No conhecimento da totalidade do "eu", o seu fim
Um dos mais difíceis problemas parece ser a questão de como operar uma transformação fundamental em nós mesmos. Pensamos, muitas vezes, que a transformação do indivíduo não importa e que devemos, antes, interessar-nos pela "massa", pelo todo. Acho completamente errônea essa ideia. Eu penso que a transformação deve começar pelo indivíduo — se tal entidade existe, "o indivíduo". Há necessidade de uma transformação essencial em vós e em mim. A modificação consciente, como se pode ver, não constitui transformação. O processo deliberado de automelhoramento, o cultivo deliberado de determinado padrão ou forma de ação, não produz a transformação real, porquanto tal modificação será mera projeção do nosso próprio desejo, nosso próprio fundo — uma reação. Todavia, quase todos temos muito interesse nesta questão da transformação, visto que estamos andando às cegas, estamos confusos. E aqueles que refletem seriamente deviam investigar a fundo esta questão de como promover a transformação de si próprios.
A dificuldade, ao que me parece, está em compreender o fato de que qualquer espécie de modificação, feita numa mente condicionada, só pode produzir um condicionamento diferente, e não uma transformação. Se eu, como hinduísta ou como cristão, procuro modificar-me dentro desse padrão, não se efetua nenhuma transformação real, e, sim, apenas um condicionamento talvez melhor, mais conveniente, mais adequado; mas fundamentalmente, não há transformação. A meu ver, um dos piores obstáculos que estamos enfrentando é esta ideia de que podemos transformar-nos dentro do padrão. Mas, sem dúvida, quando uma mente condicionada pela sociedade, por uma dada cultura, produz, conscientemente, alguma modificação dentro do padrão, tal modificação é ainda um processo de condicionamento. Bem esclarecido isso, acho que então a nossa investigação, visando a descobrir o que é transformação e como será possível produzir uma mudança radical em nós mesmos, torna-se altamente interessante, uma questão vital. Porque a cultura, isto é, a sociedade que nos rodeia, pode criar uma "religião", porém, nunca produzirá um homem religioso.
Agora, se posso desviar-me um pouco do assunto, interessa observar a forte reação que geralmente nos desperta a palavra "religião". Uns gostam dela, e a simples palavra lhes dá um sentimento de satisfação emocional; outros a repelem. Mas considero importante descobrir como escutar corretamente as palavras. Como é que escutamos? Vós ouvis a palavra "religião", e gostais ou não gostais desta palavra. Esta própria palavra atua como uma barreira à compreensão mais ampla, à ulterior investigação, por causa de nossa reação à palavra.
Mas pode-se escutar sem tal reação? Porque, se sabemos escutar sem reação, sem que nossos preconceitos, nossas peculiaridades, idiossincrasias, crenças, nos fechem o caminho, poderemos então, parece-me, ir muito longe. Dificílimo é, porém, desembaraçar-nos de nossos preconceitos, para darmos atenção completa a algo que se está dizendo. A atenção se torna estreita, exclusivista, quando meramente concentrada numa determinada ideia. Os mais de nós temos ideias, certos preconceitos, e, enquanto pensarmos segundo esta norma, podemos prestar "atenção", como o chamamos, mas, na realidade, essa atenção é uma forma de exclusão, que absolutamente não é atenção. O que desejo fazer-vos notar é que, para escutarmos realmente, devemos estar apercebidos de nossos próprios preconceitos, nossas próprias reações emocionais e neurológicas a uma determinada palavra, como sejam "Deus", "religião", "amor", etc., para nos desembaraçarmos de tais reações. Se soubermos escutar dessa maneira, escutar atentamente, sem estarmos à procura de uma dada ideia que confira com a nossa própria ideia, ou lhe seja contrária, acho que então estas palestras poderão ser frutuosas.
Como dizia, a cultura pode produzir religiões, mas não um homem religioso. E, em meu sentir, só um homem religioso é capaz de operar uma radical transformação dentro de si mesmo. Toda mudança, toda alteração, feita na mente condicionada por uma dada cultura, não constitui uma transformação real, e, sim, tão só a continuação da mesma coisa com modificações. Isso me parece bastante óbvio, se refletimos a seu respeito — isto é, que enquanto eu tiver o padrão hinduísta, cristão, budista, etc., qualquer mudança que eu opere dentro desse padrão representará uma mudança consciente, que faz parte, ainda, do padrão, não sendo, por conseguinte, transformação nenhuma. Surge aí a questão: posso operar a transformação por meio do inconsciente? Quer dizer: ou começo, conscientemente, a alterar o padrão do meu viver, minhas normas de pensar, a suprimir conscientemente os meus preconceitos — o que, tudo isso, constitui um mecanismo deliberado de esforço, visando a certo objetivo, certo ideal; ou procuro operar a modificação, esquadrinhando o inconsciente. Indubitavelmente esses dois métodos envolvem o problema do esforço. Vejo que preciso transformar-me — por várias razões, por "motivos" vários — e, conscientemente, começo a trabalhar neste sentido. Percebendo então — se reflito a respeito da coisa — que não se realiza uma verdadeira transformação, ponho-me a esquadrinhar o inconsciente, a penetrar-lhe as profundezas, na esperança de que, por vários métodos de análise, me seja possível operar uma mudança, uma modificação, ou um ajustamento mais profundo.
E, agora, pergunto a mim mesmo se esse esforço consciente e inconsciente para me transformar produz de fato transformação. Ou será necessário ultrapassar, tanto o consciente como o inconsciente, para que possa produzir-se uma mudança radical? Como sabeis, tanto o desejo consciente como o impulso inconsciente, para modificar, implicam esforço. Se examinardes muito profundamente esta questão, vereis que, ao desejarmos transformar-nos, há sempre aquele que faz o esforço e, também, aquilo que é estático — a coisa sobre a qual o esforço se exerce. Assim, nesse processo de se desejar operar modificação — consciente ou inconscientemente — há sempre pensador e pensamento: aquele que diz "Preciso transformar" e o estado que ele deseja transformar. Há, pois, dualidade; e estamos sempre, estamos perenemente procurando lançar uma ponte sobre esse vão por meio de esforço. Vejo que há em mim, no consciente e no inconsciente, a entidade que faz esforço, e aquilo que ela deseja modificar. Há uma divisão entre o que sou e o que desejo ser. Isto significa: divisão entre o pensador e o pensamento, e daí o conflito. E o pensador está sempre tentando vencer este conflito, consciente ou inconscientemente. Estamos bem familiarizados com esse "mecanismo", pois é isso que estamos fazendo constantemente. Toda nossa estrutura social, nossa estrutura moral, nossos ajustamentos, etc., baseiam-se em tal "mecanismo". Mas isso produz transformação? Se não produz, não deve então a transformação ser operada num nível completamente diferente, que não se acha nem no campo do consciente nem no campo do inconsciente? Sem dúvida, todo o campo mental — o consciente e o inconsciente — está condicionado pela nossa particular cultura. Isto é bastante óbvio. Enquanto eu for hinduísta, budista, cristão, etc., a própria cultura em que fui criado, educado, condiciona todo o meu ser. O meu ser total é tanto o consciente como o inconsciente. No campo do inconsciente se acham todas as tradições, o resíduo, assim o herdado como o adquirido, de todo o passado do homem, e eu estou tentando modificar-me no campo do consciente. Tal modificação só pode ser feita de acordo com meu condicionamento, e, por conseguinte, nunca produzirá liberdade. É bem óbvio, pois, que a transformação é uma coisa totalmente independente da mente; ela deve estar num nível completamente diferente, numa diferente profundidade, numa altura diferente.
Como posso então transformar-me? Percebo, ou pelo menos entrevejo, a verdade de que uma mudança, uma transformação, deve começar num nível que a mente, como consciente ou inconsciente, não pode alcançar, visto que minha consciência, como um todo, está condicionada. Que devo então fazer? Espero que esteja fazendo claro o problema. Posso enunciá-lo de maneira diferente: pode a minha mente, tanto a consciente como a inconsciente, tornar-se livre da sociedade? — sendo sociedade a educação, a cultura, a norma, os valores, os padrões. Não sendo livre, qualquer modificação que ela tente efetuar dentro desse estado condicionado, é sempre limitada e, por conseguinte, não é transformação. Se percebo a verdade a esse respeito, que deve a mente fazer? Se digo que ela deve tornar-se quieta, então esse próprio "tornar-se quieta" faz parte do padrão, é produto do meu desejo de efetuar uma transformação num nível diferente.
Assim sendo, posso prestar atenção, sem ter motivo algum? Pode a minha mente existir sem nenhum incentivo, nenhum "motivo" para transformar-me ou não transformar-me? Porque todo motivo resulta da reação de uma determinada cultura, produto de um determinado fundo. Pode, então, a minha mente ficar livre da cultura sob cuja influência fui educado? Esta é, com efeito, uma questão muito importante. Porque, se a mente não está livre da cultura em que foi criada, nutrida, o indivíduo, sem dúvida, nunca estará em paz, nunca terá liberdade. Seus deuses e seus mitos, seus símbolos e todos os seus empreendimentos são limitados, porque pertencem ao campo da mente condicionada. Quaisquer esforços que faça, ou não, dentro deste tão limitado campo são, em verdade, fúteis, no sentido mais profundo da palavra. Poderá haver melhor decoração da prisão — mais luz, mais ventilação, mais alimento —, mas é sempre a mesma prisão de uma determinada cultura. Pode, pois, a mente, tornando-se cônscia de sua totalidade, e não só das camadas superficiais ou de certas profundidades — pode a mente alcançar aquele estado em que a transformação não resulta de esforço consciente ou inconsciente? Se está clara esta questão, manifesta-se, então, a reação ao problema: como alcançar um tal estado? Ora, a própria pergunta "como?" é mais uma barreira. Porque o "como" implica a busca e a prática de certo sistema, certo método, os "passos" que se devem dar para se chegar àquela transformação.
Compreendeis? O "como" implica o desejo de alcançar, a ânsia de realizar; e esta própria tentativa de ser uma coisa deriva de nossa sociedade, que é aquisitiva, invejosa. E estamos, assim, de novo na armadilha. Nessas condições, que deve fazer a mente? Percebo a importância da transformação. E percebo que toda modificação, em qualquer nível da mente consciente ou inconsciente, não representa transformação nenhuma. Se compreendo realmente isso, se percebo a verdade respectiva — isto é, que enquanto existe entidade que faz esforço, o pensador, o "eu", que quer alcançar um resultado, tem de haver divisão e, portanto, o desejo de efetuar uma ligação, uma integração dos dois, o que torna inevitável o conflito. Se percebo tal verdade, que acontece?
Eis o problema: percebo que todo esforço que faço, dentro da esfera do pensar — a esfera tanto do consciente como do inconsciente — produz separação, dualidade, e por conseguinte conflito? Se percebo esta verdade, que acontece? Tenho eu então, tem a mente consciente ou a mente inconsciente, de fazer alguma coisa? Vede, por favor, que isto não é nenhuma filosofia oriental de inação, não significa entregar-se a certo "transe" misterioso. Pelo contrário, requer muita reflexão, penetração, investigação. Esse estado só pode ser atingido pela compreensão do consciente e do inconsciente, e não pelo dizermos, apenas: "Pois bem, não pensarei mais; e então acontecerão coisas". Não acontecerá coisa nenhuma. Daí a importância do autoconhecimento. Não o autoconhecimento de acordo com certo filósofo, certo psicanalista, grande ou pequeno, pois isto será mera imitação; é o mesmo que ler um livro e querer ser o livro; não é autoconhecimento. Autoconhecimento é o descobrir, de fato, em si mesmo, o processo do próprio pensar, do próprio sentir, dos próprios motivos e reações — o verdadeiro estado em que nos achamos, e não um estado desejado.
Eis porque muito importa tenhamos conhecimento de nós mesmos, como quer que sejamos: feios, bons, maus, belos, joviais — tudo o que somos; conhecimento de nosso condicionamento superficial e bem assim do condicionamento inconsciente, mais profundo, de séculos de tradição, de anseios, compulsões, imitações; compreensão, experiência direta da totalidade, pelo autoconhecimento. Acho que então se descobrirá que tanto a mente consciente como a inconsciente não mais farão movimento algum para realizar a transformação; mas ocorrerá uma mudança, ocorrerá uma transformação, num nível de todo diferente, a uma altura e uma profundidade inatingíveis pela mente consciente e pela mente inconsciente. A transformação tem de começar aí, e não no nível consciente ou inconsciente, oriundos de uma cultura. Por esta razão é muito importante estarmos livres da sociedade, mercê do autoconhecimento. Então, depois de ter cessado todo esse mecanismo de reconhecimento pela sociedade e quando a mente já não se preocupa com reformas, deve verificar-se uma transformação radical, inatingível pela mente consciente ou inconsciente; e, em virtude dessa transformação, será possível criar uma sociedade diferente, um Estado diferente. Mas esse Estado, essa sociedade, não podem ser preconcebidos — deverão surgir das profundezas do autodescobrimento.
Assim sendo, o que me parece importante é essa investigação do "eu", de "mim", para se conhecer o "eu" tal qual é, com suas ambições, invejas, exigências agressivas, falácias, divisão em "superior" e "inferior" — de tal maneira que não só seja revelada a mente consciente, mas também a inconsciente, o repositório da antiga tradição, dos séculos de depósitos de toda sorte de experiências. O conhecimento da totalidade do "eu" significa o seu fim. Então a mente, já que não mais está preocupada com a sociedade, com reconhecimento, com reformas, nem mesmo com a transformação de si própria, descobre que há uma mudança, uma transformação não proveniente de um esforço deliberado visando a um resultado.
Krishnamurti, Quarta Conferência em Londres, 24 de junho de 1955