com efeito, não se acha em nenhum lugar remoto: ela está aqui e agora. Está presente quando falamos, quando nos divertimos, quando escutamos, quando nos dirigimos ao escritório. Está aqui a cada instante da vida, exatamente como o amor. Percebendo-se esse fato, deixa de haver medo à morte. Tememos, não o desconhecido, porém a perda do conhecido. Tememos perder nossa família, ficar só, sem companheiros; tememos a dor da solidão, ficar privado das experiências, dos haveres acumulados. É o conhecido que temos medo de largar. O conhecido é memória — memória a que nos apegamos. Mas a memória é apenas uma coisa mecânica — como os computadores o provam sobejamente.

Para compreendermos a beleza e a extraordinária natureza da morte, precisamos livrar-nos do conhecido. No morrer para o conhecido, está o começo da compreensão da morte, porque a mente então se torna fresca, nova, e nenhum medo existe; por conseguinte, pode-se entrar naquele estado que se chama “a morte”. Assim, do começo até o fim, a vida e a morte são inseparáveis. O sábio compreende o tempo, o pensamento e o sofrimento, e só ele é capaz de compreender a morte. A mente que morre a cada instante, que não armazena experiência, é imaculada e, por conseguinte, se acha num perene estado de amor.

Desejais fazer perguntas a este respeito, para entrarmos em mais pormenores?


PERGUNTA: Qual a diferença entre o vosso pensar e o pensamento cristão sobre o amor?

KRISHNAMURTI: Sinto não poder dizê-lo. Eu não penso no amor. Não se pode pensar no amor; se o fazeis, não se trata de amor. Como deveis saber, há enorme diferença entre o sexo, e o pensamento a respeito do sexo, que estimula a sensação. A mente que se ocupa da mera satisfação sexual, que pensa no sexo, que se excita por meio de imagens, de figuras, de pensamentos, é de qualidade destrutiva. Já “a outra coisa” (o amor) difere muito: sentimo-la sem a interferência do pensamento. Analogamente, não se pode pensar a respeito do amor, de acordo com o padrão de nossa memória ou conforme o que tendes ouvido dizer: que ele é bom, profano, sagrado, etc. Porque esse pensar não é amor. O amor não é cristão nem hinduísta, não é oriental nem ocidental, não é vosso nem meu. Só quando uma pessoa se liberta de todas essas ideias de nacionalidade, raça, religião, etc. — só então saberá o que é amar.

Vede, estive falando nesta manhã acerca da morte, a fim de bem a compreenderdes — não apenas enquanto estais aqui, neste pavilhão, mas durante a nossa vida — e por conseguinte ficardes livre do sofrimento, livre do medo, e saberdes realmente o que significa morrer. Se agora, e nos dias vindouros, vossa mente não continuar vigilante, ilesa, sã, então o mero escutar de palavras será completamente fútil. Mas, se vos achais profundamente atento, ciente de vossos pensamentos e sentimentos; se não estais interpretando o que diz o orador, porém observando realmente, por vós mesmo, enquanto ele vai descrevendo e penetrando o problema, então, após sairdes daqui, vivereis — não só com exultação, mas também com a morte e o amor.

Krishnamurti, Saanen, 28 de julho de 1964,

A mente sem medo



quinta-feira, 12 de abril de 2018

Sofrimento é memória mais autopiedade


Sofrimento é memória mais autopiedade

Nesta tarde pretendo falar sobre a indolência, o sofrimento, a ação e, se houver tempo, sobre a beleza.

As ideias ou teorias não transformam de fato a mente e o coração. Não há persuasão, não há castigo ou recompensa que possa impedir a astúcia da mente e a crueldade do coração. Não há crença ou dogma capaz de dissuadir a mente, fazê-la abandonar o curso que está seguindo, para alcançar aquilo que deseja. E seria lamentável se cada um de nós saísse destas reuniões levando uma taça cheia de cinzas — de meras ideias e palavras, que nenhuma transformação produzem. E a transformação só é possível quando percebemos ou vemos o fato real.

Muito temos discutido, analisado, citado, argumentado pró ou contra; entretanto, continuamos exatamente como éramos: embotados, insuficientes, insensíveis, completamente absorvidos em nossos próprios compromissos e problemas. E não há quantidade de reflexão, de ansiedade ou de temor que possa dissolver nossos problemas. Vou falar a respeito desses problemas, como já falei a respeito do medo, do poder, da posição, e da autoridade. Não nos interessam ideias; propaganda não revela o fato, e vós tendes de compreender o fato. Nem o templo, nem o livro, nem o guru pode ensinar-vos a olhar; mas, vós tendes de olhar-vos, tendes de ser vossa própria luz; e para serdes vossa própria luz, não deveis seguir ninguém. Nenhuma autoridade há quando sois vossa própria luz — não tendes guru, não sois um seguidor. Ao serdes vossa própria luz, sois uma entidade criadora. Mas não há possibilidade de criação se existe qualquer forma de indolência.

A indolência é a essência da autopiedade. Nós somos preguiçosos, indolentes, dados a pensar de maneira negligente, sem exatidão. Nossa mente está tão confusa como nosso coração e igualmente embotada. E, para compreender a indolência — não “como” livrar-se da indolência — cumpre aprender o que ela é.

Como assinalamos em nossa última reunião, é muito mais importante aprender do que simplesmente resolver um problema. Se puderdes aprender a respeito de um problema, tê-lo-eis resolvido. Vamos aprender acerca da indolência, dessa extraordinária indolência de nossa mente; não vamos acumular conhecimentos sobre a indolência, conhecimentos que se tornam puramente verbais. O aprender implica investigação. Mas, para investigar, a mente deve estar livre para descobrir; e não há liberdade, se vos limitais a aquiescer, a concordar ou negar, ou a defender-vos atrás de uma barreira de palavras e conclusões. Essas coisas são distrações que impedem a clareza necessária ao aprender. Notai, pois, que vamos aprender juntos a respeito da indolência. Isso concerne principalmente aos que vivem neste clima, que têm estado sujeitos a várias formas de tirania e autoridade, e que facilmente deslizam para a letargia mental, a indolência, facilmente aceitam atitudes e valores. Assim, impende perceber que, para aprender, necessita-se de liberdade para investigar.

Nós vamos aprender acerca dessa qualidade, dessa coisa chamada “indolência”. Como disse, a essência da indolência é a autopiedade. Vou estender-me em considerações sobre esta asserção, porquanto, se não compreendermos este problema, esta questão da autopiedade, não compreenderemos o problema seguinte, ou seja, o sofrimento. É justo ser indolente, é bom ser indolente — no sentido de não estarmos incessantemente ativos, como formigas, ou sempre a fazer alguma coisa, como um macaco. A mente da maioria de nós está perpetuamente ocupada com alguma coisa: palavras, problemas, ideias, resultados; sempre a tagarelar entre si, nunca inativa, nunca quieta — sempre sob tensão. E a mente que não é indolente, que não é preguiçosa, mas tem aquela placidez e sua essencial suavidade, percebe num clarão o que é verdadeiro. Essa inatividade, essa “indolência”, essa consciência de um lazer infinito, não deve ser confundida com o conforto. A mente que tem lazer é uma mente excepcional, porquanto não está envolvida na rede da ação, não está perenemente a tagarelar entre si ou a respeito de alguma coisa.

Há, pois, uma qualidade de lazer, de quietude, um “senso” de indiferença, que é necessário. Mas esse estado de quietude, esse “senso” de ilimitado vazio, em que pode ocorrer um lampejo do real — só é possível quando se compreende não só a indolência do corpo, mas também a indolência com que aceitamos ideias, pensamentos, asserções e conclusões, que se tornam as rotinas que ficamos seguindo, tal como um carro elétrico sobre trilhos. E não sabemos, nem sequer estamos apercebidos dessas rotinas. Isso é indolência: não saberdes, não estardes apercebidos de que vosso pensamento, vosso sentimento e vossas atividades “correm” perpetuamente pelas mesmas “linhas”, pelas mesmas rotinas. O mesmo que, aos vinte e cinco ou trinta anos, pensáveis a respeito de uma coisa, pensais ainda hoje. Não há alteração, não há rompimento: nada novo, nada fresco.

E, quanto à preguiça do corpo, à indolência que a maioria das pessoas tem — essa, todos se sentem capazes de ativar, pelo disciplinamento corporal, pelo forçar, impelir, compelir o corpo. Mas, toda forma de compulsão gera conflito; e a mente em conflito com o corpo não dá energia ao corpo, ao organismo: só cria conflito; e esse conflito não é a “qualidade” geradora da energia necessária para ativar o corpo.

Nessas condições, a disciplina, o controle, o forçar o organismo a submeter-se, a erguer-se do leito, a executar várias coisas para “positivar” sua atividade — tudo isso só cria resistência. E onde há resistência, aí há contradição; e é essa contradição que, incompreendida, gera a indolência. Quem estudou e observou o próprio corpo deve saber quando ele necessita e quando não necessita de repouso. Deve saber que não há necessidade de compelir, forçar, impelir o corpo a fazer determinada coisa; o corpo a fará, natural, espontânea, facilmente. Mas é preciso compreender todo o mecanismo da indolência mental. Se um homem se excede no comer, e é indulgente consigo mesmo a vários respeitos, isso denota um estado de extraordinária lassidão, porque sua mente está adormecida; ele se deixa, simplesmente, levar por tal ou qual apetite, e isso se torna hábito, e esse hábito não é mais do que a “continuidade”, sem nenhuma reflexão, do que foi.

Assim, importa compreender o mecanismo da mente que se tornou indolente. Há indolência quando há ajustamento, estabilização num “cantinho” que talhastes para vós mesmo e vossa família e onde vos sentis seguro, emocional e mentalmente — apercebido de terdes alcançado um certo resultado e felicitando-vos por esse êxito. Isso indica que alcançastes um ponto em que vos sentis bem seguro, livre de toda perturbação. É então que começa a indolência. E tal indolência é a essência da autopiedade.

Sabeis o que entendo por “autopiedade”? Autopiedade significa o íntimo sentimento de não poder contar com ninguém; ter intimamente o sentimento de estar abandonado, desprezado; de não ser amado, embora ame; de ter fracassado completamente; de que é necessário ter algum êxito; de ser isto ou de não ser aquilo — a perene “asserção” do próprio “eu”! Em vossas lágrimas, em vossas alegrias, em vossa frustração, em vossas agonias, está o fio, o fio inquebrável, da autopiedade, atravessando toda a vossa vida; e isso é indolência. Foi aí que começastes a submeter-vos, a estabilizar-vos, a “engordar” mentalmente. E todos buscam, nessa indolência, a segurança. E, uma vez firmado esse sentimento de segurança psicológica, ele se torna o sentimento “de onde” agis, “de onde” existis, “de onde” se nutre a vossa vida.

Como disse, não vos limiteis a escutar palavras, mas tratai de observar vossa própria mente, vosso próprio estado de consciência; procurai ver em que grau de exatidão as palavras representam vosso próprio estado; observai vossa própria mente em funcionamento. Então o que estou dizendo terá significação; mas, se vos estais amparando unicamente nas palavras, neste caso estais vazios; e vossas taças jamais se encherão, ainda que fiqueis a buscar por toda a eternidade. Assim, escutar é, com efeito, a observação de vossa própria mente; ver é, com efeito, observar o movimento de vosso próprio pensamento. Porque é o pensamento, a palavra, que vos impede o escutar, o ver. E se desejais compreender, em sua inteireza, o problema do sofrimento, o problema da ação, deveis compreender a autopiedade.

O sofrimento é, ao mesmo tempo, a ação própria e a ação recíproca da autopiedade e da memória. Vós sofreis por terdes perdido alguém; sofreis porque alguém não vos ama; sofreis porque não conseguis um emprego melhor; sofreis porque alguém é mais belo, mais inteligente, mais ativo, mais sensível do que vós. Sois ciumento, invejoso, ávido. Tudo isso são sinais de conflito e de sofrimento. O sofrimento não é uma “crise tremenda” causada por algo incontrolável ou incompreensível. Vós podeis transformar vossa mente de maneira completa, podeis ficar de todo livre do sofrimento e nunca mais serdes por ele atingido.

Se nesta tarde ficardes escutando — escutando realmente, sem esforço algum, sem o desejo de vos livrardes do sofrimento — se puderdes escutar como que num “encantamento”, com naturalidade, com prazer, assim como contemplais o entardecer, o esvoaçar de uma ave ou de uma folha — como se o que escutais não se relacionasse convosco — vereis que a carga do sofrimento será retirada de vossos ombros, não momentaneamente, não por um dia: estareis livre do sofrimento.

Se puderdes compreender o sofrimento — o fato, e não as ideias que formais e nutris a respeito do sofrimento — tereis descoberto o meio de fazê-lo cessar. Existe a ideia do sofrimento e existe o fato real, o sofrimento; são duas coisas diferentes. Em geral, temos a ideia do sofrimento. Se meu filho morre, se perco minha mulher, se alguém não me ama, se não são tão inteligente como vós, a ideia importa mais do que o fato. Não sabemos enfrentar o fato de que há sofrimento (não a ideia de sofrimento).

Por favor, procurai compreender a diferença entre as duas coisas. Porque olhamos o sofrimento através da ideia e, formando ideias a seu respeito, não o olhamos verdadeiramente. O nutrir ideias sobre o penar é autopiedade, é reação da memória e, por conseguinte, não é o sofrimento. A ideia de alimento não é o alimento. Mas a maioria de nós vive de ideias, herdadas ou adquiridas; essa é nossa nutrição mental, com que nos satisfazemos. Por isso, nossa mente se torna embotada, insensível, desatenta, vazia.

Perceber o fato do sofrimento é “estar fora” da autopiedade, livre dela. Autopiedade é uma ideia que temos acerca de nós mesmos. “Porque isso acontece a mim, e não a vós; porque não sou tão poderoso, tão famoso, tão importante, tão popular como sois; porque me foi arrebatado meu filho, minha mulher; porque fui por ela abandonado; porque não sou amado?” — Tudo isso são ideias, nascidas da autopiedade, reações da memória. E com essa autopiedade, com essa reação da memória, olhamos aquilo que consideramos “sofrimento”. O que olhamos, por conseguinte, não é o sofrimento, porém, sim, o movimento da autopiedade. Isso poderá ferir-vos os ouvidos, mas é o fato — o fato psicológico. Se disserdes a uma pessoa que perdeu o pai, a mulher, o irmão, quem quer que seja: “Olhai o fato, não vos deixeis dominar por vossa autopiedade” — essa pessoa vos considerará muito cruel, sem coração, sem compaixão, sem amor.

O fato é que ninguém está livre do sofrimento. Se observardes a vós mesmo em sofrimento, vereis que, só compreendendo-lhe o mecanismo integral, podeis deixar de sofrer. Ao observardes vosso próprio sofrimento, vereis quão estreitamente ele está relacionado com a autopiedade e com todas as lembranças de coisas passadas. São as coisas que passaram e a lembrança que delas guardamos, que geram a autopiedade e o sentimento de solidão. E, assim, o penar continua, dia após dia, mês após mês, até morrerdes. Levantastes em torno de vós mesmo uma muralha de autopiedade, uma muralha de lembranças frustradas. Estais vivendo num túmulo e vossa vida perdeu toda a significação. Daí, investigais o sofrimento, daí ledes livros, daí procurais descobrir como dele escapar.

Por isso, tendes vossos deuses, vossos livros, vossos cinemas, vossas diversões. Todas essas coisas estão no mesmo nível. Se recorreis a uma bebida ou se preferis ir ao templo — é a mesma coisa. Tudo são vias de fuga, nascidas de uma mente que é a própria essência da autopiedade. Não podeis livrar-vos da autopiedade; não digais: “Como me livrarei da autopiedade?” Isso é outra forma de preocupação com vós mesmo e, portanto, autopiedade. O mais que podeis fazer é procurar conhecer o que vos impede de olhar o fato — o sofrimento; o fato — a angústia, a confusão, a desdita que vos envolvem.

Como olhais o fato do sofrimento? Quando o olhais sem autopiedade, sem a recordação das coisas que passaram, há então sofrimento? Se não houvesse a lembrança de meu filho, de como era belo, feliz, o que poderia tornar-se; se não me estou imolando à lembrança dele; se, por meio dele, não “imortalizar” a mim próprio; se nele não depositei tudo — minha própria pessoa, minhas ideias, minhas esperanças, meus temores, minhas frustrações — tudo lembranças de coisas pretéritas — e se a autopiedade e a lembrança das coisas que passaram não existem, há então sofrimento? Não posso, então, olhar o fato com uma mente de todo diferente? Essa mente não é indolente; está livre das coisas que produzem a indolência, a preguiça, a inércia. Isto é, a autopiedade e a lembrança são as causas que tornam a mente embotada; são elas que impedem o completo e instantâneo percebimento do fato. Assim, quem deseja compreender o sofrimento deve compreender todo esse mecanismo de ação egocêntrica e “expansível”, e o mecanismo do hábito, da memória. Vós sois o que sois — um campo de batalha de vossas lembranças, e nada mais. Retirem-se as lembranças da infância, da juventude, de todas as coisas que tendes adquirido, de quantas tendes experimentado e sofrido, das coisas que pensais que sois — e que restará de vós? É o sentimento de solidão, de vazio, de insuficiência, que causa a autopiedade; e esse pensamento gera infinito penar e agitação. Estais-me escutando a fim de vos compreenderdes. E, compreendendo o que estou dizendo, podereis eliminar instantaneamente esse processo da autopiedade.

Não necessitais do tempo. O tempo não é a via da transformação; o tempo nunca produz transformação; o tempo traz a aceitação, o hábito: vós vos acostumais, vos enfastiais, vos tornais embotado, estulto. Mas, para poderdes livrar-vos da “continuidade” da autopiedade, geradora de sofrimento, deveis vê-la incontinenti. E podeis vê-la num instante. Podeis acrescentar-lhe mais particularidades; mas, particularidades não importam, razões nada significam, e não valem as conclusões. A verdade é que sois incapaz de enfrentar o fato — o fato de terdes perdido vosso filho, de não serdes tão inteligente, tão cheio de vitalidade como eu; quando enfrentais esse fato sem autopiedade, estais então livre de mim, já não vos achais num “estado de comparação”.

A mente, pois, se preocupa consigo própria, como o faz a maioria das pessoas. Deveis preocupar-vos com vós mesmos, num certo nível — pois precisais ganhar a vida. Mas a preocupação pessoal num nível mais profundo, no profundo nível psicológico, provoca a inércia, que é indolência. Psicologicamente, interiormente, se vos observardes e ao mundo que vos circunda, podeis ver que vossa ação é simplesmente uma reação, que todas as vossas atividades são reações, “respostas” correspondentes a vossos gostos ou aversões.

Acompanhai-me por mais alguns instantes, pois desejo mostrar que existe uma atividade não resultante de ideia. Vereis que há uma ação procedente da total negação da reação, ação que, por conseguinte, é criadora. Para compreender isso, para penetrar esta questão — que, em verdade, não é complexa, porém requer um estado mental fora do comum — impende compreenderdes as vossas reações, das quais se origina a vossa ação diária. Nós reagimos, nos revoltamos, defendemos, resistimos, adquirimos, submetemo-nos, e tudo isso são reações.

Digo-vos alguma coisa que vos desagrada e, portanto, tratais de fazer algo em reação a isso de que não gostais e que não quereis aceitar. Nesse nível estamos atuando a todas as horas. Fostes educado, condicionado para seguir um certo padrão de vida; esse padrão fica sendo vossa própria vida, vossa norma de vida, interior e exteriormente. E, quando alguém o contesta, vos revoltais, reagis de acordo com vosso condicionamento, consoante os vossos hábitos; dessa reação origina-se outra ação. Vivemos, assim, a mover-nos de reação para reação e, por conseguinte, nunca estamos livres. Esta é uma das origens do sofrimento. Por favor, procurai compreender isso.

Não pode deixar de haver reação. Ao verdes uma coisa feia, vossa mente tem de reagir; ao verdes algo belo, ela tem de reagir; ao verdes uma serpente venenosa, ela tem de reagir; se assim não fosse, estaríeis morto, insensibilizado, desvitalizado, embotado. Mas essa reação difere da reação que a sociedade e vós mesmos desenvolvestes, mediante vossas experiências e que se tornou vosso condicionamento. Se, ao verdes uma árvore, o pôr do sol, não reagis, estais entorpecido. Mas, quando “reagis” em conformidade com vossa autopiedade, com vossas conclusões, vossos hábitos, vossos fracassos, êxitos, esperanças, desesperos — tal reação leva à ação incompleta e, consequentemente, à continuação do conflito e do sofrimento.

Espero estejais percebendo a diferença entre as duas qualidades de reação. A reação que vê e não traduz o que vê segundo seu próprio condicionamento — essa é uma qualidade de reação; é a ação real. E a outra qualidade de reação é aquela que vê e diz: “Isto é belo, quero possuí-lo”. Essa reação procede do condicionamento, da memória, da autocompaixão, do desejo, etc. A reação nascida da ideia é uma coisa, e outra coisa é a reação sem ideia. A reação nascida da “ideação”, de conclusões, de hábitos, de tradições, conduz ao cativeiro, à amargura. E a reação sem ideia, consistente puramente em observar, essa conduz à liberdade — ou, melhor, ela é liberdade — não “conduz”; a liberdade não vos conduz a parte alguma.

Só a mente livre se acha no estado de negação — negação das reações positivas de uma mente condicionada. E só a mente mantida na negação, no estado de negação, pode perceber, num clarão, o que é verdadeiro. Vede, por favor, que não estou dizendo nada de complexo; isto não é complexo, é muito simples. Mas, justamente por causa de sua simplicidade, perdeis seu significado. Porque vossa mente é tão complicada, quereis achar muitas coisas no que estou dizendo — que, afinal de contas, é bem simples. Vossas reações são produto de vosso condicionamento de hinduísta, de homem rico, de homem pobre, de mulher, de homem — do que quer que sejais — com todas as vossas experiências, vossas esperanças, vossos deuses, vossas ânsias, vossos apegos; o condicionamento existe, e vossas reações partem dele. E quanto mais reagis, tanto mais essas reações se aprofundam em vós mesmo. Continuais, assim, no cativeiro de vossas próprias reações, de vossas próprias limitações. Isto é bastante simples. Não requer minuciosa investigação psicológica. Mas, o que verdadeiramente exige energia, atenção, é a negação total das reações positivas da mente condicionada. Ao negardes, observais sem “ideação” sem nenhum pensamento; estais olhando.

Ora, senhores, quando desejais compreender vossos desditosos filhos — desditosos, porque não sabeis educá-los — tratais de mandá-los para escola... e está tudo acabado: as crianças se tornam máquinas.

Não estou fazendo uma preleção sobre educação. Se tendes um filho, deveis observá-lo, prestar-lhe atenção. Se desejais conhecê-lo, não digais que ele deve ser isto ou aquilo, não o obrigueis a fazer isto ou aquilo; observai, aprendei, porque é vosso coração que deve “responder”, e não vossa pequena e feia mentalidade possessiva.

Assim, deveis aprender a conhecer o vosso filho. E não podeis aprender se “respondeis”, se “reagis” como pai, com vossa autoridade, vosso exagerado senso de importância — como se de fato tivésseis criado um mundo maravilhoso! Assim, se desejais compreender uma criança, deveis olhá-la sem pensamento nenhum, descobrir o que ela sente, o que pensa. Ora, se a olhais dessa maneira, vossa mente estará nesse momento vazia, porque estareis interessado na criança. Não a estareis “vestindo” com vossas ideias, vossas esperanças e temores; desejais ver o que ela é.

Pois bem; se sou capaz de olhar o sofrimento — o incidente, a morte de meu filho; se sou capaz de olhar isso, olhar o fato, nesse caso, olho sem nenhuma reação; minha autopiedade e minhas lembranças foram postas de parte. Mas, em geral, nos comprazemos na autopiedade. Não temos outra coisa de que nos nutrirmos e, por conseguinte, a autopiedade se tornou nossa nutrição. Quanto mais velhos ficamos, mais importantes se tornam as lembranças, as coisas pretéritas.

Deste modo, a ação, nascida de reação gera sofrimento. Nossos pensamentos resultam, quase todos, do passado, do tempo. A mente não alicerçada no passado, que bem compreendeu esse “mecanismo” de reação, pode atuar, a cada minuto, de maneira total, completa.

Tende a bondade de escutar, pois o que agora vou dizer será talvez um pouco difícil. Escutai-o, pois, com toda a atenção, como se estivésseis distanciados de mim. Vou falar sobre uma coisa que ireis encontrar, se tiverdes feito com agrado, com prazer, tudo o que indiquei. Depois de terdes examinado todo o mecanismo da ação nascida da reação, e negado essa ação, com enlevo, com alegria — e não com pesar — vereis que, natural e facilmente, alcançareis um estado mental que é a verdadeira essência da beleza.

Importa compreender a beleza. A mente que não é bela, que não se encanta com uma árvore, uma flor, um belo rosto, um sorriso; que não se detém à beira do mar a contemplar as vagas inquietas; que não tem nenhum senso de beleza — essa mente nunca, descobrirá o amor, a verdade. Essa beleza vos foi negada porque ela exige paixão, exige toda a vossa energia, requer atenção completa, não dividida; e essa atenção completa, não dividida, é negação, um estado de negação.

Só do nada pode sair a criação; desse vazio surge aquela criação que é a totalização da energia. Mas vós não podeis alcançá-la. Deveis deixar bem longe a vós mesmo, perder-vos por longe, esquecer-vos; para alcançá-la, deveis estar imaculado, sem lembrança, sem pensamento, sem memória. Porque, aí, nada podeis experimentar, não há experimentar; se buscais experiência, estais ainda preso ao “conhecido”, às coisas de ontem.

Estou falando a respeito da mente não indolente, que não tem autopiedade, que não tem memória, salvo a memória mecânica, necessária ao viver — o lugar onde se reside, o emprego que se exerce, os atos normais da vida. Essa mente não tem “memória psicológica” e, por conseguinte, nada precisa experimentar; por conseguinte, não há “desafio”. Só essa mente é, ela própria, a realidade, a criação, a beleza.

A beleza não está no rosto, por mais delicados que sejam os seus traços. Não é produto da atividade humana. Nem resulta do pensamento, do sentimento. Beleza é aquela comunhão com todas as coisas, sem reação alguma, comunhão com o feio e com o chamado “belo”. Essa comunhão sai do nada; nesse estado há aquela beleza que é Amor.

Krishnamurti, Bombaim, 4 de março de 1962, A mutação Interior


sábado, 26 de setembro de 2015

No autoconhecimento, não há espaço para a autopiedade

A dor tem raízes na autopiedade, e para compreender a dor é preciso que se processe inicialmente uma rude operação na autopiedade como um todo. Não sei se vocês já observaram como vocês têm pena de si mesmos quando dizem, por exemplo, "estou solitário". No momento em que surge a autopiedade, surge também o solo preparado para receber as raízes da dor. Não importa quanto você possa racionalizar a sua autopiedade, justificá-la, poli-la, encobri-la com ideias — ela ainda está presente, fazendo suas chagas lá nas suas profundezas. Assim, o homem que deseja compreender a dor deve começar por se tornar livre trivialidade brutal, autocentrada e egoística que é a autopiedade. Você pode sentir autopiedade por estar doente, ou porque perdeu alguém por morte, ou porque não se satisfez e portanto está frustrado, embrutecido; mas qualquer que seja a causa, a autopiedade é a raiz da dor. E quando por fim você estiver livre da autopiedade, poderá olhar para a dor sem adorá-la ou fugir dela, ou dar a ela um significado sublime ou espiritual, tal como dizer que você precisa sofrer para encontrar Deus — o que é uma enorme besteira. Apenas as mentes estúpidas e obtusas se conformam com a dor. Assim, não deve haver qualquer tipo de aceitação da dor, bem como não deve haver negação dela. Quando você estiver livre da autopiedade, terá despido a dor de todo sentimentalismo, de toda emotividade produzida pela autopiedade. Então você estará apto a encarar a dor com plena atenção.

[...] Percebam a própria aceitação tola da dor, sua racionalização, suas desculpas, sua autopiedade, seu sentimentalismo, sua atitude emocional em relação á dor, porque tudo isso é dissipação de energia. Para compreender a dor, vocês precisam de toda a sua atenção a ela, e nesta atenção não há lugar para desculpas, para sentimentos, para racionalização, não há lugar para qualquer tipo de autopiedade.

Espero estar sendo claro quando falo em dar atenção total à dor. Nessa atenção não há qualquer tentativa de resolver ou compreender a dor. Apenas olhar, observar. Qualquer tentativa de compreender, de racionalizar ou de escapar da dor, naquele estado de completa atenção no qual o que chamamos de dor pode ser compreendido.

Não estamos analisando, não estamos investigando analiticamente a dor de forma a nos livrarmos dela, pois este é outro truque da mente. A mente analisa a dor e, a seguir, imagina que a compreendeu e que está livre dela — o que é asneira. Você pode se ver livre de determinado tipo de dor, mas a dor surgirá novamente, de outra forma. Estamos falando da dor como uma coisa global — da dor encarada dessa maneira —, seja ela sua, ou minha, ou de qualquer outro ser humano.

Para compreender a dor é preciso que haja compreensão do tempo e do pensamento. É preciso que haja uma percepção involuntária de todas as fugas, de toda autopiedade, de todas as verbalizações, de forma que a mente se torne completamente silenciosa frente a algo que precisa ser compreendido. Não há então distinção entre o observador e aquilo que está sendo observado. Não se trata do fato de que VOCÊ, o observador, o pensador, tem uma dor e a está percebendo, mas há apenas o ESTADO de dor. Esse estado de dor indistinta é necessário, pois quando se olha para a dor como observador cria-se um conflito que embrutece a mente e dissipa energia, e portanto não há atenção.

Quando a mente compreende a natureza do tempo e do pensamento, quando arrancou todas as raízes da autopiedade, do sentimento, da emotividade e de todo o resto, então o pensamento — que criou toda essa complexidade — chega ao fim e não existe mais o tempo; logo você está direta e intimamente em contato com aquilo a que chamou de dor. A dor é mantida apenas quando existe uma fuga, um desejo de fugir dela, de resolvê-la ou de adorá-la. Mas quando não existe nada disso porque a mente está em contato direto com a dor, e está portanto completamente silenciosa em relação a ela, então você descobrirá por si mesmo que a mente não está com dor, em absoluto. No momento em que a mente de alguém está completamente em contato com o fato gerador da dor, esse fato por si mesmo resolve todas as qualidades produtoras de dor, do tempo e do pensamento. E, por conseguinte, há o fim da dor.

Krishnamurti em, Saanen, 28 de julho de 1964

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Sem compreensão do sofrimento, não há sabedoria

Esta manhã eu gostaria de falar sobre o sofrimento. É um problema muito complexo, e como não se pode examiná-lo em grandes detalhes, irei, se possível, examinar apenas o essencial.

Sem compreensão do sofrimento, não há sabedoria; o fim do sofrimento é o início da sabedoria. Para compreender o sofrimento e ficar completamente livre dele é preciso uma compreensão, não só dos sofrimentos particulares individuais, mas também do enorme sofrimento do homem. Para mim, sem estar totalmente livre do sofrimento, não pode haver sabedoria, nem a mente é capaz de realmente investigar essa coisa imensurável que pode ser chamada de Deus, ou de qualquer outro nome.

A maioria de nós sofre de diferentes formas - na relação, com a morte de alguém, por não se realizar e definhar, ou tentando ter, tentando tornar-se algo, e chegando ao fracasso total. E há todo o problema do sofrimento físico - doença, cegueira, incapacidade, paralisia, e assim por diante. Por toda a parte há esta coisa extraordinária chamada sofrimento - com a morte à espera na esquina. E nós não sabemos como enfrentar o sofrimento, então ou o adoramos, ou o racionalizamos, ou tentamos fugir dele. Vá a qualquer igreja cristã e você vai descobrir que o sofrimento é adorado; é transformado em algo extraordinário, sagrado, e dizem que só através do sofrimento, através do Cristo crucificado, você pode descobrir Deus. No Oriente, eles têm as suas próprias formas de evasão, outras formas de evitar o sofrimento, e me parece uma coisa extraordinária que tão poucos, seja no Oriente ou no Ocidente, estejam realmente livres do sofrimento.

Seria uma coisa maravilhosa se, no processo de escutar - sem emoção, não sentimentalmente - ao que está sendo dito esta manhã, e antes de deixarem esta tenda, vocês pudessem realmente compreender o sofrimento e se libertarem totalmente dele, porque então não haveria autoengano, nem ilusões, nem angústias, nem medo, e o cérebro poderia funcionar claramente, com agudeza, logicamente. E então, talvez, a pessoa soubesse o que é o amor.

Agora, para compreender o sofrimento, a pessoa tem que investigar todo o processo do tempo. Tempo é sofrimento, não só o sofrimento do passado, mas também o sofrimento que envolve o futuro - a idéia de chegar, a luta para conseguir, a esperança de que algum dia você vai ser alguma coisa, com sua inevitável sombra de frustração. Esta ideia de realização, de se tornar algo no futuro, que é tempo psicológico, é para mim o maior sofrimento - e não o fato de meu filho morrer, ou que minha esposa ou marido me deixa, ou que não sou um sucesso. Tudo isto, parece-me, é bastante trivial, se é que posso usar essa palavra, que espero que vocês não interpretem mal. Existe um sofrimento muito mais profundo, que é tempo psicológico: pensar que vou mudar nos próximos anos, que, com o tempo, vou me transformar, vou afastar-me do hábito, eu vou conseguir libertação, adquirir sabedoria, encontrar Deus. Tudo isto implica tempo - e esse, para mim, é o maior sofrimento. Mas, para investigar profundamente o problema, a pessoa tem que descobrir por que existe sofrimento dentro de si mesma - esta onda de sofrimento em que a pessoa é apanhada e que faz dela uma prisioneira. Compreendendo primeiro o sofrimento particular dentro de nós mesmos, talvez possamos compreender também o sofrimento coletivo do homem, o desespero da humanidade.

Por que sofremos? E existe um fim para o sofrimento? Existem muitas formas de sofrimento. Problemas de saúde são um tipo de sofrimento - a incapacidade de pensar devido à debilidade do cérebro, e os vários tipos de dor física. Depois há todo o campo do sofrimento psicológico - sentir-se frustrado porque não se é capaz de alcançar, ou não se tem capacidade, nem entendimento, nem inteligência; e também essa constante batalha de desejos conflitantes, de autocontradição, com as suas ansiedades e desesperos . Existe ainda a ideia da transformação através do tempo, tornar-se melhor, mais nobre, mais sábio, na qual também há sofrimento sem fim. E, finalmente, há o sofrimento da morte, o sofrimento da separação, do isolamento, o sofrimento de se estar completamente sozinho, de estar apartado e não ter qualquer relação com coisa alguma.

Conhecemos todas estas diferentes formas de sofrimento. Os muito letrados, o intelectual, o santo, as pessoas religiosas em todo o mundo são tão torturadas como nós pelo sofrimento, e se existe uma saída, eles não a encontraram. Investigar muito profundamente em nós mesmos é saber que esta é a primeira coisa que queremos - pôr um fim ao sofrimento - mas não sabemos como fazer isso. Estamos bem familiarizados com o sofrimento, nós o vemos nos outros e em nós mesmos, e ele está no próprio ar que respiramos. Vá para onde você for - retirar-se num mosteiro, andar nas ruas apinhadas - o sofrimento está sempre presente, abertamente, ou oculto, esperando, olhando.

Agora, como encontrar o sofrimento? O que se faz a respeito dele? E como a pessoa se liberta dele, não apenas superficialmente, mas totalmente, de modo que não haja absolutamente sofrimento? Estar completamente livre do sofrimento não significa que não se sente amor, nem compaixão, que não se tem bondade, nem compreensão pelo outro. Ao contrário, na total liberdade do sofrimento, não há indiferença. É uma liberdade que traz grande sensibilidade, abertura; e como a pessoa chega a essa liberdade? Vocês todos conhecem o sofrimento; não é algo estranho a vocês. Está aí. E como você o encontra? Será que você só o encontra superficialmente, verbalmente?

Por favor, acompanhem. Passo a passo vamos juntos até o fim. Veja se você pode ouvir esta manhã com toda atenção, estando consciente de suas próprias reações, e investigar profundamente comigo este problema do sofrimento - não que você vai me seguir; o que seria muito absurdo. Mas se pudermos compreender isto juntos, investigarmos ampla e profundamente, então, talvez, quando sair daqui, você poderá olhar para o céu, e o sofrimento nunca o tocará novamente. Então não haverá medo, e quando todo o sofrimento acabar, esse algo imensurável pode seguir com você.

Então, como é que você aborda o sofrimento? Receio que a maioria de nós o aborda muito superficialmente. Nossa educação, nossa formação, o nosso conhecimento, as influências sociológicas a que estamos expostos, tudo nos torna superficiais. A mente superficial é aquela que foge para a igreja, para alguma conclusão, algum conceito, alguma crença ou ideia. Esses são todos refúgios para a mente superficial que está em sofrimento. E se você não consegue encontrar um refúgio, constrói um muro em torno de si mesmo e torna-se cínico, duro, indiferente, ou você foge através de alguma reação fácil, neurótica. Todas essas defesas contra o sofrimento impedem mais investigação. Espero que vocês estejam seguindo comigo, pois isto é o que a maioria de nós realmente faz.

Agora, observe um cérebro ou mente superficial- por favor, se eu usar a palavra mente ou cérebro, quero dizer a mesma coisa. No outro dia examinamos a separação do cérebro e da mente, mas a separação é apenas verbal e não importa. Vou utilizar a palavra mente, e eu espero que vocês acompanhem e entendam o que está sendo dito.

A mente superficial não pode resolver este problema do sofrimento, porque o que ela tenta é evitar o sofrimento. Ela foge do fato do sofrimento através de uma resposta fácil e imediata. Se você tiver uma dor de dente grave, naturalmente vai imediatamente ao dentista, porque você quer se livrar dessa dor física - o que é normal e uma reação correta. Mas a dor psicológica é muito mais profunda e mais sutil, e nenhum médico, nenhum psicólogo, nada pode dissolvê-la para você. Mas a sua reação instintiva é fugir dela. Você liga o rádio, vê televisão, vai ao cinema - você sabe, todas as distrações que a civilização moderna inventou. Entretenimento de qualquer tipo, seja um serviço religioso ou um jogo de futebol, é essencialmente o mesmo. É apenas uma maneira de escapar de sua própria miséria, do seu vazio - e isto é o que vocês todos estão fazendo em todo o mundo: usando várias formas do circo para esquecer de si mesmo.

Do mesmo modo, é a mente superficial que tenta encontrar explicações. Ela diz,"quero saber por que eu sofro. Por que eu deveria sofrer e você não?" Ela sente que não fez nada particularmente errado nesta vida, por isso aceita a teoria de vidas passadas e a idéia daquilo que na Índia é chamado de karma - causa e efeito. Ela afirma, "Eu fiz algo errado no passado, e agora estou pagando", ou "Agora estou fazendo algo bom, e vou ter o benefício disso no futuro." Assim, a mente superficial fica presa em explicações.

Por favor preste atenção à sua própria mente, observe como você explica seu sofrimento à distância, perde-se no trabalho, em idéias, ou apega-se a uma crença em Deus, ou numa vida futura. E se nenhuma explicação, nenhuma crença tem sido satisfatória, você escapa através da bebida, através do sexo, ou se tornando cínico, duro, amargo, frágil. Consciente ou inconscientemente, isto é o que está realmente acontecendo com cada um de nós. Mas a ferida do sofrimento é muito profunda. Geração após geração, foi transmitida pelos pais para seus filhos, e a mente superficial nunca tira a bandagem dessa ferida; mas ela realmente não sabe, não está realmente familiarizada com o sofrimento. Apenas tem uma ideia sobre o sofrimento. Tem uma imagem, um símbolo do sofrimento, mas nunca aborda o sofrimento - ela aborda apenas a palavra sofrimento. Vocês entenderam? A palavra sofrimento ela conhece, mas não estou certo de que conhece realmente o sofrimento.

Conhecer a palavra fome e ter fome são duas coisas muito diferentes, não são? Quando você tem fome, não fica satisfeito com a palavra comida. Você quer comida, o fato. Agora, a maioria de nós fica satisfeita com palavras, símbolos, ideias, e com nossa reação a estas palavras, e nunca ficamos totalmente com o fato. Quando de repente ficamos cara a cara com o fato do sofrimento, ele nos dá um choque, e nossa reação é fugir dele. Pergunto-me se você notou isso em si mesmo? Por favor, siga o seu próprio estado mental, e não apenas ouça as palavras que estão sendo ditas. Nós nunca encontramos o sofrimento, nunca vivemos com ele. Vivemos com uma imagem, com a memória do que foi, e não com o fato. Vivemos com uma reação.

Agora, se frente ao sofrimento a mente tem um motivo, ou seja, se quiser fazer alguma coisa com o sofrimento, não pode haver qualquer compreensão do sofrimento mais do que não pode haver amor se existe um motivo para amar. Entenderam? A maioria de nós tem um motivo quando olha para o sofrimento, queremos fazer algo sobre ele. Isto é, suponha que eu perdi alguém por morte; profundamente, psicologicamente, já não posso obter o que quero dessa pessoa, e estou sofrendo. Se eu não tenho motivo para olhar meu sofrimento, ainda será sofrimento, ou o sofrimento será uma coisa totalmente diferente? Vocês estão acompanhando tudo isto?

Digamos que meu filho morre, e estou sofrendo porque fiquei sozinho. Investi todas as minhas esperanças nele, e agora meu mundo inteiro desmoronou. Eu queria criar para mim uma certa imortalidade, uma continuidade através de meu filho; ele devia perpetuar meu nome, herdar minha propriedade, continuar meu negócio, e ao fim de todas essas coisas me deu um choque. Agora, posso eu entender o sofrimento em que estou se existe uma motivação por trás de meu olhar para ele? E se houver um motivo por trás do amor, é amor? Não concorde comigo, por favor, basta observar-se. Certamente, não pode haver um motivo se eu quero entender o sofrimento, se quiser descobrir a plena profundidade e significado do sofrimento - ou do amor, porque eles sempre andam juntos. Morte, amor e sofrimento são inseparáveis; estão sempre juntos, e com eles está também a criação, mas esse é outro assunto, e vamos examiná-lo em outra ocasião. Se eu quiser compreender profundamente, completamente, o fato do sofrimento, não posso ter um motivo que determine minha reação a esse fato. Posso viver com o fato e compreendê-lo somente quando não tenho motivo. Vocês entenderam? Se não, vocês podem fazer perguntas depois sobre este ponto. Se eu "amo" você porque você pode me dar uma coisa - o seu corpo, seu dinheiro, sua lisonja, seu companheirismo, ou seja o que for - certamente não é amor, é? Claro, você obtém algo de mim também, e essa troca para a maioria de nós é amor. Eu sei que cobrimos tudo com belas palavras, mas por trás da fachada verbal há essa pressão de ter, de possuir.

Agora, sofrimento não é autopiedade? Você foi privado de alguma forma, sua relação com o outro foi um fracasso; você não se realizou sendo reconhecido como um grande homem em nome da reforma social, em nome da arte, em nome de qualquer uma de um milhão de coisas, com todos os estúpidos disparates implicados - então há sofrimento. Compreender o sofrimento é viver com ele, olhar para ele, conhecê-lo pelo que ele realmente é - e você não pode conhecê-lo se olhar com um motivo, que é tempo. Uma mente superficial que está eternamente preocupada em aperfeiçoar-se, com pena de si mesma, torturando-se numa relação particular, querendo se livrar do sofrimento e não encarar o fato - tal mente vai continuar sofrendo indefinidamente. O fato é que você está sozinho. Pela sua educação, suas atividades, seus pensamentos e sentimentos, você isolou-se profundamente, e não pode viver com esse extraordinário sentimento de solidão; você não sabe o que significa, porque aborda isso com uma palavra que evoca medo.

Assim, você vê a dificuldade - as formas sutis de fuga que a mente construiu de modo que ela é incapaz de viver com essa coisa extraordinária que chamamos sofrimento. Para ser livre do sofrimento, todo este processo tem de ser entendido, conscientemente bem como inconscientemente, e você só pode entendê-lo quando viver com o fato, olhar para ele sem motivo. Você tem de ver os truques de sua própria mente - as fugas, as coisas agradáveis a que você se apega, e as coisas dolorosas de que você deseja livrar-se com rapidez. Você tem que observar o vazio, o embotamento e a estupidez de uma mente que apenas foge. E faz pouca diferença se você foge para Deus, para o sexo, ou para a bebida, porque todas as fugas são essencialmente iguais. Vocês entenderam?

O que acontece quando você perde alguém por morte? A reação imediata é uma sensação de paralisia, e quando você sai desse estado de choque, há o que chamamos de sofrimento. Agora, o que essa palavra sofrimento significa? O companheirismo, as palavras alegres, os passeios, as muitas coisas agradáveis que vocês fizeram e esperavam fazer juntos - tudo isto é levado em um segundo, e você fica vazio, exposto, solitário. É isso que você contesta, é contra isso que a mente se rebela: ser repentinamente deixado consigo mesmo, absolutamente solitário, vazio, sem qualquer apoio. Agora, o que importa é viver com esse vazio, só viver com ele, sem reação, sem racionalização, sem fugir dele para mediuns, para a teoria da reencarnação, e todos esses disparates estúpidos - viver com ele com todo seu ser. E se você investigar passo a passo, vai descobrir que existe um fim para o sofrimento- um verdadeiro fim, não apenas um fim verbal, não o fim superficial que vem da fuga, da identificação com um conceito, ou do compromisso com uma idéia. Então você vai descobrir que não há nada a proteger porque a mente está completamente vazia e já não está reagindo no sentido de tentar preencher esse vazio; e quando todo o sofrimento chegou então ao fim, você terá iniciado outra viagem - uma viagem que não tem fim nem começo. Há uma imensidão que está além de todas as medidas, mas você não pode entrar nesse mundo sem o fim total do sofrimento.

Pergunta: O humor é uma fuga do sofrimento?

Krishnamurti: Antes de você fazer uma pergunta, por favor, fique um pouco em silêncio e reflita, se aprofunde no que acaba de ser dito. Se você aparece imediatamente com uma pergunta, significa que não investigou realmente. O que estivemos considerando juntos tem um grande significado. Não é algo barato que você pode comprar para acabar com o sofrimento e então dizer,"Bom, eu já acabei com o sofrimento." Isso seria demasiado infantil. Quando tivermos descoberto todo o campo da experiência humana, que foi enriquecida através de séculos de sofrimento humano, você não pode apenas removê-lo com uma palavra, com um símbolo, ou fugindo. Para obter a resposta certa, você deve fazer a pergunta certa; e você vai fazer a pergunta certa apenas quando estiver realmente nisso, depois de ter se exposto ao problema.

Pergunta: E quanto ao sofrimento que não é da própria pessoa, mas sofrimento por alguém?

Krishnamurti: Antes de investigar essa pergunta, vamos olhar para a pergunta anterior:"O humor é uma fuga do sofrimento?" Se você pode rir de seu sofrimento, isso é uma fuga? Existe esta coisa imensa chamada sofrimento, e você percebe a que a reduziu, quando faz tal pergunta? Quando você está sofrendo, talvez possa rir, mas ainda há sofrimento. Existe a dor, a tortura que está ocorrendo no mundo: a miséria de não ter alimento, de ter medo da morte, de ver o homem rico no grande carro e sentir inveja, a brutalidade, a tirania que está ocorrendo no Oriente, e todo o resto. Você pode rir à distância de tudo isso? Receio que você não esteja realmente ciente de seu próprio sofrimento.

A segunda pergunta é:"O que pensa sobre o sofrimento que se sente por outra pessoa?" Quando você vê alguém sofrendo, não sofre também? Quando você vê um homem que é cego, ou um homem que não tem comida, ou um homem que não é amado, que está preso na miséria, guerra, confusão, você não sofre com ele? Agora, por que se deveria sofrer com ele? Eu sei que é o aceito, o tradicional, a coisa respeitável para dizer, "Eu sofro com você". Mas por que você deveria sofrer? Se você tem um pouco, dê desse pouco. Você dá sua simpatia, seu afeto, seu amor. Mas por que você deveria sofrer? Por favor, acompanhe. Se meu filho contrai poliomielite e está morrendo, por que eu deveria sofrer? Sei que isto soa terrivelmente cruel para você. Após ter feito todo o possível, dado meu amor, minha simpatia, trazido o médico, o remédio, e de ter me sacrificado - mas é sacrifício? É essa a palavra certa? - tendo feito tudo ao meu alcance, por que eu deveria sofrer? Quando eu sofro por alguém, isso é sofrimento? Reflita, investigue; não aceite simplesmente o que estou dizendo. Sabe, quando você vai para a Índia e para outros lugares no Oriente, vê imensa pobreza - pobreza tal que não se conhece no Ocidente. Quando anda na rua, fica perto de pessoas que têm hanseníase e outras doenças. Você faz tudo que pode, mas qual é a necessidade de sofrer? O amor sofre? Oh, você terá que investigar tudo isto. Certamente, o amor nunca sofre.

Pergunta: Pode o profundo sofrimento transformar-se em profunda alegria?

Krishnamurti: Você faz uma pergunta desta natureza, quando está sofrendo? Por favor, do que você está falando?

Comentário: Quero dizer o sofrimento em si transforma-se em alegria.

Krishnamurti: Se o sofrimento transforma-se em alegria, onde você está no final do mesmo? Senhor, algumas pessoas, feliz ou infelizmente, ouviram-me durante quarenta anos, e conheço muito bem essas pessoas. Temos nos encontrado uma vez ou outra ao longo dos anos. Eu sofro porque não compreenderam? Elas ainda perguntam sobre autoridade, sobre autoexpressão, sobre Deus - você sabe, todas as coisas infantis que são perguntadas. Eu sofro? Eu sofreria apenas se esperasse alguma coisa delas; eu ficaria desapontado se tivesse me colocado numa posição de ficar desapontado pelo sentimento de que eu sou alguém que está dando alguma coisa para outro alguém. Espero que compreendam o que estou falando.

Por favor, o que é importante não é a forma de transformar sofrimento em alegria, ou se sofrimento se transforma em alegria, ou se você deveria sofrer quando vê outros sofrendo - todas estas questões não têm de fato qualquer importância. O importante é entender o sofrimento em você mesmo e, assim, acabar o sofrimento. Só então você vai descobrir o que está além do sofrimento. Caso contrário, é como se sentar deste lado da montanha e especular sobre o que está do outro lado. Você está apenas falando, adivinhando. Você não põe as mãos no problema, não o encara; você não entra profundamente em si mesmo e procura, pesquisa, compreende; e não faz isso porque sabe que isso significaria realmente deixar muitas coisas - deixar suas pequenas ideias, suas reações tradicionais, respeitáveis.

Comentário: A pessoa sofre quando não pode ajudar alguém.

Krishnamurti: Se você pode ajudar alguém física ou economicamente, você ajuda, e está acabado. Mas por que você sofre, se não pode? Você mesmo não enfrentou o problema básico, então quem é você para "ajudar" o outro? Os sacerdotes em todo o mundo estão "ajudando" alguém - que significa o quê? Eles estão ajudando a condicionar os outros de acordo com as suas próprias crenças e dogmas. Desinteressadamente alimentar os famintos, construir uma terra melhor, um mundo melhor - isso é uma ajuda. Mas dizer ao outro, "eu vou ajudá-lo psicologicamente" - que presunção! Quem é você psicologicamente para ajudar outra pessoa? Deixe isso para os comunistas, que pensam que são Deus e podem ditar a milhões de pessoas o que devem fazer. Mas por que você deveria sofrer se não pode ajudar o outro? Você pode fazer tudo para ajudar, o que pode não ser muito, mas por que passar por esta tortura do sofrimento? Ah, você não percebe, você não entrou de fato no problema verdadeiro!

Pergunta: Sei que para ser completamente livre do sofrimento, a pessoa tem que estar totalmente consciente, plenamente atenta o tempo todo. Tenho raros momentos de total consciência, mas o resto do tempo fico preso num estado de desatenção. É este o meu destino para o resto da vida, e posso, portanto, nunca ficar livre do sofrimento?

Krishnamurti: Como o interrogante diz, estar livre do sofrimento é estar completamente atento. A atenção é virtude em si mesma. Mas infelizmente a pessoa não está atenta o tempo todo. Estou atento hoje, mas amanhã não estou, e estou novamente depois de amanhã. No período intermediário estou distraído, e todos os tipos de atividades prosseguem, e não estou plenamente consciente. Portanto, o interrogante diz,"eu vejo que estou preso no estado de desatenção, e isso significa que estou fadado a nunca ser livre do sofrimento?"

Ora, senhor, a idéia de ser livre para sempre implica tempo, não é? Dizemos,"eu não sou livre agora, mas ficando atento serei livre, e quero que essa liberdade continue pelo resto de meus dias." Então, estamos preocupados com a continuidade da atenção. Dizemos,"De alguma maneira devo estar sempre atento; de outro modo vou sempre estar em sofrimento." Queremos que este estado de atenção continue dia após dia.

Agora, o que continua? O que é isso que tem continuidade? Não me responda, por favor; apenas ouça por dois minutos, e você verá algo extraordinário. O que tem continuidade? Certamente, é quando penso em uma coisa, seja prazerosa ou dolorosa, que ela tem continuidade. Você entendeu? Quando eu penso sobre um prazer ou uma dor, o meu pensamento sobre isso lhe dá continuidade. Se eu gosto de você, eu penso em você, e meu pensamento sobre você dá continuidade à imagem agradável que formei de você: assim, pela continuidade de pensamento, de associação, de memória, a minha reação a você se torna uma reação mecânica, não é? É como a de um computador, que responde de acordo com a memória, a associação, com base numa imensa quantidade de informações armazenadas.

Agora, com essa mesma mentalidade nós dizemos,"Devo ter continuidade de atenção." Compreende, senhor? Você acompanhou, senhor? Mas se virmos o que está implicado em ambos, atenção e continuidade, nunca colocaremos as duas coisas juntas. Não sei se você entendeu o que estou tentando transmitir. O erro que estamos cometendo é tentar relacionar continuidade com atenção. Queremos que o estado de atenção continue, mas o que irá continuar é nosso pensar sobre esse estado, e, portanto, não será atenção. É o pensamento que dá continuidade ao que chamamos atenção, mas quando o pensamento dá continuidade à atenção, não é o estado de atenção. Se você dá toda a sua mente a isso e compreende, descobrirá que existe um estado peculiar de atenção sem continuidade, sem tempo.

Pergunta: Em que medida o sofrimento é atenuado pela aceitação?

Krishnamurti: Por que eu deveria aceitar o sofrimento? Essa é apenas outra atividade superficial da mente. Eu não quero aceitar o sofrimento, ou atenuá-lo, ou fugir dele. Eu quero entender o sofrimento, quero ver o que ele significa; quero conhecer a beleza, a fealdade, a extraordinária vitalidade que ele tem. Não quero transformá-lo em algo que ele não é. Aceitando o sofrimento, ou fugindo dele, ou abordando-o com um conceito, uma fórmula, não estou lidando com ele. Portanto, uma mente para compreender o sofrimento não pode fazer nada sobre ele, não pode transformar o sofrimento ou torná-lo mais brando. Para ser livre do sofrimento, você não pode fazer nada com ele. É porque sempre fazemos alguma coisa com ele que ainda estamos no sofrimento.

18 de julho de 1963
Sexta Palestra em Saanen

Porque nos magoamos?

Na mesma varanda, com o perfume do jasmim e a flor vermelha da árvore alta, havia um grupo de moças e rapazes, de rostos brilhantes e aparência extraordinariamente jovial. Um dos membros do grupo perguntou:

I – Alguma vez você fica magoado, senhor?

K – Fisicamente, você quer dizer?

I – Não é bem isso. Não sei como expressá-lo em palavras, mas sentimos em nosso íntimo que as pessoas podem nos causar mal, ferir-nos, fazer-nos infelizes. Alguém diz qualquer coisa e nós nos encolhemos. Refiro-me a isso quando falo em nos magoar. Todos nos magoamos uns aos outros desse jeito. Alguns o fazem deliberadamente, outros sem o saber. Por que ficamos magoados? É tão desagradável!

K – A mágoa física é uma coisa, e a outra é muito mais complexa. Se você for magoado fisicamente, saberá o que fazer. Irá procurar um médico e ele tentará curá-lo. Mas se a lembrança da mágoa persistir, você estará sempre nervoso e apreensivo, o que criará uma forma de medo, justificado pela permanência da lembrança da mágoa passada, que não quer ver repetida. Isso é perfeitamente compreensível e o medo pode tornar-se neurótico ou ser tratado de modo sadio, sem excessiva preocupação. Mas a outra mágoa, a interior, necessita de cuidadosa análise. Precisamos aprender muita coisa sobre ela.

Em primeiro lugar, por que você fica magoado? Desde a infância, este parece ser um fator importante em nossas vidas: não se magoar, não ser ferido por outra pessoa, por uma palavra, por um gesto, por um olhar, por uma experiência. Por que nos magoamos? Porque somos sensíveis, ou porque temos uma imagem de nós mesmos que precisamos proteger, que sentimos ser importante para a nossa existência, uma imagem sem a qual nos sentimos perdidos, confusos? Existem as duas razões: a imagem e a sensibilidade. Compreendem o que queremos dizer com o sermos sensíveis tanto física como interiormente? Se forem sensíveis e um tanto tímidos, retrair-se-ão em si mesmos, erguerão um muro ao redor de si mesmos, a fim de não serem magoados. É o que fazem, não é? Uma vez que tenham sido magoados por uma palavra ou por uma crítica, que os tenham ferido, passam a construir um muro de resistência. Não querem continuar vulneráveis. Vocês podem ter uma imagem, uma ideia de si mesmos de que são importantes, de que são inteligentes, de que sua família é melhor do que as outras, de que disputam jogos melhor do que outros. Vocês têm essa imagem de si mesmos, não têm? E quando a importância dela é posta em dúvida, abalada ou despedaçada, vocês se sentem muito magoados. Há autopiedade, ansiedade, medo. E se o fato se repetir, construirão uma imagem ainda mais forte, mais afirmativa, mais agressiva, etc. Vocês se protegem para que ninguém os perturbem, o que também significa erguer um muro contra qualquer invasão. De modo que tanto o sensível quanto o que faz a imagem produzem os muros de resistência. Sabem o que acontece quando erguem um muro à sua volta? O mesmo que acontece quando constróem um muro muito alto em torno de sua casa. Não vêem os vizinhos, não recebem a luz do sol em quantidade suficiente, vivem num espaço muito reduzido com todos os membros de sua família. E, não tendo espaço bastante, começam a mexer com os nervos uns dos outros, brigam, ficam violentos, desejam ir embora e se revoltam. E se tiverem dinheiro suficiente e suficiente energia, construirão outra casa com outro muro em torno dela, e assim por diante. A resistência implica falta de espaço e é fator de violência.

I – Mas - perguntou um deles – não devemos proteger-nos?

K – Contra o quê? Vocês devem se proteger, naturalmente, da doença, das chuvas e do sol; mas quando perguntam se não devemos nos proteger, não estarão pedindo para erguer um muro a fim de não serem magoados? Pode ser seu irmão ou sua mãe a pessoa contra a qual erguem o muro, pensando em se defender; no fim, porém, isso conduz à sua própria destruição e à destruição da luz e do espaço.

I – Mas – acudiu uma moça de longos cabelos trançados – o que devo fazer quando me magoam? Sei que estou magoada. Eu me magôo com muita freqüência. Que devo fazer? O senhor diz que não se deve erguer um muro de resistência, mas não posso viver com tantas mágoas.

K – Compreenda, se me permite questionar, por que está magoada? E quando se magoa? Olhe para aquela folha ou para aquela flor. É muito delicada e sua beleza está na própria delicadeza. É terrivelmente vulnerável e, no entanto, vive. E você, que se magoa facilmente, acaso se perguntou quando e por que se magoa? Por que você se magoa – quando alguém diz alguma coisa de que não gosta, quando alguém é agressivo, violento com você? Por que você se magoa? Se se magoar e erguer um muro em torno de si mesma, o que significa retraimento, você passará a viver num espaço muito pequeno dentro de si mesma. Nesse espaçozinho não haverá luz nem liberdade e, assim, será mais e mais magoada. Por isso mesmo a questão se resume em saber se você é capaz de viver livre e feliz, sem ser magoada, sem erguer muros de resistência. Essa é a questão importante. Não a maneira de reforçar os muros nem o que fazer quando há um muro ao redor de seu espaçozinho. Portanto, há duas coisas envolvidas nisso: a lembrança da mágoa e a prevenção de mágoas futuras. Se essa lembrança persistir e você lhe acrescentar novas lembranças de mágoas, o seu muro se tornará mais forte e mais alto, o espaço e a luz se tornarão menores e mais embaçados, e haverá grande sofrimento, uma autopiedade cada vez maior e muita amargura. Se você vir com bastante clareza o perigo disso, sua inutilidade, a lástima que isso é, as lembranças passadas se desvanecerão. Mas você tem de ver isso como veria o perigo de uma cobra venenosa. Você sabe que o perigo é mortal e não se aproxima dele. Consegue ver da mesma forma o perigo das lembranças passadas com suas mágoas, seus muros de autodefesa? Consegue ver realmente, assim como vê esta flor? Se o vir, ele inevitavelmente desaparecerá.
Assim, você já sabe o que fazer com as mágoas passadas. E como olhará as futuras? Não será construindo muros. Isso é claro, não é? Se o fizer, será cada vez mais magoada. Observe com cuidado, por favor. Sabendo que você poderá ser magoada, como impedirá que a mágoa ocorra? Se alguém lhe disser que você não é inteligente nem bonita, você se sentirá magoada, ou zangada, que é outra forma de resistência. Ora, o que você pode fazer? Você viu como as mágoas passadas se desvanecem sem o menor esforço; viu porque ouviu e prestou atenção. Agora, quando alguém lhe disser alguma coisa desagradável, fique atenta; preste muita atenção. A atenção impedirá que a mágoa atinja o alvo. Você compreendeu o que queremos dizer com atenção?

I – O senhor quer dizer concentração, não é?

K – Nâo exatamente. A concentração é uma forma de resistência, uma forma de exclusão, um fechamento de porta, uma retirada. A atenção é algo muito diferente. Na concentração há um centro de onde se realiza a ação da observação. Onde há um centro, o raio de observação é muito limitado. Onde não há centro, a observação é vasta, clara. Isso é atenção.

I – Receio que não compreendemos nada disso, senhor.

K – Olhem para aquelas colinas, vejam a luz que as inunda, vejam as árvores, ouçam passar o carro de bois; vejam as folhas amarelas, o leito seco do rio, o corvo sentado no galho. Olhem para tudo isso. Se olharem a partir de um centro, com o seu preconceito, seu medo, sua simpatia e sua antipatia, não verão a vasta extensão da terra. Seus olhos estarão enevoados, terão ficado míopes e a sua visão será deformada. Não podem olhar para tudo isso, para a beleza do vale, para o céu, sem o centro? Pois isso é atenção. Portanto, ouçam com atenção e, sem o centro, a crítica alheia, o insulto, a raiva, o preconceito alheios. E porque não há centro nessa atenção, não há possibilidade de serem magoados. Mas onde há centro, a mágoa é inevitável. E a vida se torna um grito de medo.

Krishnamurti em, O Começo do Aprendizado – Editora Cultrix

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"Quando você compreende, quando chega a saber,
então traz toda a beleza do passado de volta
e dá a esse passado o renascimento, renova-o,
de forma que todos os que o conheceram
possam estar de novo sobre a terra
e viajar por aqui, e ajudar as pessoas." (Tilopa)



"Nos momentos tranqüilos da meditação, a vontade de DEUS pode tornar-se evidente para nós. Acalmar a mente, através da meditação, traz uma paz interior que nos põe em contato com DEUS dentro de nós. Uma premissa básica da meditação, é que é difícil, senão impossível, alcançar um contato consciente, à não ser que a mente esteja sossegada. Para que haja um progresso, a comum sucessão ininterrupta de pensamentos tem de parar. Por isso, a nossa prática preliminar será sossegar a mente e deixar os pensamentos que brotam morrerem de morte natural. Deixamos nossos pensamentos para trás, à medida que a meditação do Décimo Primeiro Passo se torna uma realidade para nós. O equilíbrio emocional é um dos primeiros resultados da meditação, e a nossa experiência confirma isso." (11º Passo de NA)


"O Eu Superior pode usar algum evento, alguma pessoa ou algum livro como seu mensageiro. Pode fazer qualquer circunstância nova agir da mesma forma, mas o indivíduo deve ter a capacidade de reconhecer o que está acontecendo e ter a disposição para receber a mensagem". (Paul Brunton)



Observe Krishnamurti, em conversa com David Bohn, apontando para um "processo", um "caminho de transformação", descrevendo suas etapas até o estado de prontificação e a necessária base emocional para a manifestação da Visão Intuitiva, ou como dizemos no paradigma, a Retomada da Perene Consciência Amorosa Integrativa...


Krishnamurti: Estávamos discutindo o que significa para o cérebro não ter movimento. Quando um ser humano ESTEVE SEGUINDO O CAMINHO DA TRANSFORMAÇÃO, e PASSOU por TUDO isso, e esse SENTIDO DE VAZIO, SILÊNCIO E ENERGIA, ele ABANDONOU QUASE TUDO e CHEGOU AO PONTO, à BASE. Como, então, essa VISÃO INTUITIVA afeta a sua vida diária? Qual é o seu relacionamento com a sociedade? Como ele age em relação à guerra, e ao mundo todo — um mundo em que está realmente vivendo e lutando na escuridão? Qual a sua ação? Eu diria, como concordamos no outro dia, que ele é o não-movimento.

David Bohn: Sim, dissemos que a base era movimento SEM DIVISÃO.

K: Sem divisão. Sim, correto. (Capítulo 8 do livro, A ELIMINAÇÃO DO TEMPO PSICOLÓGICO)


A IMPORTÂNCIA DA RENDIÇÃO DIANTE DA MENTE ADQUIRIDA
Até praticar a rendição, a dimensão espiritual de você é algo sobre o que você lê, de que fala, com que fica entusiasmado, tema para escrita de livros, motivo de pensamento, algo em que acredita... ou não, seja qual for o caso. Não faz diferença. Só quando você se render é que a dimensão espiritual se tornará uma realidade viva na sua vida. Quando o fizer, a energia que você emana e que então governa a sua vida é de uma frequência vibratória muito superior à da energia mental que ainda comanda o nosso mundo. Através da rendição, a energia espiritual entra neste mundo. Não gera sofrimento para você, para os outros seres humanos, nem para qualquer forma de vida no planeta. (Eckhart Tolle em , A Prática do Poder do Agora, pág. 118)


O IMPOPULAR DRAMA OUTSIDER — O encontro direto com a Verdade absoluta parece, então, impossível para uma consciência humana comum, não mística. Não podemos conhecer a realidade ou mesmo provar a existência do mais simples objeto, embora isto seja uma limitação que poucas pessoas compreendem realmente e que muitas até negariam. Mas há entre os seres humanos um tipo de personalidade que, esta sim, compreende essa limitação e que não consegue se contentar com as falsas realidades que nutrem o universo das pessoas comuns. Parece que essas pessoas sentem a necessidade de forjar por si mesmas uma imagem de "alguma coisa" ou do "nada" que se encontra no outro lado de suas linhas telegráficas: uma certa "concepção do ser" e uma certa teoria do "conhecimento". Elas são ATORMENTADAS pelo Incognoscível, queimam de desejo de conhecer o princípio primeiro, almejam agarrar aquilo que se esconde atrás do sombrio espetáculo das coisas. Quando alguém possui esse temperamento, é ávido de conhecer a realidade e deve satisfazer essa fome da melhor forma possível, enganando-a, sem contudo jamais poder saciá-la. — Evelyn Underhill