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quinta-feira, 19 de abril de 2018

O amor não pode ser separado do sofrimento


O amor não pode ser separado do sofrimento

[...] Para a maioria de nós, a morte é o fulcro do medo. Tememos a morte e, por essa razão, nunca lhe compreendemos o imenso significado. O medo, invariavelmente, deforma a percepção, faz-nos fugir àquilo que tememos; e quando fugimos do fato que é a morte ou ficamos acabrunhados de dor pela morte de um amigo, é-nos impossível aprofundar ou compreender, no seu todo, o problema da morte.

Já discorremos sobre o medo e o sofrimento e penso que devemos estar agora aptos a considerar sensata e profundamente este problema da morte. Como já salientei, o amor, o sofrimento e a morte “andam juntos”, são inseparáveis. Isto não é mero conceito filosófico — não estou “fazendo filosofia”. Mas, se vos investigardes com profundeza, vereis que o amor não pode ser separado do sofrimento e o sofrimento não pode desligar-se da morte, pois os três, na realidade, são um só todo. Também não há nenhuma possibilidade de se compreender a beleza e a imensidão da morte, se existe qualquer vestígio de temor.

Para compreendermos a morte, acho que devemos examinar a questão do pensar negativo e da renúncia. Porém, não tomeis isso por algo teórico, impraticável. É a mente indolente que tudo rejeita como teórico, ou o reduz a um sistema ou padrão de ação, perdendo, assim, a essência real, o significado profundo do que estou dizendo. Eis porque vos peço que escuteis de espírito aberto, amigavelmente, sem concordar nem discordar, sem nenhum motivo. Se formos capazes de escutar com calma e prazer, sem motivo algum, o problema da morte, então talvez apreendamos o pleno significado dessa coisa imensa que está à nossa espera.

Primeiramente, gostaria de considerar junto convosco isso a que se pode chamar “pensamento negativo”. Bem poucos são os que pensam negativamente, e o pensar negativo é a mais elevada forma de pensamento; é ver o falso como falso, ver o que é verdadeiro no falso, e ver o que é verdadeiro na verdade. Não podemos ver o que é falso, se meramente consideramos o falso como oposto do verdadeiro; só podemos ver o que é falso quando não há nenhum contraste, nenhuma comparação. O contraste e a comparação nascem do pensar positivo. Se desejo compreender meu filho, por exemplo, tenho de desistir de comparar; devo olhá-lo assim como é. Se o considero em termos de aprovação ou reprovação — e tanto uma como outra coisa se baseiam na minha aceitação de um padrão estabelecido pela tradição, pela experiência, pela opinião, etc. — nesse caso, o chamado pensamento positivo e a chamada ação positiva me impedem a compreensão. Só podemos compreender quando não há comparação, nem julgamento, mas a simples percepção do fato real; e essa percepção é pensar negativo.

Desejaria explicar um pouco mais esse pensar negativo, porque, para percebermos sua extraordinária beleza e vitalidade, precisamos em primeiro lugar compreender o estado da mente que se acha livre do “conhecido”. Cumpre escutar o que se está dizendo, não como se fosse uma exposição filosófica, ou um sistema que deveis seguir, porém escutá-lo para descobrirdes, por vós mesmo, a verdade contida na questão. Aí sentados, como estais, experimentai realmente o que se está dizendo. Não deixeis para pensar nisso posteriormente — “posteriormente” não significa nada. Para o compreenderdes tendes de vivê-lo agora, no momento presente.

Falei do “pensar negativo” e disse ser a mais elevada forma de pensamento. Nós, em geral, nunca nos achamos num estado no qual digamos “Não sei” — a não ser num sentido muito superficial. Há dois estados de “não saber”. Num deles, a mente diz “Não sei”, mas espera ou procura uma resposta. Nesse estado a mente traduz o que encontra conforme seu próprio fundo ou condicionamento. No escutar, peço-vos experimenteis convosco, para verdes que realmente é assim. Mas há um outro estado em que a mente diz: “Não sei”, e não espera nem procura resposta nenhuma. Está ela, então, completamente vazia, seu estado é de negação total, e só para essa mente é que pode despontar aquela coisa extraordinária denominada “criação”.

Espero ter esclarecido bem os dois estados: o da mente positiva, que diz: “Não sei”, mas quer saber, e o da mente que diz “não sei” e nenhuma resposta está procurando. Em regra, é-nos extremamente difícil acharmo-nos no estado de “não saber”, em que não se procura resposta, porque não gostamos da incerteza. Mas a mente que tem certeza está ainda enredada no “conhecido”, e é necessário estarmos completamente livres do conhecido para compreendermos o incognoscível, que é a morte. Vejamos, pois, o que se implica na negação da “vida do conhecido”.

Para a maioria de nós, a vida é conflito, dor. Há luta incessante, efêmera alegria, muitas pressões e tensões, um fundo de memória acumulada que “responde” a cada desafio, e cuja resposta é sempre inadequada. Há o preenchimento e o sofrimento decorrente do não preenchimento; há avidez, inveja, cólera, ódio, angústia; há o denominado “amor”, uma chama toda envolta na fumaceira do apego, da dependência, do ciúme. O tédio de ir para o emprego diariamente, a familiaridade e o desdém existentes em nossas relações, a constante “corrente subterrânea” do medo — eis a nossa vida, para a qual desejamos continuidade. Nossa vida cotidiana se tornou um hábito. Ela é superficial, vazia, e procuramos preencher esse vazio com crenças e dogmas religiosos, com santos, salvadores, mestres. Nossa vida, com seus apetites sexuais, sua ânsia de fama, seu desejo de conforto, poder, posição, prestígio — é um círculo fechado de esperança e desespero. Eis tudo o que conhecemos; e quando a morte chega, tememos deixar o “conhecido”, deixar esta nossa insignificante vida, porque com ela estamos tão acostumados! Eis porque há conflito entre o viver e o morrer. As posses a que estamos apegados, nosso dinheiro, nossa casa, nossa família, nosso nome, nosso caráter, nossa experiência, nossa lembrança das coisas que fizemos e que não fizemos — tudo isso constitui o “conhecido” e, quando se aproxima a morte, temos medo de deixá-lo. Queremos a continuidade de todas as insignificâncias que conhecemos.

Ora bem. Podeis ter ideias, teorias, a respeito da reencarnação, da ressurreição, ou podeis estar apegados a alguma outra crença, mas a morte é o fim da “vida do conhecido”; e o mais importante é rejeitarmos a “vida do conhecido” — rejeitá-la sem motivo algum. Por “vida do conhecido” entendo nossa vida de mesquinhez, ciúmes, nossa ambição, nossa avidez. Temos de rejeitar totalmente essa vida, cortá-la pela raiz, mas sem haver motivo algum para fazê-lo; porque, se temos algum motivo, esse próprio motivo dá continuidade à “vida do conhecido” e, por consequência, não há possibilidade de se experimentar a extraordinária profundeza da morte.

Em geral, é com amargor que chegamos ao “fim do conhecido”; chegamos ao fim de nosso cativeiro, cheios de ansiedade e medo. Não morremos felizes, calmos, belamente. A ideia da morte nos põe num estado de desespero e, por essa razão, se somos sutis, inventamos uma filosofia do desespero, ou recorremos à “filosofia da esperança”, como o faz a maioria das pessoas chamadas religiosas. Ora, o relevante é rejeitarmos tudo isso por o termos compreendido, quer dizer, rejeitarmos, sem qualquer razão, a vida que conhecemos; e veremos, então, que nossa mente se achará num estado em que começará a libertar-se do “conhecido”. Essa é uma das coisas que precisamos fazer, a fim de podermos compreender a imensidade e a potência criadora da morte.

E agora consideremos a questão do tempo. Há tempo cronológico e tempo psicológico. Não estou falando do tempo cronológico, do tempo marcado pelo badalar do sino daquela igreja. Refiro-me à terminação do tempo psicológico, e essa terminação só pode verificar-se quando a mente não está buscando, obtendo, “chegando”; compreendeu inteiramente esse “mecanismo” e, por conseguinte, não há o amanhã como resultado das experiências de hoje.

O tempo em cujo decurso vamos para o emprego, nos dirigimos a um encontro com alguém, tomamos um ônibus, etc., é coisa completamente diferente do tempo psicológico, que formamos com a esperança; eu não sei, mas saberei; estou enraivecido, mas me encontrarei finalmente num estado de paz; sou nacionalista, estreito, fanático, mas o tempo gradualmente trará a libertação desse estado de mediocridade. O tempo, a mente o utiliza para mover-se, psicologicamente, daqui para ali. E enquanto existir em cada um de nós esse tempo psicológico, não haverá possibilidade de compreendermos o que é a morte.

Para compreender o que é a morte, a mente deve estar completamente livre do medo. Deve achar-se num estado em que diz para si própria: “Eu não sei” — e não procura nem deseja resposta alguma. Esse é o estado livre do conhecido. Significa que a mente já não busca, psicologicamente, preparar-se para, através do tempo, “vir a ser alguma coisa”. Vereis, então, se aí chegardes, que toda ideia de continuidade cessa por inteiro. Morre a mente para todas as suas insignificantes ansiedades, apetites, invejas, vaidades — morre para tudo isso imediatamente, e nesse morrer nenhuma ideia existe de continuidade. Só quando há um fim, pode haver um novo começo. Com o “fim do passado”, desponta algo totalmente novo.

O que chamamos “pensamento” dá à mente a ideia da continuidade — e eis o que é “tempo psicológico”, porquanto todo pensamento resulta de nosso condicionamento, nossa memória, nossa experiência. Todo desafio provoca uma “resposta” desse fundo, e essa resposta é o pensamento “em ação”, por conseguinte, não há espontaneidade, jamais há “resposta” que esteja livre do passado. Mas, quando tem fim o nosso pensamento, nossa avidez, nossa inveja, nossa ambição e sede de poder, toda a estrutura psicológica da sociedade, que constitui o “eu” — quando tudo isso termina, sem motivo algum, a mente se acha num estado de “não saber”, completamente vazia; e só então há morte.

Que sucede, na realidade, quando morreis fisicamente? Deixais tudo para trás; nada podeis levar convosco. Não importa quantos motivos tenhais para viver, com a morte não se discute. Não podeis dizer à morte: “Ainda preciso fazer isto e aquilo, dai-me mais um mês, mais um ano”. Quando a morte chega, ela lá está, absoluta, peremptória. Podeis crer na reencarnação ou noutra forma de ressurreição, no futuro, mas todas as crenças são irrelevantes ao terdes pela frente o fato da morte. E se, interiormente, morrerdes para a estrutura psicológica da sociedade, para todas as acumulações do passado, podereis ver que a morte é criação — não a criação do escritor, do músico, do pintor, do cientista, porém criação que não tem começo nem fim. E, se não estamos nesse estado de criação, que é morte, que é amor, nossa vida pouco significa.

Por conseguinte, não tomeis o que estou dizendo por uma certa filosofia lógica ou superlógica, mas penetrai realmente em vós mesmo, compreendendo-vos completamente. Negai totalmente tudo o que até agora considerastes vida — vossas experiências, vossa ambição, vossa avidez, vossa inveja — e vereis que nesse findar se encontra uma morte que é “criação atemporal” e que, se desejardes dar-lhe nome diferente, se pode chamar “Deus”, o “imensurável”, o “desconhecido”.

Krishnamurti, Saanen, 7 de agosto de 1962,
O homem e seus desejos em conflito

segunda-feira, 9 de abril de 2018

Atenção é um estado de “não saber”

Atenção é um estado de “não saber”

Se permitis, prosseguiremos com o que estávamos falando anteontem, ou seja sobre o significado da meditação. No Oriente, a meditação é uma prática diária de suma importância para aqueles que a exercem profundamente; mas talvez não seja tão importante nem tão séria no Ocidente. Mas, por ela envolver o mecanismo total da vida, convém considerar o seu significado.

Seria de todo fútil limitarmo-nos a seguir palavras ou frases, permanecendo no mero nível verbal. Se apenas seguimos esta questão intelectualmente, isso é o mesmo que acompanhar um ataúde até a cova. Mas, se deveras a aprofundardes, ela vos revelará as coisas mais extraordinárias da vida. Como disse, não estamos lendo o primeiro capítulo de um livro, porquanto não tem fim o mecanismo total da vida. Temos, porém, de considerar cada ponto que for surgindo.

Examinaremos a matéria com certa profundeza e amplitude, como o vereis; mas, antes disso, acho necessário compreender o que é pensamento negativo e o que é pensamento positivo. Não estou empregando as palavras “positivo” e “negativo” em sentidos opostos. Os mais de nós pensamos positivamente, acumulamos, adicionamos; ou, quando achamos conveniente, proveitoso, subtraímos. O pensamento positivo é imitativo, acomodatício, ajustando-se ao padrão da sociedade ou àquilo que deseja; e com esse pensamento positivo estamos quase todos satisfeitos. Para mim, tal pensamento não conduz a parte alguma. Mas o pensamento negativo não é o oposto do pensamento positivo; constituí um estado, um processo completamente diferente; e, a meu ver, impede compreender isso claramente, antes de prosseguirmos. Pensar negativamente é desnudar a mente de todo; pensar negativamente é aquietar o intelecto, o repositório de reações.

Deveis ter notado que o intelecto está constantemente muito ativo, constantemente reagindo; o intelecto tem de reagir, senão morre. E, no seu reagir, ele cria “mecanismos” positivos a que chama “pensar”; e todos esses mecanismo são defensivos, mecânicos. Quem observa seu próprio pensar poderá ver que o que estou dizendo é muito simples, nada complicado.

O mais importante é manter-se o intelecto plenamente desperto e sensível, sem reagir; por essa razão, considero necessário pensar negativamente. Poderemos depois apreciar isso mais extensamente, mas, se compreendestes o que acabo de dizer, vereis que o pensamento negativo não implica esforço algum, ao passo que o pensamento positivo exige esforço; e esforço é conflito e implica consecução de objetivo, repressão, contradição.

Observai vossa própria mente, vosso próprio intelecto a funcionar; não vos limiteis a ouvir minhas palavras. As palavras não têm significação profunda, servindo unicamente para transmitir, comunicar algo. Se permanecerdes no nível verbal, não podereis ir muito longe.

Sabemos, pois, que — por motivo de nossa educação, meio cultural, influências sociais, religiosas, etc. — todos nós temos o intelecto muito ativo, mas a totalidade da mente está bem embotada. E tornar o intelecto tranquilo e ao mesmo tempo plenamente sensível, ativo mas sem cultivar meios de defesa, isso é tarefa verdadeiramente árdua, como deveis saber se já considerastes esta matéria. E manter o intelecto extraordinariamente ativo, porém totalmente tranquilo, isso nenhum esforço exige.

O esforço afigura-se à maioria de nós como uma parte de nossa existência; aparentemente, não podemos viver sem ele: o esforço para sairmos da cama de manhã, o esforço de irmos para a escola, o escritório, o esforço para sustentar uma atividade contínua, o esforço para amarmos alguém. Toda a nossa vida, do momento de nascermos ao momento de baixarmos à sepultura, é uma série de esforços. Esforço implica conflito; e nenhum esforço existe no observar as coisas tais como são, o fato, tal qual é. Mas nós nunca nos observamos como somos, consciente ou inconscientemente. Sempre tratamos de modificar, substituir, transformar, reprimir o que vemos em nós mesmos. Tudo isso gera conflito; e a mente, o intelecto que se acha em conflito nunca está quieto. E para pensarmos profundamente, penetrarmos mui profundamente, necessitamos de um intelecto que não esteja embotado, que não esteja disposto a dormir, que não se deixe narcotizar pela crença, pelas suas defesas — necessitamos de um intelecto intensamente ativo e ao mesmo tempo tranquilo.

É o conflito que embota a totalidade da mente; assim, se desejamos investigar a questão da meditação, se desejamos penetrar profundamente a vida, temos, desde o início, de compreender o conflito e o esforço. Se tendes observado, deveis saber que nosso esforço é sempre para alcançarmos um alvo, tornar-nos alguma coisa, termos êxito; e por essa razão existe conflito e frustração, com o inerente sofrimento, esperança e desespero. E o que está sempre, a todos os momentos, em conflito, embota-se. Não conhecemos pessoas que vivem em contínuo conflito, e não sabemos como estão embotadas? Assim, para podermos ir muito longe e muito profundamente, temos de compreender perfeitamente a questão do conflito e do esforço. O esforço, o conflito resulta do pensamento positivo; quando há pensar negativo — a mais elevada forma do pensar — não há esforço, nem conflito.

Ora, todo pensar é mecânico, porquanto todo o pensar constitui uma reação de nosso fundo de experiência, nosso fundo de memória E, sendo mecânico, o pensar nunca pode ser livre. Poderá ser razoá­vel, sensato, lógico, conforme o seu fundo (background), sua educação, seu condicionamento; mas o pensar nunca pode ser livre.

Não sei se já experimentastes descobrir o que é pensar, não me refiro à definição lexicológica da palavra, ou à respectiva ideia filosó­fica, mas pergunto se já observastes que o pensar é reação.

Prestai atenção, porquanto temos de examinar esta matéria. Quando vos faço uma pergunta familiar, respondeis imediatamente, porque estais familiarizado com a resposta. Se se faz pergunta um pouco mais complicada, há um retardamento da resposta, enquanto o intelecto está funcionando, a buscar na memória a resposta. Se a pergunta é mais complicada ainda, mais longo se torna o intervalo de tempo, durante o qual o cérebro está a pensar, a buscar, esforçando-se por achar a resposta. E se vos fazem uma pergunta com a qual não estais absolutamente familiarizado, dizeis: “Não sei”. Mas esse “não sei” representa um estado em que o intelecto está esperando achar uma resposta, seja consultando livros, seja perguntando a alguém; ele espera achar a resposta. Todo esse mecanismo de pensar é, acho eu, muito fácil de perceber; é o que estamos fazendo a todas as horas, é a reação do Intelecto, provinda de nosso depósito de experiências, conhecimentos.

Ora, o estado da mente que diz “não sei” e aguarda uma resposta difere por inteiro do estado da mente que diz “não sei” e não fica à espera de resposta. Espero estejais entendendo, porquanto, se isso não ficar bem claro, receio que não podereis compreender o que vem a seguir. Ainda estamos falando sobre meditação e penetrando o problema do intelecto e da mente. Se não se compreende a raiz do pensamento, é completamente impossível transcender o pensamento.

Há dois estados: o intelecto que diz “não sei” e procura resposta, e o outro estado de “não saber”, por não haver resposta. Se isso ficar bem claro, podemos então passar a investigar a questão da atenção e da concentração.

Todos sabem o que é concentração. Sabe-o o colegial, quando deseja olhar para a janela e o professor lhe diz: “olhe para seu livro”. O colegial obriga sua mente a olhar para o livro, quando seu desejo real é olhar pela janela; por conseguinte, há conflito. É familiar à maioria de nós esse mecanismo de obrigar o intelecto a concentrar-se. E tal mecanismo de concentração é mecanismo de exclusão, não achais? Vedais o acesso, fechais a porta a qualquer coisa que perturbe a concentração. Por conseguinte, onde há concentração, há distração. Estais entendendo? Pois educam-nos para nos concentrarmos — que é mecanismo de excluir, vedar — e por isso há distração, conflito.

Ora bem, a atenção não é mecanismo de concentração, e nela não há distração. À atenção é coisa bem diversa, e vou agora apreciá-la.

Notai, por favor, que estamos falando de assunto muito sério; e vir aqui não é como ir a um concerto para divertimento. Este assunto requer grande trabalho de vossa parte, significa examinar sem nenhuma tendência para desejar ou não desejar. Se não podeis acompanhar-me seriamente, nesse caso ficai tranquilamente a escutar, escutai as palavras e esquecei-as. Mas, se penetrardes profundamente, há muita coisa para descobrir. Porque vereis — enquanto vou aprofundando a questão — que a liberdade é necessária. Quando a mente está em conflito, fazendo esforço, não há liberdade; não a há, tampouco, quando há concentração e resistência à distração. Mas, se compreendemos o que é a atenção, estamos então, também, começando a compreender que o conflito cessou completamente, existindo, portanto, a possibilidade de ficar a mente de todo livre — não apenas a mente superficial, senão também a mente inconsciente, onde se ocultam nossos secretos pensamentos e desejos.

Já sabemos o que é concentração; mas, que é atenção? Faço esta pergunta e a reação instintiva de cada um é achar a resposta, dar uma explicação, uma definição; e quanto mais engenhosa a explicação, mais satisfeitos ficamos. Não estou dando nenhuma definição; estamos investigando negativamente. Se se investiga com o pensar positivo, nunca se descobrirá a beleza da atenção. Mas, se compreendestes o que é pensar negativo — que não é pensar em termos de reação, e, nele, o intelecto não pede resposta alguma — descobrireis então o que é atenção. Vou examinar isso um pouco.

Atenção não é concentração; nela não há distração; na atenção não há conflito, não há busca de fim; o intelecto, portanto, está atento, o que significa que não tem fronteiras; está tranquilo. Atenção é o estado mental em que desapareceu todo o conhecimento, e só há investigação.

Tentai, uma vez, uma coisa simples. Ao sairdes a passeio, ficai atento. Notareis como ouvireis, como vereis muito mais do que com o intelecto concentrado; porque atenção é um estado de “não saber” e, portanto, de investigação. O intelecto, então, investiga, sem causa, sem motivo — e essa é a investigação pura, a qualidade da verdadeira mente científica. Ela pode ter conhecimentos, mas seus conhecimentos não interferem na investigação. Por conseguinte, uma mente ativa é capaz de concentrar-se; mas sua concentração não é resistência nem exclusão. Estais-me seguindo?

Esse estado de atenção é próprio da mente que não está atulhada de informações, conhecimentos, experiências; o estado da mente que vive no “não saber”. Isso significa que o intelecto, a mente, abandonou todas as influências, todos os preconceitos, todas as sanções; compreendeu a autoridade, dissolveu a ambição, a inveja, a avidez e está totalmente oposta à sociedade e sua moral. Ela já não segue. Essa mente já pode investigar.

Ora, para se investigar profundamente, requer-se silêncio. Se desejo admirar aquelas montanhas e ouvir a correnteza do rio, não só o meu intelecto deve estar tranquilo, mas também minha mente inteira — consciente e inconsciente — deve estar de todo quieta, para ouvir. Se o intelecto está a tagarelar, se a mente deseja apreender, segurar, então já não está vendo, escutando a beleza do som da corrente. A investigação, portanto, implica liberdade e silêncio.

Como sabeis, já se escreveram livros sobre como alcançar uma mente serena por meio da meditação e da concentração. Volumes já foram escritos acerca desta matéria — mas isso não significa que eu tenha lido qualquer deles. Pessoas que me procuram me têm falado a respeito deles. Exercitar a mente para se tornar silenciosa é puro contrassenso. Se treinais vossa mente para se tornar silenciosa, achai-vos então num estado de decadência, porquanto a mente que se ajusta por medo, por avidez, inveja ou ambição, é mente morta, embotada, estúpida. A mente embotada, estúpida, pode tornar-se quieta, mas permanecerá limitada e medíocre, e nada novo chegará a ela.

Assim, a mente atenta está isenta de conflito e, portanto, é livre; e essa mente é tranquila, silenciosa. Não sei se já alcançastes este ponto; se o alcançastes, deveis saber que isso de que estou falando é meditação.

Nesse processo de autoconhecimento, descobrireis que a mente silenciosa não é mente morta, porém em extremo ativa. Sua atividade não é a atividade que visa a um objetivo, nem atividade de somar e subtrair; porque esse estado intensamente ativo se tornou existente sem busca e sem esforço algum; em todo o percurso, ela tudo compreendeu, cada fase de seu existir. Não houve repressão de espécie alguma e, portanto, não há medo, nem imitação, nem ajustamento. E se a mente faz estas coisas, não há possibilidade de silêncio.

Agora, que acontece depois disso? Até agora empregamos palavras para efeito de comunicação; mas a palavra não é a coisa. A palavra “silêncio” não é o silêncio. Portanto, compreendei isto: para existir o silêncio, a mente deve estar livre da palavra.

Ora, quando a mente está verdadeiramente tranquila, portanto, ativa e livre, e não se está importando com a comunicação, a expressão, a realização — é então que há criação. Essa criação não é uma visão. Os cristãos têm visões do Cristo; e os hínduístas têm igualmente visões de seus pequenos deuses ou grandes deuses. Estão reagindo de acordo com seu condicionamento; estão projetando suas visões, e o que eles veem nasce de seu próprio fundo (background); o que veem não é o fato, porém coisa “projetada” de seus desejos, ânsias, esperanças. Mas a mente atenta e silenciosa não tem visões, porque se libertou de todo o seu condicionamento. Desse modo, essa mente sabe o que é a criação — que é coisa bem diferente da chamada “ação criadora” do músico, do pintor, do poeta.

Em seguida, se já alcançastes este ponto, vereis que há um estado mental fora do tempo e do espaço, em que, por conseguinte, se pode ver ou receber o imensurável. E o que se vê e se sente, tal como o estado de experimentar, pertencem ao momento e não são para guardar na memória.

Assim, aquela realidade imensurável, indenominável, que nenhuma palavra tem, aquela realidade só se manifesta quando a mente está toda livre e silenciosa, num estado de criação. O estado de criação não é um simples estado alcoólico, estimulado; mas quando uma pessoa compreendeu e passou por esse processo de autoconhecimento, e se acha livre de todas as reações de inveja, ambição e avidez, ver-se-á, então, que a criação é sempre nova e, por conseguinte, sempre destrutiva. E a criação nunca pode existir dentro da estrutura da sociedade, dentro da estrutura de uma individualidade limitada. Por conseguinte, a individualidade limitada a buscar a realidade nenhuma significação tem. E, quando há aquela criação, dá-se a total destruição de todas as coisas que um homem acumulou, e, por conseguinte, existe sempre o novo. E o novo é sempre verdadeiro, imensurável.

PERGUNTA: O “estado de atenção total” e o “desejo sem motivo” são a mesma coisa?
KRISHNAMURTI: Senhores, o desejo é uma coisa extraordinária, não achais? O desejo, para nós, é cheio de torturas; conhecemos o desejo como conflito e, por isso, lhe impusemos limitações. E nossos desejos são tão insignificantes, tão estreitos, tão mesquinhos, tão medíocres! Desejamos um carro, desejamos ser mais belos, desejamos conseguir algo. Vede como tudo isso é insignificante! E eu pergunto se existe desejo sem torturas, sem esperança e desespero. Existe. Mas isso não pode ser compreendido enquanto o desejo gerar conflito. Mas, havendo compreensão da totalidade do desejo, dos motivos, das torturas, das renúncias, da disciplina, dos tormentos que atravessamos — quando tudo isso foi compreendido, dissolvido, de modo que desapareceu completamente — então, talvez o desejo seja coisa diferente. Poderá ser Amor. E o amor pode ter sua expressão própria. O amor não tem amanhã e não pensa no passado; e isso significa que o intelecto não atua sobre o amor. Não sei se já observastes isto: como o intelecto interfere no amor, diz que ele deve ser respeitável, divide-o como divino e pecaminoso, está sempre a moldá-lo, controlá-lo, guiá-lo, ajustando-o ao padrão da sociedade ou da própria experiência.

Há, porém, estado de afeição, de amor, no qual não interfere o intelecto; e esse amor talvez possa ser encontrado. Mas, por que comparar? Por que dizer “ele é assim ou assado”?

Senhores, não sei se já observastes uma gota de chuva que caí do céu. Essa gota é da mesma natureza que todos os rios e todos os oceanos, todas as torrentes, e da água que bebeis. Mas aquela gota de chuva não está pensando que irá ser o rio. Ela cai, completa, total. Da mesma maneira, quando a mente passou por todo esse processo de autoconhecimento, ela está completa. Nesse estado não há comparação. A criação não é comparativa; e porque é destrutiva, não contém em si nada de velho.

Sendo assim, devemos, não verbal ou intelectualmente, porém realmente, empenhar-nos nesse processo de autoconhecimento, agora e por todo o sempre, pois não há fim do autoconhecimento. E como não tem fim, não tem começo e, por conseguinte, está no presente.

Outra coisa sobre a qual desejo falar é esta: por que gostamos de adorar? Como sabeis, todos gostamos de adorar um símbolo, um Cristo, um Buda. Por quê? Eu poderia apresentar-vos uma multidão de explicações: gostamos de identificar-nos com algo que é maior do que nós; gostamos de entregar-nos a algo que pensamos ser verdadeiro; gostamos de estar na presença de algo sagrado, etc. Mas a mente que adora é mente que está a morrer, a declinar. Quer cultueis o herói que vai alcançar a Lua, o herói do passado ou do presente, quer cultueis o homem que vos fala de um palanque, tudo vem a ser a mesma coisa; se rendeis culto, o estado criador nunca se tornará existente, nunca poderá aproximar-se de vós. E a mente que não conhece esse estado extraordinário sofre perenemente. Assim, uma vez compreendido o problema do culto, ele morre, como o cair de uma folha no outono. Pode então a mente prosseguir, livre de barreiras.

Krishnamurti, Saanen, 8 de agosto de 1961, O Passo Decisivo

sexta-feira, 6 de abril de 2018

Meditação e a percepção do mecanismo do "eu"

Meditação é a percepção 
do mecanismo do "eu"

PERGUNTA: Pareceis rejeitar a ioga, e concordo convosco em que a ioga é muitas vezes praticada como método de fugir a 'o que é'. Mas, se evitamos a fixação artificial da mente num objeto escolhido e permitimos que a nossa chamada meditação assuma o caráter de investigação, abrangendo todo o campo de 'o que é', sem esperar resposta, isso, sem dúvida, é o que costumais recomendar. Não achais, também, que poderíamos executar mais facilmente essa coisa difícil se tivéssemos aprendido a quietar o corpo e a respiração?

KRISHNAMURTI: O interrogante, com efeito, deseja saber "como meditar": se o quietar o corpo e controlar a respiração não facilitará a meditação, que é o processo de investigação de todo o campo de 'o que é', sem fugir dele. Vejamos, pois, se podemos descobrir "como meditar". Ora, se tiverdes a bondade de escutar sem focar a atenção numa determinada sentença, numa determinada frase da resposta, poderíamos investigar, juntos, toda a questão de "como meditar". Para mim, o "como" não constitui, em absoluto, o problema. O problema é: que é meditação? Se não sei o que é meditação, a mera pergunta sobre como meditar nada significa. O que investigo, pois, não é "como meditar", que método seguir, como estar apercebido de 'o que é', sem fugir, como quedar-me tranquilo, como repetir certas palavras, etc. Não estamos tratando de nada disso. Se sei o que é meditação, então a questão de "como meditar" não constituirá problema algum, naturalmente.

Ora, que é meditação? Como não sabemos o que é meditação, não temos nenhuma ideia sobre como começar. Devemos, pois, abeirar-nos do problema com a mente aberta, não é verdade? Compreendeis? Deveis abeirar-vos dele com uma mente livre, dizendo "Não sei", e não com uma mente ocupada, perguntando "Como meditar?" Vede: se verdadeiramente prestardes atenção a este problema — o que não significa aderir ao que estou dizendo, mas, sim, experimentar realmente a coisa, ao mesmo tempo que vamos falando — descobrireis por vós mesmo o significado da meditação. Até agora nos temos abeirado do problema com uma atitude de indagação sobre "como meditar", que sistemas seguir, como respirar, quais as práticas da ioga que convém adotar, etc., etc.; porque, pensando que sabemos o que é meditação, achamos que o "como" nos levará a algo. Mas sabemos de fato o que é meditação? Eu não sei, e penso que vós também não sabeis. Portanto, nós dois temos de abeirar-nos da questão com uma mente que diz "Não sei", ainda que tenhamos lido centenas de livros e praticado muitas disciplinas da ioga. Vós não sabeis, realmente. Só estais esperando, só estais desejando, querendo chegar, através de determinado padrão de ação, de disciplina, a certo estado. E tal estado pode ser completamente ilusório; pode ser apenas o vosso próprio desejo. E, sem dúvida o é; é a vossa própria "projeção", como reação à vossa aflitiva existência diária.

Assim, a primeira coisa, a coisa essencial, não é "Como meditar?", mas, sim, descobrir o que é meditação. Portanto, a mente deve chegar-se a esse problema sem nada saber; e isso é dificílimo. Estamos muito acostumados a pensar que a meditação requer necessariamente um determinado sistema — repetição de palavras, na oração, adoção de uma determinada postura, fixação da mente em certa frase ou imagem, respirar de maneira regular, manter o corpo num estado muito tranquilo, controle completo da mente; estamos bem familiarizados com tudo isso. E pensamos que nos levará a alguma coisa que se acha além da mente, além do mecanismo transitório do pensamento. Pensamos que já sabemos o que desejamos, e agora estamos comparando os diferentes métodos para saber qual é o melhor de todos. A questão relativa a "como meditar" é completamente falsa. Mas posso descobrir o que é meditação? Esta é a questão real. É uma coisa extraordinária o meditar, o saber o que é meditação e, portanto, investiguemo-la. Sem dúvida, a meditação não é a prática de qualquer sistema, achais que é? Pode a minha mente eliminar de todo esta tradição de disciplina, de método? Tradição existente não só aqui, mas também na Índia? Essa eliminação é necessária — não achais? —, visto que não sabemos o que é meditação. Sei como concentrar-me, como controlar, disciplinar, sei o que devo fazer; mas não sei o fim a que se chega com isso. Disseram-me, apenas: "Se fizerdes estas coisas, alcançareis algo", e, como sou ávido, ponho-me a praticar tais exercícios. Assim, pois, a fim de descobrir o que é meditação, posso eliminar a exigência do método?

A própria investigação desta questão é meditação, não é? Estou meditando no momento em que começo a indagar o que é meditação, em vez de "como meditar?" No momento em que começo a descobrir, por mim mesmo, o que é meditação, a minha mente, como não o sabe, tem de rejeitar tudo o que sabe, o que significa que tenho de pôr à margem o meu desejo de alcançar um estado. Porque o desejo de alcançar é a raiz, é a base da minha busca de método. Tenho conhecido momentos de paz, de serenidade, e o sentimento de um "outro estado"; e desejo alcançá-lo de novo, torná-lo um estado permanente; e por esta razão ponho-me a procurar o "como". Penso que já sei o que é aquele outro estado, e que um método me conduzirá a ele. Mas, se já sei o que é essa outra coisa, ela então não é a coisa verdadeira, porém, sim, meramente uma projeção de meu próprio desejo. Minha mente, quando está deveras investigando o que é meditação, compreende o desejo de realização, obtenção de resultado e, portanto, está livre dele, do desejo. Por conseguinte, ela se livrou completamente de toda e qualquer autoridade; pois não sabemos o que é meditação, e ninguém pode dizer-nos o que ela é. Minha mente está, toda ela, num estado de "não saber"; não recorre a nenhum método, oração, repetição de palavras, concentração, porquanto percebe que a concentração é simplesmente outra forma de realização. A concentração da mente numa dada ideia, esperando que assim se exercitará para ir mais além, mediante "exclusão", essa concentração implica também um "estado de saber". Assim, se eu "não sei", então todas estas coisas terão de desaparecer; não estou mais pensando em termos de realizar algo, de chegar a um fim. Já não há a ideia de que a acumulação me ajudará a alcançar a outra margem.

Assim, depois de fazer isso, já não descobri o que é meditação? Não há conflito, não há luta; há compreensão da desnecessidade de acumular, compreensão, a todas as horas, e não em dado momento. Meditação, pois, é o processo de completo desnudamento da mente, depuração de toda tendência de acumulação e realização, que constitui a própria natureza do "eu". A prática de métodos variados só poderá tornar mais forte o "eu". Podeis disfarçar o "eu", embelecê-lo, requintá-lo; mas ele é sempre o "eu". A meditação, pois, é o descobrimento das atividades do "eu".

Vereis, se vos aprofundardes bastante nisso, que nunca há um momento em que a meditação se torna hábito. Porque o hábito implica acumulação, e, onde há acumulação, há o mecanismo do "eu" a pedir mais, a exigir mais acumulação. Tal meditação está dentro da esfera do conhecido, e nenhuma significação tem, a não ser como método de auto-hipnotismo. A mente só pode dizer "Não sei" — realmente e não apenas verbalmente - depois de haver eliminado, pelo percebimento, pelo autoconhecimento, toda ideia de acumulação. A meditação, pois, significa, "morrermos para nossas acumulações", e não o alcançar de um estado de silêncio, de tranquilidade. Enquanto a mente for capaz de acumular existirá sempre a ânsia de mais. E o mais exige o sistema, o método, o estabelecimento da autoridade, coisas essas que representam, verdadeiramente, a própria tática do "eu". Depois de perceber a falácia de tudo isso, a mente se vê num estado de "não saber". Esta mente pode perceber aquilo que não é mensurável e que só pode manifestar-se momento por momento.

Krishnamurti, Sexta Conferência em Londres, 26 de junho de 1955

quinta-feira, 5 de abril de 2018

O bem-aventurado estado de “não saber”


O bem-aventurado estado de “não saber”

É um fato muito evidente que os entes humanos necessitam de algo para adorar. Vós e eu e muitos outros desejamos ter algo sagrado nas nossas vidas, e por isso frequentamos os templos, as mesquitas, as igrejas, ou temos outros símbolos, imagens, ideias, a que veneramos. Esta necessidade de adorar parece muito premente, porque queremos ser levados para fora de nós mesmos, para algo que seja mais amplo, mais profundo, mais permanente; e, assim, começamos a inventar Mestres, instrutores, divindades celestiais ou terrenas, criamos símbolos vários, a Cruz, o Crescente, etc. Ou se nenhuma dessas coisas nos dá satisfação, começamos a especular sobre o que existe além da mente, sustentando que lá se acha algo que é sagrado e a que se deve adorar. É o que acontece, na nossa, existência de cada dia, e disso, penso, quase todos estamos bem apercebidos. Há sempre esse esforço dentro do campo do conhecido, do campo da mente, da memória, e nunca parecemos capazes de nos desvencilhar e achar algo que não seja fabricado pela mente.

Assim, pois, desejo, nesta manhã, investigar se existe algo realmente sagrado, algo imensurável, impossível de ser sondado pela mente. Para tanto, necessita-se, sem, dúvida, de uma revolução no nosso pensar, nos nossos valores. Não me refiro à revolução econômica, ou social, que só revela falta de madureza; tal revolução poderá ter efeitos superficiais nas nossas vidas, mas, fundamentalmente, não é a revolução verdadeira. Refiro-me à revolução que se realiza pelo autoconhecimento — não o conhecimento superficial, alcançado mediante um exame do pensamento, à superfície da mente, mas o autoconhecimento que alcança os recessos mais profundos da mente.

Sem dúvida, uma das nossas maiores dificuldades reside no fato de que todo nosso esforço se limita à esfera do reconhecimento. Parecemos funcionar unicamente dentro dos limites das coisas que somos capazes de reconhecer, isto é, dentro da esfera da memória. E há possibilidade de a mente ultrapassar essa esfera? A memória, evidentemente, é necessária, num certo nível. Preciso lembrar-me do caminho de minha casa. Se me fazeis uma pergunta a respeito de uma coisa com que estou, bem familiarizado, minha, resposta é imediata.

Se me permitis sugeri-lo, tende a bondade de observar a vossa mente, enquanto estou falando; pois, como desejo examinar esta questão com certa profundeza, se ficardes apenas a seguir a explicação verbal, sem a aplicardes imediatamente, tal explicação não terá significado algum. Se enquanto escutais, estais dizendo: “Refletirei sobre isto amanhã, ou depois da reunião” — as palavras ir-se-ão, e a explicação nenhum valor terá. Mas se derdes atenção completa ao que estou dizendo e fordes capazes de aplicá-lo — o que significa estar apercebido dos próprios mecanismos intelectuais e emocionais — vereis então que o que estou dizendo tem significação, imediatamente.

Como disse, há uma reação instantânea diante de qualquer coisa que se conhece intimamente; quando se vos faz uma pergunta sobre assunto bem conhecido, respondeis prontamente, a reação é imediata. E se vos perguntam a respeito de uma questão com que não estais bem familiarizado, que acontece? Começais a rebuscar nos arquivos da memória, procurais recordar-vos do que lestes ou pensastes a respeito da questão, rememorar a vossa própria experiência. Quer dizer, voltais ao passado, para examinar certas lembranças que adquiristes; porque o que se chama “saber” é essencialmente memória. Mas se vos perguntam sobre uma questão que ignorais completamente, a respeito da qual não tenhais registro algum na memória, e sois capaz de responder honestamente que não sabeis, então esse estado de “não saber” é o primeiro passo da verdadeira investigação do desconhecido.

Isto é, tecnicamente, temo-nos desenvolvido extraordinariamente, tornamo-nos habilíssimos em trabalhos mecânicos. Nas escolas aprendemos técnicas variadas — montar motores, reparar estradas, construir aeroplanos, etc. — e tudo isso é apenas cultivo da memória. Com esta mesma mentalidade queremos encontrar algo que transcende a mente e, assim, praticamos uma disciplina, seguimos um sistema ou pertencemos a alguma estúpida organização religiosa — pois todas as organizações dessa ordem são essencialmente estúpidas, por mais satisfatórias e consoladoras que sejam, temporariamente.

Ora bem, se pudermos examinar juntos esta questão — e acho-o possível, se lhe dermos a necessária atenção — terei muito gosto em investigar convosco se a mente é capaz de abandonar sua memória psicológica, de desistir de buscar nas coisas conhecidas aquilo que está oculto. Pois não é isso o que fazemos, quando estamos a buscar? Estamos a procurar, na esfera do conhecido, uma coisa que desconhecemos. Quando buscamos a felicidade, a paz, Deus, o Amor, etc., sempre o fazemos dentro da esfera do conhecido, porque a memória já nos insinuou, sugeriu, uma certa coisa, e temos fé nessa coisa. Nossa busca, portanto, se processa sempre na esfera do conhecido. E, mesmo na ciência, é só quando a mente deixa de examinar o conhecido, que é possível surgir algo novo. Mas a cessação dessa busca no conhecido, não resulta de determinação, ação voluntária. O dizer-se: “Não darei mais atenção ao conhecido, para ficar aberto ao desconhecido”, é uma coisa completamente infantil, sem significação nenhuma. Porque, então, a mente se põe a inventar, a especular, a experimentar coisas absurdas. A libertação da mente, do conhecido, só é possível pelo autoconhecimento, pela revolução que se realiza quando se compreende todos os dias o significado do ''eu”. Não se pode compreender o significado do “eu” se há acumulação de memória, e com a ajuda dela queremos compreender o “eu”. Entendeis?

Pensamos compreender as coisas mediante acumulação de conhecimentos, mediante comparação. Positivamente, por essa maneira nada se compreende. Se comparais uma coisa com outra, sois absorvido por essa ocupação. Só se pode compreender uma coisa quando lhe aplicamos toda a nossa atenção, e qualquer forma de comparação ou avaliação é uma distração.

O autoconhecimento, pois, não é acumulativo, e acho muito importante compreender isso. Se o autoconhecimento fosse acumulativo, então seria puramente mecânico, uma coisa semelhante à ciência do médico, que aprendeu uma técnica e passa toda a vida a especializar-se numa certa parte do corpo. Um cirurgião pode ser um excelente mecânico na sua cirurgia, porque aprendeu a técnica respectiva; tem conhecimento do ofício e talento para ele, e a experiência que vai acumulando lhe é muito útil. Mas não estamos falando a respeito de uma tal experiência cumulativa. Pelo contrário, qualquer forma de conhecimento cumulativo destrói todas as possibilidades de novos descobrimentos; mas, depois de feito o descobrimento, talvez se possa fazer uso da técnica cumulativa.

Sem dúvida, o que estou dizendo é muito simples. Se uma pessoa é capaz de estudar, de observar a si mesma, começa a descobrir como a memória cumulativa atua sobre todas as coisas que vê; fica a pessoa, continuamente, a avaliar, a rejeitar ou aceitar, condenar ou justificar, e, nessas condições, a sua experiência fica sempre restrita ao campo do conhecido, do condicionado.

Mas, sem a memória cumulativa, como diretriz, muitos de nós nos sentimos perdidos, cheios de medo, e por consequência incapacitados para observar a nós mesmos tais como somos. Sempre que há esse mecanismo de acumulação, que é cultivo da memória, a observação que fazemos de nós mesmos se torna muito superficial. A memória é útil para dirigir-nos, para melhorarmos a nós mesmos, mas no automelhoramento nunca pode haver uma revolução, uma transformação fundamental. Só quando se extingue completamente a ideia de automelhoramento — mas não pela volição — existe a possibilidade de surgir algo transcendental, algo completamente novo.

Assim, sendo, quer-me parecer que, enquanto não compreendermos o mecanismo do pensar, a compreensão puramente intelectual terá muito pouco valor. Que é pensar? Pensar é reação da memória, não? Se vos pergunto onde morais, vossa reação é imediata, pois é uma coisa com que estais perfeitamente familiarizado; reconheceis prontamente a casa, o nome da rua, etc. Esta é uma das formas de pensar. Se vos faço uma pergunta um pouco mais complicada, a vossa mente hesita; durante esta hesitação, está a remexer na sua vasta coleção de lembranças, nos registros do passado, em busca da resposta adequada. Esta é outra forma de pensar. Se vos faço uma pergunta mais complicada ainda, a vossa mente se torna confusa, perturbada; e como não gosta de perturbações, ela tenta por várias maneiras achar uma resposta — o que também é uma forma de pensar. Espero que estejais acompanhando bem esta explicação. E se vos pergunto a respeito de algo muito vasto e profundo, como, por exemplo, se sabeis o que é a Verdade, o que é Deus, o que é o Amor, então a vossa mente apela para o testemunho de outros; que supostamente experimentaram tais coisas, e começais a citar os seus ditos — a repetir. Finalmente, se vos faço reconhecer a futilidade de repetir o que outros dizem, de depender do testemunho de outros, que pode ser até muito absurdo, então, sem dúvida, sois forçado a dizer “Não sei".

Ora bem, se pudermos realmente atingir esse estado de “não saber”, isso denotará um extraordinário senso de humildade; não há, aí, a arrogância do saber, a resposta presunçosa, que visa a causar impressão. Quando sois capaz de dizer “não sei” — e muito poucas pessoas são capazes de tal — então, nesse estado, desaparece todo o temor, uma vez que terminou a atividade de reconhecimento, o rebuscar na memória; já não há busca nenhuma no campo do conhecido. É então que surge a coisa extraordinária. Se tendes seguido até aqui o que estou dizendo — não apenas verbalmente, mas experimentando de fato, vereis que quando sois capaz de dizer “não sei”, desapareceu todo o condicionamento. E qual é então o estado da mente? Compreendeis o que estou dizendo? Estou-me fazendo claro? Muito importa prestar atenção a este assunto, se tendes verdadeiro interesse.

Como sabeis, nós buscamos algo permanente — permanente em relação ao tempo, uma coisa perdurável, imperecível. Vemos que todas as coisas que nos cercam são transitórias, fluidas, que nascem, definham e morrem, e nossa busca visa sempre a algo que perdure sempre, dentro da esfera do conhecido. Mas o que é verdadeiramente sagrado transcende a medida do tempo, não é encontrável no terreno do conhecido. O conhecido opera apenas em função do pensamento, que é reação da memória ao desafio. Se percebo essa coisa e desejo descobrir como pôr fim ao pensamento, que devo fazer? O que tenho de fazer, por certo, é estar apercebido, pelo autoconhecimento, de todo o mecanismo do meu pensar. Devo perceber que todo pensamento, por mais sutil e elevado ou por mais ignóbil e estúpido, tem suas raízes no conhecido, na memória. Se percebo isso com muita clareza, então a mente, ao ver-se em presença de um problema imenso, é capaz de dizer “Não sei” — porque não tem resposta alguma, guardada na memória. Então, todas as respostas do Buda, do Cristo, dos Mestres, dos gurus, nada significam; porque, se alguma coisa significam, esta significação provém da coleção de lembranças que constituem o meu condicionamento.

Se, pois, percebo a verdade de tudo isso, e ponho de parte, decididamente, todas as respostas, o que só posso fazer quando possuo essa imensa humildade do “não saber”, qual é então o estado da mente? Qual o estado da mente que diz “Não sei se há Deus, se existe o Amor” — isto é, da mente que nenhuma resposta tem, tirada da memória? Por favor, não respondais a esta pergunta já, para vós mesmos, porque se assim fizerdes a resposta será apenas o reconhecimento do que pensais que Esse estado deve ser ou não deve ser. Se dizeis “É um estado de negação”, nesse caso o estais comparando com algo que já sabeis e, por conseguinte, é inexistente, em vós, o estado de “não saber”.

Estou investigando este problema em voz alta, para que possais segui-lo mediante a observação de vossa pró­pria mente. O estado em que a mente diz “não sei”, não é de negação. Nele, a mente desistiu, de todo, de buscar, de fazer qualquer movimento, já que percebeu que todo movimento partido do conhecido, para a coisa a que ela chama “o desconhecido”, nada mais é do que uma “projeção” do conhecido. Assim, pois, a mente que é capaz de dizer “não sei”, acha-se no único estado em que é possível descobrir alguma coisa. Mas o homem que diz “Sei”, o homem que estuda todas as variedades da experiência humana, cuja mente está carregada de conhecimentos, de um saber enciclopédico, poderá esse homem, em algum tempo, experimentar algo que não é acumulável? Ele verá que isso é dificílimo. Quando a mente afasta de si todo o saber que adquiriu, quando para ela não existem nem Budas, nem Cristos, nem Mestres, nem instrutores, religiões, citações; quando está absolutamente só, não contaminada o que significa que cessou o movimento do conhecido — é só então que se apresenta a possibilidade de uma revolução tremenda, uma transformação fundamental. Essa transformação é obviamente necessária; e só aqueles poucos — vós, ou eu, ou X — que fizeram nascer em si mesmos esta revolução, são capazes de criar um mundo novo, e não os idealistas, ou intelectuais, os homens de imenso saber, ou aqueles, que estão a praticar boas obras; não serão estes os que criarão o novo Mundo. Eles são só reformadores. O homem religioso é aquele que não pertence, a religião nenhuma, nenhuma nação, nenhuma raça, aquele que interiormente está completamente só, num estado de “não saber”; e para ele é que está reservada a bênção do sagrado.­

Krishnamurti, 20 de agosto de 1955
Realização sem esforço
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"Quando você compreende, quando chega a saber,
então traz toda a beleza do passado de volta
e dá a esse passado o renascimento, renova-o,
de forma que todos os que o conheceram
possam estar de novo sobre a terra
e viajar por aqui, e ajudar as pessoas." (Tilopa)



"Nos momentos tranqüilos da meditação, a vontade de DEUS pode tornar-se evidente para nós. Acalmar a mente, através da meditação, traz uma paz interior que nos põe em contato com DEUS dentro de nós. Uma premissa básica da meditação, é que é difícil, senão impossível, alcançar um contato consciente, à não ser que a mente esteja sossegada. Para que haja um progresso, a comum sucessão ininterrupta de pensamentos tem de parar. Por isso, a nossa prática preliminar será sossegar a mente e deixar os pensamentos que brotam morrerem de morte natural. Deixamos nossos pensamentos para trás, à medida que a meditação do Décimo Primeiro Passo se torna uma realidade para nós. O equilíbrio emocional é um dos primeiros resultados da meditação, e a nossa experiência confirma isso." (11º Passo de NA)


"O Eu Superior pode usar algum evento, alguma pessoa ou algum livro como seu mensageiro. Pode fazer qualquer circunstância nova agir da mesma forma, mas o indivíduo deve ter a capacidade de reconhecer o que está acontecendo e ter a disposição para receber a mensagem". (Paul Brunton)



Observe Krishnamurti, em conversa com David Bohn, apontando para um "processo", um "caminho de transformação", descrevendo suas etapas até o estado de prontificação e a necessária base emocional para a manifestação da Visão Intuitiva, ou como dizemos no paradigma, a Retomada da Perene Consciência Amorosa Integrativa...


Krishnamurti: Estávamos discutindo o que significa para o cérebro não ter movimento. Quando um ser humano ESTEVE SEGUINDO O CAMINHO DA TRANSFORMAÇÃO, e PASSOU por TUDO isso, e esse SENTIDO DE VAZIO, SILÊNCIO E ENERGIA, ele ABANDONOU QUASE TUDO e CHEGOU AO PONTO, à BASE. Como, então, essa VISÃO INTUITIVA afeta a sua vida diária? Qual é o seu relacionamento com a sociedade? Como ele age em relação à guerra, e ao mundo todo — um mundo em que está realmente vivendo e lutando na escuridão? Qual a sua ação? Eu diria, como concordamos no outro dia, que ele é o não-movimento.

David Bohn: Sim, dissemos que a base era movimento SEM DIVISÃO.

K: Sem divisão. Sim, correto. (Capítulo 8 do livro, A ELIMINAÇÃO DO TEMPO PSICOLÓGICO)


A IMPORTÂNCIA DA RENDIÇÃO DIANTE DA MENTE ADQUIRIDA
Até praticar a rendição, a dimensão espiritual de você é algo sobre o que você lê, de que fala, com que fica entusiasmado, tema para escrita de livros, motivo de pensamento, algo em que acredita... ou não, seja qual for o caso. Não faz diferença. Só quando você se render é que a dimensão espiritual se tornará uma realidade viva na sua vida. Quando o fizer, a energia que você emana e que então governa a sua vida é de uma frequência vibratória muito superior à da energia mental que ainda comanda o nosso mundo. Através da rendição, a energia espiritual entra neste mundo. Não gera sofrimento para você, para os outros seres humanos, nem para qualquer forma de vida no planeta. (Eckhart Tolle em , A Prática do Poder do Agora, pág. 118)


O IMPOPULAR DRAMA OUTSIDER — O encontro direto com a Verdade absoluta parece, então, impossível para uma consciência humana comum, não mística. Não podemos conhecer a realidade ou mesmo provar a existência do mais simples objeto, embora isto seja uma limitação que poucas pessoas compreendem realmente e que muitas até negariam. Mas há entre os seres humanos um tipo de personalidade que, esta sim, compreende essa limitação e que não consegue se contentar com as falsas realidades que nutrem o universo das pessoas comuns. Parece que essas pessoas sentem a necessidade de forjar por si mesmas uma imagem de "alguma coisa" ou do "nada" que se encontra no outro lado de suas linhas telegráficas: uma certa "concepção do ser" e uma certa teoria do "conhecimento". Elas são ATORMENTADAS pelo Incognoscível, queimam de desejo de conhecer o princípio primeiro, almejam agarrar aquilo que se esconde atrás do sombrio espetáculo das coisas. Quando alguém possui esse temperamento, é ávido de conhecer a realidade e deve satisfazer essa fome da melhor forma possível, enganando-a, sem contudo jamais poder saciá-la. — Evelyn Underhill