O desejo de libertação produz condicionamento
[...] PERGUNTA: Como pode ser mantida a atenção decorrente do percebimento?
KRISHNAMURTI: Senhor, peço vênia para dizer, mui respeitosamente, que acho que fizestes uma pergunta algo incorreta. Porque desejar manter a atenção? Que existe atrás desta palavra — "manter"? Desejo manter um certo estado de relação com minha mulher, meu marido, um amigo. Desejo conservá-lo vivo, em um certo nível, num certo grau de "afinação", de modo que possamos sempre amar-nos e corresponder-nos completamente. Ou desejo conservar um certo sentimento. E como o conservarei? Dizendo "Quero mantê-lo vivo" — isto é, mediante a volição, a vontade. E que acontece quando mantendes alguma coisa pela ação da vontade? Essa coisa se torna quebradiça e é destruída. Pode-se manter o amor pela volição, pela vontade? Ora, deve haver uma maneira diferente de atender a esta questão.
Digamos que percebo, num rápido instante, o que significa "estar lúcido". Percebo-o a pleno, e não apenas verbalmente. Surpreendi-me num momento de lucidez sem escolha, e compreendi o que isso significa verdadeiramente. Por um segundo, estou lúcido, e percebo a extraordinária liberdade, a beleza e alegria existentes nesse estado. Digo então de mim para comigo: "Preciso manter isso"; e, no momento em que desejo manter esse estado, ele se torna memória. O que estou mantendo não é o fato, porém a memória do fato e, por conseguinte, uma coisa morta. Vede isto, por favor!
Lembro-me de meu irmão, meu filho, minha mulher, meu marido, que morreu, e estou vivendo nessa memória, conservando-a, com todos os seus deleites, desesperos, ânsias — sabeis de tudo por que passamos. Mas não tratei de descobrir o que significa morrer uma pessoa; não estou ciente do significado da morte. É preciso, pois, estar-se apercebido do significado do fato, e não, simplesmente, viver numa memória. Compreendeis, senhor? "Não viver numa memória" significa: nunca dizer, a respeito de uma experiência ligada a certa relação: "Quero conservar isto, quero que isto continue". Então, a morte de alguém não tem importância. Isto não é insensibilidade ou indiferença. Estai atento ao presente, a cada minuto — e vereis.
Transmiti-vos alguma coisa?
A verdade não tem continuidade, porque está além do tempo; e o que tem continuidade não é a Verdade. A Verdade é para ser percebida instantaneamente, e esquecida — "esquecida", no sentido de que não a levemos conosco como lembrança da Verdade que foi percebida. E porque vossa mente está livre da memória, a qualquer instante — no próximo minuto, no dia seguinte ou um pouco mais tarde — a Verdade reaparecerá.
Como não tem continuidade, a Verdade só pode ser vista quando a mente toda inteira está livre desse mecanismo, de manter, de rememorar, de reconhecer. Isso exige extraordinária atenção, já que é muito fácil dizer-se: "Ontem eu vi isso, e quero viver com isso". Se ficardes "vivendo com isso", estareis vivendo com uma memória, coisa morta e sem significação, que vos impedirá de ver a Verdade, sempre nova e fresca. Para ver a Verdade, ou a beleza daquela montanha, vossa mente deve estar sobremodo sensível, não ter sido embotada pela memória de coisas passadas; e isso exige — como sabereis se vos observardes — penetrante atenção. Por conseguinte, não deveis permitir que vosso corpo se torne embotado, indolente. Deveis ter um corpo altamente alertado, sensível; porque as condições do corpo influem no cérebro, e o cérebro influi em vosso pensamento. Psicossomaticamente, é necessário estar-se plenamente lúcido.
A memória é mecânica, e tem naturalmente seu lugar próprio. Sem a memória, não saberíeis onde morais, não saberíeis ler e escrever, etc. Mas, com a maioria de nós acontece que a memória — que é o passado — interfere na observação. Quando tiverdes compreendido este fato, tereis espaço para observar; e nesse espaço, por uma fração de segundo, por dez minutos, por uma hora — o período não importa — há percebimento. Mas, se converterdes esse percebimento em memória, nunca mais tornareis a ver.
Em geral, vivemos de memórias: memórias dos ditosos tempos da juventude, lembranças relativas ao sexo, lembranças de nossas alegrias e desesperos, etc. Vivemos no passado e, por isso, nossa mente é insensível; e nosso preparo técnico, portanto, contribui para nos tornarmos autômatos. Estou falando de coisa muito diferente: tornar a mente sobremodo ativa e sensível, pelo percebimento de tudo o que fazeis e deixais de fazer.
INTERROGANTE: Quando estou escutando o que aqui se diz, sinto-me muito vivo e sensível; mas, quando me vou, a sós, ou quando me acho em casa, essa sensibilidade desaparece.
KRISHNAMURTI: Se só tendes sensibilidade enquanto aqui vos achais, nesse caso estais sendo influenciado, e isso nenhum valor tem. O que estais ouvindo é, então, mera propaganda e, por conseguinte, deveis evitá-lo, rejeitá-lo, destruí-lo, pois é assim que se criam os Mestres, os instrutores, as autoridades. Mas se, ouvindo-me falar, estivestes apercebido de vossas próprias reações, a cada minuto, acompanhando o que estivemos dizendo durante mais de uma hora; se estivestes atento não só às palavras do orador, mas também aos movimentos de vosso próprio pensamento e sentimento, então, ao sairdes daqui, sozinho, conhecereis o estado de vossa mente e nunca vos deixareis colher cegamente em suas redes.
PERGUNTA: Não achais que o desejo de libertação é, em parte, a causa de nosso condicionamento?
KRISHNAMURTI: Naturalmente, senhor; o desejo de nos libertarmos de condicionamento só pode favorecer o condicionamento. Mas se, em lugar de tentarmos reprimir o desejo, compreendermos o seu inteiro "mecanismo", então, nessa própria compreensão, surge a liberdade, a libertação do condicionamento. A libertação do condicionamento não é um resultado direto. Compreendeis? Se me aplico deliberadamente a livrar-me de meu condicionamento, esse próprio desejo cria seu peculiar condicionamento. Posso destruir uma forma de condicionamento, mas fico enredado noutra. Já se houver compreensão do próprio desejo — inclusive, também, o desejo de libertação — então, essa mesma compreensão destrói completamente o condicionamento. A libertação do condicionamento é um resultado acessório, e sem importância. O importante é compreender o que cria o condicionamento.
Krishnamurti, Saanen, 24 de julho de 1963,
Experimente um novo caminho