A importância do estado de fome psicológica
[...] PERGUNTA: A liberdade não é como o ar, e não construímos para nós uma tenda semelhante a esta, que impede a entrada do ar? Basta perjurar a tenda para que o ar entre com abundância.
KRISHNAMURTI: Senhor, as comparações e as imagens verbais são extremamente perigosas, porque dão-nos o sentimento de termos compreendido quando na realidade não nos encontramos nesse estado. O que temos é meramente uma teoria. Mas, aqui, não falamos teoricamente; não estamos “imaginando” nada. Como expliquei no começo destas palestras, ocupamo-nos com fatos psicológicos. Se não enfrentamos os fatos psicológicos de nossa própria mente, então, “a tenda”, “o ar”, “a alma” e todas as demais imagens e teorias desmoronam, e somos destruídos.
Senhor, quando um homem está a morrer de fome, que bem lhe faz descrevermos para ele um prato suculento ou uma iguaria de delicado sabor? O que ele quer é comida. Teorias e descrições nenhuma significação têm para o homem que tem fome de descobrir por si mesmo o que é verdadeiro. Mas, infelizmente, a maioria de nós não tem fome nesse sentido. Estamos bem nutridos, psicologicamente, porque estamos repletos de nossas próprias experiências, e encontramos um abrigo seguro no dogma, na crença. Sentimo-nos em segurança porque pertencemos a este ou àquele grupo, a esta ou àquela igreja. E quando nos vem um sentimento de descontentamento — o que muito raramente acontece — logo tratamos de sufocá-lo, procurando alguma coisa que dê satisfação imediata. O que tem verdadeira importância é estarmos, no plano psicológico, terrivelmente famintos, e permanecermos nesse estado, sem nos tornarmos insanos ou neuróticos. A questão não é de como aplacar aquela fome, porque no momento em que o fazeis estais perdido. Podeis aplacá-la muito facilmente, com palavras, com teorias, com livros, com igrejas, com... oh!... com qualquer coisa. Mas, se permaneceis nesse estado de profunda “fome psicológica” sem desesperar, ela é então como que uma chama viva que destruirá todas as coisas falsas até nada mais restar senão cinzas; e desse vazio, algo real pode nascer.
PERGUNTA: A transformação de que falais se verifica pela ação da vontade? Existe, por trás dela, algum motivo?
KRISHNAMURTI: Ora, que é “vontade”? Por favor, não venhais com teorias; não citeis o que disse uma certa pessoa. Averiguemos o que essa palavra significa. “Ter vontade de fazer uma certa coisa” significa desejar fazê-la. A vontade, pois, é desejo, não? Muitos desejos, muitas ânsias, muitos impulsos, muitas resistências, muitas exigências, constituíram esse afiado instrumento, esse extraordinário senso de volição que é a vontade de fazer uma coisa e levá-la a cabo.
Todos sabemos que por meio da vontade podemos forçar-nos a fazer certas coisas. Se digo: “amanhã não me irritarei”, e exerço fortemente a minha vontade nesse sentido, posso evitar o irritar-me amanhã. Mas isso não é transformação; como antes assinalei, isso significa meramente que me estou ajustando a um desejado padrão. Por certo, nenhuma transformação efetuada por meio da vontade é transformação; significa, simplesmente, a continuação, numa forma diferente, daquilo que já existia. Se eu me transformo sob o impulso de um motivo — porque agrada a minha mãe, ou porque a sociedade exige que eu o faça, ou porque há uma certa vantagem em fazê-lo, etc. — essa transformação é um resultado de persuasão, influência, desejo de recompensa; por conseguinte, não é uma transformação real, porém apenas uma perpetuação “modificada” do passado. Ora, se compreendo tanto o mecanismo da transformação por meio da vontade como o da transformação sob o impulso de um motivo, de modo que ambos os mecanismos possam morrer e ser postos de lado sem nenhum esforço, então, dessa compreensão provirá uma transformação não premeditada, não produzida por nenhuma influência ou variados impulsos, compulsões; essa transformação significa, realmente, a total destruição do “conhecido”.
PERGUNTA: Essa transformação de que falais tem certa semelhança com um “passe de mágica”! Ora, se digo para mim mesmo: “Desejo transformar-me”, tenho um motivo; logo, devo transformar-me sem desejar transformar-me. O mesmo problema se apresenta em relação à ambição: Não podemos livrar-nos da ambição, desejando livrar-nos dela. Portanto, parece haver algum “truque” nisso.
KRISHNAMURTI: Senhor, mencionastes a palavra “ambição”. Em geral, somos ambiciosos, em maior ou menor grau, e todos sabemos o que a ambição implica: competição, crueldade, completa ausência de amor, etc. Ora, se sou ambicioso — ambicioso de posição, de poder, ambicioso de ser alguém neste mundo ou no chamado mundo “espiritual”, etc. — e comecei a perceber, por mim mesmo, que é estupidez ser ambicioso, como irei ficar inteiramente livre da ambição? Como operar essa radical transformação? Podeis não concordar comigo, mas escutai-me com calma.
Nossa educação, desde a infância, é desenvolvida em torno da ideia de “ vir a ser alguém”, de alcançar êxito, e poucos tivemos ocasião de aprender a amar o que fazemos. Quando amais o que estais fazendo, trabalhais sem objetivo, sem ânsia de êxito. Se amais alguém, não pensais no que ireis ganhar dessa pessoa. Não amais porque ele ou ela vos dá dinheiro, ou posição, ou outra espécie de satisfação. Simplesmente, amais — se tal amor realmente existe. Ora, se amo verdadeiramente o que estou fazendo, não há ambição. Não me comparo então com ninguém, jamais digo que um outro qualquer está obtendo melhores resultados do que eu. Amo o meu trabalho e, portanto, a minha mente, o meu coração, o meu ser inteiro está nele. Mas não somos educados dessa maneira. A sociedade exige uns tantos cientistas, uns tantos engenheiros, uns tantos técnicos, etc., e faz-nos “passar pela máquina” do chamado Colégio, a fim de adaptar-nos ao padrão requerido.
Amar o que se faz supõe uma total ausência de ambição. Não podeis eliminar a ambição por meio da vontade, ou procurar livrar-vos dela sob o impulso de um motivo, um propósito. A ambição “cai” de vós mesmo, como uma folha morta cai da árvore. Assim acontece quando amamos.
Krishnamurti, Saanen, 12 de agosto de 1962,
O homem e seus desejos em conflito