O
bem-aventurado estado de “não saber”
É um fato muito evidente que os entes humanos
necessitam de algo para adorar. Vós e eu e muitos outros desejamos ter algo
sagrado nas nossas vidas, e por isso frequentamos os templos, as mesquitas, as
igrejas, ou temos outros símbolos, imagens, ideias, a que veneramos. Esta
necessidade de adorar parece muito premente, porque queremos ser levados para
fora de nós mesmos, para algo que seja mais amplo, mais profundo, mais
permanente; e, assim, começamos a inventar Mestres, instrutores, divindades
celestiais ou terrenas, criamos símbolos vários, a Cruz, o Crescente, etc. Ou se
nenhuma dessas coisas nos dá satisfação, começamos a especular sobre o que
existe além da mente, sustentando que lá se acha algo que é sagrado e a que se
deve adorar. É o que acontece, na nossa, existência de cada dia, e disso,
penso, quase todos estamos bem apercebidos. Há sempre esse esforço dentro do
campo do conhecido, do campo da mente, da memória, e nunca parecemos capazes de
nos desvencilhar e achar algo que não seja fabricado pela mente.
Assim, pois, desejo, nesta manhã, investigar se
existe algo realmente sagrado, algo imensurável, impossível de ser sondado pela
mente. Para tanto, necessita-se, sem, dúvida, de uma revolução no nosso pensar,
nos nossos valores. Não me refiro à revolução econômica, ou social, que só
revela falta de madureza; tal revolução poderá ter efeitos superficiais nas
nossas vidas, mas, fundamentalmente, não é a revolução verdadeira. Refiro-me à
revolução que se realiza pelo autoconhecimento — não o conhecimento superficial,
alcançado mediante um exame do pensamento, à superfície da mente, mas o
autoconhecimento que alcança os recessos
mais profundos da mente.
Sem dúvida, uma das nossas maiores dificuldades
reside no fato de que todo nosso esforço se limita à esfera do reconhecimento.
Parecemos funcionar unicamente dentro dos limites das coisas que somos capazes
de reconhecer, isto é, dentro da esfera da memória. E há possibilidade de a
mente ultrapassar essa esfera? A memória, evidentemente, é necessária, num
certo nível. Preciso lembrar-me do caminho de minha casa. Se me fazeis uma
pergunta a respeito de uma coisa com que estou, bem familiarizado, minha,
resposta é imediata.
Se me permitis sugeri-lo, tende a bondade de
observar a vossa mente, enquanto estou falando; pois, como desejo examinar esta
questão com certa profundeza, se ficardes apenas a seguir a explicação verbal,
sem a aplicardes imediatamente, tal explicação não terá significado algum. Se
enquanto escutais, estais dizendo: “Refletirei sobre isto amanhã, ou depois da
reunião” — as palavras ir-se-ão, e a explicação nenhum valor terá. Mas se
derdes atenção completa ao que estou dizendo e fordes capazes de aplicá-lo — o
que significa estar apercebido dos próprios mecanismos intelectuais e emocionais —
vereis então que o que estou dizendo tem significação, imediatamente.
Como disse, há uma reação instantânea diante de
qualquer coisa que se conhece intimamente; quando se vos faz uma pergunta sobre
assunto bem conhecido, respondeis prontamente, a reação é imediata. E se vos
perguntam a respeito de uma questão com que não estais bem familiarizado, que
acontece? Começais a rebuscar nos arquivos da memória, procurais recordar-vos
do que lestes ou pensastes a respeito da questão, rememorar a vossa própria
experiência. Quer dizer, voltais ao passado, para examinar certas lembranças
que adquiristes; porque o que se chama “saber” é essencialmente memória. Mas se
vos perguntam sobre uma questão que ignorais completamente, a respeito da qual
não tenhais registro algum na memória, e sois capaz de responder honestamente
que não sabeis, então esse estado de “não saber” é o primeiro
passo da verdadeira investigação do desconhecido.
Isto é, tecnicamente, temo-nos desenvolvido
extraordinariamente, tornamo-nos habilíssimos em trabalhos mecânicos. Nas
escolas aprendemos técnicas variadas — montar motores, reparar estradas,
construir aeroplanos, etc. — e tudo isso é apenas cultivo da memória. Com esta
mesma mentalidade queremos encontrar algo que transcende a mente e, assim,
praticamos uma disciplina, seguimos um sistema ou pertencemos a alguma estúpida
organização religiosa — pois todas as organizações dessa ordem são
essencialmente estúpidas, por mais satisfatórias e consoladoras que sejam,
temporariamente.
Ora bem, se pudermos examinar juntos esta questão —
e acho-o possível, se lhe dermos a necessária atenção — terei muito gosto em
investigar convosco se a mente é capaz de abandonar sua memória psicológica, de
desistir de buscar nas coisas conhecidas aquilo que está oculto. Pois não é
isso o que fazemos, quando estamos a buscar? Estamos a procurar, na esfera do
conhecido, uma coisa que desconhecemos. Quando buscamos a felicidade, a paz,
Deus, o Amor, etc., sempre o fazemos dentro da esfera do conhecido, porque a
memória já nos insinuou, sugeriu, uma certa coisa, e temos fé nessa coisa.
Nossa busca, portanto, se processa sempre na esfera do conhecido. E, mesmo na
ciência, é só quando a mente deixa de examinar o conhecido, que é possível
surgir algo novo. Mas a cessação dessa busca no conhecido, não resulta de
determinação, ação voluntária. O dizer-se: “Não darei mais atenção ao
conhecido, para ficar aberto ao desconhecido”, é uma coisa completamente
infantil, sem significação nenhuma. Porque, então, a mente se põe a inventar, a
especular, a experimentar coisas absurdas. A libertação da mente, do conhecido,
só é possível pelo autoconhecimento, pela revolução que se realiza quando se
compreende todos os dias o significado do ''eu”. Não se pode compreender o
significado do “eu” se há acumulação de memória, e com a ajuda dela queremos
compreender o “eu”. Entendeis?
Pensamos compreender as coisas mediante acumulação
de conhecimentos, mediante comparação. Positivamente, por essa maneira nada se
compreende. Se comparais uma coisa com outra, sois absorvido por essa ocupação.
Só se pode compreender uma coisa quando lhe aplicamos toda a nossa atenção, e
qualquer forma de comparação ou avaliação é uma distração.
O autoconhecimento, pois, não é acumulativo, e acho
muito importante compreender isso. Se o autoconhecimento fosse acumulativo,
então seria puramente mecânico, uma coisa semelhante à ciência do médico, que
aprendeu uma técnica e passa toda a vida a especializar-se numa certa parte do
corpo. Um cirurgião pode ser um excelente mecânico na sua cirurgia, porque
aprendeu a técnica respectiva; tem conhecimento do ofício e talento para ele, e
a experiência que vai acumulando lhe é muito útil. Mas não estamos falando a
respeito de uma tal experiência cumulativa. Pelo contrário, qualquer forma de
conhecimento cumulativo destrói todas as possibilidades de novos descobrimentos;
mas, depois de feito o descobrimento, talvez se possa fazer uso da técnica
cumulativa.
Sem dúvida, o que estou dizendo é muito simples. Se
uma pessoa é capaz de estudar, de observar a si mesma, começa a descobrir como
a memória cumulativa atua sobre todas as coisas que vê; fica a pessoa,
continuamente, a avaliar, a rejeitar ou aceitar, condenar ou justificar, e,
nessas condições, a sua experiência fica sempre restrita ao campo do conhecido,
do condicionado.
Mas, sem a memória cumulativa, como diretriz, muitos
de nós nos sentimos perdidos, cheios de medo, e por consequência incapacitados
para observar a nós mesmos tais como somos. Sempre que há esse mecanismo de
acumulação, que é cultivo da memória, a observação que fazemos de nós mesmos se
torna muito superficial. A memória é útil para dirigir-nos, para melhorarmos a
nós mesmos, mas no automelhoramento nunca pode haver uma revolução, uma
transformação fundamental. Só quando se extingue completamente a ideia de
automelhoramento — mas não pela volição — existe a possibilidade de surgir algo
transcendental, algo completamente novo.
Assim, sendo, quer-me parecer que, enquanto não
compreendermos o mecanismo do pensar, a compreensão puramente intelectual terá
muito pouco valor. Que é pensar? Pensar é reação da memória, não? Se vos
pergunto onde morais, vossa reação é imediata, pois é uma coisa com que estais
perfeitamente familiarizado; reconheceis prontamente a casa, o nome da rua,
etc. Esta é uma das formas de pensar. Se vos faço uma pergunta um pouco mais
complicada, a vossa mente hesita; durante esta hesitação, está a remexer na sua
vasta coleção de lembranças, nos registros do passado, em busca da resposta
adequada. Esta é outra forma de pensar. Se vos faço uma pergunta mais
complicada ainda, a vossa mente se torna confusa, perturbada; e como não gosta
de perturbações, ela tenta por várias maneiras achar uma resposta — o que
também é uma forma de pensar. Espero que estejais acompanhando bem esta
explicação. E se vos pergunto a respeito de algo muito vasto e profundo, como,
por exemplo, se sabeis o que é a Verdade, o que é Deus, o que é o Amor, então a
vossa mente apela para o testemunho de outros; que supostamente experimentaram
tais coisas, e começais a citar os seus ditos — a repetir. Finalmente, se vos
faço reconhecer a futilidade de repetir o que outros dizem, de depender do
testemunho de outros, que pode ser até muito absurdo, então, sem dúvida, sois
forçado a dizer “Não sei".
Ora bem, se pudermos realmente atingir esse estado
de “não saber”, isso denotará um extraordinário senso de humildade; não
há, aí, a arrogância do saber, a resposta presunçosa, que visa a causar
impressão. Quando sois capaz de dizer “não sei” — e muito poucas pessoas
são capazes de tal — então, nesse estado, desaparece todo o temor, uma vez que
terminou a atividade de reconhecimento, o rebuscar na memória; já não há busca
nenhuma no campo do conhecido. É então que surge a coisa extraordinária. Se
tendes seguido até aqui o que estou dizendo — não apenas verbalmente, mas experimentando
de fato, vereis que quando sois capaz de dizer “não sei”, desapareceu
todo o condicionamento. E qual é então o estado da mente? Compreendeis o que
estou dizendo? Estou-me fazendo claro? Muito importa prestar atenção a este
assunto, se tendes verdadeiro interesse.
Como sabeis, nós buscamos algo permanente —
permanente em relação ao tempo, uma coisa perdurável, imperecível. Vemos que todas
as coisas que nos cercam são transitórias, fluidas, que nascem, definham e
morrem, e nossa busca visa sempre a algo que perdure sempre, dentro da esfera
do conhecido. Mas o que é verdadeiramente sagrado transcende a medida do tempo,
não é encontrável no terreno do conhecido. O conhecido opera apenas em função
do pensamento, que é reação da memória ao desafio. Se percebo essa coisa e
desejo descobrir como pôr fim ao pensamento, que devo fazer? O que tenho de
fazer, por certo, é estar apercebido, pelo autoconhecimento, de todo o mecanismo do meu
pensar. Devo perceber que todo pensamento, por mais sutil e elevado ou
por mais ignóbil e estúpido, tem suas raízes no conhecido, na memória. Se
percebo isso com muita clareza, então a mente, ao ver-se em presença de um
problema imenso, é capaz de dizer “Não sei” — porque não tem resposta
alguma, guardada na memória. Então, todas as respostas do Buda, do Cristo, dos
Mestres, dos gurus, nada significam; porque, se alguma coisa significam, esta
significação provém da coleção de lembranças que constituem o meu
condicionamento.
Se, pois, percebo a verdade de tudo isso, e ponho de
parte, decididamente, todas as respostas, o que só posso fazer quando possuo
essa imensa humildade do “não saber”, qual é então o estado
da mente? Qual o estado da mente que diz “Não sei se há Deus, se existe o Amor”
— isto é, da mente que nenhuma resposta tem, tirada da memória? Por favor, não
respondais a esta pergunta já, para vós mesmos, porque se assim fizerdes a
resposta será apenas o reconhecimento do que pensais que Esse estado deve ser
ou não deve ser. Se dizeis “É um estado de negação”, nesse caso o estais
comparando com algo que já sabeis e, por conseguinte, é inexistente, em vós, o
estado de “não saber”.
Estou investigando este problema em voz alta, para
que possais segui-lo mediante a observação de vossa própria mente. O estado em
que a mente diz “não sei”, não é de negação. Nele, a mente desistiu, de todo,
de buscar, de fazer qualquer movimento, já que percebeu que todo movimento
partido do conhecido, para a coisa a que ela chama “o desconhecido”, nada mais
é do que uma “projeção” do conhecido. Assim, pois, a mente que é capaz de dizer
“não
sei”, acha-se no único estado em que é possível descobrir alguma coisa.
Mas o homem que diz “Sei”, o homem que estuda todas as variedades da
experiência humana, cuja mente está carregada de conhecimentos, de um saber
enciclopédico, poderá esse homem, em algum tempo, experimentar algo que não é
acumulável? Ele verá que isso é dificílimo. Quando a mente afasta de si todo o
saber que adquiriu, quando para ela não existem nem Budas, nem Cristos, nem
Mestres, nem instrutores, religiões, citações; quando está absolutamente só,
não contaminada o que significa que cessou o movimento do conhecido — é só
então que se apresenta a possibilidade de uma revolução tremenda, uma
transformação fundamental. Essa transformação é obviamente necessária; e só
aqueles poucos — vós, ou eu, ou X — que fizeram nascer em si mesmos esta
revolução, são capazes de criar um mundo novo, e não os idealistas, ou
intelectuais, os homens de imenso saber, ou aqueles, que estão a praticar boas
obras; não serão estes os que criarão o novo Mundo. Eles são só reformadores. O
homem religioso é aquele que não pertence, a religião nenhuma, nenhuma nação,
nenhuma raça, aquele que interiormente está completamente só, num estado de “não
saber”; e para ele é que está reservada a bênção do sagrado.
Krishnamurti,
20 de agosto de 1955
Realização sem
esforço
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