Atenção é um estado de “não saber”
Se permitis, prosseguiremos com o que estávamos falando anteontem, ou seja sobre o significado da meditação. No Oriente, a meditação é uma prática diária de suma importância para aqueles que a exercem profundamente; mas talvez não seja tão importante nem tão séria no Ocidente. Mas, por ela envolver o mecanismo total da vida, convém considerar o seu significado.
Seria de todo fútil limitarmo-nos a seguir palavras ou frases, permanecendo no mero nível verbal. Se apenas seguimos esta questão intelectualmente, isso é o mesmo que acompanhar um ataúde até a cova. Mas, se deveras a aprofundardes, ela vos revelará as coisas mais extraordinárias da vida. Como disse, não estamos lendo o primeiro capítulo de um livro, porquanto não tem fim o mecanismo total da vida. Temos, porém, de considerar cada ponto que for surgindo.
Examinaremos a matéria com certa profundeza e amplitude, como o vereis; mas, antes disso, acho necessário compreender o que é pensamento negativo e o que é pensamento positivo. Não estou empregando as palavras “positivo” e “negativo” em sentidos opostos. Os mais de nós pensamos positivamente, acumulamos, adicionamos; ou, quando achamos conveniente, proveitoso, subtraímos. O pensamento positivo é imitativo, acomodatício, ajustando-se ao padrão da sociedade ou àquilo que deseja; e com esse pensamento positivo estamos quase todos satisfeitos. Para mim, tal pensamento não conduz a parte alguma. Mas o pensamento negativo não é o oposto do pensamento positivo; constituí um estado, um processo completamente diferente; e, a meu ver, impede compreender isso claramente, antes de prosseguirmos. Pensar negativamente é desnudar a mente de todo; pensar negativamente é aquietar o intelecto, o repositório de reações.
Deveis ter notado que o intelecto está constantemente muito ativo, constantemente reagindo; o intelecto tem de reagir, senão morre. E, no seu reagir, ele cria “mecanismos” positivos a que chama “pensar”; e todos esses mecanismo são defensivos, mecânicos. Quem observa seu próprio pensar poderá ver que o que estou dizendo é muito simples, nada complicado.
O mais importante é manter-se o intelecto plenamente desperto e sensível, sem reagir; por essa razão, considero necessário pensar negativamente. Poderemos depois apreciar isso mais extensamente, mas, se compreendestes o que acabo de dizer, vereis que o pensamento negativo não implica esforço algum, ao passo que o pensamento positivo exige esforço; e esforço é conflito e implica consecução de objetivo, repressão, contradição.
Observai vossa própria mente, vosso próprio intelecto a funcionar; não vos limiteis a ouvir minhas palavras. As palavras não têm significação profunda, servindo unicamente para transmitir, comunicar algo. Se permanecerdes no nível verbal, não podereis ir muito longe.
Sabemos, pois, que — por motivo de nossa educação, meio cultural, influências sociais, religiosas, etc. — todos nós temos o intelecto muito ativo, mas a totalidade da mente está bem embotada. E tornar o intelecto tranquilo e ao mesmo tempo plenamente sensível, ativo mas sem cultivar meios de defesa, isso é tarefa verdadeiramente árdua, como deveis saber se já considerastes esta matéria. E manter o intelecto extraordinariamente ativo, porém totalmente tranquilo, isso nenhum esforço exige.
O esforço afigura-se à maioria de nós como uma parte de nossa existência; aparentemente, não podemos viver sem ele: o esforço para sairmos da cama de manhã, o esforço de irmos para a escola, o escritório, o esforço para sustentar uma atividade contínua, o esforço para amarmos alguém. Toda a nossa vida, do momento de nascermos ao momento de baixarmos à sepultura, é uma série de esforços. Esforço implica conflito; e nenhum esforço existe no observar as coisas tais como são, o fato, tal qual é. Mas nós nunca nos observamos como somos, consciente ou inconscientemente. Sempre tratamos de modificar, substituir, transformar, reprimir o que vemos em nós mesmos. Tudo isso gera conflito; e a mente, o intelecto que se acha em conflito nunca está quieto. E para pensarmos profundamente, penetrarmos mui profundamente, necessitamos de um intelecto que não esteja embotado, que não esteja disposto a dormir, que não se deixe narcotizar pela crença, pelas suas defesas — necessitamos de um intelecto intensamente ativo e ao mesmo tempo tranquilo.
É o conflito que embota a totalidade da mente; assim, se desejamos investigar a questão da meditação, se desejamos penetrar profundamente a vida, temos, desde o início, de compreender o conflito e o esforço. Se tendes observado, deveis saber que nosso esforço é sempre para alcançarmos um alvo, tornar-nos alguma coisa, termos êxito; e por essa razão existe conflito e frustração, com o inerente sofrimento, esperança e desespero. E o que está sempre, a todos os momentos, em conflito, embota-se. Não conhecemos pessoas que vivem em contínuo conflito, e não sabemos como estão embotadas? Assim, para podermos ir muito longe e muito profundamente, temos de compreender perfeitamente a questão do conflito e do esforço. O esforço, o conflito resulta do pensamento positivo; quando há pensar negativo — a mais elevada forma do pensar — não há esforço, nem conflito.
Ora, todo pensar é mecânico, porquanto todo o pensar constitui uma reação de nosso fundo de experiência, nosso fundo de memória E, sendo mecânico, o pensar nunca pode ser livre. Poderá ser razoável, sensato, lógico, conforme o seu fundo (background), sua educação, seu condicionamento; mas o pensar nunca pode ser livre.
Não sei se já experimentastes descobrir o que é pensar, não me refiro à definição lexicológica da palavra, ou à respectiva ideia filosófica, mas pergunto se já observastes que o pensar é reação.
Prestai atenção, porquanto temos de examinar esta matéria. Quando vos faço uma pergunta familiar, respondeis imediatamente, porque estais familiarizado com a resposta. Se se faz pergunta um pouco mais complicada, há um retardamento da resposta, enquanto o intelecto está funcionando, a buscar na memória a resposta. Se a pergunta é mais complicada ainda, mais longo se torna o intervalo de tempo, durante o qual o cérebro está a pensar, a buscar, esforçando-se por achar a resposta. E se vos fazem uma pergunta com a qual não estais absolutamente familiarizado, dizeis: “Não sei”. Mas esse “não sei” representa um estado em que o intelecto está esperando achar uma resposta, seja consultando livros, seja perguntando a alguém; ele espera achar a resposta. Todo esse mecanismo de pensar é, acho eu, muito fácil de perceber; é o que estamos fazendo a todas as horas, é a reação do Intelecto, provinda de nosso depósito de experiências, conhecimentos.
Ora, o estado da mente que diz “não sei” e aguarda uma resposta difere por inteiro do estado da mente que diz “não sei” e não fica à espera de resposta. Espero estejais entendendo, porquanto, se isso não ficar bem claro, receio que não podereis compreender o que vem a seguir. Ainda estamos falando sobre meditação e penetrando o problema do intelecto e da mente. Se não se compreende a raiz do pensamento, é completamente impossível transcender o pensamento.
Há dois estados: o intelecto que diz “não sei” e procura resposta, e o outro estado de “não saber”, por não haver resposta. Se isso ficar bem claro, podemos então passar a investigar a questão da atenção e da concentração.
Todos sabem o que é concentração. Sabe-o o colegial, quando deseja olhar para a janela e o professor lhe diz: “olhe para seu livro”. O colegial obriga sua mente a olhar para o livro, quando seu desejo real é olhar pela janela; por conseguinte, há conflito. É familiar à maioria de nós esse mecanismo de obrigar o intelecto a concentrar-se. E tal mecanismo de concentração é mecanismo de exclusão, não achais? Vedais o acesso, fechais a porta a qualquer coisa que perturbe a concentração. Por conseguinte, onde há concentração, há distração. Estais entendendo? Pois educam-nos para nos concentrarmos — que é mecanismo de excluir, vedar — e por isso há distração, conflito.
Ora bem, a atenção não é mecanismo de concentração, e nela não há distração. À atenção é coisa bem diversa, e vou agora apreciá-la.
Notai, por favor, que estamos falando de assunto muito sério; e vir aqui não é como ir a um concerto para divertimento. Este assunto requer grande trabalho de vossa parte, significa examinar sem nenhuma tendência para desejar ou não desejar. Se não podeis acompanhar-me seriamente, nesse caso ficai tranquilamente a escutar, escutai as palavras e esquecei-as. Mas, se penetrardes profundamente, há muita coisa para descobrir. Porque vereis — enquanto vou aprofundando a questão — que a liberdade é necessária. Quando a mente está em conflito, fazendo esforço, não há liberdade; não a há, tampouco, quando há concentração e resistência à distração. Mas, se compreendemos o que é a atenção, estamos então, também, começando a compreender que o conflito cessou completamente, existindo, portanto, a possibilidade de ficar a mente de todo livre — não apenas a mente superficial, senão também a mente inconsciente, onde se ocultam nossos secretos pensamentos e desejos.
Já sabemos o que é concentração; mas, que é atenção? Faço esta pergunta e a reação instintiva de cada um é achar a resposta, dar uma explicação, uma definição; e quanto mais engenhosa a explicação, mais satisfeitos ficamos. Não estou dando nenhuma definição; estamos investigando negativamente. Se se investiga com o pensar positivo, nunca se descobrirá a beleza da atenção. Mas, se compreendestes o que é pensar negativo — que não é pensar em termos de reação, e, nele, o intelecto não pede resposta alguma — descobrireis então o que é atenção. Vou examinar isso um pouco.
Atenção não é concentração; nela não há distração; na atenção não há conflito, não há busca de fim; o intelecto, portanto, está atento, o que significa que não tem fronteiras; está tranquilo. Atenção é o estado mental em que desapareceu todo o conhecimento, e só há investigação.
Tentai, uma vez, uma coisa simples. Ao sairdes a passeio, ficai atento. Notareis como ouvireis, como vereis muito mais do que com o intelecto concentrado; porque atenção é um estado de “não saber” e, portanto, de investigação. O intelecto, então, investiga, sem causa, sem motivo — e essa é a investigação pura, a qualidade da verdadeira mente científica. Ela pode ter conhecimentos, mas seus conhecimentos não interferem na investigação. Por conseguinte, uma mente ativa é capaz de concentrar-se; mas sua concentração não é resistência nem exclusão. Estais-me seguindo?
Esse estado de atenção é próprio da mente que não está atulhada de informações, conhecimentos, experiências; o estado da mente que vive no “não saber”. Isso significa que o intelecto, a mente, abandonou todas as influências, todos os preconceitos, todas as sanções; compreendeu a autoridade, dissolveu a ambição, a inveja, a avidez e está totalmente oposta à sociedade e sua moral. Ela já não segue. Essa mente já pode investigar.
Ora, para se investigar profundamente, requer-se silêncio. Se desejo admirar aquelas montanhas e ouvir a correnteza do rio, não só o meu intelecto deve estar tranquilo, mas também minha mente inteira — consciente e inconsciente — deve estar de todo quieta, para ouvir. Se o intelecto está a tagarelar, se a mente deseja apreender, segurar, então já não está vendo, escutando a beleza do som da corrente. A investigação, portanto, implica liberdade e silêncio.
Como sabeis, já se escreveram livros sobre como alcançar uma mente serena por meio da meditação e da concentração. Volumes já foram escritos acerca desta matéria — mas isso não significa que eu tenha lido qualquer deles. Pessoas que me procuram me têm falado a respeito deles. Exercitar a mente para se tornar silenciosa é puro contrassenso. Se treinais vossa mente para se tornar silenciosa, achai-vos então num estado de decadência, porquanto a mente que se ajusta por medo, por avidez, inveja ou ambição, é mente morta, embotada, estúpida. A mente embotada, estúpida, pode tornar-se quieta, mas permanecerá limitada e medíocre, e nada novo chegará a ela.
Assim, a mente atenta está isenta de conflito e, portanto, é livre; e essa mente é tranquila, silenciosa. Não sei se já alcançastes este ponto; se o alcançastes, deveis saber que isso de que estou falando é meditação.
Nesse processo de autoconhecimento, descobrireis que a mente silenciosa não é mente morta, porém em extremo ativa. Sua atividade não é a atividade que visa a um objetivo, nem atividade de somar e subtrair; porque esse estado intensamente ativo se tornou existente sem busca e sem esforço algum; em todo o percurso, ela tudo compreendeu, cada fase de seu existir. Não houve repressão de espécie alguma e, portanto, não há medo, nem imitação, nem ajustamento. E se a mente faz estas coisas, não há possibilidade de silêncio.
Agora, que acontece depois disso? Até agora empregamos palavras para efeito de comunicação; mas a palavra não é a coisa. A palavra “silêncio” não é o silêncio. Portanto, compreendei isto: para existir o silêncio, a mente deve estar livre da palavra.
Ora, quando a mente está verdadeiramente tranquila, portanto, ativa e livre, e não se está importando com a comunicação, a expressão, a realização — é então que há criação. Essa criação não é uma visão. Os cristãos têm visões do Cristo; e os hínduístas têm igualmente visões de seus pequenos deuses ou grandes deuses. Estão reagindo de acordo com seu condicionamento; estão projetando suas visões, e o que eles veem nasce de seu próprio fundo (background); o que veem não é o fato, porém coisa “projetada” de seus desejos, ânsias, esperanças. Mas a mente atenta e silenciosa não tem visões, porque se libertou de todo o seu condicionamento. Desse modo, essa mente sabe o que é a criação — que é coisa bem diferente da chamada “ação criadora” do músico, do pintor, do poeta.
Em seguida, se já alcançastes este ponto, vereis que há um estado mental fora do tempo e do espaço, em que, por conseguinte, se pode ver ou receber o imensurável. E o que se vê e se sente, tal como o estado de experimentar, pertencem ao momento e não são para guardar na memória.
Assim, aquela realidade imensurável, indenominável, que nenhuma palavra tem, aquela realidade só se manifesta quando a mente está toda livre e silenciosa, num estado de criação. O estado de criação não é um simples estado alcoólico, estimulado; mas quando uma pessoa compreendeu e passou por esse processo de autoconhecimento, e se acha livre de todas as reações de inveja, ambição e avidez, ver-se-á, então, que a criação é sempre nova e, por conseguinte, sempre destrutiva. E a criação nunca pode existir dentro da estrutura da sociedade, dentro da estrutura de uma individualidade limitada. Por conseguinte, a individualidade limitada a buscar a realidade nenhuma significação tem. E, quando há aquela criação, dá-se a total destruição de todas as coisas que um homem acumulou, e, por conseguinte, existe sempre o novo. E o novo é sempre verdadeiro, imensurável.
PERGUNTA: O “estado de atenção total” e o “desejo sem motivo” são a mesma coisa?
KRISHNAMURTI: Senhores, o desejo é uma coisa extraordinária, não achais? O desejo, para nós, é cheio de torturas; conhecemos o desejo como conflito e, por isso, lhe impusemos limitações. E nossos desejos são tão insignificantes, tão estreitos, tão mesquinhos, tão medíocres! Desejamos um carro, desejamos ser mais belos, desejamos conseguir algo. Vede como tudo isso é insignificante! E eu pergunto se existe desejo sem torturas, sem esperança e desespero. Existe. Mas isso não pode ser compreendido enquanto o desejo gerar conflito. Mas, havendo compreensão da totalidade do desejo, dos motivos, das torturas, das renúncias, da disciplina, dos tormentos que atravessamos — quando tudo isso foi compreendido, dissolvido, de modo que desapareceu completamente — então, talvez o desejo seja coisa diferente. Poderá ser Amor. E o amor pode ter sua expressão própria. O amor não tem amanhã e não pensa no passado; e isso significa que o intelecto não atua sobre o amor. Não sei se já observastes isto: como o intelecto interfere no amor, diz que ele deve ser respeitável, divide-o como divino e pecaminoso, está sempre a moldá-lo, controlá-lo, guiá-lo, ajustando-o ao padrão da sociedade ou da própria experiência.
Há, porém, estado de afeição, de amor, no qual não interfere o intelecto; e esse amor talvez possa ser encontrado. Mas, por que comparar? Por que dizer “ele é assim ou assado”?
Senhores, não sei se já observastes uma gota de chuva que caí do céu. Essa gota é da mesma natureza que todos os rios e todos os oceanos, todas as torrentes, e da água que bebeis. Mas aquela gota de chuva não está pensando que irá ser o rio. Ela cai, completa, total. Da mesma maneira, quando a mente passou por todo esse processo de autoconhecimento, ela está completa. Nesse estado não há comparação. A criação não é comparativa; e porque é destrutiva, não contém em si nada de velho.
Sendo assim, devemos, não verbal ou intelectualmente, porém realmente, empenhar-nos nesse processo de autoconhecimento, agora e por todo o sempre, pois não há fim do autoconhecimento. E como não tem fim, não tem começo e, por conseguinte, está no presente.
Outra coisa sobre a qual desejo falar é esta: por que gostamos de adorar? Como sabeis, todos gostamos de adorar um símbolo, um Cristo, um Buda. Por quê? Eu poderia apresentar-vos uma multidão de explicações: gostamos de identificar-nos com algo que é maior do que nós; gostamos de entregar-nos a algo que pensamos ser verdadeiro; gostamos de estar na presença de algo sagrado, etc. Mas a mente que adora é mente que está a morrer, a declinar. Quer cultueis o herói que vai alcançar a Lua, o herói do passado ou do presente, quer cultueis o homem que vos fala de um palanque, tudo vem a ser a mesma coisa; se rendeis culto, o estado criador nunca se tornará existente, nunca poderá aproximar-se de vós. E a mente que não conhece esse estado extraordinário sofre perenemente. Assim, uma vez compreendido o problema do culto, ele morre, como o cair de uma folha no outono. Pode então a mente prosseguir, livre de barreiras.
Krishnamurti, Saanen, 8 de agosto de 1961, O Passo Decisivo