A compreensão do
mecanismo social
TALVEZ convenha, em primeiro lugar, considerarmos o
que se entende por “escutar”. Evidentemente, estais aqui para escutar e
compreender o que se está dizendo; e acho de importância averiguar como
escutamos, uma vez que a compreensão depende da nossa maneira de escutar.
Quando escutamos, estabelecemos em nós mesmos uma discussão do que se está
dizendo, interpretando-o de acordo com nossas opiniões pessoais, conhecimentos,
idiossincrasias, ou ficamos simplesmente a escutar, com atenção, sem intuito de
interpretação? E que significa “prestar atenção”? Parece-me realmente importante
diferenciar entre “atenção” e “concentração”. Sabemos escutar com uma atenção
completamente isenta de interpretação, oposição, ou aceitação, de modo que
compreendamos integralmente o que se diz? É bastante óbvio, penso eu, que, se
somos capazes de escutar com atenção completa, esta mesma atenção produz um
efeito extraordinária.
Por certo, há duas maneiras de escutar. Pode-se
seguir superficialmente as palavras, perceber sua significação, alcançando-se
meramente o significado exterior da descrição; ou pode-se escutar a descrição,
a exposição verbal, e continuá-la interiormente, isto é, podemos estar apercebidos
do que se está dizendo, como uma coisa que estamos experimentando diretamente
em nós mesmos. Se sabemos proceder desta última maneira, isto é, se através da
descrição somos capazes de experimentar diretamente a coisa que se está
dizendo, terá isso, a meu ver, grande importância. Espero tenteis experimentar
o que estais escutando.
No mundo inteiro há pobreza, em proporções imensas,
como na Ásia, e enormes riquezas, como neste país; há crueldade, sofrimento,
injustiça, um modo de viver em que não existe nenhum sentimento de amor.
Vendo-se isto, que se pode fazer? Qual a maneira correta de nos aplicarmos à
solução desses inumeráveis problemas? As religiões, em toda parte, têm sempre
encarecido o aperfeiçoamento pessoal, o cultivo da virtude, a aceitação da
autoridade, a obediência a certos dogmas, crenças, a necessidade de fazermos um
grande esforço de ajustamento aos padrões estabelecidos. Não só religiosamente,
mas também politicamente, vemos esse constante impulso de aperfeiçoamento
pessoal: “Devo tornar-me mais nobre, mais delicado, mais atencioso, menos
violento.” A sociedade, com a ajuda da religião, criou uma civilização baseada
no auto-aperfeiçoamento, no sentido mais amplo da palavra. É isto o que cada um
de nós está tentando fazer, a todas as horas: estamos tentando melhorar a nós
mesmos, o que implica esforço, disciplina, ajustamento, competição, aceitação
da autoridade, senso de segurança, justificação da ambição. E o
auto-aperfeiçoamento conduz, com efeito, a certos resultados óbvios: torna a
pessoa mais sociável. Tem significação social, e nada mais, visto que o auto-aperfeiçoamento não pode revelar a
Realidade fundamental. Acho muito importante compreender-se isto.
As religiões que temos não nos ajudam a compreender
aquilo que é real, porquanto, essencialmente, estão elas baseadas, não no
abandono do “eu”, mas no melhoramento, no aperfeiçoamento do “eu”, o que
significa: continuidade do “eu”, sob diferentes formas. São pouquíssimos os que
se libertam da sociedade, não das exterioridades sociais, mas de todas as
influências de uma sociedade que está baseada na ambição, na inveja, na
comparação, na competição. Esta sociedade condiciona a mente de acordo com
certo padrão de pensamento, o padrão do auto-aperfeiçoamento, auto-ajustamento,
auto-sacrifício, e só os que são capazes de libertar-se de todo
condicionamento, só estes podem descobrir aquilo que não é mensurável pela
mente.
Agora, que entendemos por esforço? Todos estamos a
fazer um esforço, nosso padrão social está baseado no esforço de adquirir, de
compreender mais, de ter mais conhecimentos para, com esse fundo de
conhecimentos, agirmos. Há sempre um esforço de automelhoramento,
auto-ajustamento, autocorreção, impulso para nos preenchermos, com todas as
suas frustrações, temores e angústias. De acordo com esse padrão, que todos
conhecemos e de que somos parte integrante, é uma coisa perfeitamente
justificável ser ambicioso, competir, invejar, perseguir determinado resultado;
e nossa sociedade, seja na América ou na Europa, seja na Índia, está
essencialmente baseada em tal padrão.
Assim sendo, pode a sociedade, a civilização, em seu
sentido mais amplo, ajudar o indivíduo a descobrir a verdade? Ou a sociedade é
nociva ao homem, já que o impede de descobrir o que é a verdade?
Indubitavelmente, a sociedade, tal como a conhecemos, esta civilização em que
estamos vivendo e funcionando, leva o homem a ajustar-se a um padrão
determinado, a ser respeitável, e ela é o produto de muitas vontades. Nós
criamos esta sociedade; ela não nasceu espontaneamente. E esta sociedade ajuda
o indivíduo a achar o que é a Verdade ou Deus — ou o nome que quiserdes, pois
as palavras são sem importância — ou deve o indivíduo pôr de parte, totalmente,
a cultura, os valores da sociedade, para descobrir a Verdade? O que não
significa — e cumpre notá-lo claramente — que ele deve tornar-se anti-social,
fazer o que bem entender. Pelo contrário.
A atual estrutura social baseia-se na inveja, no
impulso aquisitivo, em que está implicada a conformidade aos padrões, a
aceitação da autoridade, a perpétua realização da ambição — e tudo isso
representa, essencialmente, o “eu”, o “ego”, a lutar para se tornar alguma
coisa. É deste material que está feita a sociedade, e sua cultura — nos seus
aspectos agradáveis e desagradáveis, belos e feios — todo o campo de
empreendimentos sociais — sua cultura condiciona a mente. Vós sois o resultado
da sociedade. Se tivésseis nascido na Rússia e sido educado pelos seus métodos
especiais, negaríeis a Deus, aceitaríeis certos padrões, tal como aqui aceitais
outros padrões. Aqui, credes em Deus, e acharíeis horrível, se não crêsseis,
pois não seríeis pessoas respeitáveis.
A sociedade, pois, em toda parte, está condicionando
o indivíduo, e esse condicionamento assume a forma de automelhoramento, que na
realidade significa perpetuação do “eu”, do “ego”, sob diferentes formas. Esse
melhoramento pode ser grosseiro, ou então muito requintado, quando se torna
prática da virtude, da bondade, do chamado amor ao próximo; mas, essencialmente,
ele representa a continuação do “eu”, que é produto das influências
condicionadoras exercidas pela sociedade. Todos os vossos esforços têm sido
aplicados no sentido de vos tornardes alguma coisa, neste mundo, se tiverdes
sorte, ou no “outro mundo”; mas o que vos move é sempre a mesma ânsia, o mesmo
impulso para manter a continuidade do “eu”.
Ao perceber-se tudo isso — e não é necessário que eu
entre em todos os respectivos pormenores — é inevitável esta pergunta: a
sociedade ou a cultura existe para ajudar o homem a descobrir isso que se pode
chamar a Verdade, Deus? O que importa verdadeiramente é que descubramos, que experimentemos diretamente algo que se acha muito além da mente, e não,
apenas, que tenhamos uma crença, pois isso não tem importância nenhuma. E, as
chamadas religiões, o seguir vários instrutores e disciplinas, o pertencer a
seitas, cultos, pode qualquer dessas coisas ajudar-vos a encontrar aquela
bem-aventurança eterna, aquela realidade eterna? Se não vos limitardes a ouvir,
apenas, o que se está dizendo, concordando ou discordando, mas perguntardes a
vós mesmos se a sociedade vos está ajudando — não no sentido superficial de
alimentar-vos, vestir-vos e dar-vos morada, mas fundamentalmente — se de fato
fizerdes diretamente esta pergunta a vós mesmos, o que significa que estareis
aplicando a vós mesmos o que se está dizendo, tornando-o assim uma experiência
direta, e não meramente uma repetição de coisas ouvidas ou aprendidas,
vereis então que o esforço só pode existir na esfera do automelhoramento. E o
esforço é, bàsicamente, parte integrante da sociedade, a qual condiciona a
mente de acordo com um padrão em que o esforço é considerado um fator
essencial.
Por exemplo, se sou cientista, tenho de estudar,
tenho de conhecer matemática, de saber tudo o que já se disse anteriormente,
tenho de possuir um imenso cabedal de conhecimentos. Minha memória tem de ser
exercitada no mais alto grau, tenho de torná-la mais forte, mais ampla. Mas a
tal memória, tal saber, na, realidade impede descobrimentos mais profundos.
Só quando sou capaz de esquecer tudo o que sei, todos os conhecimentos que
adquiri — os quais podem ter utilidade noutras ocasiões — só então estou apto a
descobrir algo novo. Não me será possível descobrir nada novo com o lastro do
passado, com minha carga de conhecimentos — o que, mais uma vez, é um evidente
fato psicológico. E estou dizendo isto porque queremos ir ao encontro da
realidade, daquele extraordinário estado criador, com toda a carga que a
sociedade nos impôs, todo o condicionamento de uma dada cultura, razão por que
nunca descobrimos o novo. Por certo, aquela realidade, que constitui o sublime,
o eterno, tem de ser sempre nova, estar fora do tempo, e para que o novo possa
manifestar-se, nada se deve empreender no terreno em que o esforço só visa ao
automelhoramento, ao autopreenchimento. Só
quando tal esforço cessar totalmente, se tornará possível a “outra coisa”.
Notai, por favor, que isto é muito importante. Não é
uma questão de ficardes contemplando o umbigo e vos deixardes enlevar por uma
ilusão qualquer, mas, sim, de compreender-se o mecanismo total do esforço, na
sociedade, esta sociedade de que somos produto, esta sociedade que nós mesmos
construímos, onde o esforço é uma coisa essencial, porque, sem ele, estamos
perdidos. Se não sois ambicioso, sereis destruído; se não sois ganancioso,
sereis pisado; se não sois invejoso, nunca tereis, cargos elevados ou grandes
êxitos na vida. Por isso, estais constantemente a fazer esforços para serdes ou
para não serdes, para vos tornardes algo, terdes êxitos felizes, realizardes as
vossas ambições; e com tal mentalidade, que é produto da sociedade, quereis
tentar achar algo que não é produto da sociedade.
Ora, se desejamos descobrir o que é a verdade,
devemos estar totalmente livres de todas as religiões, de todos os
condicionamentos, dogmas, crenças, de toda autoridade que nos força a
ajustar-nos a padrões; e isso significa, essencialmente, “estar completamente
só” — coisa muito difícil, que não é um simples entretenimento para uma manhã
de domingo, para um deleitável passeio de carro e um refrescante descanso
debaixo das árvores, ouvindo coisas sem sentido. O descobrimento da Verdade
requer uma dose imensa de paciência, de serenidade, de incerteza. O
mero estudo dos livros não tem valor algum; mas se, enquanto estais escutando,
puderdes manter-vos completamente atentos, vereis que essa atenção vos
libertará de todo esforço, de modo que, sem nenhum movimento em qualquer
direção, a mente será capaz de receber algo extraordinariamente belo e criador,
algo que não pode ser medido pelo saber, pelo passado. Só uma pessoa assim é
verdadeiramente religiosa e revolucionária, porque já não faz parte da sociedade.
Enquanto o indivíduo for ambicioso, invejoso, ganancioso, competidor, ele é
a sociedade. Com uma mentalidade dessas, de que é dificílimo nos
libertarmos, esse indivíduo busca Deus, e essa busca não tem significação
alguma, já que não passa de um novo esforço que ele faz, para se tornar algo,
para ganhar algo. Eis porque é de grande importância compreendermos as nossas
relações com a sociedade, estarmos apercebidos de todas as crenças, dogmas,
doutrinas e superstições que adquirimos, e deitarmos fora tudo isso — não por
meio de esforço, porque nesse caso ver-nos-emos de novo apanhados na mesma
rede, mas percebendo essas coisas no seu exato significado e soltando-as
de nós, tal como as folhas do outono, que murcham e são levadas pelo vento,
deixando a árvore inteiramente nua. Só quando se acha neste estado,
completamente nua, a mente pode receber algo portador de uma felicidade
imensa para a nossa vida.
Krishnamurti,
7 de agosto de 1955
Realização sem
esforço
_________________________________________________