Em busca da ação correta
[...] PERGUNTA: Para se estar apercebido, é necessário meditar; mas a meditação supõe perfeita harmonia do pensamento e do sentimento. Se se é incapaz desta perfeito harmonia, como é possível estar apercebido?
KRISHNAMURTI: Quando falais de estar "apercebido", que entendeis por esta palavra? Eu estou apercebido de vossa pessoa, e vós estais apercebido da minha. Vejo muitos rostos, muitas cores; vejo este pavilhão, ouço o rumor do rio e o canto de uma ave; por aquela fresta percebo uma folha agitada pelo vento, etc. De tudo isso estou apercebido, e de minhas reações a tudo isso. Estou também apercebido de que essas reações nascem de meu condicionamento, de minhas lembranças, de meu saber acumulado. Vejo que tudo interpreto em termos de agrado ou desagrado, conforme meus peculiares preconceitos. Estou totalmente apercebido de meus motivos conscientes e inconscientes, de minhas necessidades e anseios. Quando emprega a palavra "apercebido", este orador a entende como abrangendo tudo isso, mas talvez assim não a entenda o interrogante.
INTERROGANTE: Se o indivíduo é neurótico ou louco, não pode "estar apercebido".
KRISHNAMURTI: Claro que não. Agora, um momento! Estai-vos referindo a alguém que é neurótico, ou percebeis que vós mesmo sois neurótico? Não, por favor, não riais. Esta é uma pergunta muito séria que vos faço. Se uma pessoa se torna apercebida de ser neurótica — e é dificílimo estar-se apercebido desse estado — então, já está a sair da neurose. Mas a maioria de nós não está apercebida de suas peculiaridades, de seus estados de ligeiro desequilíbrio, suas exagerações, idiossincrasias e inibições. O "estar apercebido" disso requer atenção constante, e em geral não temos nem energia, nem tempo, nem disposição para nos observarmos. Preferimos recorrer a um analista, a alguém que faça por nós esse trabalho, e, desse modo, complicamos mais ainda a nossa vida. Assim, se sois neurótico, como o é a maioria de nós, então, para poderdes mudar, deveis estar apercebido de vós mesmo, não apenas superficial, mas também profundamente. Deveis observar cada palavra, todas as coisas que sentis ou pensais, investigando-vos profundamente. Talvez surja, então, em virtude desse percebimento, a meditação. Já tratamos disso, e não desejo fazê-lo de novo.
INTERROGANTE: Quando uma mãe dá à luz um filho, começa imediatamente a cuidar dele. Não há, nessa ação, amor, ainda que a mãe não tenha uma mente "inocente"?
KRISHNAMURTI: Senhor, não desejais descobrir por vós mesmo o que é ação? Não desejais descobrir o que significa viver totalmente no presente? Não desejais despojar-vos de todas as coisas falsas que a sociedade e o ambiente vos impuseram, para descobrirdes o que é a verdade, qual o significado do viver? Isto exige muita investigação, o evidentemente a maioria de nós não tem vontade de empreender essa investigação e, por isso, fazemos perguntas que me parecem um tanto fora de propósito.
Senhor, vós sabeis o que se está passando no mundo: ameaça de guerra, encarniçada competição, insana brutalidade. Qual a vossa reação a tudo isso? Não desejais averiguar como se deve agir em tais circunstâncias? Ou, tão preocupados estamos com nossas próprias pessoas, que não nos sobra tempo para as questões mais importantes? Tendes talvez resposta para todas essas coisas, dada por alguma autoridade e, por conseguinte, sabereis responder — mas a resposta será apenas verbal, e não profunda, não vinda de vosso coração e de vossa mente, de vossas próprias profundezas. Foi por isso que nesta manhã estive falando sobre a ação. Um ente humano tem de agir, seu próprio viver é ação, mas sua ação o tem levado a muita aflição, corrupção, confusão; cabe-nos descobrir uma maneira completamente diferente de agir, uma diferente maneira de viver. Não podemos viver meramente em conformidade com uma certa definição, em conformidade com as ideias de Marx, de Lenine ou outra autoridade qualquer. Tudo isso temos de deitar abaixo, para descobrirmos por nós mesmos o que é verdadeiro.
PERGUNTA: Dizeis que, para pensarmos claramente, observarmos diretamente, necessitamos de "espaço" na mente — espaço entre nós mesmos e aquilo que vemos. A maioria de nós não tem tal espaço, nossa mente está repleta de ideias, atulhada de memórias. Como encontrar esse espaço?
KRISHNAMURTI: Já falamos tanto a respeito disso! Pergunto a mim mesmo qual o grau de ardor e de intensidade com que vivemos. O mundo, nas condições em que está, exige a ação esclarecedora de uma mente em que não haja confusão, uma mente não neurótica, mente que não tenha nenhum ponto fixo de partida, para pensar. Antes de mais nada, percebeis a necessidade dessa mente? E se lhe percebeis a necessidade, de que maneira a conseguireis? Pode alguém vo-la dar? Por certo, tendes de trabalhar ardorosamente, aplicar nesse sentido toda a vossa energia. Mas, vede, em geral falta-nos essa energia, porque temos tanto medo! Tememos perder as pequenas coisas que nos dão segurança, nossos estreitos refúgios, e esse temor nos rouba toda a energia que possuímos. Tendes, pois, de enfrentar tudo isso; tendes de livrar-vos de todo medo. Havemos considerado esta matéria nestas nove palestras; e, como tenho dito, quando puderdes ver que vossa mente está toda enevoada, cheia de medo, então, esse próprio ato de ver produzirá uma ação que destruirá o medo.
PERGUNTA: Há diferença entre observar a si próprio, e observar um objeto exterior?
KRISHNAMURTI: Quando dizemos "exterior" e "interior", que entendemos por estas palavras? Exteriormente, existem as montanhas, as árvores, o rio, pessoas. Interiormente, encontram-se meus próprios e secretos pensamentos, esperanças, temores, reações; e há, também, o "pensador" que observa, julga, condena, avalia. Existe, pois, a separação psicológica do "pensador" e do "pensamento", ou do "experimentador" e da "coisa experimentada" — e esse é um aspecto do que se chama "interior" e "exterior"; e há a divisão mais óbvia ainda do mundo objetivo, exterior, e do mundo subjetivo, interior. Minha mulher está no "exterior" e eu no "interior" — sendo EU minha ambição, minha avidez, minha brutalidade, minha crueldade, meu amor, etc. Ora, como observais o "exterior" e como observais o "interior"? Observais com uma mente que apenas "reage", isto é, que diz: "Aquilo é bom, isto é mau", "Aquilo é uma montanha, isto é uma árvore"? Ou observais sem pensamento, sem ideia?
Talvez eu possa dizer isso um pouco mais claramente, de outra maneira.
Quando vedes uma flor, a observais "botanicamente" ou"não-botanicamente"? Isto é, dais nome à flor, ou a observais simplesmente, sem lhe dardes nome? Percebeis a diferença?
Aprofundemo-nos um pouco mais. Pelas circunstâncias de nossa existência, pela maneira como somos criados e educados, etc., que se todos nós nos tornamos embotados; vivemos semi-adormecidos e necessitamos de ser desafiados, pois do contrário cairíamos em sono profundo. Ora, vendo-me desafiado, sou forçado a observar. Em geral, observo muito pouco. Observo apenas as coisas que diretamente me cercam, as coisas que diretamente me interessam. Mas, o desafio do mundo exterior — a sociedade, os problemas econômicos, os problemas das relações, da morte, etc. — sacodem-me de minha letargia, de meu embotamento, de minha indolência, e torno-me mais desperto, mais inteligente e sensível. Começo a interrogar-me, a investigar, a buscar, a tatear, a indagar, a exigir, e, assim, já não tenho necessidade de nenhum desafio exterior; e para o homem que não tem necessidade de desafio exterior, não existe divisão entre "exterior" e "interior". Ele se acha num "estado de investigação", num estado de revolução; está constantemente a observar, a indagar acerca de tudo o que se passa em redor e dentro de si mesmo. E se assim prosseguir, esse homem se tornará sua própria luz; estará sempre completamente desperto e, por conseguinte, não necessitará de nenhum "desafio". Mas esse estado se acha muito distanciado da maioria de nós.
Dizemos que há "exterior" e "interior"; mas, psicologicamente, existe de fato tal divisão? Ou trata-se de um movimento semelhante ao da maré, que "sai" e que "entra"? Se escutastes esta pergunta e penetrastes em vós mesmo, a fim de averiguar a verdade respectiva, como olhais agora a montanha, a árvore, vossa esposa, vossos filhos, vosso próximo, vossas ideias? Qual a vossa relação com a cizânia e os malefícios que correm pelo mundo? Sois uma parte disso? Sois o resultado da sociedade, de vosso ambiente? Ou, tendo-os compreendido (a sociedade e o ambiente), vos arredastes deles? Se o fizestes, sois já, então, coisa completamente diferente; está-se verificando uma mutação, que vos dá lucidez, ardor, o sentimento de amor sem motivo.
PERGUNTA: A ação espontânea é ação correta?
KRISHNAMURTI: Sabeis quanto é difícil ser-se realmente espontâneo? Estando tão condicionados pela sociedade, vivendo da memória, do passado, que possibilidade temos de ser espontâneos? Sem dúvida, fazer uma certa coisa espontaneamente é agir sem motivo, sem cálculo, sem sentimento egoísta. Não é ação egocêntrica. O que executais procede da plenitude de vosso ser. Mas, para serdes realmente "espontâneo", precisais livrar-vos inteiramente do passado. Só a mente inocente pode ser espontânea.
Krishnamurti, Saanen, 25 de julho de 1963,
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