O mecanismo do "ideal"
PERGUNTA: Depois de vos termos ouvido com o maior interesse durante tantos anos, vendo-nos exatamente no mesmo lugar em que estávamos antes. Não há anais nada que esperar?
KRISHNAMURTI: A dificuldade deste problema é o querermos um resultado que nos convença de termos progredido, de termos sido transformados. Queremos saber que chegamos aonde queríamos chegar. Mas o homem que chegou, o homem que escutou e logrou um resultado disso, esse homem evidentemente não escutou. (risos) Senhores, esta não é uma reação inteligente. O interrogante diz que me está escutando há muitos anos. Ora, tem escutado com atenção completa, ou só com o fim de chegar a uma parte e convencer-se de ter chegado? Este é o mesmo caso do homem que pratica a humildade. A humildade pode ser praticada? Por certo, se estamos convencidos de que somos humildes, não somos humildes. Vós quereis convencer-vos de que chegastes. Isto indica, — não é verdade? — que tendes escutado com o fim de alcançar um certo estado, um certo lugar onde nunca sejais perturbados, onde possais encontrar a eterna felicidade, a bem-aventurança permanente. Mas, como antes disse, não há chegar; há só o movimento do aprender — e esta é a beleza da vida. Se chegarmos, não há mais nada para buscar, para aprender. Todos vós chegastes ou desejais chegar, não só em vossos negócios, mas em todas as coisas que fazeis. Por essa razão, vos vedes insatisfeitos, frustrados, dignos de lástima. Senhores, não há um lugar a que é preciso chegar; o que há é só o movimento do aprender, que só se torna penoso quando há acumulação. A mente que escuta com atenção completa, nunca está procurando um resultado, porque está constantemente a desdobrar-se; qual um rio, está sempre em movimento. Essa mente está de todo inconsciente de sua própria atividade, isto é, não há a perpetuação de um "eu", ávido de resultados.
PERGUNTA: Em toda parte, tanto interior como exteriormente, vê-se o incitamento à violência. O ódio, a má-vontade, a mesquinhez, a agressão, imperam não só na Índia, mas também nos quatro cantos do mundo e na própria psique do homem. Qual a vossa solução para esta crise?
KRISHNAMURTI: Este problema, como todo problema humano, é muito complexo. Para ele não há resposta "sim" ou "não". Porque somos violentos como indivíduos e, consequentemente, como grupo, como nação? Considerai o que aconteceu recentemente nesta cidade. Porque somos violentos, e até mais do que violentos? Que importa vos denominardes Gujarathi ou Maharashtrian? Que importância tem um nome? Mas, atrás do nome jazem, represados, todos os preconceitos, o estreito, estúpido, insulante provincialismo; e da noite para o dia vos vedes cheios de ódio acutilando o vosso próximo, com palavras e com o ferro. Porque procedemos assim? Porque estamos, como um grupo de hinduístas, opostos aos cristãos? E porque estão os alemães ou americanos, como grupos, opostos a outro grupo? Porque somos assim? Vós e eu podemos inventar desculpas e explicações às centenas, e quanto mais talentosos somos, tanto mais sutis se tornam as nossas explicações. Mas, deixando de parte as explicações, sabeis que sois assim? Estais apercebidos de que, subitamente, podeis voltar-vos contra o vosso vizinho, por causa de uma fronteira traçada no mapa, porque certos políticos ambicionam mais poder e estais mais do que prontos a apoiá-los, porque também ambicionais o poder? Porque sois assim? Os muçulmanos e os hinduístas estão uns contra os outros. Por quê? E estais apercebidos desse fato, em vós mesmos? Não achais importante saberdes que assim sois, em vez de, idealisticamente, quererdes parecer não violentos, e outros absurdos que tais? O fato real é que sois violentos; e o problema me parece ser que não percebeis que sois violentos, porque estais sempre simulando não ser violentos. Fostes criados, educados, nutridos com o ideal da não violência; mas o ideal é uma falsificação, uma coisa inexistente. O que existe é o que sois — violentos — e a distância existente entre o ideal e o fato, gera esta hipócrita existência dupla, que é um dos infortúnios de nosso país. Sois todos pessoas muito idealistas, sempre a falar de não-violência e a massacrar os vossos vizinhos. (risos) Não riais, senhores, isto não é engraçado. Estou mostrando fatos. Achais que poderíeis tolerar a pobreza, a degradação, os horrores que se veem em cada cidade e aldeia da Índia, se fôsseis realmente misericordiosos? Não sois realmente misericordiosos e compassivos e é por isso que levais vidas duplas.
O fato é muito mais importante do que o que deveria ser. O fato é que sois violentos; e vos recusais a olhar de frente este fato, porque, dizeis, não deveis ser assim. Clamais contra a violência, procurais repeli-la, porém ela continua a existir. Reconhecei o fato de que sois violentos, em vez de cultivardes o ideal de não violência, coisa inexistente, pois só assim se pode acabar a violência. Vossa atenção não está então distraída, está toda entregue à compreensão da violência e podeis, por conseguinte, fazer alguma coisa com relação à violência; podeis ocupar-vos atentamente, diligentemente com o fato da violência, da má-vontade, da degradação, da crueldade. E eis porque é tão importante acabar com o ideal, aboli-lo completamente.
Sabeis que a crueldade campeia por toda a parte, neste país, crueldade não apenas para com o próximo, mas também para com os animais. Se percebêsseis a falsidade do ideal, não achais que seria possível olhar de frente o fato e acabar com ele definitivamente? Seríeis então um povo de todo em todo diferente, faríeis nascer uma civilização diferente, uma sociedade diferente, não seríeis imitadores do Ocidente; seríeis uma realidade — e a realidade é original, não é imitadora. Mas não se pode ver o original, o real, quando a nossa atenção está distraída pelo ideal.
O ideal nenhuma significação tem; o que tem significação é o fato. Por meio do ideal, esperais livrar-vos do fato, mas isso não é possível; e, mais uma vez, acho muito importante compreender isto: a mente que segue um ideal é uma mente irreal, uma mente que está fugindo, evitando o fato. Mas olhar de frente o fato é muito difícil para a mente que há séculos está sendo educada para aceitar o ideal como coisa digna de nossos esforços. Praticais a não-violência, Ahimsa e tudo o mais e isto para mim é puro absurdo, já que não se trata de um fato. O fato é que sois violentos, como o tendes comprovado vezes e mais vezes, e ele significa que sois sem compaixão; e não se pode ter compaixão na forma de ideal. Ou somos compassivos ou não somos. Existe violência no mundo, porque existe em vosso coração; e a expulsão da violência deve ser vosso único cuidado, e não o cultivo do ideal da não violência. Para expulsardes a violência, tendes de aplicar-lhe a vossa atenção, na vida de cada dia, tornando-vos cônscios das vossas palavras, dos vossos gestos, do modo como falais com vossos criados, vossos vizinhos, vossa mulher e filhos. Vossa violência indica que não há amor em vós — e isso é um fato. Se puderdes considerar o fato, então, com essa própria ação, transformareis o fato, atuareis de alguma maneira sobre ele.
Krishnamurti, Primeira Conferência em Bombaim
4 de maio de 1956, Da Solidão à Plenitude Humana