O homem religioso não
quer reformar a sociedade
PERGUNTA: Admitindo-se que a religião é da mais alta importância na vida, a pessoa verdadeiramente religiosa não se sentirá interessada na situação desditosa de seu semelhante?
KRISHNAMURTI: Tudo depende de quem é que chamais "pessoa religiosa" e do que entendeis por "sentir-se interessado". Tende a bondade de prestar atenção, senhores. O homem religioso deveria ocupar-se com reformas sociais? Que está acontecendo, realmente, no mundo? A pessoa dita religiosa se preocupa com os sofrimentos, as tribulações e a pobreza de seu semelhante, que exigem uma reforma da sociedade. Isto sucede aqui na Índia e noutras partes.
Ora, como sabemos, a produção de utilidades está aumentando muito e é bem provável que daqui a cinquenta ou cem anos haja alimentação e roupa e morada para todos; porque os comunistas têm esse alvo em mira, pelos métodos brutais e tirânicos que lhe são próprios, e os capitalistas têm igual objetivo, para servir aos seus próprios fins. Estamos todos trabalhando para minorar a pobreza e fomentar a produção, pelo uso de métodos cada vez mais eficientes, de novas invenções mecânicas, etc. Tudo isso está sucedendo e continuará a suceder em escala maior ainda — como deve ser. Mas, não há dúvida, o que é de primacial importância é ver a pobreza, ver a degradação, ver como o homem está tratando o homem — o que é algo aterrador — e também senti-lo, em vez de perguntar o que se deve fazer. O que se deve fazer, virá a seu tempo. Mas quase todos nós perdemos o amor pelo homem, em nossa atividade para reformar o homem. Essa reforma vai ser realizada pelo comunismo, de acordo com seus princípios violentos, pelo socialismo, pelo capitalismo e pela constante pressão das nações pobres sobre as nações opulentas. Essa própria pressão provocará uma mudança, uma revolução.
Ora, o problema é este: — Quem é o homem religioso? E deve um homem religioso interessar-se por essa reforma social, em que se trata de acabar com a pobreza e possibilitar uma distribuição equitativa dos bens materiais? É evidentemente necessário extirpar a pobreza, ter boa saúde, alimentação suficiente, casas adequadas para morar, etc.; e isso haverá de realizar-se, por meio da legislação, da pressão, da produção em massa, etc.
Mas que entendemos nós por um homem religioso? Por certo, o homem religioso é o que trabalha para libertar o indivíduo e a si próprio de todas as crueldades e sofrimentos da vida — o que significa que ele é livre de crenças. Esse homem não obedece a nenhuma autoridade, não segue a ninguém, porque ele é a luz de si mesmo; e essa luz irradia do autoconhecimento, é a libertação que vem à existência quando o indivíduo compreende completamente a si mesmo. O homem religioso é aquele que é criador, não no sentido de pintar quadros ou escrever poesias, mas porque nele atua uma força de criação imorredoura, eterna.
Ora, esse homem religioso que descobre sempre coisas novas, de momento a momento, esse homem ir-se-á ocupar com reformas sociais? Ou permanecerá fora da sociedade, socorrendo o indivíduo que se debate nesta luta interminável? Certo, o homem religioso permanece fora da sociedade, porque para ele não existe autoridade. Ele não busca resultados e, por conseguinte, os resultados surgem sem que ele nada faça para consegui-los. Esse homem não se interessa por nenhuma reforma social.
Notai bem: A reforma social é necessária, mas há muita gente trabalhando pela reforma social. E qual a razão dessa atividade? É por amor que a ela se entregam? Ou essa atividade, a que chamam reforma social, é um meio de essas pessoas se preencherem a si mesmas? Notar o mendigo na rua, ver a aterradora pobreza e a degradação existente nas aldeias, e sentir isso, ter amor, compaixão, pelo mendigo, pelo aldeão, isso não é o mesmo quê nos preenchermos numa atividade de reforma social — mesmo quando exerçamos atividades desta natureza. Mas quando a vossa pessoa se torna importante, numa atividade social, isto não acontece porque vos estais preenchendo com tal atividade? E quando isso acontece, já não amais; e o amar, o ter compaixão, o ser sensível ao belo e ao feio, isso é muito mais importante do que nos preenchermos num certo trabalho ostensivo, a que chamamos reforma social.
Assim, o homem religioso é que é o verdadeiro
revolucionário, e não o que quer realizar uma revolução no sentido econômico. O
homem religioso não reconhece nenhuma autoridade, não é ávido nem ambicioso,
não está visando a resultados, não é político; por conseguinte só ele é capaz
de realizar a reforma correta. Eis porque é importante que todos nós, não como
grupos, mas como indivíduos, nos libertemos imediatamente das crenças e dogmas,
da avidez e da ambição. Se assim procederdes, vereis como a mente se tornará
cheia de vitalidade. E o homem é então um reformador num sentido completamente
diferente, porque irá ajudar-nos a libertar a mente, para descobrir e ser
criadora. A mente que está ocupada, não pode ser criadora. A mente que se ocupa
em preencher a si mesma, nunca descobrirá o desconhecido. Só a mente que se
acha completamente desocupada, pode descobrir e compreender o eterno, e essa
mente produzirá sua ação peculiar, na sociedade.
Krishnamurti, Primeira Conferência em Bombaim
4 de maio de 1956, Da Solidão à Plenitude Humana