Sobre a paz e a boa vontade
PERGUNTA: Existe alguma maneira de criar boa-vontade? Podeis informar-nos como viver juntos, em paz com outros, em vez desse hostil antagonismo entre todos?
KRISHNAMURTI: A paz e a boa-vontade, sem dúvida, são muito difíceis de estabelecer. Podeis construir uma ponte juntos, ou trabalhar juntos num escritório, porque tendes um patrão que vos manda e vos diz o que deveis fazer. Mas a verdadeira cooperação não pode ser exercida sob compulsão, nem nasce do seguirmos juntos as plantas traçadas por um arquiteto. A paz e a boa-vontade só poderão ser estabelecidas, quando sentirmos que esta Terra é nossa — que não pertence aos comunistas, aos socialistas ou capitalistas, mas a vós e a mim. Ela é nossa Terra, e temos de enriquecê-la e participar juntos dessas riquezas, em vez de nos dividirmos nacionalisticamente, racialmente, ou de acordo com as crenças, os credos e os dogmas de várias religiões organizadas.
Tende a bondade de escutar bem isso, senhores, pois não se trata de simples palavreado. Se desejais realmente estabelecer a boa-vontade e viver juntos em paz, precisais eliminar todas as diferenças de classes e todas as barreiras religiosas — barreiras de dogma, tradição e crença. Não deveis esperar que os governos promovam a paz e a boa-vontade, pela legislação, porque a paz do político não é a paz do homem religioso; são duas coisas totalmente diferentes. O que é necessário é sentirmos, realmente, a paz e a boa-vontade, todos os dias, sermos verdadeiramente bons, sem nos envergonharmos desta palavra, e sem nos deixarmos pegar pelas organizações, que se supõe trarão a paz mas que, de fato, a estão destruindo, em defesa de seus próprios interesses. Quando existir, dentro em nós, esse sentimento de paz e boa-vontade, ele criará o seu mundo próprio. Mas, infelizmente, a maioria de nós não interessa criarmos juntos esse sentimento. O que em geral nos une, não é o amor, não é a simpatia, não é a compaixão, porém o ódio, em virtude de nossa identificação com um grupo que está oposto a outro grupo. Quando nosso grupo se vê ameaçado de destruição por outro grupo, nisso que se chama a guerra, esta ameaça nos faz unir-nos; mas tão logo desaparece a ameaça tornamos a separar-nos — e isso nos é provado todos os dias, pelos fatos.
O que se torna necessário, por conseguinte, não é o ideal da paz ou da boa-vontade, mas, sim, que nos ponhamos frente a frente com o fato de que somos violentos. Quando vos denominais Maharashtrianos, Gujarathis, ou sei lá o que mais, sois violentos, porque vos separastes por meio de uma palavra; e esta palavra estimula o antagonismo, ergue uma barreira entre vós e vosso semelhante. Mas todos somos entes humanos, tendo essencialmente as mesmas tribulações, as mesmas preocupações, misérias e sofrimentos; e o que importa, de certo, é que se perceba este fato óbvio, que se lance fora, sem esforço algum, alegremente, o nosso nacionalismo, as nossas insignificantes organizações e comunidades e sejamos, simplesmente, humanos. Mas, em geral, preferimos passar os dias a especular a respeito de Deus, a discutir o Gita e sobre as demais insignificâncias que vêm nos livros, o que não tem significação alguma. Por isso continua a existir, cada vez mais forte, o nosso antagonismo. O que tem significação são as relações; e se, juntos, queremos implantar a paz e a boa-vontade, temos de deixar de ser meros idealistas e, literalmente, jogar fora todos os absurdos e estultícias do nacionalismo, do provincialismo, despojar-nos de todas as crenças e vaidades, para começarmos de novo, livres e felizes.
Isto não é uma fala ou resposta destinada a estimular-vos a fazer essas coisas. O homem inteligente atua: pela força de sua própria compreensão. Só o estúpido busca estímulos; e se for estimulado, continuará a ser estúpido. Mas, se esse homem souber que é estúpido, nesse caso poderá fazer alguma coisa a tal respeito. Se está apercebido de sua própria vulgaridade, pequenez, seus ciúmes, sua violência, e percebe que cultivar ideais é outra forma de estupidez, então ele será capaz de produzir uma transformação em si mesmo. Se sei que sou arrogante, sei o que devo fazer ou o que não devo fazer, conforme o caso. Mas o homem que é arrogante e quer mostrar-se humilde, ou aquele que segue o ideal da humildade, é estúpido, porque está fugindo do fato para a irrealidade. A não-arrogância é um estado irreal, para o homem que é arrogante. Mas somos criados com esta divisão, dentro em nós mesmos, do fato e do ideal e, por isso, somos hipócritas. Mas se sabemos que somos arrogantes e sabemos enfrentar este fato, nisto está o começo do fim da arrogância.
Do mesmo modo, se desejamos realmente implantar, juntos, a paz e a boa-vontade, precisamos de amor — não o amor ideal, mas o simples amor, a bondade, a compaixão — e isso torna necessário, nos libertarmos de uma certa comunidade e lançarmos fora todos os nossos preconceitos nacionais, raciais e religiosos. Nós somos entes humanos, vivendo juntos sobre esta Terra, esta Terra que nos pertence. E para se sentir esta verdade, precisamos ser verdadeiramente humildes. Para se poder sentir uma coisa profundamente, é necessária a humildade. Mas a humildade deixa de existir, se perseguimos o ideal.
Krishnamurti, Segunda Conferência em Bombaim
7 de maio de 1956, Da Solidão à Plenitude Humana