A totalidade da consciência é contradição
Creio que a maioria de nós deseja fruir uma certa paz. Muito falam os políticos a esse respeito; isso se tomou sua fraseologia predileta, seu tema favorito. Cada um de nós, também, deseja a paz. Mas, parece-me, a espécie de paz a que aspiram os entes humanos representa mais uma fuga; desejamos encontrar um estado no qual a mente se possa recolher e nunca refletimos se é realmente possível nos libertarmos de nossos conflitos e alcançarmos, assim, a verdadeira paz. Desejo, pois, falar a respeito do conflito, porque acho que se o conflito pudesse ser eliminado — fundamentalmente, profundamente, interiormente, além do nível mental consciente — então, talvez, haveria paz.
A paz a que me refiro não é a paz que buscam o intelecto e a mente; é coisa inteiramente diferente. Ela se torna um fator altamente perturbador, tanto é criadora e, por conseguinte, destrutiva. Para chegarmos a essa compreensão da paz, parece-me essencial que compreendamos o conflito, porquanto, se não penetrarmos fundo, radicalmente, o problema do conflito, não teremos paz nem exterior nem interior, por mais que a busquemos, ainda que a desejemos com ardor.
Para conversarmos a respeito de alguma coisa — sem distinção entre orador e ouvintes, pois esta é uma relação absurda — cumpre que vós e eu estejamos pensando e sentindo no mesmo nível, investigando do mesmo ponto de vista. Se vós e eu pudermos examinar juntos esta questão do conflito, com excepcional ardor e vitalidade, é bem possível que venhamos a descobrir uma paz completamente diferente daquela que a maioria de nós está a buscar.
Existe conflito quando existe um problema, não? Todo problema redunda em conflito, porquanto implica ajustamento, esforço para compreender algo, livrar-se de algo, encontrar uma solução. E temos, quase todos nós, uma grande variedade de problemas — problemas sociais, econômicos, problemas atinentes às relações, ao conflito entre as ideias etc. E esses problemas permanecem sem solução, não é verdade? De fato, nunca pensamos neles de maneira completa, até o fim, para deles nos libertarmos; mas continuamos a levar de dia para dia, de mês para mês, pela vida afora, toda espécie de problema, como um fardo na mente e no coração. Parecemos incapazes de gozar a vida, de ser simples, porque tudo o que tocamos — o amor, Deus, as relações, tudo — se reduz, por fim, a um problema medonho, inquietador. Se tenho apego a uma pessoa, isso se torna um problema e desejo, então, saber como desapegar-me. E se amo, vejo que nesse amor há ciúme, ansiedade e medo. E não podendo resolver os nossos problemas, vamo-los levando conosco, pois não nos sentimos aptos a solucioná-los.
Em seguida, temos a competição, que também suscita problemas. Competição é imitação, é tentar igualar a outro. Temos o modelo de Jesus, o modelo do herói, do santo, do vizinho mais rico, e há também o padrão interior que a pessoa estabelece para si própria e procura seguir, viver de acordo com ele. A competição, pois, faz nascer muitos problemas.
E há também a ânsia de preenchimento. Cada um deseja preencher-se de uma ou de outra maneira — por meio da família, da esposa, do marido, do filho. E, passando um pouco mais além, encontramos o desejo de nos preenchermos socialmente, escrever um livro, tornar-nos famosos de alguma maneira. E quando existe esta ânsia de preenchimento, de nos tornarmos alguma coisa, existe também a frustração, e com a frustração vem o sofrimento. E apresenta-se então o problema de como evitar o sofrimento e, ao mesmo tempo, termos a possibilidade de preencher-nos. E ficamos, assim, aprisionados neste círculo vicioso, em que tudo se converte num problema, num conflito.
E já nos acostumamos a admitir o conflito como coisa inevitável; consideramo-lo, até, respeitável e necessário à evolução, ao desenvolvimento, ao “vir a ser” algo. Cremos que se não houvesse competição, conflito, estaríamos condenados à estagnação, à deterioração; assim, mental e emocionalmente, estamos sempre tratando de nos tornar mais sagazes, sempre lutando, perpetuamente em conflito com nós mesmos, nosso próximo, e o mundo. Isto não é exageração; é um fato. E acho que todos sabemos que fardo tremendo esse conflito representa.
Assim, parece-me que a questão urgente é esta: se percebeis a real importância de se ficar livre do conflito — mas não com o fim de alcançar outra coisa. É verdadeiramente possível ser livre, simplesmente, intrinsecamente, de modo que a mente não mais esteja em conflito, quaisquer que sejam as circunstâncias? No momento não sabemos se isso é possível ou não. O que sabemos é só que estamos em conflito, e conhecemos as penas que ocasiona, o sentimento de “culpa”, o desespero, o irremediável da moderna existência; é só o que sabemos.
Assim, como poderemos descobrir, não no nível verbal, intelectual ou puramente emocional, mas descobrir realmente se é possível ser livre? Como começar? Certo, se não se compreender inteiramente esse conflito, em todos os níveis da consciência, não será possível nos libertarmos dele e compreendermos o que é a Verdade. A mente em conflito está confusa. E quanto maior a tensão do conflito, tanto maior a produtividade de ação. Deveis ter notado como os escritores, os oradores, os chamados intelectuais, estão sempre a produzir teorias, filosofias, explicações. Se são dotados de algum talento, então, quanto maior a tensão e a frustração, tanto mais produzem; e o mundo os chama grandes autores, grandes oradores, grandes líderes religiosos, etc.
Ora, se observarmos atentamente, veremos que o conflito desfigura, perverte; ele é, em essência, confusão, e destrutivo da mente. Se pudermos perceber isso verdadeiramente — sem dizer que o conflito da competição é inevitável, que a estrutura social é edificada sobre esta base, e que temos de tê-lo, etc. — então penso que nossa atitude em relação ao problema será bem diferente. Penso ser esta a coisa primordial: ver o fato, não intelectualmente, verbalmente, mas, sim, entrando realmente em contato com o fato. Desde o momento de nascermos até o momento de morrermos, existe esta incessante batalha interior e exterior; e somos capazes de ver realmente o fato de que esse conflito é ininteligente? Que é que nos dá energia e vitalidade para entrarmos em contato emocional com um fato?
Vede, há séculos que somos educados para viver em conflito, para aceitar ou encontrar uma maneira de fugir-lhe. E, como sabeis, existem inúmeras vias de fuga — contrair o hábito de beber, frequentar mulheres, igrejas, buscar a Deus, tornar-se altamente intelectual, repleto de saber, ligar o rádio, comer em excesso. E sabemos também que nenhuma dessas fugas resolve o problema do conflito; só serve para aumentá-lo. Mas estamos dispostos a enfrentar deliberadamente o fato de que não existe fuga de espécie alguma? Creio que nossa principal dificuldade resulta de termos criado tantos meios de fuga, que nos tornamos incapazes de ver o fato diretamente.
É preciso, pois, examinarmos profundamente esta questão relativa às nossas fugas conscientes e inconscientes. Parece bastante fácil descobrir as fugas conscientes. Delas estais apercebidos — não é verdade? — ao ligardes o rádio, ao vos dirigirdes à Igreja no domingo, depois de terdes levado na semana inteira uma vida brutal, ambiciosa, invejosa, repulsiva. Mas é muito mais difícil descobrir quais são as fugas ocultas, inconscientes.
Desejo examinar um pouco este problema da consciência. A consciência, na sua totalidade, é formada através do tempo, não? Resulta de milhares de anos de experiência; é constituída de influências raciais, culturais, sociais, provindas do passado e mantidas pela família, pelo indivíduo, pela educação, etc. A totalidade disso é a consciência; e, se examinardes vossa própria mente, vereis que na consciência existe sempre uma dualidade, “o observador e a coisa observada”. Tal fato não é de difícil percepção. Isto aqui não é uma aula de psicologia, nem um entretenimento analítico, intelectual. Estamos falando de uma experiência viva, real, que devemos — vós e eu — examinar deliberadamente, a fim de não ficarmos no nível puramente verbal.
Há necessariamente conflito na totalidade da consciência quando nela existe divisão entre pensador e pensamento. Esta divisão ocasiona a contradição; e onde há contradição é inevitável o conflito. Sabemos — não é verdade? — que estamos em contradição, tanto exterior como interiormente. Exteriormente, existe contradição em nossas ações, pois desejamos viver de certa maneira e vemo-nos obrigados a exercer atividades de outra ordem; e, interiormente, existe contradição em nossos pensamentos, sentimentos e desejos. Sentimento, pensamento, desejo, vontade, e a palavra, constituem a totalidade de nossa consciência, e nesta totalidade existe contradição, porque nela há sempre divisão — o censor, o observador sempre a observar, esperar, modificar, reprimir, e o sentimento ou pensamento sobre o qual (o censor ou observador) atua.
Quando examinamos este problema, nós mesmos — não através de livros, filosofias e leituras de tudo o que foi dito por outras pessoas, que é apenas palavras ocas, — quando o examinamos muito profundamente, persistentemente, sem escolha, sem rejeição ou aceitação — descobre-se, então, necessariamente, o fato de que a totalidade da consciência é, em si, um estado de contradição, porque lá existe sempre o pensador a atuar sobre o pensamento, e a criar, por consequência, intermináveis problemas.
Surge assim a questão sobre se é inevitável esta divisão da consciência. Existe realmente um pensador separado, ou foi o pensamento que criou o “pensador”, a fim de ter um centro permanente, de onde pensar e sentir?
Vede, senhores, que para compreendermos o conflito temos de examinar bem isto. Não basta dizer-se: “Desejo libertar-me do conflito”. Se é só isso que se deseja, então podemos também tomar uma droga, um calmante — coisa muito simples, e barata. Mas, se se deseja realmente penetrar a fundo na questão e extirpar completamente todas as fontes de conflito, cumpre investigar a totalidade da consciência — todos os obscuros recantos da mente e do coração, onde se embosca a contradição. E só podemos compreender profundamente ao começarmos a indagar porque existe esta divisão entre pensador e pensamento. É preciso indagar se existe realmente um pensador, ou se apenas existe pensamento. E se só existe pensamento, onde está o centro de onde procedem todos os pensamentos?
Pode-se ver — não é verdade? — porque o pensamento criou um centro que se tornou “eu”, “ego” — o nome que se lhe dê é sem importância, desde que se reconheça que existe um centro de onde promana o pensamento. O pensamento anseia pela permanência; e vendo que suas próprias expressões são impermanentes, cria o centro — o “eu”. E logo surge a contradição.
Para se perceber tudo isso realmente — e não apenas aceitá-lo verbalmente — é necessário em primeiro lugar rejeitar todas as fugas; eliminar, como um cirurgião, toda forma de fuga. Requer isso intenso percebimento, sem escolha, sem apego às fugas agradáveis e evitando-se as desagradáveis. Isso requer energia, vigilância constante, porque o intelecto de tal maneira se acostumou à fuga, que esta se tornou mais importante do que o fato concreto do qual está a fugir. Mas só quando há a total rejeição da fuga, estamos em condições de encarar, de enfrentar o conflito.
Então, se chegamos até esse ponto, se, física, emocional e intelectualmente rejeitamos toda forma de fuga, que acontece? Existe então problema? Por certo, é a fuga que cria o problema. Quando já não estais competindo com vosso vizinho, já não estais tentando preencher-vos, nem transformar-vos noutra coisa, existe então conflito? Estais apto a enfrentar o fato — o que sois realmente — como quer que ele seja. Não há então julgamento como “bom” ou “mau”. Sois então o que sois. E o próprio fato tem efeito atuante: não há mais “vós” a atuar sobre o fato.
Tudo isso é realmente muito interessante, como vereis se deveras o examinardes. Considere-se o ciúme. Em geral somos ciumentos, invejosos, em grau agudo ou tolerável. Ao perceberdes efetivamente que sois ciumento, sem rejeitar nem condenar esse estado, que sucede? O ciúme é então mera palavra ou um fato? Espero estejais prestando atenção, porquanto, como sabeis, a palavra tem extraordinária importância para a maioria de nós. A palavra “Deus”, a palavra “comunista”, a palavra “negro” têm imenso conteúdo emocional neurológico. Do mesmo modo, a palavra “ciúme” já está “carregada”. Ora, se se põe de parte a palavra, resta então o sentimento. Este é que é o fato, não a palavra. E encarar o sentimento sem a palavra requer completa isenção de condenação e justificação.
Quando, alguma vez, sentirdes ciúme, cólera, ou, mais especialmente, quando sentirdes deleite a respeito de alguma coisa, vede se podeis distinguir a palavra do sentimento, se a palavra é o mais importante, se o sentimento. Descobrireis, então, que, no olhar o fato sem a palavra, há uma ação que não é processo intelectual; o próprio fato está operando e, por conseguinte, não há contradição, nem conflito.
É verdadeiramente extraordinário o descobrirmos diretamente que só há pensar e não há pensador. Porque se vê, então, que se pode viver neste mundo sem contradição, já que se necessita de muito pouca coisa. Se se necessita de muita coisa — sexual, emocional, psicológica ou intelectualmente — há dependência de outrem; e no momento em que começa a dependência, começa a contradição e o conflito. Quando a mente se liberta do conflito, com essa liberdade se manifesta um movimento de caráter de todo diferente. A palavra “paz”, como a conhecemos, não tem aí aplicação, porque esta palavra tem para nós diferentes significados, conforme a pessoa que a emprega — um político, um sacerdote, ou quem quer que seja. Não é a prometida paz celestial, após a morte; ela não se encontra em nenhuma igreja, nenhuma ideia, nem na adoração de nenhum Deus. Ela surge quando ocorre a cessação total de todo conflito interior; e isso só é possível quando não há nenhuma necessidade. Não há então necessidade, nem mesmo de Deus. Só há um movimento imensurável que não pode ser corrompido por ação alguma.[...]
PERGUNTA: Que queríeis dizer ao declarardes, há dias, que devemos ser perturbados?
KRISHNAMURTI: Peço-vos não considerar-me como uma autoridade; isso seria uma coisa terrível. Mas podeis ver por vós mesmo que o desejo de não sermos perturbados é uma de nossas principais necessidades. E é possível que a mente, o intelecto, ao deter seu incessante “tagarelar”, descubra uma grande perturbação interior. Podeis ver por vós mesmo que vossa mente vive ocupada — com a esposa, o marido, o sexo, a nacionalidade, Deus, sobre onde obter a próxima refeição, etc. E já procurastes averiguar por que ela vive ocupada, e que aconteceria se não estivesse ocupada? Se o fizerdes, vos vereis frente a frente com algo em que nunca pensastes; e esse algo pode ser um fato extremamente perturbador. E é realmente. Esta constante ocupação da mente pode ser uma simples fuga ao fato, ou seja, nossa tremenda solidão e vazio. E essa perturbação precisa ser enfrentada e profundamente examinada.
Krishnamurti, Paris, 10 de setembro de 1961, O Passo Decisivo