Na libertação do conhecido, o aquietar do cérebro
[...] O começo da meditação é auto-investigação, autopercebimento crítico; é, simplesmente, saberdes o que sois. Dessa simplicidade surge uma imensidão que transcende as palavras, o tempo, o pensamento. Mas deveis começar com aquele primeiro passo muito simples, imediato.
Em regra, não desejamos saber o que somos. Inventamos o “Eu Superior”, o “Eu Supremo”, o Atman, inumeráveis ideias, a fim de fugirmos da realidade do que somos — a realidade concreta, diária, daquilo que somos. E não sabemos o que somos, dia por dia; a isso sobrepomos algo que o pensamento criou com o nome de Atman, algo que a tradição nos transmitiu e denominou Eu Superior. Com isso nos cobrimos, e procuramos alcançar essa coisa inventada pela mente; e depois, se a alcançamos, vemos que ela é vazia, que é só cinzas, que nada significa.
Assim, para meditar, deveis destruir tudo, totalmente, rejeitar completamente todas as coisas que vos estão sendo impostas; rejeitar o Gita, a Bíblia, o Corão — tudo. E isso é dificílimo, porquanto necessitamos dessas coisas para nossa segurança, para nosso arrimo nas horas de tribulação, de dor, de sofrimento. Mas, todas elas são simples vias de fuga — vosso Krishna, vossos Salvadores, etc. O que tem importância e significação é vossa existência de cada dia — o que pensais e o que sentis. E não podeis compreender o que pensais e o que sentis se estais tolhido pelo peso do conhecimento do passado, de tudo o que os livros disseram.
Assim, o começo da meditação é o conhecimento de vós mesmo — não o que pensais que deveríeis ser, não o que Sankara pensa que deveríeis ser: o conhecimento de vós mesmo tal como sois, assim como vos vedes num espelho. Deste modo, se seguirdes o caminho do autoconhecimento começareis a investigar o que sois, vossas atividades diárias, a maneira como falais a vosso serviçal, a maneira como tratais vossa mulher, vosso marido, a maneira como vos comportais perante as pessoas importantes, o sempre vivo desejo de serdes alguém. Se não conhecerdes toda a esfera consciente e inconsciente de vossa existência, por mais que vos esforceis nunca sabereis o que é meditação.
Como disse, o início da meditação é a rejeição de toda espécie de autoridade, porque vós tendes de ser vossa própria luz. E o homem que é sua própria luz não depende de autoridade em tempo algum, nem no começo, nem no fim. “Ser a luz de si mesmo” significa não ter medo; já tratei disso. “Ser a luz de si mesmo” significa não ter apego de espécie alguma, nem à mulher, nem ao marido, nem ao conhecimento, nem à experiência; porque todas essas coisas projetam sombras e vos impedem a iluminação. E, mais ainda, para serdes vossa própria luz deveis investigar a experiência.
A experiência é a essência do tempo, a experiência constrói o tempo como conhecimento, a experiência condiciona a mente. Se sois hinduísta, cristão ou budista, estais sendo educado numa certa cultura (civilização), consistente na religião, na educação, na família, na tradição dessa cultura ou civilização; vossa mente é formada, moldada consoante essa cultura, essa tradição. Ou credes em Krishna, ou credes em Cristo, ou credes no que quer que seja — e tal é vosso condicionamento; conforme esse condicionamento, tereis vossas experiências. A mente que experimenta de acordo com tal condicionamento não tem nenhuma possibilidade de conhecer o imenso significado da meditação.
Estamos investigando a meditação. Espero que estejais escutando — não meramente seguindo a exposição verbal, porém vivendo o que se está explicando, a fim de poderdes sair daqui conhecendo a imensidade, a beleza, o êxtase da meditação (que não implica trabalho, esforço para alcançar um certo estado, uma certa visão). Porque a visão que desejais, que ansiais, é puro resultado de vosso condicionamento. Ao verdes Krishna, ou Rama, ou outro qualquer, foi o vosso condicionamento que o projetou. Esse condicionamento se formou através de séculos de tempo, sob a influência do medo, da aflição, do sofrimento; e, qualquer visão nascida desse condicionamento é totalmente vazia, sem significação; a mente nele aprisionada jamais conhecerá a liberdade que há na meditação.
Deveis compreender o significado da palavra “experiência”. Todos desejamos mais experiência — mais e sempre mais: mais riquezas, mais posses, mais amor, mais êxito, mais fama, mais beleza; e desejamos, também, mais experiência, conhecimento. Prestai atenção, por favor. A mente que está sempre experimentando é dependente da experiência; e a experiência, em última análise, é a “resposta” a um “desafio”. Espero estejais entendendo, pois isto não é muito complexo. A mente sempre sequiosa de mais, que deseja mais experiência, mais conhecimento, mais sensações, mais êxtases, é uma mente dependente. E quando a mente depende, quando necessita de alguma coisa para ampará-la — isso significa, apenas, que está dormindo. Por conseguinte, cada “desafio” significa para ela uma experiência que a desperta por um momento e a faz adormecer de novo. Assim, todo “desafio e resposta” constitui um indício de que a mente se acha a dormir.
Há inúmeros desafios no decurso de nossa vida; há influências a todas as horas, impregnando-nos a mente e o coração, e delas podemos estar ou não estar conscientes. O grasnar do corvo já passou para o vosso inconsciente, lá está guardado; a cor daquele sari, quer a tenhais notado, quer não, já gravou sua impressão; o poente, a nuvem que vistes numa certa tarde banhada de luz, deixaram sua marca. Assim, a mente consciente e inconsciente está cheia dessas impressões; e delas, dessas impressões, nascem todas as experiências. Tudo isso são fatos psicológicos, que não admitem discussão, concordância ou discordância. E a mente que depende da experiência como meio de progresso, desenvolvimento, amadurecimento, evolução... é bem óbvio que essa mente, dependendo do tempo, da experiência, nunca será capaz de penetrar naquilo que se acha além do tempo e da experiência. Por consequência, tendes de compreender profundamente o significado da experiência.
A experiência embota a mente. A experiência não ilumina a mente, porque é sempre o resultado de “resposta” a um “desafio”, resposta oriunda de vosso fundo de conhecimento. Assim, cada experiência só pode tornar mais forte o que conheceis e, por conseguinte, não podeis libertar-vos do “conhecido”.
A meditação é o verdadeiro começo do libertar-se do “conhecido”. Vós deveis meditar, não porque uma certa pessoa vos diz que o façais, porque um certo homem vos fala e vos extasia a respeito da meditação. Deveis meditar porque esta é a ação mais natural deste mundo. A meditação vos confere uma admirável sensibilidade, sensibilidade, que, embora muito forte, é também vulnerável. Isso poderá parecer-vos contraditório, mas não é. A mente que se formou pela ação do tempo, da experiência, do conhecimento, do conflito, da arrogância, da agressividade, da ambição — não é uma mente forte; só tem capacidade de resistência. Eu me refiro a uma força de qualidade completamente diferente, uma força que é “vulnerável”, sem resistência; essa, por conseguinte, é a mente capaz de ultrapassar a experiência.
Deveis compreender a significação, a profundeza e qualidade da experiência que todos desejais. Ver Rama, Krishna, Cristo, etc. — a isso chamais meditação. Mas não é meditação, porém tão só uma projeção do passado, uma projeção da crença em que fostes educado. Um cristão vê o Cristo e se extasia com essa visão. Mas o homem que não foi criado para adorar Cristo, como Salvador ou o que quer que seja, nunca verá Cristo, como vós tampouco o vereis, educados que fostes para crer em Krishna. Nunca vereis outros deuses senão vossos próprios deuses; e, quando estais presos a vossos deuses, estais presos à vossa própria ilusão. A mente que se prendeu a uma experiência, o que quer que faça nunca penetrará as profundezas, o completo silêncio do espaço vazio; e isso faz parte da meditação.
Assim, pela compreensão do inteiro mecanismo da experiência, vos tornareis capazes de negar completamente o “conhecido”. Há uma variedade de drogas que tornam a mente sensível. Tais drogas existem atualmente na América e na Europa, e provavelmente chegarão até cá. Proporcionam elas uma grande capacidade para perceber, de modo intenso e vivo, a cor, a forma, a luz; e quem as toma pode ter experiências extraordinárias. Mas o que se vê a poder de drogas — as visões, experiências, sensações, a clareza, a beleza de um tronco de árvore ou de uma toalha de mesa — tudo está contido na esfera do “conhecido”. Essas drogas nunca libertarão a mente do “conhecido” e, por conseguinte, não há possibilidade de se tomar existente o “desconhecido”.
Estais, pois, começando a ver por vós mesmos — se estais escutando — que toda espécie de pensamento, prática, disciplina, de caráter “repetitivo”, toda espécie de experiência só pode criar o desejo, a ânsia de mais experiência; nunca vos satisfazeis com uma só experiência, quereis sempre mais, e mais, e mais. — Estais, pois, começando a ver que não há método algum. Método é o costume, a tradição de executar uma certa coisa repetidamente, de seguir uma certa ideia, uma certa norma de ação — e isso só serve para embotar a mente. Por conseguinte, não há método, não há caminho.
Tende a bondade de prestar atenção. Não há caminho para a iluminação. Começais a perceber que toda forma de experiência deve ser negada pela compreensão, já que toda experiência embota a mente, já que qualquer experiência é uma tradução do “conhecido”, do passado. A mente aprisionada no tempo nunca ultrapassará o tempo. Assim, ao negardes a autoridade, ao negardes a disciplina como “coisa conhecida”, praticada segundo um método, tendes então compreendido e rejeitado completamente a experiência.
Em geral; somos educados na concentração. Em criança, mandam concentrar-vos em vosso livro; se quereis olhar pela janela para ver os pássaros a voar, uma folha levada pelo vento, um carro de bois que passa — o mestre vos diz: “Concentrai-vos, prestai atenção a vossa tarefa”. Sabeis o efeito que isso produz em vós? Cria um novo conflito, uma contradição. A criança absorvida num brinquedo está concentrada. Deveis ter observado vossos filhos; quando têm um brinquedo, deixam-se absorver totalmente nesse brinquedo; o brinquedo se apodera deles. E chamais isso “concentração”. Vós vos concentrais numa ideia; a mente se põe a divagar em todos os sentidos e tratais de fixá-la nessa ideia; mas a mente torna a fugir; de novo a fazeis voltar, e novamente ela foge. E aí está o conflito. A isso chamais “meditação”, mas é coisa tão “imatura”, tão infantil!
Mas, vós tendes de seguir cada pensamento, compreender cada pensamento que surge, e não dizer que todo pensamento não “concentrado” é distração. Se não o dizeis, e tratais de examinar cada pensamento, de segui-lo até o fim, não há então distração. E porque não há concentração, estais compreendendo cada movimento de pensamento, cada movimento da mente. Quando seguis cada movimento da mente, nesse seguir não há distração. Não há distração ao escutardes o corvo grasnar. Distração não existe quando escutais o barulho do tráfego. Mas há distração se dizeis: “Quero concentrar-me nesta coisa e rejeitar tudo o mais”. Então, “tudo o mais” se torna uma distração.
Assim, a mente que aprendeu a concentrar-se torna-se uma mente estreita e embotada. Não estou rejeitando a concentração, que vou examinar agora. Quando compreendeis o verdadeiro significado da concentração, consistente em resistir e excluir, em focar a mente numa dada coisa, podeis ver que esse focar estreita a mente, embota-a. Esse focar é uma espécie de resistência e, portanto, gerador de conflito. E a mente em conflito nunca será capaz de alcançar a profundeza, o êxtase da meditação.
Compreendendo-se o inteiro significado da concentração, há então atenção, lucidez; a atenção não se foca, porém inclui tudo: podeis escutar os pássaros, escutar o barulho do tráfego, escutar o orador, observar os movimentos da folha levada pelo vento, ver o pôr-do-sol, a luz refletida no edifício. Nessa lucidez não há limites; ela tudo abraça, tudo inclui. E a mente atenta, que tudo recebe, é capaz de concentrar-se; mas essa concentração não é resistência, essa concentração é livre de conflito. Olhai o que realmente está ocorrendo agora — se estais observando. O orador está falando, expondo, e ao mesmo tempo escutando os pássaros, o tráfego, vendo a luz, a imobilidade da folha, as estrelas — tudo recebendo e, por conseguinte, nada rejeitando.
A mente que experimentou e compreendeu a concentração, a experiência, percebeu, de maneira clara, que não há método, nem sistema, nem prática. Essa mente se acha em estado de atenção. Compreende o que é a tranquilidade. O cérebro, o cérebro material, está constantemente ativo. Ele promana do tempo; o cérebro é resultado dos instintos animais, das necessidades animais, dos impulsos animais. A compreensão de todo esse “mecanismo” do cérebro é, com efeito, autocompreensão, porque é o cérebro que tem os impulsos de ambição, de avidez, de inveja. O cérebro funciona por associação, funciona com base no mesmo princípio que o cérebro eletrônico.
É necessário, pois, compreender o “mecanismo” do cérebro, formado por influência social, sendo, assim, resultado da sociedade. Os instintos, os impulsos, os temores, as ambições, a avidez, a inveja — tudo isso está contido no cérebro. O cérebro pode ficar completamente, extraordinariamente quieto — não à força, não sob compulsão, não por meio de disciplina, mas pelo compreender e ficar livre da ambição, da avidez, da inveja, do desejo de êxito, do medo — que inclui o medo à opinião pública, à “virtuosa imoralidade” social — pelo abandono completo de tudo isso. A mente que busca a paz — como o faz a maioria de nós — só está buscando a escuridão. Mas, ao compreenderdes o inteiro mecanismo da estrutura psicológica da sociedade, que imprimiu no cérebro todas as lembranças, associações, resultados — dessa compreensão provém a quietude do cérebro. Se não o houverdes compreendido, se vosso cérebro não estiver completamente quieto — quieto, mas não narcotizado por drogas, não hipnotizado — não haverá espaço nenhum na mente.
Vós necessitais de espaço na mente. Mas não pode existir espaço quando não há quietude completa. Esse espaço não é imaginário, não é romântico, não é criado por insensatas ideias de esforço e realização; ele se torna existente quando o cérebro compreendeu e se tornou completamente quieto. Há, então, espaço no interior da mente.
Deve haver espaço na mente, e esse espaço é “inocência”. Nenhuma sociedade, nenhum pensamento, nenhum sentimento, nenhuma experiência, pode entrar nesse espaço, que é o “desconhecido”. Ele não é o espaço que os foguetes descobrem, o espaço que se estende acima de nós. É um espaço que não pode ser descoberto; não podeis buscá-lo; não há caminho a ele conducente. Mas esse espaço existirá quando tiverdes compreendido toda a estrutura psicológica, consciente e inconsciente, de vosso ser. Podeis compreendê-la instantaneamente, num momento, sem necessidade das complicações da análise, da investigação; podeis chegar a ele imediatamente; e quando chegais, lá está ele. Esse espaço é completamente vazio; nele nenhum pensamento, nenhum sentimento pode entrar. Pensamento e sentimento são reações do “conhecido”; e o cérebro contém associações que se formaram e constituíram o “eu”, sob as influências sociais. Por conseguinte, “libertação do conhecido” significa quietação do cérebro.
O que agora vou dizer acerca desse espaço não terá significação para vós, será pura teoria. Não terá valor para vós, a não ser para efeito de repetição; mas o que se repete nenhuma significação tem. Entretanto, falo-vos a esse respeito para verdes que tal espaço existe; para o verdes indiferentemente — e não para o “pegardes” e guardardes; é tão impossível “guardá-lo”, como aprisionar o vento na mão fechada. Mas deveis conhecer a poesia de algo belo. Para se ver aquele espaço, necessita-se de extraordinária sensibilidade. Ora, nesse espaço nada existe, porque a mente está vazia — não há, nela, nenhum pensamento, nenhum sentimento. E porque está vazio, esse espaço contém energia — não a energia criada pela resistência. Porque há vazio, espaço, existe aquela energia que é criação.
A criação é também destruição. Toda coisa criada é o “conhecido”. Mas aquela criação, que é “inocência”, é destrutiva de tudo quanto é conhecido; o “conhecido” não pode entrar. E, porque é criação e ao mesmo tempo destruição, há, nela, Amor — não o amor da memória, o amor de vosso marido ou esposa, o amor de vossos filhos; tais sentimentos são apenas a reação de vários desejos, impulsos, ambições, e preenchimentos. Naquele amor não há divisão: é Amor. E a mente tanto pode amar um só como muitos, pois não há divisão nesse Amor.
A meditação, pois, é o florescimento inicial da bondade. Quando a bondade floresce profundamente em nós, sem que na mente subsista nenhuma raiz do “eu”, de autopiedade, de memória, desse simples começo surge a imensidade que não é do tempo, que não tem começo nem fim. E isto é o Eterno, o Imensurável.
Krishnamurti, Bombaim, 11 de março de 1962, A mutação Interior