A totalidade da consciência é medo
[...] Sem dúvida, o medo surge quando buscamos a segurança, exterior ou interiormente; quando se aspira a um estado permanente, duradouro, nas relações, nas coisas mundanas, na confiança, que o saber proporciona, na experiência emocional. E, finalmente, dizemos que existe Deus, absoluta e eternamente permanente, em cujo seio encontraremos imperturbável paz e segurança para todo o sempre. Cada um está a buscar segurança nesta ou naquela forma, e sabemos como cada um atua — buscando a segurança no amor, na propriedade, na virtude, jurando a si mesmo ser bom, casto. Todos conhecemos os horrores inerentes à busca, secreta ou aberta, da segurança. E isso é medo, porquanto nunca averiguastes se existe segurança. Não o sabeis. Emprego estas palavras para denotar que se trata de um fato que desconheceis absoluta e completamente. Vós não sabeis se Deus existe ou não existe. Não sabeis se haverá ou não outra guerra. Não sabeis o que irá acontecer amanhã. Não sabeis se existe, interiormente, alguma coisa permanente. Ignorais o que irá suceder em vossas relações, com vossa esposa, vosso marido, vossos filhos. Não sabeis; mas deveis verificar isso, não achais? Deveis descobrir por vós mesmo que ignorais. E esse estado de não saber, esse estado de completa incerteza, não é medo; é a atenção plena, na qual podeis descobrir.
Vê-se, pois, que a totalidade da consciência — a qual inclui o superficial, o consciente, o oculto, e as extremas profundezas dos resíduos raciais, os “motivos”, tudo o que constitui pensamento — vê-se que a totalidade da consciência é, essencialmente, medo. A consciência é tempo, resultado de muitos dias, meses, anos e séculos. Vossa consciência de serdes francês se formou, historicamente, através de muitas gerações de propaganda. O fato de serdes cristão, católico, o que quer que seja, representa dois mil anos de propaganda durante os quais fostes obrigado a crer, a pensar, a funcionar e atuar segundo um certo padrão chamado “cristão”. E não ter crença alguma, ser o mesmo que nada parece coisa temível. Assim, a totalidade da consciência é medo. Isto é um fato, e não há concordar ou discordar sobre um fato.
Agora, que acontece quando vos vedes em presença de um fato? Ou tendes opiniões a respeito do fato, ou simplesmente o observais. Se tendes opiniões, juízos, avaliações do fato, então não o estais vendo. E não o vedes porque entra em cena o tempo, pois vossa opinião é produto do tempo, do ontem, de vossos conhecimentos anteriores. O ver realmente está no presente ativo, e nesse ver não existe medo. Isso é um fato real. O experimentar de um fato real é que liberta do medo a consciência total. Espero que não estejais muito cansados e possais experimentar isto, pois não podeis levá-lo para casa para lá refletir a seu respeito. Porque então não tem valor. O que tem valor é enfrentar o fato diretamente, e penetrá-lo. Vereis então que o todo de nosso mecanismo pensante, com seus conhecimentos, suas sutilezas, suas defesas e renúncias — que esse todo constitui o pensamento e é a causa real do temor. E vemos também que, quando há atenção total, não há pensamento; há, só, percepção, o ato de ver.
Havendo atenção, há completa tranquilidade; porque nessa atenção não há exclusão. Quando o intelecto pode estar completamente sereno — não adormecido, porém ativo, sensível, vivo, — nesse estado de atenta serenidade não existe medo. Há então uma qualidade de movimento que não é pensamento, absolutamente, que não é sentimento, emoção ou sentimento. Não é uma visão, nem uma ilusão; é um movimento de qualidade toda diferente, que conduz ao Indenominável, ao Imensurável, à Verdade.
Mas, infelizmente, não estais escutando, experimentando deveras, pois não examinastes isto realmente, não investigastes até este ponto. Por conseguinte, o medo não tardará a precipitar-se novamente sobre vós, qual uma vaga, submergindo-vos. Tendes, portanto, de examinar isto; e no examiná-lo está a solução. Esta é a base; e uma vez lançada a base, nunca mais buscareis, porque toda busca da Realidade se baseia no medo. Libertada do medo a mente, o intelecto, então podereis descobrir.[...]
PERGUNTA: Por que temem as crianças?
KRISHNAMURTI: Não é mais certo perguntar: “Por que temos medo?” É bastante óbvio por que as crianças temem. Estão rodeadas por uma sociedade baseada no temor. Os pais temem; e a criança necessita essencialmente de segurança e, quando se vê privada dela, sente medo. Vede, não estais enfrentando o fato de que há temor em vós.
PERGUNTA: É possível estar sempre no estado de atenção plena que excluí o medo?
KRISHNAMURTI: Na atenção não há exclusão; ela não é um mecanismo de resistência. Examinamos a questão do medo e vimos que não existe medo quando estamos atentos. Na atenção não há processo de pensamento “exclusivo”. Pode-se fazer uso do pensamento, mas não há então exclusão. Não sei se percebeis. Eu estou atento; neste momento sou todo atenção. Mas tenho de empregar palavras para comunicar-me convosco. As palavras só servem para a comunicação, e não para se experimentar o fato real.
E apresenta-se aí a questão de como manter a atenção plena. Ora, “manter” implica tempo e, portanto, a destruição da atenção. Se a atenção cessa, é deixá-la ir-se, e esperar que volte. Nunca digais: “preciso mantê-la”; porque isso significa esforço, tempo, pensamento e tudo o mais.
PERGUNTA: A memória está inteiramente associada ao conhecimento, ou é “aquele silêncio” uma memória de diferente qualidade?
KRISHNAMURTI: De todo o processo de conhecer, acumular experiência, resulta a memória, que é tempo. Conhecemos o mecanismo da acumulação das lembranças. Toda experiência incompreendida, incompleta, deixa sua marca, que chamamos memória.
E “aquela tranquilidade” é uma memória de qualidade diferente? A memória, por certo, implica continuidade: o passado, o presente e o futuro. A tranquilidade não tem continuidade, e é importante compreender isto. Pode-se induzir, disciplinar o intelecto para se tornar tranquilo, e esse disciplinar tem uma continuidade; mas a tranquilidade resultante da disciplina, da memória, não é tranquilidade nenhuma.
Nós nos referimos a uma tranquilidade que vem sem ser chamada, quando não existe medo de espécie alguma, declarado ou secreto. E quando existe essa tranquilidade, que é uma necessidade absoluta, independente da memória, verifica-se então um movimento de qualidade totalmente diferente.
Krishnamurti, Paris, 14 de setembro de 1961, O Passo Decisivo