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terça-feira, 17 de julho de 2018

A mente livre do medo


domingo, 22 de abril de 2018

O medo impede a percepção libertária

Esta tarde gostaria de falar sobre o medo. Temos de o examinar profundamente, e não procurar, apenas, algum remédio superficial ou um conceito ou um ideal para ser aplicado como meio de se ficar livre do medo, pois desse modo isso nunca é possível.

Gostaria não só de examinar tudo isto verbalmente, mas também de ir além da palavra, para investigar, não verbalmente, se é de fato possível ficarmos completamente livres do medo, tanto do medo biológico, fisiológico, como do medo psicológico.

Para quase todos nós, a palavra ocupa um lugar muito importante. Somos escravos das palavras. O nosso pensar é verbal, e sem palavras dificilmente podemos pensar. Há talvez um modo não verbal de pensar; mas, para compreender o pensar não verbal, temos de nos libertar da palavra, do símbolo, do pensamento verbal. Para a maioria de nós, porém, a palavra, o símbolo, ocupa um lugar extraordinariamente importante na nossa vida. E, assim, a mente é escrava das palavras — palavras como “indiano”, “hindu”, “brâmane”, etc.

Para penetrarmos muito profundamente neste problema do medo, temos não só de compreender o significado da palavra, mas também — se possível — de libertar a mente da palavra, e desse modo compreender profundamente o significado do medo.

Para investigar muito profundamente, é indispensável um sentido de humildade — mas não como “virtude”. A humildade não é uma “virtude”, é um estado de ser — ou somos humildes ou não somos. Não podemos buscá-la, nem cultivá-la; não podemos ser vaidosos e pôr uma camada de humildade sobre essa vaidade — como a maioria de nós tenta fazer. Vamos aprender sobre o medo. E para aprender sobre o medo e a sua enorme importância na nossa vida, a sua escuridão e os seus perigos, temos de investigar o que ele é. E, portanto, é preciso esse estado de humildade sem medo, uma humildade sem desejo de recompensa, e não cultivada.

Para a maioria de nós, a “virtude” é meramente uma coisa que cultivamos como meio de resistir às exigências dos nossos próprios desejos e também às experiências de uma determinada sociedade, em que acontece vivermos. Mas a virtude, a bondade, não está contida na esfera do tempo. Não se pode “acumular” virtude, não se pode cultivá-la. Ela é, por exemplo, ser bom e não tornar-se bom. Estas duas coisas são totalmente diferentes. Florescer em bondade é inteiramente diferente de tornar-se “bom”. Tornar-se “bom” é um meio de alcançar uma recompensa, de evitar uma punição ou de resistir a alguma coisa, e nisso não há florescimento.

Do mesmo modo, deve haver humildade como um estado imediato, e não como um estado que se adquire. Só nesse estado de humildade é possível perceber globalmente, compreender, e aprender. Pois — quando se trata de matérias não técnicas — só há aprender, e não “ser ensinado” e “adquirir conhecimentos”. Podemos adquirir conhecimentos, informação sobre matemática. Mas sobre o medo, temos de aprender, não de livros, não com estudos de psicologia mas através da observação de nós mesmos. E não se pode aprender se não há humildade. Assim, cada um tem de ser, simultaneamente, mestre e discípulo de si mesmo, e esse discípulo é a mente que está a aprender. A pessoa cuja mente está a aprender não é um discípulo submisso, que aceita, que segue. Aquele que se submete, que segue, não está a investigar o que é a Verdade; está apenas a ajustar-se a um padrão de “bom comportamento”, do qual espera obter, como recompensa final, aquilo a que chama a Verdade.

A humildade é, pois, um estado da mente, no qual não há medo. A humildade é diferente do respeito. Pode-se respeitar outrem, e porque há essa consideração, não há desrespeito. Respeitamos o governador, o primeiro-ministro, mas tratamos rudemente o nosso empregado; nisto há desrespeito. Assim, a humildade é completamente diferente do respeito; é uma qualidade da mente. E só a mente que tem humildade é capaz de aprender. Portanto, só em humildade se pode observar, com precisão, cada movimento do pensamento. Porque, então, a mente está num estado de aprender, num estado de atenção — não de concentração. Examinaremos a atenção e a concentração noutra oportunidade, quando falarmos da meditação.

Esta tarde, estamos a tratar do medo. Estamos a investigar se é de fato possível — não verbalmente, não idealmente, não teoricamente, mas realmente — ficarmos livres do medo, profunda, fundamental e radicalmente livres. Não sei se alguma vez cada um de nós fez esta pergunta a si mesmo — provavelmente não. Aceitamos o medo, o medo psicológico, como inevitável e, portanto, tentamos reprimi-lo ou fugir dele. Mas quando fazemos essa pergunta a nós mesmos, se é de fato possível ficarmos completamente, totalmente, livres do medo, descobrimos por nós próprios uma coisa extraordinária, que é um estado em que a mente não só tem humildade, mas também a qualidade de estar em completa inocência. Vamos examinar isso esta tarde.

Estamos a falar do medo — e não de uma dada espécie de medo. Há várias espécies de medo, interna e externamente, dentro e fora de nós. Exteriormente há perigo. Medo significa perigo — o perigo de se perder um emprego, o perigo de se morrer, de se sofrer um acidente; o medo de não se alcançar uma certa posição, de não se ter sucesso pessoal, de não se ter dinheiro suficiente; o medo da pobreza, do desconforto, da doença, da dor. A dor física é relativamente fácil de ser encarada; há uma solução — recorrer ao médico ou aceitá-la. Podemos aceitar uma dor física quando temos a consciência, a percepção de que essa dor física não distorce a mente, não torna o pensamento amargo e ansioso, e também quando a mente está atenta a si mesma, de modo a não criar nem temer algum mal futuro. Pode-se enfrentar tudo isso de maneira bastante inteligente, com bastante equilíbrio e compreensão. Mas do que estamos a tratar é do medo psicológico, que é muito mais complexo, e que precisa de uma investigação intensa e de uma extraordinária atenção para ser examinada. Pode-se compreender muito bem que se há medo psicológico, de qualquer espécie ou forma, esse medo distorce todo o percebimento.

Como disse no outro dia, não estais apenas a escutar ou apenas a ouvir palavras, mas estais a escutar e a ouvir ao mesmo tempo. O “orador” está apenas a usar palavras para comunicar. A natureza da palavra e a compreensão da palavra dependem de ambas as partes — de vós e de mim. Mas a arte de escutar é inteiramente vossa. Se só escutais as palavras e não ides diretamente aonde elas indicam, ficareis parados a ouvir as palavras, e não ireis mais longe. E, como disse, estamos a aprender. Para aprender tem de haver humildade, para aprender é preciso escutar, é preciso ouvir. E ouvir realmente, escutar, aprofundar, tudo isso exige atenção, e na verdadeira atenção não há resistência. Por exemplo, ouve-se o som da buzina daquele carro, a voz do corvo, um barulho de tosse; mas, ao mesmo tempo, está-se tão atento que se ouve a palavra e se percebe intelectualmente o seu significado, através dos ouvidos, do sistema nervoso, etc. E, além de tudo isso, há o estado de aprender. E só assim a mente pode examinar profundamente este problema do medo.

Todos temos medos psicológicos, de várias espécies. A maioria de nós aceita-os constrangidamente, por não encontrar outra solução. Conhecemos várias formas de medo: medo da morte, medo da opinião pública; medo de não sermos capazes interiormente, de alcançar, de conseguir, de chegar a determinado objetivo, de ter êxito em alguma coisa; medo do que pode acontecer se não nos ajustarmos; e, também, o medo implantado por um ideal a alcançar.

Por favor, demos um pouco de atenção a isto. Geralmente, somos idealistas bastante “simples” — simples no sentido de não refletirmos muito sobre o assunto. Somos conformistas, sempre a dizer “sim” e nunca “não”. Estamos a ajustar-nos e somos levados pela sociedade a conformar-nos, a imitar, a condescender.

E isso o que está a acontecer presentemente neste país. Todos vós sois ideologicamente não-violentos. Aceitais isso talvez só verbalmente, e não efetivamente. Mas tendes pregado isso e apontado incessantemente o seu valor mortal. Os “homens de religião”, os políticos, e todos os que querem ter sucesso na política, pregam esta mesma coisa, em todo o mundo, usando-a, no começo, como instrumento político, como meio de ação. Tendes aceitado e seguido isso, durante anos, como um ideal. Mas de súbito, tem lugar um incidente e todos vos tornais militaristas, com igual ardor. E ninguém recusa esta enorme contradição. Toda uma geração que aceitava a não-violência está agora a ser treinada para aceitar a violência!

Vedes a importância de compreender esse estado da mente que aceita coisas contraditórias com igual facilidade? Certamente que essa mente, porque aceita ideais, pode ser levada a seguir determinada direção, como qualquer rebanho. Mas a mente que compreende o medo, essa não tem ideais; por isso, não pode ser dirigida por propaganda nenhuma, por nenhum político, por nenhum livro, por nenhum instrutor, nem pela sociedade. Essa mente, que não se deixa guiar, ou que não se está a ajustar a nenhum padrão de ideais, enfrenta cada minuto de cada ação e de cada pensamento, compreendendo todos os movimentos do pensamento e do sentir, o presente, o factual, o que é — muito mais significativo do que “o que deveria ser”.

“O que deveria ser” é o ideal; é portanto inexistente, ilusório, sem nenhum significado. Mas o que é, o real, é de imensa significação; só este pode ser transformado, e não “o que deveria ser”. Assim, com uma completa compreensão dos ideais, podemos varrê-los todos. E ficaremos, portanto, com uma carga a menos — o que não significa que, com isso, nos tornamos diferentes... Quando varremos o ideal, ficamos realmente frente a frente com o fato, com o que é o fato de que somos violentos. E podemos então enfrentar o fato. Mas se ficamos todo o tempo a “tornar-nos” não-violentos, a enganar-nos, a hipnotizar-nos, estamos num estado de ilusão. Tais pessoas geralmente são neuróticas. Mas aquele que está completamente atento a si mesmo não tem ideais; move-se de fato para fato — os seus fatos psicológicos, o que é.

E assim foi afastado um dos fatores do medo. Compreendamos, por favor, o enorme significado disto. No momento em que ficamos livres de ideais — que são enexistentes, sem realidade — ficamos frente a frente com o que é, com o fato de que somos violentos. E quando nos apercebemos de que somos violentos, podemos enfrentar isso adequadamente. Não há assim hipocrisia, não há dissimulação, nem se põe nenhuma máscara de não-violência, enquanto se arde em ódio interiormente! Assim, se compreendemos isso, não verbalmente mas de fato, ficamos livres dessa enorme contradição entre “o que deveria ser” e o que é. Eliminamos de uma só vez esta contradição; e ficamos, portanto, capazes de encarar todo esse problema do conformismo, do ajustamento. Então, já não haverá ajustamento, mas apenas compreensão do fato da violência.

A nossa sociedade está baseada na violência — violência que é competição, ambição, cada um apenas interessado em si próprio, isolando-se dos outros. Podemos dizer, “Deves amar o próximo”. E excelente! Mas, então, não se pode ser ambicioso ao mesmo tempo. O amor e a ambição não podem coexistir; contudo, no emprego, está-se em competição, para uma posição melhor, um trabalho melhor, mais dinheiro — conhecemos o sistema todo...

Assim, temos de compreender todo este mecanismo dos ideais: como projetamos estes ideais para fugirmos do fato, e como os ideais estimulam e criam ajustamento, contradição e conflito, provocando, portanto, medo.

Precisamos de compreender toda essa estrutura dos ideais. Mas não se pode compreender só intelectualmente. “Compreensão intelectual” é coisa que não existe; quando se diz “Compreendo intelectualmente”, o que se quer dizer é que se compreende o significado da palavra. Compreensão implica compreender com a totalidade da mente — emocionalmente, verbalmente, intelectualmente, isto é, com a totalidade de nosso ser; e esse compreender é completo e instantâneo. Se compreendermos isto — relativamente aos ideais, ao ajustamento, à contradição — teremos então eliminado um dos principais fatores do medo.

Por favor, enquanto o “orador” fala, observai tudo isto, em vós mesmos; não ouçais apenas as palavras, só para concordar e dizer “Que é que vai dizer a seguir?” O que vou dizer a seguir, o que virá ainda não sei; o que virá a seguir será igualmente difícil se não o investigardes em vós mesmos. Estamos a andar, a viajar juntos, aliviando a mente de um dos principais fatores do medo.

Há ainda toda esta questão da disciplina — que é entendida como “treinar-nos psicologicamente” para nos ajustarmos a um determinado padrão, o padrão chamado religioso ou o padrão moral de uma dada sociedade. Mas, na realidade, a palavra disciplina significa aprender. Não sei se já alguma vez refletistes sobre o que é a disciplina e se de fato já tentastes disciplinar-vos — não teoricamente, mas efetivamente — para verdes se podeis disciplinar-vos, e quais as consequências disso. Se já o tentastes, tereis visto que há resistência — resistência a um determinado desejo, a um determinado impulso ou a uma forte tendência; resistência ou repressão que significa controle.

Toda a repressão, toda a resistência, todo o controle é contrário ao aprender. Se aprendemos a respeito de alguma coisa, a respeito da cólera, por exemplo, não só estamos conscientes de que estamos encolerizados, como também observamos a causa, o motivo da cólera, sendo a cólera a reação, e assim por diante. Examinamos tudo isso, compreendemo-lo. Nesse mecanismo de compreender não há resistência, não há necessidade de controle, porque dessa compreensão nasce uma diferente espécie de disciplina, que é o ato de aprender.

Não sei se estais a entender tudo isto. Aquilo de que precisamos é de uma mente livre, e não de uma mente disciplinada — disciplinada no sentido comum do termo — uma mente treinada para se ajustar a um determinado padrão. A mente “disciplinada” é uma mente morta; é rotineira, estreita, limitada, pequena; nunca é livre. E só a mente livre pode compreender, ir além, fazer uma viagem infinita dentro de si mesma.

Assim, a mente que está meramente a “disciplinar-se” — o que significa resistir, controlar — não tem possibilidade de compreender a natureza do medo.

Tenta-se descobrir a causa do medo. Diz-se, “Tenho medo por causa disto”, e pensa-se que é muito importante encontrar a causa do medo; mas não é isso o que é importante. Pensamos que, compreendendo a causa, ficaremos livres do medo. Se observarmos bem, veremos que, embora possamos conhecer a causa, o medo ainda continua. Assim, a mera pesquisa psicológica da causa do medo não nos liberta do medo. Isso é apenas um dos fatores.

Mas há então o fator real, que requer muita compreensão. Vamos examiná-lo agora. Em todos nós existe o “observador”, o “pensador”, e o pensamento — dois estados separados; um deles é o pensador, o observador, o experienciador, e o outro é a coisa experienciada, a coisa observada, neste caso o pensamento. Os dois, no que diz respeito à maioria de nós, estão separados; há uma enorme divisão entre eles. Observai, por favor; não aceiteis nem rejeiteis o que está a ser dito. Observai-vos a vós mesmos; deixai que o “orador” seja apenas um espelho em que vos estais a observar, para verdes a realidade e não aquilo que gostaríeis de ver.

Há uma divisão entre o pensador e o pensamento. E então surge a questão: como lançar uma ponte entre o pensador e o pensamento? O pensamento cria a ideia, que é pensamento racionalizado; ou muitos pensamentos racionalizados são reunidos, constituindo uma ideia, uma conclusão, um conceito. Há o pensador e há o conceito, que ele formula por meio do pensamento, e que se torna o padrão. Portanto, o pensador separa de si o conceito. E, por isso, há conflito entre o pensador e o pensamento, porque o pensador, (em função desse padrão), está sempre a tentar corrigir o pensamento, a tentar alterá-lo, modificá-lo, ou dar-lhe continuidade.

Ora, será real esta divisão? Vemos que esta separação existe. Mas haverá, na verdade, um pensador separado do pensamento? Quando não pensamos em coisa nenhuma, onde está o pensador? Escutai, por favor. Não estou a pôr uma questão retórica, para responderdes, para concordardes ou discordardes. Se fizerdes esta pergunta a vós próprios, como estais a fazer agora, tereis de descobrir, de observar, se, quando não há nenhum pensamento, há algum centro a partir do qual se pensa.

Só existe pensamento e é o pensamento que cria o pensador, por várias razões psicológicas — por desejar segurança, ou então como um meio de ter mais experiências, de ter um centro de onde atuar, etc., etc...

Há, assim, esta divisão entre o pensador e o pensamento; e portanto há conflito. Enquanto existir essa divisão, terá de haver medo. O pensador procura então controlar o medo, dominá-lo; tenta resistir ao medo, livrar-se dele. Está, portanto, sempre a olhá-lo como se fosse uma coisa separada de si próprio, e por isso nunca se liberta do medo. Esta é, aliás, uma das principais causas da continuidade do medo. Enquanto há divisão entre o observador e a coisa observada, há contradição, há divisão: o medo ali e ele (o observador) aqui. E, observando o medo, o observador quer livrar-se dele; portanto, tenta todos os métodos para se ver livre do medo.

Se não há pensador, mas apenas o estado de medo — o estado de medo, e não a entidade que sente o medo — então é possível compreender o medo, examiná-lo. Vamos então examiná-lo um pouco.

Que é realmente o medo — o medo psicológico? E um estado em que se é sensível a um perigo, psicologicamente — o perigo de perder a nossa companheira, de perder o emprego, etc.. Que é este medo psicológico? Na verdade, ele significa “tempo”. Se não houvesse “tempo” não haveria medo. Podemos pensar em determinada coisa, pensar no perigo, pensar em perder o emprego, pensar na morte, pensar no intervalo entre a realidade atual e o que poderá acontecer — o intervalo de “tempo” é a causa do medo. Se não houvesse nenhum “tempo”, se não houvesse um “amanhã”, correspondente ao pensamento, “que irá acontecer amanhã”, se a mente se ocupasse apenas a encarar o estado real de medo, que aconteceria então?

Há o tempo cronológico, indicado pelo relógio. Mas se não houver tempo psicológico — não só o tempo do “amanhã” mas também o tempo do “ontem” — isto é, se o pensamento não se ocupar com “o que poderá acontecer amanhã”, ou se não voltar ao que já aconteceu, para o relacionar com o presente — vemo-nos então confrontados, não com o medo, mas apenas com um estado.

Se vos tendes observado a vós mesmos — sabeis o que realmente acontece quando sentis medo, quando há um “perigo” psicológico? Suponhamos, por exemplo, que tenho medo que se descubra o que “eu” sou. Se isso se descobrisse, “eu” poderia perder a minha reputação, a minha posição, etc.. Assim ponho uma máscara. E atrás dessa máscara, há sempre ansiedade, um sentimento de culpa, e o sentimento de que preciso de estar sempre vigilante, para nunca tirar a máscara e deixar ver o que está atrás dela. Esse é o meu estado real. O que se vê é a máscara e não o meu estado; mas o que está atrás da máscara é o meu verdadeiro estado, e eu tenho medo disto. Então, o que se passa? Não estais suficientemente interessados em mim para tirar-me a máscara e olhar. Porque tendes as vossas próprias máscaras, e muitas — isso não vos interessa. Mas eu penso que podereis, talvez, olhar. O “podereis” é o futuro, e o passado e alguma coisa que eu fiz e que podereis descobrir. Estou enredado no “tempo”. Foi o mecanismo do pensamento que criou esse “tempo” e nesse “tempo” — que pode ser uma fração de segundo, um dia, ou dez anos — o pensamento está enredado. O pensamento criou esse “tempo”, imaginando que podereis olhar o que esta atrás da minha máscara. Assim, é o pensamento que cria o medo — o medo surge porque existe “tempo”. Mas não podemos pôr isso de lado, não podemos dizer: “não terei medo do tempo”. O que temos e de compreender este mecanismo, extraordinariamente sutil.

Então, se investigarmos suficientemente esta questão, descobriremos também que, de fato, nunca experimentamos realmente esse estado de medo. Não é o mesmo estado de quem está fisicamente à beira de um precipício ou se vê frente a frente com uma cobra venenosa. Então, imediatamente, lá está o medo, e isso exige uma reação imediata.

Provavelmente, a maioria de nós nunca olhou face a face o estado de medo psicológico, porque chegamos a ele através das palavras e são as palavras que geram o medo. Vejamos. Tomemos, por exemplo, a palavra “morte”. Não vou falar da morte agora; trataremos disso noutra reunião. Estamos a referir-nos a palavras como “Deus”, “morte”, “comunismo”, etc. A palavra tem uma influência extraordinariamente importante. A palavra “morte” evoca toda a espécie de imagens e de medos — a palavra ou o símbolo, ou uma coisa que vemos transportar na rua, um corpo morto, que é um símbolo. Assim, é a palavra que cria esse medo.

Compreendemos, pois, o que está implicado nesse extraordinário mecanismo do medo — palavra, “tempo”, ideal, “disciplina”, ajustamento, e essa divisão entre o experienciador e a coisa experienciada. Vemos que tudo isso está implicado, quando começamos a investigar o medo, e temos de o compreender totalmente, e não em fragmentos. E se chegamos até aí, temos de ir muito mais fundo ainda, investigando toda a questão do consciente e do inconsciente.

A maioria de nós vive na superfície. Todas as nossas atividades, toda a nossa rotina, todas as nossas sensações são superficiais. Nunca mergulhamos, nunca vamos até à profundidade da nossa consciência, para compreender. E para compreender, a mente superficial, que está sempre ativa, tem de ficar quieta.

A mente tem de estar totalmente livre do medo, porque se há qualquer sombra de medo, em qualquer nível da nossa consciência, qualquer medo inexplorado, oculto, dissimulado, isso projetará uma ilusão que trará obscuridade. A mente que quer de fato compreender o que é verdadeiro, o real — o extraordinário estado da mente que compreende aquilo a que se chama Verdade — não deve ter, psicologicamente, medo de espécie alguma. Há o medo físico — quando se encontra uma serpente, salta-se para longe dela — isso é perfeitamente natural; esse medo é necessário; se não existe, a pessoa torna-se neurótica. É uma reação normal de uma mente sã. Mas estamos a falar do medo psicológico, que é um estado neurótico. A mente que deseje realmente compreender, fazer uma viagem de exploração e de aprofundamento dessa coisa extraordinária chamada Realidade — onde não há medida, nem tempo, nem ilusão, e que está além da imaginação — essa mente tem de estar completamente livre do medo. Essa mente, portanto, nunca estará vivendo no passado nem no futuro. Mas não traduzamos isto apressadamente como uma coisa “no presente”, como alguns dos filósofos mais famosos, filósofos decepcionados, falam do presente — isto é, viver completamente “no presente”, aceitar tudo “no presente” — o bom, o mau, o indiferente — viver nele e tirar o melhor partido possível. Não preciso de nomear essa filosofia — o que disse é suficiente; sabemos o que ela é.

Assim, a mente que está atenta a tudo o que está ligado ao medo, não se interessa pelo passado, mas quando o passado se apresenta, encara-o adequadamente, em vez de fazer dele um degrau para o futuro. Essa mente, portanto, está a viver no presente ativo e, sendo assim, compreende cada movimento do pensamento, do sentir, e também do medo, logo que ele surge.

Há muito que aprender. O aprender não tem fim. E com ele não há medo, não há ansiedade. Devemos fazer desse aprender parte de nós mesmos, para nunca ficarmos prisioneiros das coisas que aconteceram no passado ou poderão acontecer no futuro, para nunca ficarmos enredados no “tempo” como pensamento. Só a mente que se libertou de todo este medo pode estar vazia. E então, nesse estado de vazio, pode compreender o que é supremo e inominável.

Krishnamurti, Madrasta, 19 de janeiro de 1964,
O despertar da sensibilidade

sábado, 21 de abril de 2018

O amor é o supremo estado de incerteza

O amor é o supremo estado de incerteza

Se me é permitido, desejo falar nesta manhã sobre um assunto que me parece muito importante. Não se trata de nenhuma ideia, conceito, ou fórmula para ser posta em prática, porque conceitos, fórmulas, ideias, impedem efetivamente a compreensão dos fatos tais como são. Por “compreender um fato” entendo observar uma atividade, um movimento de pensamento ou de sentimento, e perceber o seu significado no momento da ação. A percepção de um fato, tal como é, deve verificar-se no momento da própria ação; e, se não compreendermos profundamente os fatos, estaremos sempre sendo perseguidos pelo medo.

Penso que quase todos levamos essa enorme carga de medo, consciente ou inconsciente. E, nesta manhã, desejo examinar este problema convosco, para ver se podemos despertar uma compreensão total do medo e causar, assim, sua completa dissolução, de modo que, ao sairmos daqui, estejamos verdadeira e efetivamente livres do medo. Assim sendo, permiti-me sugerir-vos que escuteis tranquilamente, sem estardes argumentando interiormente comigo. Iremos argumentar, permutar palavras, verbalizar nossos pensamentos e sentimentos dentro em pouco. Mas, por ora, fiquemos escutando, em certo sentido, negativamente, isto é, com total neutralidade no ato de escutar. Escutai, apenas. Eu vos estou comunicando alguma coisa — vós nada me comunicais. Para compreenderdes o que desejo transmitir-vos, deveis escutar — e no próprio ato de escutar tereis a possibilidade de comungar com o orador.

Infelizmente, a maioria de nós é incapaz desse escutar negativo, silencioso, não só aqui, mas também em vossa existência de cada dia. Quando saímos a passeio, não ouvimos os pássaros, o ciciar das árvores, o murmúrio do rio; não escutamos as montanhas, nem os céus distantes. Para estardes em comunhão direta com a natureza e com outras pessoas, deveis escutar; e só podeis escutar quando estais negativamente silencioso — isto é, escutando sem esforço, sem atividade mental, sem verbalizar, argumentar, discutir.

Não sei se já alguma vez experimentastes escutar de maneira completa vossa esposa ou marido, vossos filhos, o carro que passa, o movimento dos próprios pensamentos e sentimentos. Nesse escutar nenhuma ação existe, nenhuma intenção, nenhuma interpretação; e esse ato de escutar produz uma grande revolução na raiz mesma da mente.

Mas, em geral, não estamos acostumados a escutar. Se escutamos algo contrário ao nosso pensar habitual, ou se é atacado um dos nossos ideais favoritos, ficamos terrivelmente agitados. Temos “interesses adquiridos” em certas ideias e ideais, assim como os temos em propriedades e em nossa própria existência e conhecimentos, e quando vemos ser impugnada qualquer dessas coisas, perdemos o equilíbrio, a serenidade, resistimos a tudo o que se diz.

Ora, se desejais realmente escutar, esta manhã, o que se está dizendo, escutar sem percebimento vigilante e sem escolha, cumpre seguir o orador, não verbalmente — isto é, sem análise discursiva — e, por conseguinte, vos moveis em harmonia com o significado transcendente da palavra. Isso não equivale a pôr-se a dormir, ou encontrar-se num estado beatífico de sentimentalidade, grato ao “eu”. Pelo contrário, o escutar exige plena atenção — que não é concentração. Estas duas coisas são totalmente diferentes. Se escutais atentamente, talvez possamos — vós e eu — alcançar aquelas grandes profundezas onde se encontra a criação. E isso, sem dúvida nenhuma, é essencial; porque a mente superficial, ansiosa, sempre ocupada com múltiplos problemas, não pode compreender o medo, uma das coisas fundamentais da vida. Se não compreendemos o medo, não haverá nenhum amor, não existirá criação — não o ato de criar, porém aquele estado de criação eterna, o qual não pode ser expresso em palavras, quadros, livros.

Assim, temos de estar livres do medo. O medo não é uma abstração, uma simples palavra — embora para a maioria de nós a palavra se tenha tornado mais importante do que o fato. Não sei se já pensastes em libertar-vos total e completamente do temor. Isso pode ser feito de maneira tão completa que não haverá mais “sombra” de medo, porque a mente estará sempre à dianteira do fato. Isto é, em vez de preocupar-se com o medo e tentar vencê-lo depois de manifestar-se, a mente está à sua dianteira, e por conseguinte livre dele.

Para compreender o medo, cumpre examinar a questão da comparação. Porque comparamos? Em matéria técnica, a comparação revela progresso, que é coisa relativa. Há cinquenta anos, não havia bomba atômica, não havia aviões supersônicos, mas agora temos essas coisas; e daqui a mais cinquenta anos teremos outras que atualmente não temos. Isso se chama progresso, o qual é sempre comparativo, relativo, e nossa mente está enredada nessa maneira de pensar. Não apenas “por fora”, por assim dizer, mas também “por dentro”, na estrutura psicológica de nosso ser, pensamos comparativamente. Dizemos “sou isto, fui aquilo e serei diferente no futuro”. A esse pensar comparativo chamamos progresso, evolução, e todo o nosso comportamento — moral, ético, religioso, nas relações profissionais e sociais — nele se baseia. Observamo-nos comparativamente em relação a uma sociedade que é o produto dessa mesma luta comparativa.

Ora, a comparação gera medo. Observai este fato em vós mesmo. Desejo ser melhor escritor, ou pessoa mais bela e inteligente. Desejo possuir mais saber do que outrem; desejo ter muito êxito, tornar-me pessoa importante, ter mais fama no mundo. O sucesso e a fama são, psicologicamente, a vera essência da comparação, com a qual estamos constantemente criando medo. E a comparação dá também nascimento ao conflito, à luta — que se considera coisa muito respeitável. No vosso sentir, deveis estar em competição, para poderdes subsistir neste mundo, e assim comparais e competis nos negócios, na família, nos chamados assuntos religiosos. Precisais de alcançar o céu, para vos sentardes ao lado de Jesus — ou quem quer que seja vosso particular Salvador. O espírito de comparação se reflete no vigário — que quer tornar-se arcebispo, cardeal e, por fim, papa. Esse mesmo espírito nós outros cultivamos diligentemente durante a nossa vida, lutando para nos tornarmos melhores ou para alcançarmos posição mais alta do que outro. Nossa estrutura social e moral nisso se baseia.

Há, pois, em nossa vida, esse constante estado de comparação, competição, e a perene luta para sermos alguém — ou para sermos ninguém, o que vem a dar no mesmo. Isso, suponho, é a raiz de todo o medo, porquanto produz inveja, ciúme, rancores. Onde está o rancor, aí evidentemente não está o amor, e gera-se medo e mais medo.

Como disse, ficai só escutando. Não pergunteis: Como posso deixar de comparar? Que devo fazer para consegui-lo? — Nada podeis fazer para acabar a comparação. Se fizésseis alguma coisa, o vosso motivo seria também oriundo da comparação. O que podeis fazer é apenas perceber que essa coisa complexa chamada nossa existência é uma luta “comparativa”, e que se tentais atuar contra ela, se tentais alterá-la, de novo vos vedes apoderado do espírito comparativo, “competitivo”. O importante é escutar sem nada desfigurar; e desfiguramos o que estamos escutando ao desejarmos fazer algo a seu respeito.

Estamos, pois, vendo as implicações e o significado dessa avaliação comparativa da vida, e a ilusão de pensar que a comparação produz compreensão — comparação das obras de dois pintores ou de dois escritores; comparação de si próprio com outro menos inteligente, menos eficiente, mais belo, etc., etc. E pode-se viver neste mundo, tanto exterior como interiormente, sem comparar? Percebem o estado da mente que está sempre comparando — reconhecê-lo como fato e “deixar-se ficar” com esse fato — isso exige muita atenção. Essa atenção produz sua disciplina própria, a qual é extremamente flexível; não tem padrão, não é compulsiva, não é ato de controlar, subjugar, negar, na esperança de melhor compreender a questão do medo.  

Essa atitude perante a vida, baseada na comparação, é um dos principais fatores de deterioração da mente, não achais? Deterioração da mente supõe embotamento, insensibilidade, declínio, e, portanto, completa falta de inteligência. O corpo se deteriora a pouco e pouco, porque vamos envelhecendo; mas a mente também se está deteriorando, e a causa desta deterioração é a comparação, o conflito, o esforço “competitivo”. A mente assemelha-se a um motor a funcionar com excesso de atrito: não pode funcionar adequadamente, e durante o seu funcionamento deteriora-se com rapidez.

Como vimos, a comparação, o conflito, a competição, não só danificam, mas também causam medo; e onde há medo, há obscuridade, e não existe afeição, compreensão, amor.

Pois bem, que é o medo? Alguma vez já vos vistes frente a frente com o medo, ou apenas com a ideia do medo? Há diferença entre as duas coisas, não? O fato real — o medo — e a ideia do medo são duas coisas totalmente diferentes. Em geral achamo-nos enredados na ideia do medo, numa opinião, num juízo, numa avaliação do medo, e nunca nos achamos em contato com o fato real — o temor em si. Isso precisa ser ampla e profundamente compreendido.

Tenho medo, por exemplo, de serpentes. Vi um dia uma serpente que me atemorizou, e essa experiência me permaneceu na mente como memória. Quando à noite saio a passeio, essa lembrança entra em função e já vou com medo de encontrar uma serpente; assim a ideia do medo se tornou mais vital, mais potente do que o próprio fato. Que significa isso? Que nunca estamos em contato com o medo, porém apenas com a ideia do medo. Observai esse fato em vós mesmo. E a idéia não pode ser afastada artificialmente. Podeis dizer: “Tentarei enfrentar o temor sem a ideia”; mas isso não é possível. Agora, se percebeis realmente que a memória e a “ideação” vos impedem de comungar com o fato — o fato do medo, do ciúme, o fato da morte — então se estabelecerá uma relação completamente diferente entre vós e a realidade.

Para a maioria de nós, a ideia é bem mais importante do que a ação. Nunca agimos completamente. Estamos sempre limitando a ação com a ideia, ajustando ou interpretando a ação de acordo com uma fórmula, um conceito e, por conseguinte, não há ação nenhuma — ou, antes, a ação é tão incompleta que cria problemas. Mas, uma vez compreendido esse fato extraordinário, a ação se torna coisa sumamente vital, porquanto já não se ajusta a uma ideia.

O medo não é uma abstração; está sempre em relação com alguma coisa. Tenho medo da morte, medo da opinião pública, medo de não me tornar benquisto, popular, medo de nada realizar, etc. A palavra “medo” não é o fato, é apenas um símbolo que o representa, e para a maioria de nós o símbolo, no sentido religioso ou em outro qualquer, é mais importante do que o próprio fato. Ora, pode a mente libertar-se da palavra, do símbolo, da ideia, e observar a realidade, a coisa existente, sem interpretação, sem dizer: “Preciso olhá-la” — sem ter nenhuma ideia sobre ela? Se encaramos o fato, a realidade, com uma opinião a seu respeito, estamos apenas a entreter-nos com ideias, não é verdade? Portanto, isto é algo que muito importa compreender: que, quando olho um fato através de uma ideia, não há comunhão nenhuma com o fato. Se quero estar em comunhão com o fato, então a ideia deve desaparecer completamente. Pois bem, prossigamos desse ponto, para ver aonde nos leva.

Há o fato de que temeis a morte, temeis o que alguém dirá, temeis dúzias de coisas. Ora, quando já não estais olhando esse fato através de uma ideia, de uma conclusão, de um conceito, através da memória, que acontece realmente? Em primeiro lugar, não há separação entre o observador e a coisa observada, o “eu” não está separado dessa coisa. A causa da separação foi eliminada e, por conseguinte, achais-vos em direta relação com o que chamais medo. O “eu” com suas opiniões, ideias, juízos, avaliações, conceitos, memórias — tudo isso está ausente, e só há aquela coisa.

O que estamos fazendo é difícil, não é um simples entretenimento matinal. Eu sinto que é possível uma pessoa sair deste pavilhão, nesta manhã, profunda e completamente livre do medo; e, então, essa pessoa é um verdadeiro ente humano.

Estais, pois, agora, frente a frente com o fato: a sensação ou apreensão que chamais “medo” e que foi produzida por uma ideia. Tendes medo da morte (estou tomando isso apenas para exemplo). Ordinariamente, considerais a morte uma simples ideia; não é um fato. O fato só se vos apresenta quando estais morrendo. Sabeis da morte de outras pessoas, e a compreensão de que também vós tendes de morrer se torna uma ideia geradora de medo. Olhais o fato através da ideia, a qual vos impede o contato direto com o fato. Há um intervalo entre o observador e a coisa observada. É nesse intervalo que surge o pensamento — sendo “pensamento” a ideação, a verbalização, a memória que oferece resistência ao fato. Mas quando esse intervalo não existe, isto é, quando ausente o pensamento, que é tempo, estais diante do fato; e então o fato atua sobre vós — vós não atuais sobre o fato.

Espero estejais compreendendo tudo. É isso demais para uma manhã de calor?

Eu sinto que o viver com medo, de qualquer espécie que ele seja, é — se posso empregar o termo — coisa má. Viver com medo é coisa má, porque gera ódio, desfigura o pensar e perverte toda a vossa vida. Portanto, é absolutamente necessário que o homem religioso seja completamente livre de medo, tanto exterior como interiormente. Não me refiro à reação espontânea do corpo físico, para proteger-se, que é natural. É normal, ao verdes uma serpente, saltardes para longe dela — o que é apenas um instinto físico autoprotetório, e seria anormal não terdes tal reação. Mas o desejo de se estar em segurança, interiormente, psicologicamente, em qualquer nível do próprio ser, gera medo. Podemos ver em toda a parte os efeitos do medo e compreender, assim, quanto é importante que a mente não seja, em tempo algum, um “terreno de cultura” do temor.

Se bem escutastes o que aqui se disse nesta manhã, tereis visto que o medo nunca se acha no presente, porém sempre no futuro; ele é provocado pelo pensamento, pelo pensar no que poderá acontecer amanhã ou daqui a um minuto. Assim, o medo, o pensamento e o tempo são companheiros; e, para se compreender e transcender o medo, é necessária a compreensão do pensamento e do tempo. Todo pensar comparativo deve cessar; toda ideia de esforço — que envolve competição, ambição, adoração do êxito, luta por tornar-se alguém — deve findar. E, uma vez compreendido todo esse processo, não há conflito nenhum, há? Por conseguinte, a mente já não se acha num estado de deterioração, porquanto é capaz de enfrentar o medo e não propicia o seu aparecimento. Ora, esse estado livre do medo é absolutamente necessário, para que se possa compreender o que é criação.

Em regra, a vida é para nós entediante rotina, e nela não encontramos nada novo. Toda coisa nova que ocorre, logo a transformamos em rotina. Alguém pinta um quadro, que passa a ser novidade, mas logo depois deixa de sê-lo. O prazer, a dor, o esforço — tudo se torna rotina, tédio, luta perene e pouco significativa. Estamos sempre a buscar algo novo — o novo em filmes, o novo em quadros. Queremos sentir e expressar coisas novas, diferentes, não traduzíveis de imediato em termos do “velho”. Esperamos encontrar um certo truque, ou técnica engenhosa mediante a qual possamos expressar-nos e sentir-nos satisfeitos; mas, também isso acaba-se tornando uma terrível importunação, uma coisa feia, que temos vontade de destruir. Achamo-nos, pois, num constante estado de reconhecimento. Toda coisa nova é imediatamente reconhecida e, assim, absorvida pelo “velho”. O mecanismo de reconhecimento é, para a maioria de nós, de excepcional importância, visto que o pensamento está sempre funcionando dentro do campo do conhecido.

No momento em que se reconhece uma coisa, ela deixa de ser nova. Compreendeis? Nossa educação, nossa experiência, nosso viver diário — tudo isso é mecanismo de reconhecimento, de constante repetição, e confere continuidade à nossa existência. Com a mente presa nesse mecanismo, perguntamos se existe algo novo; queremos averiguar se há ou não há Deus. Partindo do conhecido, pretendemos encontrar o desconhecido. É o conhecido que causa o medo ao desconhecido, e por isso dizemos: “Preciso encontrar o desconhecido, reconhecê-lo e trazê-lo para o conhecido”. Tal é nossa busca, na pintura, na música, em tudo — a busca do novo, para interpretá-lo sempre em termos do velho.

Ora, esse mecanismo de reconhecimento e interpretação, de ação e de preenchimento, não é criação. Não há possibilidade de expressar o desconhecido. O que se pode expressar é uma interpretação ou reconhecimento de algo que chamais “o desconhecido”. Cumpre, pois, descobrir por vós mesmo o que é criação, porque, do contrário, vossa vida é mera rotina, em que nenhuma mudança, nenhuma mutação ocorre, e com a qual vos aborreceis rapidamente. A criação é o próprio movimento criador — e não a interpretação desse movimento na tela, na música, em livros, ou numa relação.

Afinal de contas, a memória encerra milhões de anos de lembranças, de instintos, e o impulso para ultrapassar tudo isso faz parte ainda da mente. Desse fundo do “velho” procede o desejo de reconhecer o novo; mas o novo é algo totalmente diferente — ele é amor — e não pode ser compreendido pela mente que está aprisionada no mecanismo do velho e tentando reconhecer o novo.

Esta é uma das coisas mais difíceis de transmitir, de comunicar; mas desejo comunicá-la, se possível, porque a mente que não se acha nesse estado criador está sempre em mecanismo de deterioração. Esse estado é intemporal, eterno. Não é “comparativo”, não é utilitário, nenhum valor tem em termos de ação; ninguém pode servir-se dele para pintar quadros ou escrever maravilhosa poesia shakespeariana. Mas, sem ele, não há realmente amor. O amor que conhecemos é ciúme, geralmente cercado de ódio, ansiedade, desespero, aflição, conflito; e nada disso é amor. O amor é coisa eternamente nova, irreconhecível; ele nunca é o mesmo, e, por conseguinte, é o supremo estado de incerteza. E só no “estado de amor” pode a mente compreender essa coisa extraordinária chamada “criação” — que é Deus, ou outro nome que lhe quiserdes dar. Só a mente que compreendeu as limitações do conhecido e, consequentemente, dele ficou livre — pode achar-se naquele estado criativo em que não existe fator de deterioração.

Desejais fazer perguntas sobre o que estivemos dizendo nesta manhã?

PERGUNTA: O sentimento de termos uma vontade individual é a causa do medo?

KRISHNAMURTI: Talvez seja. Mas, que entendeis pela palavra “individual”? Vós sois “individual”? Tendes um corpo, um nome, uma conta no banco; mas, se interiormente estais acorrentado, tolhido, limitado, sois um indivíduo? Como todos os outros, estais condicionado, não? E dentro dessa limitada área de vosso condicionamento que chamais “o indivíduo” tudo acontece — vossas aflições, desesperos, vosso ciúme, vossos temores. Essa entidade estreita e fragmentária, com sua alma individual, sua vontade individual e demais futilidades — dela tendes muito orgulho. E com ela desejais descobrir Deus, a verdade, o amor. Isso não é possível. O que pois fazer é só estar consciente do fragmento que sois e de vossas lutas, e perceber que o fragmento não pode, jamais, tornar-se o todo. O que quer que faça, o raio nunca poderá tornar-se roda. Por conseguinte, cumpre investigar e compreender essa existência separada, estreita, limitada, esse suposto “indivíduo”. O mais importante nisso tudo não é vossa opinião ou minha opinião, mas descobrir o verdadeiro. E, para descobrir o verdadeiro, não deve a mente temer — ser tão despida de medo, que seja de todo “inocente”. Só dessa “inocência” vem a criação.

Krishnamurti, Saanen, 21 de julho de 1964,
A mente sem medo



quinta-feira, 19 de abril de 2018

Inocência é não ter medo


Inocência é não ter medo

[...] é possível a mente libertar-se do medo? O medo, de qualquer natureza que seja, gera ilusão, torna a mente embotada, superficial. Onde há temor, não há, evidentemente, nenhuma liberdade, e sem liberdade não há amor. Quase todos nós temos alguma espécie de medo: medo do escuro, medo da opinião pública, medo de serpentes, medo da dor física, medo da velhice, medo à morte. Mas é possível estar-se completamente livre do medo?

Pode-se ver o que o temor nos faz a cada um. Ele nos leva a mentir, corrompe-nos de várias maneiras, torna a mente vazia, superficial. Há cantos escuros na mente que nunca podem ser investigados e trazidos à luz, enquanto tivermos medo. A autoproteção física — o impulso instintivo a guardarmos distância do reptil venenoso, a recuarmos ante o precipício, a evitarmos ser colhidos por um ônibus, etc. — é sã, normal, saudável. Mas eu estou falando da autoproteção psicológica que nos faz temer a doença, a morte, um inimigo. Quando buscamos preenchimento, na pintura, na música, nas relações, ou no que quer que seja, há sempre medo. Assim, o importante é estarmos conscientes de todo esse “mecanismo de nós mesmos”, que o observemos, aprendamos a seu respeito, e nunca perguntemos como se pode ficar livre do temor. Quando apenas desejais livrar-vos dele, encontrareis meios e modos de fugir-lhe, e dessa maneira nunca haverá liberdade, nunca estareis livre do temor.

Se refletirdes sobre o medo e a maneira como devemos considerá-lo, vereis que para a maioria de nós a palavra é muito mais importante do que o fato. Considere-se a palavra “solidão”. Com essa palavra, quero referir-me ao sentimento de isolamento que subitamente nos assalta, sem razão aparente. Não sei se isso já vos aconteceu alguma vez. Embora vos acheis rodeado de vossa família, de vossos semelhantes, embora estejais passeando em companhia de amigos ou viajando num ônibus repleto de passageiros, subitamente vos sentis completamente isolado. Dada a lembrança dessa experiência, há o medo ao isolamento, ao estar só. Ou tendes apego a alguém que morre, e vos vedes só, isolado. Em virtude desse sentimento de isolamento, buscais refúgio no rádio, no cinema, ou apelais para o sexo, a bebida, ou começais a frequentar a igreja, a adorar a Deus. Se ides à igreja ou se tomais uma pílula, trata-se de qualquer maneira de uma fuga, e todas as fugas são essencialmente a mesma coisa.

Ora, a palavra “solidão” impede-nos de adquirir perfeita compreensão desse estado. A palavra, associada à experiência do passado, evoca o sentimento de perigo e gera o medo; por essa razão procuramos fugir. Por favor, observai a vós mesmo como a um espelho, não vos limiteis a escutar-me, e vereis que a palavra tem extraordinária significação para a maioria de nós. Palavras como “Deus”, “Comunismo”, “Inferno”, “Céu”, “Solidão”, “Esposa”, “Família” — que espantosa influência elas exercem em nós! Somos escravos de tais palavras, e a mente que é escrava de palavras nunca está livre do medo.

Estarmos apercebidos do medo em nós existente, aprendermos a seu respeito, não significa interpretar esse sentimento por meio de palavras, porque as palavras estão associadas com o passado, com o conhecimento; e no próprio momento em que aprendemos a respeito do medo, sem verbalização — e isso não é adquirir conhecimento sobre ele — vereis como a mente se torna completamente vazia de todo temor. Isso significa que temos de penetrar em nós mui profundamente, pondo de parte todas as palavras; e quando a mente compreende todo o conteúdo do temor, tanto consciente como inconsciente e, por conseguinte, dele se liberta, apresenta-se então um “estado de inocência”. Para a maioria dos cristãos, a palavra “inocência” é meramente um símbolo; mas eu falo sobre o real estado de inocência, que significa “não ter medo”; nesse estado a mente se torna num instante amadurecida, sem passar pelo processo do tempo. E isso só é possível quando há atenção total, percebimento de cada pensamento, de cada palavra, de cada gesto. A mente está atenta, sem a barreira das palavras, sem interpretação, justificação ou condenação. Torna-se a luz de si própria; e a mente que é a luz de si própria não conhece temor.

PERGUNTA: Não existe nenhum “motivo” quando aprendemos sobre nós mesmos?

KRISHNAMURTI: Há motivo, no sentido de que desejo conhecer-me, porque, sem esse conhecimento, não tenho base para nenhuma coisa que faço, não tenho base para nenhuma coisa que penso ou sinto. O “eu” é tão complexo, tão célere, tão sutil, tão astuto, que preciso conhecer a mim mesmo completamente, tanto o consciente como o inconsciente, se desejo descobrir se existe, ou não, algo real, além de minha imaginação, além de meus anseios, além de meus desejos, além da propaganda da igreja e da sociedade. Para descobrir o que é verdadeiro, minha mente deve estar clara, não devo achar-me num estado de conflito, não devo ter nenhuma espécie de medo e nenhuma autoridade. Isso é bem óbvio, não achais? Não deve haver dependência, nem ansiar, nem frustração — devo estar totalmente vazio de tudo isso.

Ora, como posso aprender a meu respeito? Eu não posso afirmar que sou o resultado de determinada sociedade ou cultura (civilização), ou que sou a alma, entidade espiritual eterna, porquanto tudo isso são apenas coisas que outras pessoas me disseram. Para aprender sobre mim, tenho de desfazer-me de todos os absurdos religiosos que a sociedade me ensinou. Isso significa que não devo temer a opinião pública, e devo saber o que é “estar completamente só”. Se cuido meramente de adicionar ou de subtrair daquilo que penso saber, dizendo que há Deus ou que não há Deus, que há isto e não há aquilo — nesse caso não estou aprendendo.

Percebei este fato tão simples. Nada podeis aprender acerca de vossa pessoa, se estais tentando fugir ou se desejais tornar-vos um admirável santo, porque isso é absurdo em extremo. Podeis tornar-vos isso a que chamam “um santo”, mediante ajustamento a um padrão, mediante disciplina, renúncia, extrema frugalidade, etc. etc.; mas por esse caminho jamais descobrireis o que é verdadeiro. Para o descobrirdes, deveis livrar-vos do desejo de santificar-vos.

Se amais vosso filho, vós o observais, procurais compreendê-lo, não é assim? Nada pressupondes sobre a criança. Não lhe dizeis que deverá ser como seu irmão mais velho, que é tão inteligente. Quando comparais uma criança com outra, estais destruindo essa criança.

Do mesmo modo, para poderdes compreender-vos não deve haver comparação. Não deveis sentir-vos nem deprimido nem exultante a respeito de vós mesmo. Não deveis pressupor coisa alguma; porque todo pressuposto se baseia na autoridade; e a rejeição da autoridade é o começo do aprender.

O importante é que a pessoa se sinta curiosa acerca de si própria. Não me refiro à mera curiosidade intelectual, nem vos estou estimulando verbalmente a vos examinardes, com a promessa de que, no fim, obtereis determinado resultado. Estar realmente “curioso acerca de si mesmo” é perceber todos os meandros, todas as pressões e tensões, todos os movimentos sutis e ocultos de nossa mente; e a mente que está amarrada ao conhecimento não pode acompanhar com presteza os seus próprios e sempre variados movimentos.

“Aprender sobre si mesmo” é não ter motivo algum, e essa é a beleza do autoconhecimento. Não desejais, então, tornar-vos importante personalidade ou famoso santo; o que desejais é simplesmente realizar esse aprendizado, assim como estudaríeis uma flor de singular beleza que achásseis no deserto. Nós estamos num deserto, e somos flores verdadeiramente maravilhosas. Para olharmos a flor, aspirar-lhe o perfume, compreendê-la, precisamos amá-la.

PERGUNTA: A mente imatura não é aquela que está enredada nos hábitos?

KRISHNAMURTI: Eu gostaria de saber se realmente exerceis a vossa atenção, ou se esperais que eu vos desperte a inteligência, o percebimento. Estais trabalhando intensamente, apesar do calor, ou mantende-vos num estado de relativa inércia?

Vossa pergunta foi: A mente imatura não é aquela que está enredada nos hábitos? Ora, por que será que fizestes esta pergunta? Percebeis que sois imaturo, que vos achais envolvido nos hábitos, ou estais meramente mencionando algo já explicado? Notai, por favor, que não estou fazendo pouco caso do interrogante. Se observais que sois imaturo, que o hábito vos domina, — como acontece com a maioria das pessoas — então a questão seguinte é de como vos tornardes “amadurecido”, isto é, de como vos libertardes do hábito completamente, não numa certa data futura, porém . É essa a questão?

Vejo que estou emaranhado nos hábitos. Política ou religiosamente, como escritor, como pintor, como homem ou mulher, estou preso a uma determinada maneira de pensar. Como inglês, tenho uma certa tradição e uma atitude fixa perante a vida; ou fui educado no catolicismo, nisto ou naquilo, e isso se tornou hábito. Esse hábito pode ser quebrado de imediato, ou deverá ser gradualmente eliminado através dos anos? Se digo que isso “levará tempo”, que o hábito tem de ser eliminado gradualmente, através dos anos, qual é, nesse caso, o estado de minha mente? Evidentemente, ela está num estado de letargia, embotamento, irreflexão, não percebimento.

O nacionalismo, por exemplo, é um hábito, e esse hábito pode ser quebrado instantaneamente. Mas dá-nos prazer, dá-nos um sentimento de importância, estarmos identificados com determinado país, principalmente se esse país é poderoso. Em geral, gostamos de estar identificados com um dado governo, uma bandeira, e outros absurdos que tais, e, por conseguinte, não desejamos quebrar o hábito do nacionalismo e, assim, não há problema nenhum. Mas, se pretendemos extinguir esse hábito — e ele só pode ser extinto imediatamente, e não através dos anos — como fazê-lo?

Existe um “método de quebrar o hábito”? Ora, método implica tempo, movimento de um ponto de partida para um ponto de chegada. Se virdes por vós mesmo que o tempo não vos liberta do hábito e que, por conseguinte, os métodos e sistemas para nada servem, ficareis então frente a frente com a realidade: o fato de que vossa mente está enredada no hábito. Vedes o fato, não através de palavras ou de ideias; vedes diretamente o fato de que vossa mente está tolhida pelo hábito. Assim é, inapelavelmente. E, então, que acontece? Não estais procurando modificar o hábito, não estais tentando quebrá-lo. Estais simplesmente em presença do fato de que vossa mente funciona na rotina habitual. E que acontece quando vos achais diante de um fato? Que acontece quando verificais que sois mentiroso, ciumento? Se não tentardes alterá-lo, o próprio fato vos dará uma extraordinária energia, com a qual podeis quebrá-lo completamente. Compreendeis? Quando vos achais frente a frente com o fato, diretamente, vossa mente já não se entrega a fugas, renúncias, esforços para modificá-lo através do tempo, etc. etc.; por conseguinte, vossa atenção é completa, toda a vossa energia se concentrou, e essa energia destrói totalmente o fato.

PERGUNTA: Pode-se eliminar o medo com o descobrir-lhe a causa?

KRISHNAMURTI: Ora, estivestes prestando atenção completa durante esta hora inteira, empregada numa palestra desta natureza; por conseguinte, vossa mente deve estar cansada e vosso corpo também. “Escutar com atenção total” é algo que a maioria de nós nunca fez antes, algo penoso.

Pergunta essa senhora: O medo se dissolve com o conhecimento da causa do medo? Em geral, nós conhecemos a causa do medo: a morte, a opinião pública, coisas que praticamos e não desejamos sejam descobertas, etc. A maioria das pessoas conhece a causa de seus temores, mas esse conhecimento, evidentemente, não os extingue. Mediante análise é possível descobrir-se uma certa causa oculta do medo, mas isso também não liberta a mente do temor. O que traz a libertação do medo — e garanto-vos que é uma libertação completa — é estar ciente do medo sem a palavra, sem procurar negar ou fugir ao medo, sem se desejar ingressar num outro estado. Se, com plena, atenção, estais inteirado do fato — a existência do temor — vereis então que o observador e a coisa observada são um todo único, que não há separação entre os dois. Não há observador que diz “tenho medo”; só há medo, sem a palavra indicativa desse estado. A mente já não foge, não tenta livrar-se do medo, não lhe procura a causa e, por conseguinte, não está escravizada às palavras. Só há, então, um “movimento de aprender”, proveniente da sanidade — e a mente sã, ilesa, não teme.

Krishnamurti, Saanen, 2 de agosto de 1962,
O homem e seus desejos em conflito


segunda-feira, 9 de abril de 2018

A totalidade da consciência é medo

A totalidade da consciência é medo

[...] Sem dúvida, o medo surge quando buscamos a segurança, exterior ou interiormente; quando se aspira a um estado permanente, duradouro, nas relações, nas coisas mundanas, na confiança, que o saber proporciona, na experiência emocional. E, finalmente, dizemos que existe Deus, absoluta e eternamente permanente, em cujo seio encontraremos imperturbável paz e segurança para todo o sempre. Cada um está a buscar segurança nesta ou naquela forma, e sabemos como cada um atua — buscando a segurança no amor, na propriedade, na virtude, jurando a si mesmo ser bom, casto. Todos conhecemos os horrores inerentes à busca, secreta ou aberta, da segurança. E isso é medo, porquanto nunca averiguastes se existe segurança. Não o sabeis. Emprego estas palavras para denotar que se trata de um fato que desconheceis absoluta e completamente. Vós não sabeis se Deus existe ou não existe. Não sabeis se haverá ou não outra guerra. Não sabeis o que irá acontecer amanhã. Não sabeis se existe, interiormente, alguma coisa permanente. Ignorais o que irá suceder em vossas relações, com vossa esposa, vosso marido, vossos filhos. Não sabeis; mas deveis verificar isso, não achais? Deveis descobrir por vós mesmo que ignorais. E esse estado de não saber, esse estado de completa incerteza, não é medo; é a atenção plena, na qual podeis descobrir.

Vê-se, pois, que a totalidade da consciência — a qual inclui o superficial, o consciente, o oculto, e as extremas profundezas dos resíduos raciais, os “motivos”, tudo o que constitui pensamento — vê-se que a totalidade da consciência é, essencialmente, medo. A consciência é tempo, resultado de muitos dias, meses, anos e séculos. Vossa consciência de serdes francês se formou, historicamente, através de muitas gerações de propaganda. O fato de serdes cristão, católico, o que quer que seja, representa dois mil anos de propaganda durante os quais fostes obrigado a crer, a pensar, a funcionar e atuar segundo um certo padrão chamado “cristão”. E não ter crença alguma, ser o mesmo que nada parece coisa temível. Assim, a totalidade da consciência é medo. Isto é um fato, e não há concordar ou discordar sobre um fato.

Agora, que acontece quando vos vedes em presença de um fato? Ou tendes opiniões a respeito do fato, ou simplesmente o observais. Se tendes opiniões, juízos, avaliações do fato, então não o estais vendo. E não o vedes porque entra em cena o tempo, pois vossa opinião é produto do tempo, do ontem, de vossos conhecimentos anteriores. O ver realmente está no presente ativo, e nesse ver não existe medo. Isso é um fato real. O experimentar de um fato real é que liberta do medo a consciência total. Espero que não estejais muito cansados e possais experimentar isto, pois não podeis levá-lo para casa para lá refletir a seu respeito. Porque então não tem valor. O que tem valor é enfrentar o fato diretamente, e penetrá-lo. Vereis então que o todo de nosso mecanismo pensante, com seus conhecimentos, suas sutilezas, suas defesas e renúncias — que esse todo constitui o pensamento e é a causa real do temor. E vemos também que, quando há atenção total, não há pensamento; há, só, percepção, o ato de ver.

Havendo atenção, há completa tranquilidade; porque nessa atenção não há exclusão. Quando o intelecto pode estar completamente sereno — não adormecido, porém ativo, sensível, vivo, — nesse estado de atenta serenidade não existe medo. Há então uma qualidade de movimento que não é pensamento, absolutamente, que não é sentimento, emoção ou sentimento. Não é uma visão, nem uma ilusão; é um movimento de qualidade toda diferente, que conduz ao Indenominável, ao Imensurável, à Verdade.

Mas, infelizmente, não estais escutando, experimentando deveras, pois não examinastes isto realmente, não investigastes até este ponto. Por conseguinte, o medo não tardará a precipitar-se novamente sobre vós, qual uma vaga, submergindo-vos. Tendes, portanto, de examinar isto; e no examiná-lo está a solução. Esta é a base; e uma vez lançada a base, nunca mais buscareis, porque toda busca da Realidade se baseia no medo. Libertada do medo a mente, o intelecto, então podereis descobrir.[...]

PERGUNTA: Por que temem as crianças?

KRISHNAMURTI: Não é mais certo perguntar: “Por que temos medo?” É bastante óbvio por que as crianças temem. Estão rodeadas por uma sociedade baseada no temor. Os pais temem; e a criança necessita essencialmente de segurança e, quando se vê privada dela, sente medo. Vede, não estais enfrentando o fato de que há temor em vós.

PERGUNTA: É possível estar sempre no estado de atenção plena que excluí o medo?

KRISHNAMURTI: Na atenção não há exclusão; ela não é um mecanismo de resistência. Examinamos a questão do medo e vimos que não existe medo quando estamos atentos. Na atenção não há processo de pensamento “exclusivo”. Pode-se fazer uso do pensamento, mas não há então exclusão. Não sei se percebeis. Eu estou atento; neste momento sou todo atenção. Mas tenho de empregar palavras para comunicar-me convosco. As palavras só servem para a comunicação, e não para se experimentar o fato real.

E apresenta-se aí a questão de como manter a atenção plena. Ora, “manter” implica tempo e, portanto, a destruição da atenção. Se a atenção cessa, é deixá-la ir-se, e esperar que volte. Nunca digais: “preciso mantê-la”; porque isso significa esforço, tempo, pensamento e tudo o mais.

PERGUNTA: A memória está inteiramente associada ao conhecimento, ou é “aquele silêncio” uma memória de diferente qualidade?

KRISHNAMURTI: De todo o processo de conhecer, acumular experiência, resulta a memória, que é tempo. Conhecemos o mecanismo da acumulação das lembranças. Toda experiência incompreendida, incompleta, deixa sua marca, que chamamos memória.

E “aquela tranquilidade” é uma memória de qualidade diferente? A memória, por certo, implica continuidade: o passado, o presente e o futuro. A tranquilidade não tem continuidade, e é importante compreender isto. Pode-se induzir, disciplinar o intelecto para se tornar tranquilo, e esse disciplinar tem uma continuidade; mas a tranquilidade resultante da disciplina, da memória, não é tranquilidade nenhuma.

Nós nos referimos a uma tranquilidade que vem sem ser chamada, quando não existe medo de espécie alguma, declarado ou secreto. E quando existe essa tranquilidade, que é uma necessidade absoluta, independente da memória, verifica-se então um movimento de qualidade totalmente diferente.

Krishnamurti, Paris, 14 de setembro de 1961, O Passo Decisivo

Se cessa o pensamento, existe medo?

Se cessa o pensamento, existe medo?

Ontem estivemos falando sobre a natureza da meditação e dissemos que, havendo liberdade, a mente pode penetrar muito fundo em si mesma. E esta manhã, pretendo considerar várias questões. Primeiramente, o medo, a seguir o tempo e a morte. Penso que essas coisas se relacionam entre si e que sem compreensão de uma delas não será possível compreender as outras. Se não compreendermos o mecanismo integral do medo, não haverá possibilidade de compreendermos o que é o tempo; e no “processo” da compreensão do tempo estaremos aptos a examinar a importante questão da morte. A morte deve ser um fato extraordinário. Assim como é a vida, com sua exuberância, sua riqueza, sua variedade e plenitude, assim deve ser a morte. A morte, sem dúvida, deve ser portadora de novidade, verdor, purificação. Mas, para compreender tão vasta questão, é óbvio que a mente deve estar livre do temor.

Cada um de nós tem muitos problemas, tanto externos como internos, e os problemas interiores excedem os exteriores. Se compreendermos os problemas interiores, se os penetrarmos profundamente, os problemas exteriores se tornarão então bastante simples e claros. Mas o problema exterior não difere do problema interior. É um só movimento, como o das marés. E se seguimos apenas o movimento exterior e por aí ficamos, não poderemos compreender o movimento interior dessa maré. Tampouco compreenderemos o movimento interior, se simplesmente evitamos ou abandonamos a compreensão do exterior. É um só movimento, que chamamos exterior e interior.

Em geral, somos preparados para observar a maré exterior, o movimento que se dirige para fora; mas, nessa direção, o problema cresce mais e mais. E, sem a compreensão desses problemas, é impossível o movimento para dentro, a observação interior.

Infelizmente, tanto temos problemas externos — sociais, econômicos, políticos, religiosos, etc. — como temos os problemas interiores atinentes ao que devemos fazer, como nos devemos comportar, como corresponder aos vários desafios da vida. Parece que tudo o que tocamos, exterior ou interiormente, cria mais problemas, mais angústias, mais confusão. É bem evidente à maioria de nós, que estamos observando, vivendo, que tudo o que tocamos com nossas mãos, com nossa mente, com nosso coração, aumenta os nossos problemas: criam-se mais sofrimentos, mais confusão. E, a meu ver, poderemos compreender todos os nossos problemas ao compreendermos o medo.

Não estou empregando a palavra “compreender” intelectual ou verbalmente, porém referindo-me ao estado de compreensão que nasce quando percebemos, vemos o fato, não apenas visualmente, mas também interiormente. Ver o fato implica um estado em que não há justificação ou condenação, porém, tão só, observação, percepção de uma coisa sem interpretá-la. Porque toda interpretação deforma. A compreensão é instantânea quando não há justificação, condenação ou interpretação.

Isso é difícil para a maioria de nós, porque pensamos que a compreensão é questão de tempo, de comparação, de acumulação de mais informações, mais conhecimento. Mas a compreensão nada disso exige. Só uma coisa ela exige, que é o percebimento direto, o ver diretamente, sem interpretação ou comparação. Assim, não havendo compreensão do medo, os nossos problemas crescem, invariavelmente.

Ora, que é o medo? Cada um de nós tem sua “série” própria de temores. Posso ter medo do escuro, medo da opinião pública, medo da morte, medo de não ter êxito na vida, de não ter capacidade, de me sentir inferior. A cada volta que dá, a mente encontra o temor; cada sussurro do pensamento gera, consciente ou inconscientemente, essa coisa terrível que chamamos medo.

Que é, pois, o medo? Fazei, por favor, esta pergunta a vós mesmos. É algo isolado, só, não relacionado, ou está sempre em relação com alguma coisa? Espero estejais compreendendo o que quero dizer, pois não nos estamos entretendo com psicanálise. Estamos tentando descobrir se é possível libertar a mente do medo — não aos poucos, porém totalmente, completamente. E para o descobrirmos, cabe-nos investigar o que é o temor, como nasce; e para averiguarmos isso devemos investigar o pensamento, não apenas o pensar consciente, mas também o inconsciente, as camadas profundas de nosso próprio ser. Investigar o inconsciente, por certo, não é processo de análise; porque, quando eu analiso, ou outro analisa, há sempre o observador, o analista que está analisando, e por conseguinte há divisão, dissimilaridade e, portanto, conflito.

Desejo investigar como nasce o medo. Não sei se estamos apercebidos de nossos temores, e como deles estamos conscientes. Estamos apercebidos apenas de uma palavra, ou estamos diretamente em contato com a causa do medo? A causa do medo é fragmentária? Ou é uma totalidade, com várias expressões de medo? Eu posso ter medo da morte, vós podeis temer vosso vizinho ou a opinião pública, outrem pode temer o domínio da mulher ou do marido; mas a causa deve ser uma só. Não existem, por certo, várias causas diferentes a produzirem diferentes variedades de medo. E o descobrimento da causa do medo liberta a mente do medo? Se sei, por exemplo, que temo a opinião pública, isso me liberta a mente do temor? O descobrimento da causa do medo não é libertação do medo.

Procurai compreender isso, por favor; não dispomos de tempo para entrarmos em muitas particularidades a esse respeito, pois temos hoje uma vasta matéria para considerar. O conhecimento da causa, ou das numerosas causas geradoras de temor, descarregará a mente do temor? Ou há necessidade de algum outro elemento?

Ao investigar o que é o medo, não só temos de estar apercebidos das reações exteriores, mas também temos de observar o inconsciente. Estou empregando a palavra “inconsciente” num sentido muito simples, não filosófico, psicológico ou analítico. O inconsciente são os motivos ocultos, os pensamentos sutis, os secretos desejos, compulsões, ânsias, exigências. Pois bem. Como examinamos ou observamos o inconsciente? É bastante simples observar o consciente, pelas suas reações de gosto e desgosto, dor e prazer; mas como investigar o inconsciente sem a ajuda de outrem? Porque, se temos ajuda de outrem, este outrem pode ter preconceitos, limitações, pervertendo assim tudo o que interpreta. Por conseguinte, como iremos examinar, sem interpretação, essa coisa vastíssima que se chama a mente oculta — examiná-la, absorvê-la, compreendê-la totalmente, e não a pouco e pouco? Porque, se a examinarmos fragmentariamente, cada exame deixará sua marca, e com esta marca iremos examinar o próximo fragmento, agravando assim a deformação. Por conseguinte, nenhuma clareza se alcança pela análise. Não sei se estais percebendo o que estou dizendo.

Podemos ver, sem dúvida, que o descobrimento da causa do medo não liberta a mente do medo, e que a análise não traz, tampouco, a libertação dele. Há necessidade de compreensão total, descobrimento completo da totalidade do inconsciente; e como iniciar esta investigação? Percebeis o problema?

A mente inconsciente, decerto, não pode ser observada por meio da mente consciente. A mente consciente é coisa recente; “recente” no sentido de que foi condicionada para ajustar-se ao ambiente; foi recentemente moldada, pela educação, para adquirir certas técnicas a fim de viver, obter o sustento pessoal; ela contém memórias cultivadas, sendo, portanto, capaz de levar uma vida superficial, numa sociedade intrinsecamente apodrecida e estúpida. A mente consciente pode ajustar-se, pois esta é sua função. E quando é incapaz de adaptar-se ao ambiente, manifesta-se então uma neurose, um estado de contradição, etc. Mas a mente educada, a mente recentemente formada, não pode de modo nenhum investigar o inconsciente, que é antigo, que é resíduo do tempo, de todas as experiências raciais. O inconsciente é o repositório de ilimitado conhecimento das coisas que foram. Assim, como pode a mente consciente observá-lo? Não pode, porque está condicionada, limitada pelos conhecimentos recentes, pelos recentes incidentes, experiências, lições, ambições e ajustamentos. Essa mente consciente de modo nenhum pode olhar o inconsciente, e isso me parece bastante compreensível. Por favor, isto aqui não é questão de concordar ou discordar; se começais a dizer “Tendes toda a razão” ou “Não tendes razão” — isso nada significa, e ficamos na mesma confusão. Se se percebe imediatamente a importância que isso tem, não há concordar nem discordar, porque estamos então investigando.

Pois bem. Que é necessário para investigarmos o inconsciente, trazermos à luz todo o resíduo, purificarmos totalmente o inconsciente, de modo que não crie as contradições geradoras de conflito? Como proceder à investigação do inconsciente, sabendo-se que uma mente educada é incapaz de observá-lo, e também o é o analista, com seu exame fragmentário? Como olhar essa mente prodigiosa que encerra tão vastos tesouros, repositório de experiências, de influências raciais e climáticas, de tradições, de impressões constantes? Como trazer tudo isso à luz, fragmentária ou totalmente? Se não compreendeis o problema, nesse caso nenhuma significação tem prosseguirmos investigando. O que estou dizendo é que, se o inconsciente for examinado fragmentariamente, isso nunca terá fim, porque o próprio fato de o examinar e interpretar fragmentariamente fortalece as camadas da mente oculta. Ela deve ser examinada como um quadro total. Por certo, o amor não é fragmentário; ele não pode ser dividido em divino e profano, ou posto em várias categorias de respeitabilidade. O amor é coisa total, e a mente que disseca o amor nunca saberá o que é o amor. Para se sentir, compreender o amor, não devemos considerá-lo de maneira fragmentária.

Assim, se isso está realmente claro — isto é, que a totalidade não pode ser compreendida mediante fragmentação — operou-se, então, uma mudança, não achais? Não sei se estais alcançando a ideia que estou transmitindo.

Pois bem. Temos de abeirar-nos da mente inconsciente de maneira negativa, pois não sabemos o que ela é. Sabemos o que outras pessoas têm dito a seu respeito e ocasionalmente temos conhecimento dela por meio de sugestões interiores, intuições. Mas não lhe conhecemos todos os meandros e voltas, a qualidade extraordinária do inconsciente, todas as raízes. Por conseguinte, para compreendermos uma coisa que não conhecemos, temos de abeirar-nos dela de maneira negativa, com uma mente que não está em busca de resposta.

Falamos há dias acerca do pensar positivo e do pensar negativo. Eu disse então que o pensar negativo é a mais elevada forma do pensar; e que todo pensar, positivo ou negativo, é limitado. O pensamento positivo nunca é livre; mas o pensamento negativo pode ser livre. Por conseguinte, a mente negativa, ao observar o inconsciente, que desconhece, está em relação direta com ele.

Vede, por favor, isto não é algo de estranho, um novo culto, uma nova maneira de pensar — pois tudo isso é sem madureza, infantil. Mas, quando desejamos descobrir por nós mesmos o que é o medo e ficar totalmente livres dele, não fragmentariamente, porém de maneira completa, cabe-nos investigar as profundezas de nossa mente. E esse investigar não é um processo positivo. Nenhum instrumento de cavar pode ser criado ou fabricado pela mente superficial. O que a mente consciente pode fazer é apenas ficar quieta, abandonar voluntariamente, facilmente, todos os seus conhecimentos, capacidades, dons, tornar-se independente de todas as suas técnicas. Assim fazendo, ela se põe num estado negativo. Mas, para fazê-lo, é preciso compreender o pensamento.

O pensamento, — a totalidade do pensamento e não apenas um ou dois pensamentos — não gera medo? Se não houvesse amanhã, ou o próximo minuto, haveria temor? O morrer para o pensamento é o fim do medo. E todo estado consciente é pensamento.

Chegamos, agora, à coisa que se chama tempo. Que é o tempo? Existe o tempo? Existe o tempo marcado pelo relógio e pensamos que existe também tempo interior, psicológico. Mas existe o tempo, afora o tempo cronométrico? É o pensamento que cria o tempo; porque o pensamento também é produto do tempo, de muitos dias passados: “Fui aquilo, sou isto e serei aquilo”. Para se ir até à Lua, necessita-se de tempo; precisa-se de muitos dias, muitos meses para montar o foguete; e adquirir os conhecimentos necessários para montar o foguete, também requer tempo. Mas tudo isso é tempo mecânico, tempo cronométrico. Há uma distância a transpor para se ir à Lua, e a distância está também compreendida na esfera do tempo, na esfera das horas, dias, meses. Mas, afora esse tempo, existe o tempo? Por certo, o pensamento criou o tempo. Há pensamento: preciso tornar-me mais inteligente, descobrir como competir, tentar alcançar êxito; como poderei tornar-me respeitável, subjugar minhas ambições, minha cólera, minhas brutalidades? E esse constante mecanismo de pensar, que constitui parte do intelecto mecânico, gera o tempo. Mas, se o pensamento cessa, existe o tempo? Entendeis? Se cessa o pensamento, existe medo? Temo, por exemplo, a opinião pública — o que digam a meu respeito, o que pensem sobre mim. O pensar nisso gera medo. Se não houvesse pensamento, eu pouco me importaria com a opinião pública e, por conseguinte, não haveria temor. Começo, pois, a descobrir que o pensamento gera o medo, que o pensamento resulta do tempo. E o pensamento, que é o resultado de muitos dias passados, modificado por todas as experiências do presente, cria o futuro — que é ainda pensamento.

Assim, todo o conteúdo da consciência é processo de pensamento; portanto, está confinado no tempo. Espero me estejais seguindo.

Ora, pode a mente libertar-se do tempo? Não falo em ser livre do tempo cronológico — pois isso significaria insanidade, desequilíbrio mental. Refiro-me ao tempo como meio de realização, de sucesso, ser algo amanhã, “vir a ser” ou “não vir a ser”; como preenchimento e frustração, como renúncia a uma coisa e aquisição de outra. E isso significa que a questão é a seguinte: Pode o pensamento — que é a totalidade da consciência, tanto a revelada como a não revelada, — morrer completamente, deixar de existir? Quando isso acontece, compreendestes a totalidade da consciência.

Conseguintemente, morrer para o pensamento — para o pensamento que conhece prazeres, que sofre, o pensamento que conheceu a virtude, que conheceu relações, que se tinha tomado existente e expressado de várias maneira, sempre dentro da esfera do tempo — é morte total. Não me refiro à morte mecânica, orgânica, à morte corporal. Poderão os cientistas inventar uma droga que possibilite a existência orgânica do corpo por cento e cinquenta ou duzentos anos — para quê, meu Deus! — mas não é disso que estamos tratando. Estamos tratando do morrer em que não há medo.

Pode, pois, a mente morrer para tudo o que conheceu, isto é, o passado, que é morte? É disso que todos temos medo — da morte, de cessar subitamente, sobre o que não adianta argumentar. Não se pode argumentar com a morte: ela é o fim. E cessar significa morrer para o pensamento e, por conseguinte, para o tempo.

Não sei se já experimentastes isso alguma vez. É relativamente fácil morrer para o sofrimento; todos desejam isso. Mas não é possível morrer para os prazeres, as coisas que temos acalentado, as lembranças que nos dão estímulo, que nos dão um sentimento de bem estar, morrer para tudo o que está contido no tempo? Se investigastes isso, se fizestes isso, vereis que a morte tem significado completamente diferente da morte resultante do declínio físico.

Mas nós não morremos para todas essas coisas; em vez disso, de momento a momento nos estamos decompondo, corrompendo, deteriorando, fenecendo. Morrer implica descontinuidade do pensamento. Podemos dizer: “Isso é muito difícil e, se o fazemos, que valor tem?” — Mas não é difícil; só requer enorme energia e capacidade de penetração. Exige uma mente jovem, fresca, destemida e, portanto, livre do tempo. E que valor tem isso? Talvez nenhum valor utilitário; morrer para o pensamento e, portanto, para o tempo, significa descobrir o estado criador, o estado que constantemente destrói e a cada segundo cria tudo de novo. Nisso não há deterioração, não há fenecer. Só o pensamento fenece — o pensamento gerador do centro que se torna “eu” e “não-eu”, só ele conhece declínio.

Assim, morrer para todas as coisas que a mente acumulou, juntou, experimentou, cessar instantaneamente, isto é, criação na qual não existe continuidade. O que tem continuidade está sempre em declínio. Não sei se já notastes esse perene ansiar pela continuidade, que quase todos temos, o desejo de continuidade de uma dada relação entre marido e mulher, pai e filho, etc. As relações, quando são contínuas, se estão decompondo, estão mortas, não têm valia. Mas, quando morremos para a continuidade, há renovação, frescor.

Pode, pois, a mente experimentar diretamente o que é a morte, sendo isso deveras extraordinário. Em geral não sabemos o que é o viver; e, por conseguinte, não conhecemos o morrer. Sabemos o que é lutar, sabemos o que é inveja, conhecemos as brutalidades da existência, a vulgaridade de tudo, os rancores, ambições, corrupções, conflitos. Conhecemos tudo isso; é nossa vida. Mas não conhecemos a morte, e, por isso, a tememos. Talvez, se soubéssemos o que é viver, saberíamos o que é morrer. Viver, por certo, é um movimento atemporal em que a mente já não está acumulando. No momento em que acumulamos, entramos num estado de decadência. Porque, seja uma experiência importante, seja uma experiência insignificante, em torno dela construímos a muralha da segurança.

Assim, saber o que é viver significa morrer a cada minuto para as coisas que adquirimos, os prazeres interiores, as dores íntimas — não no progredir do tempo, porém morrer para cada coisa que surge. Vereis então, ao alcançardes esse ponto, que a morte é como a vida. O viver não está então separado do morrer, e isso proporciona um extraordinário sentimento de beleza. Esta beleza transcende o pensamento e o sentimento; e ela não pode ser usada como um composto, para pintar um quadro, escrever um poema ou tocar um instrumento. Essas coisas são irrelevantes. Há uma beleza que desponta quando a vida e a morte são a mesma coisa, quando viver e morrer são termos sinônimos; porque então a vida e a morte tornam a mente rica, total, completa.[..]

PERGUNTA: Na investigação do medo, não há perigo de desordem mental?

KRISHNAMURTI: Pode haver maior perigo de desordem mental do que na mentalidade com que estamos vivendo hoje em dia? Não estamos todos — se me perdoais assinalá-lo — um tanto ou quanto mentalmente desordenados? Não quero ser indelicado; não é minha intenção ou ideia julgar-vos. Mas existe essa grande preocupação sobre o perigo de aumento das doenças mentais. Sabeis o que nos está pondo doentes? Não é a investigação do temor. As guerras, o comunismo, o fanatismo religioso, a ambição, a competição, o esnobismo — essas coisas são sintomas de uma pessoa mentalmente doente. Por certo, a investigação do medo e o libertar a mente do medo é a mais sã das coisas. Essa pergunta indica — não é exato? — que consideramos a atual sociedade uma coisa maravilhosa. Os que têm um substancial depósito no banco e estão bem de vida devem achar que está tudo certo, e não desejam perturbações. Mas a vida é bem perturbadora, sobremodo destrutiva; e é disso que temos medo. Não estamos interessados no viver, no ser livre de medo; mas desejamos encontrar um cantinho onde ficar em segurança e conforto, a decompor-nos sossegadamente. Senhores, isto não é retórica; é nosso desejo interior, nosso desejo secreto. Buscamos essa segurança em todas as relações. Quanto ciúme e quanta inveja existem em nossas relações! Quanto ódio, quanta esposa abandona o marido ou o marido “foge com outra”! Como buscamos o beneplácito da sociedade e as bênçãos da igreja! Senhor, são todas essas coisas que ocasionam a deterioração, a destruição da sanidade mental.

PERGUNTA: Estas coisas são inteiramente novas para nós e acho que temos de “continuar com elas”.

KRISHNAMURTI: Senhor, não podeis “continuar com elas”. Se o fazeis, elas se tornam meras ideias, e as ideias não podem criar nada novo. Estamos falando sobre a destruição total das coisas que a mente construiu interiormente. Não se pode “continuar” com a destruição; se o fizerdes, isso será, meramente, construção, levantamento de uma nova estrutura contra aquilo que deve ser destruído. Nós necessitamos de uma mente nova, uma mente jovem, um novo coração, uma mente purificada, juvenil, decidida; e para se ter essa mente, tem de haver destruição; tem de haver criação sempre nova.

Krishnamurti, Saanen, 10 de agosto de 1961, O Passo Decisivo


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"Quando você compreende, quando chega a saber,
então traz toda a beleza do passado de volta
e dá a esse passado o renascimento, renova-o,
de forma que todos os que o conheceram
possam estar de novo sobre a terra
e viajar por aqui, e ajudar as pessoas." (Tilopa)



"Nos momentos tranqüilos da meditação, a vontade de DEUS pode tornar-se evidente para nós. Acalmar a mente, através da meditação, traz uma paz interior que nos põe em contato com DEUS dentro de nós. Uma premissa básica da meditação, é que é difícil, senão impossível, alcançar um contato consciente, à não ser que a mente esteja sossegada. Para que haja um progresso, a comum sucessão ininterrupta de pensamentos tem de parar. Por isso, a nossa prática preliminar será sossegar a mente e deixar os pensamentos que brotam morrerem de morte natural. Deixamos nossos pensamentos para trás, à medida que a meditação do Décimo Primeiro Passo se torna uma realidade para nós. O equilíbrio emocional é um dos primeiros resultados da meditação, e a nossa experiência confirma isso." (11º Passo de NA)


"O Eu Superior pode usar algum evento, alguma pessoa ou algum livro como seu mensageiro. Pode fazer qualquer circunstância nova agir da mesma forma, mas o indivíduo deve ter a capacidade de reconhecer o que está acontecendo e ter a disposição para receber a mensagem". (Paul Brunton)



Observe Krishnamurti, em conversa com David Bohn, apontando para um "processo", um "caminho de transformação", descrevendo suas etapas até o estado de prontificação e a necessária base emocional para a manifestação da Visão Intuitiva, ou como dizemos no paradigma, a Retomada da Perene Consciência Amorosa Integrativa...


Krishnamurti: Estávamos discutindo o que significa para o cérebro não ter movimento. Quando um ser humano ESTEVE SEGUINDO O CAMINHO DA TRANSFORMAÇÃO, e PASSOU por TUDO isso, e esse SENTIDO DE VAZIO, SILÊNCIO E ENERGIA, ele ABANDONOU QUASE TUDO e CHEGOU AO PONTO, à BASE. Como, então, essa VISÃO INTUITIVA afeta a sua vida diária? Qual é o seu relacionamento com a sociedade? Como ele age em relação à guerra, e ao mundo todo — um mundo em que está realmente vivendo e lutando na escuridão? Qual a sua ação? Eu diria, como concordamos no outro dia, que ele é o não-movimento.

David Bohn: Sim, dissemos que a base era movimento SEM DIVISÃO.

K: Sem divisão. Sim, correto. (Capítulo 8 do livro, A ELIMINAÇÃO DO TEMPO PSICOLÓGICO)


A IMPORTÂNCIA DA RENDIÇÃO DIANTE DA MENTE ADQUIRIDA
Até praticar a rendição, a dimensão espiritual de você é algo sobre o que você lê, de que fala, com que fica entusiasmado, tema para escrita de livros, motivo de pensamento, algo em que acredita... ou não, seja qual for o caso. Não faz diferença. Só quando você se render é que a dimensão espiritual se tornará uma realidade viva na sua vida. Quando o fizer, a energia que você emana e que então governa a sua vida é de uma frequência vibratória muito superior à da energia mental que ainda comanda o nosso mundo. Através da rendição, a energia espiritual entra neste mundo. Não gera sofrimento para você, para os outros seres humanos, nem para qualquer forma de vida no planeta. (Eckhart Tolle em , A Prática do Poder do Agora, pág. 118)


O IMPOPULAR DRAMA OUTSIDER — O encontro direto com a Verdade absoluta parece, então, impossível para uma consciência humana comum, não mística. Não podemos conhecer a realidade ou mesmo provar a existência do mais simples objeto, embora isto seja uma limitação que poucas pessoas compreendem realmente e que muitas até negariam. Mas há entre os seres humanos um tipo de personalidade que, esta sim, compreende essa limitação e que não consegue se contentar com as falsas realidades que nutrem o universo das pessoas comuns. Parece que essas pessoas sentem a necessidade de forjar por si mesmas uma imagem de "alguma coisa" ou do "nada" que se encontra no outro lado de suas linhas telegráficas: uma certa "concepção do ser" e uma certa teoria do "conhecimento". Elas são ATORMENTADAS pelo Incognoscível, queimam de desejo de conhecer o princípio primeiro, almejam agarrar aquilo que se esconde atrás do sombrio espetáculo das coisas. Quando alguém possui esse temperamento, é ávido de conhecer a realidade e deve satisfazer essa fome da melhor forma possível, enganando-a, sem contudo jamais poder saciá-la. — Evelyn Underhill