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terça-feira, 3 de abril de 2018

Pode findar o “mecanismo do eu”?


Pode findar o “mecanismo do eu”?

Acho que muito importa a atitude com que comparecemos a estas reuniões, porque para mim elas são muito sérias. Não viestes aqui para encontrar-vos com vossos amigos, o que podeis deixar para mais tarde, ou para passar uma hora entretida, num mero debate verbal, opondo uma ideia ou opinião a outra. Tentamos examinar o muito complexo problema do viver, e para isso se requer muita seriedade de propósitos. Em vista, não tem evidentemente nenhum cabimento o tirarem-se fotografias ou a solicitação de autógrafos, pois isso é uma das muitas coisas fúteis que fazemos quando não temos propósitos verdadeiramente sérios; e desejo perdir-vos não considereis esta nossa reunião como um curioso ajustamento de pessoas muito seriamente interessadas em descobrir o pleno significado do viver. Tal é pelo menos o meu ponto de vista, e a coisa que me interessa muito seriamente. Há tanto caos, tanta miséria e confusão no mundo; e, por menos numerosa que essa esta assembleia, se pudermos examinar este problema muito atentamente, não só durante cerca de uma hora, numa tarde de sábado ou manhã de domingo, talvez então alcançaremos um ponto em que nós mesmos seremos os missionários, e não simples ouvintes; em que começaremos a falar sobre estas coisas, das profundezas de nossa própria compreensão e experiência. Assim, a minha intenção, quando vos falo aqui, não é a de pôr-me em destaque ou de “preencher-me”, o que evidentemente seria muito infantil, mas, sim, de ver se não podemos, juntos, despertar aquela inteligência, aquela perspectiva integral da vida, que habilitará cada um de nós a ser a chama que produz a revolução fundamental e radical em nosso próprio pensar, e portanto, quiçá, no mundo que nos rodeia. Se prevalecer aqui um espí­rito de serenidade, um senso de dignidade, um respeito mútuo, que exige atenção igual por parte de todos, talvez possamos examinar profundamente estes problemas, não nos satisfazendo com descrições, com o mero arranhar da superfície.

Desejo, se possível, discorrer nesta manhã sobre o problema da experiência, investigar o que é experimentar e — se não efetuarmos uma revolução fundamental no centro — que possibilidade existe de experimentarmos, sem darmos continuidade à experiência do passado. Pois bem. Que centro é esse? Sem dúvida, é o “eu”, o “ego”, a mente, a mente que é tão sensível, sobremodo hábil e capaz de compreender uma tão grande variedade de experiências, de armazenar inúmeras lembranças, que pode inventar, que sabe planejar um avião capaz de voar a catorze mil pés de altura, a uma velocidade de seiscentas milhas horárias.

Este centro, máquina complexa, de potencialidades ilimitadas, está circunscrito pela ideia do “eu”: meu prazer, minha segurança, minhas vaidades, minhas posses, meu progresso, meu preenchimento. É um centro de afeição, de ódio, de prazeres efêmeros, de inveja, avidez e sofrimento. E posso realizar uma revolução nesse centro, de modo que o “eu” se torne inexistente? Porque o “eu” é a fonte de todo sofrimento, não é verdade? Ainda que o “eu” tenha satisfações passageiras, alegrias e afeições superficiais, ele está constantemente multiplicando problemas e produzindo sofrimento. Por mais alto ou em qualquer nível que eu coloque o “ego”, ele estará sempre compreendido no campo do pensamento; e o pensamento, para a maioria de nós, é dor, é sofrimento, é uma batalha constante entre o que sou realmente e o que deveria ser. E, no entanto, esta máquina, esta mente, sempre a pensar em si mesma e na sua segurança, é também capaz de expansão infinita.

Não sei se já pensastes alguma vez na extraordinária significação, nas notáveis nuanças e sutis profundezas que têm para a mente palavras como “amor” e “ morte”. E, entretanto, esta mente com todas as suas sutilezas e sua ligeireza de movimentos está agrilhoada pela ideia do “eu”': o “eu” que não é amado e deve ser amado, o “eu” que deve amar, o “eu” que terá de morrer. E é possível que esse “eu”, esse “ego”, deixe de existir completamente? Tal é, fundamentalmente, o nosso problema, não achais? Todas as religiões, — não as igrejas organizadas, mas todos os verdadeiros instrutores, todas as civilizações e culturas sempre lutaram para eliminar o “'eu”, o senso do esforço separado. Vários governos têm feito esforços extraordinários para destruir o “eu”, pela tirania da esquerda ou da direita, pela dominação totalitária sobre o pensamento do “eu”, com o propósito de criar uma civilização de trabalho cooperativo. Todavia, esse “eu” está constantemente se afirmando, traduzindo toda experiência, toda reação, todo movimento do pensar em conformidade com seu próprio centro. O “eu”, o “ego” é fonte de conflito e dor, de luta perene por vir a ser, realizar, alcançar e, enquanto não percebermos esse fato, a nossa mente, por mais hábil e sutil e ilustrada que seja, só haverá de criar mais problemas e produzir mais sofrimentos. Assim, pois, aqueles dentre nós que tiverem intenções realmente sérias devem evidentemente orientar a sua indagação no sentido de descobrir se esse “eu” pode chegar a um fim.

Ora, que é esse “eu”? Um processo de reconhecimento, não é? Um centro de experiência, de temor, de alegria, de passageiro preenchimento, de memória. Se não existe “eu”, não há experiência com que a mente possa identificar-se, chamando-a minha experiência.

Não vos estou dizendo nada de novo. Pelo contrário, apenas descrevo o que realmente se passa em cada um de nós. O que expresso verbalmente tem de ser, por força, muito limitado; mas se, enquanto escutais, observais esse processo em vós mesmos, começareis a perceber as complexidades, as extraordinárias sutilezas do vosso próprio pensar; tornar-vos-eis cônscios de vosso próprio centro, desse arrogante ou negativo estado da mente, que se chama “eu” e que está sempre ávido de algum ganho, quer aceitando, quer rejeitando.

O “eu”, pois, é um centro de reconhecimento e experiência; e visto como cada experiência é traduzida pela mente de acordo com esse centro, ela está sempre limitando-se a si mesma. Enquanto existir o “eu”, a mente não poderá passar além, por mais hábil e por mais fantasticamente sutil que seja. Enquanto toda experiência for traduzida em termos referentes ao “eu”, em termos de gosto e desgosto, como pode a mente passar além? Uma mente toda empenhada em buscar o prazer e evitar o sofrimento, que está sempre limitando a si mesma com os seus esforços, suas exigências e temores — como pode essa mente experimentar ou compreender aquilo que existe além dela própria? E, entretanto, se temos inclinações sérias, é essa a coisa que estamos procurando, não é verdade? Naturalmente, se estamos satisfeitos dentro da rotina dos prazeres e dores de cada dia, não existe então problema algum; continuaremos o nosso caminho, substituindo uma dor por outra, um prazer por outro, uma crença ou dogma por outro. Porém, se desejamos ir mais longe, se queremos investigar, descobrir, então, por certo, o “eu”, que está perenemente limitando a mente, tem de acabar-se.

Mas, como pode terminar esse “eu”, esse “ego”, esse mover-se do pensamento que se concentra e se fecha em torno do “eu”? Esse centro se alimenta pela experiência, não é verdade? E que é experiência consciente ou inconsciente? Esta questão é importantíssima; pensemos nela juntos.

Experiência é continuação da memória, não é? Se me encontro com uma pessoa completamente estranha, não há reconhecimento. Todavia, se já conheço a pessoa, funciona imediatamente o processo de reconhecimento: experimento prazer ou desprazer, lisonja ou insulto. A mente, por conseguinte, traduz sempre a experiência de acordo com o conhecido. Consequentemente, o desconhecido, aquilo que se não pode investigar, se torna temível, uma coisa de fazer medo: o amanhã, a morte, o futuro. Sentindo medo, a mente constrói teorias, esperanças, ideais, e tudo isso vai dar mais força ao “eu”. Tal é o processo que conhecemos. Mas, se pudermos descobrir a maneira de não nutrir o “eu”, em nível algum, nem alto nem baixo, então talvez possamos, negativamente, pôr fim ao “eu”. Isso não se pode fazer positivamente, apenas de maneira negativa, pela verificação de como o “eu” se alimenta e subsiste. Sem dúvida, o “eu”, a mente, só é capaz de pensar em função da experiência passada, em função do conhecido. Nossas religiões, nossa cultura, nossa visão das coisas, nossos ideais, estão todos em relação com o conhecido, e a mente, o “eu”, apegando-se a essas coisas, se fortalece com a posse do conhecido.

Assim, uma vez percebida de todo esse processo, pode a mente libertar-se do conhecido e pôr-se num estado em que possa existir o desconhecido? Por certo, a única revolução verdadeira se realiza quando não existe mais o medo ao desconhecido. E essa revolução só é possível quando a mente percebe a futilidade do conhecido. Consciente ou inconscientemente, porém, andamos sempre em busca do conhecido; é o nosso desejo do conhecido que cria deuses, o céu, o ideal do futuro, o Estado perfeito. “Projetamos” o que deveria ser e obrigamos o homem a ajustar-se ao conhecido, e essa é nossa Utopia.

O homem jamais pode aperfeiçoar-se, porque sua perfeição é sempre “o conhecido”. É muito importante pensar nisso profundamente, de princípio a fim. Vivemos lutando para nos tornarmos cada vez mais perfeitos, tanto tecnológica como psicologicamente. O esforço para a conquista da perfeição tecnológica é compreensível. Mas o desejo de nos tornarmos mais perfeitos interiormente, psicologicamente, é sempre um esforço de ajustamento ao conhecido, a algo já experimentado — o que significa que a mente só pode aperfeiçoar-se em conformidade com o passado, ou de acordo com a reação do passado. Assim como a sociedade comunista é uma reação ao Estado capitalista, ao qual está sempre oposta, assim também o esforço da mente para aperfeiçoar-se é uma reação ao seu próprio condicionamento; e a reação nunca é perfeita, sendo, como é, apenas um prolongamento do conhecido.

O “eu” é uma entidade total. Conquanto falemos de “consciente” e “inconsciente”, só existe de fato um estado: a consciência. Conhecemos a parte que chamamos “o consciente”; a outra parte, porém, é muito difícil de conhecer-se; entretanto, a mente é um processo total que inclui tanto a consciência interior como a consciência periférica, o oculto bem como o manifesto. Ora, pode uma pessoa tomar conhecimento dessa consciência total que é o “eu” com seus desejos, suas ânsias, seus temores, seus impulsos, sua luta constante para aperfeiçoar-se, sua ânsia de preenchimento — pode uma pessoa tornar-se completamente conhecedora desse processo, sem fortalecer a atividade do “eu”? E pode todo esse processo do “eu” terminar? Por certo, ele não pode extinguir-se por um ato de volição, nem por meio de nenhum artifício, nem pela repetição de frases, de recitações monótonas — que é auto-hipnotização por meio de palavras — nem pela absorção em alguma fantasia idiota, tal seja a danação, ou a fantasia de Deus.

Se começardes a examinar esta questão, vereis que esse exame é realmente muito importante, porquanto a solução dos problemas humanos não se acha em nenhum dos níveis conscientes. Nossa consciência está atualmente limitada pelo “eu” e toda solução proveniente do “eu” produzirá apenas maiores malefícios e mais sofrimentos. Sabendo-se isso, estando-se percebidos do mecanismo total do “eu”, é possível sua extinção?

Compreendeis como temos tentado pôr fim ao “eu”, ao “ego”? Temo-lo tentado pela disciplina, por métodos de controle, de defesa, de resistência; tentamo-lo pela compulsão, pelo ajustamento a dogma e crença. Temo-lo tentado por meio de várias formas de sacrifício, pela abnegação em favor do que consideramos mais importante: nossa esposa e filhos, o Estado, o mundo. Temos tentado o auto-esquecimento, na guerra, nas obras sociais, na filantropia e por fim na ideia de Deus. Recorremos a todos esses artifícios — pois são de fato artifícios — e só temos produzido mais miséria, mais tirania e mais caos neste mundo.

Não precisamos ler muito para compreendermos tudo isso. Sois o resultado do passado, de toda a luta humana, de todas as realizações, alegrias e sofrimentos humanos. Toda a história da humanidade está contida em vós e se sabeis lê-la não precisais mais ler livro nenhum. Para se descobrir isso, não é necessária nenhuma filosofia ou sistema. Assim, pois, a pergunta que me faço e que espero façais também a vós mesmo, é a seguinte: “Pode essa coisa chamada “eu”, que, como um fio, permeia todas as nossas ações, todos os nossos pensamentos, todos os nossos movimentos afetivos — pode essa coisa terminar? Fazei, por favor, esta pergunta a vós mesmos, em vez de procurardes uma solução, pois qualquer solução que encontrardes há de ser uma solução positiva e, portanto, uma invenção da mente, que se tomará mais um meio de perpetuar o “eu”. Todavia, se vos fizerdes a pergunta, estando inteiramente percebidos de todo esse mecanismo, encontrareis, não uma resposta verbal, mas aquela resposta espontânea que é uma revolução e que só pode apresentar-se quando fazeis a pergunta sem nenhuma volição; e esse é o verdadeiro “escutar”. Se vos tornardes indiscriminadamente apercebidos do “eu”, em todas as suas atividades; apercebido de todo o processo do vosso pensar, tanto o cognitivo como o oculto; se o perceberdes sem julgamento nem condenação, produzireis infalivelmente aquela revolução no centro. A mente se tornará então sutil num grau extraordinário, espantosamente ativa e vigilante.

Por ora, as nossas mentes estão tolhidas pelos nossos temores, nossas frustrações, nosso desejo de bom êxito; mas se — sem julgamento, sem condenação e sem escolha — começarmos a perceber todo esse mecanismo da consciência, que se desenrola continuamente, quer despertos, quer dormindo, verificaremos que, apesar dos nossos conflitos, nossas guerras e brutalidades, uma revolução se opera no centro; e qual uma onda que rola para longe e mais longe, a ação procedente do centro tem o poder de resolver-nos todas as dificuldades. Entretanto, se forem atendidos simplesmente do exterior, os nossos problemas nunca sertão resolvidos. É do centro que surgem todos os problemas humanos; e se houver um findar, uma cessação completa no centro, isso por si mesmo produzirá uma revolução total. Mas uma mente que, deliberadamente, procura produzir uma revolução, desprezando o centro, só haverá de criar mais sofrimento. Porque então se cria um ideal; e o idealista nunca é revolucionário: ajusta-se simplesmente a um padrão de sua própria invenção.

Tende, pois, a bondade de prestar atenção a tudo isso, de absorvê-lo em silêncio, e vereis que a ação criadora é uma coisa que nasce quando a mente está tranquila, quando o “eu” está totalmente ausente. A atividade criadora que conhecemos ocasionalmente, resultante de agitação, não é a mesma coisa que a ação criadora livre do centro. A ação criadora livre do centro não é temporal, porque não é invenção da mente; e, sem essa ação criadora, tem a vida muito pouca significação, ainda que tenhamos toda a prosperidade e todas as comodidades deste mundo. Depressa nos cansamos do que temos, e queremos mais comodidades, novas invenções. Mas a criação a que me refiro não é para dar-nos satisfação, é algo totalmente desconhecido, que não pode ser concebido nem conjecturado. E virá apenas quando a mente, perfeitamente apercebida do mecanismo total do “eu”, compreende a significação deste e, por conseguinte, não mais o nutre de experiência.

Krishnamurti em, Percepção Criadora,
 28 de junho de 1953
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sábado, 1 de abril de 2017

Das artimanhas do ego


O que ele fez foi transferir o ego, com sua ganância autocentrada, sua complacência arrogante e sua colossal ignorância sobre sua própria origem, das atividades no mundo para as atividades espirituais. O ego fará qualquer coisa possível para preservar sua existência e arquitetará todo recurso possível para assegurar seu futuro. É por isso que, raramente, o indivíduo desperta para o que está acontecendo e, assim, o destino poderá vir a esmagá-lo no chão, destruindo seu sono. Se tal situação ocorrer enquanto ele for comparativamente jovem, quando seus poderes ainda estiverem fortes, e não no fim da vida, quando eles estarão mais débeis e menos eficazes, ele em verdade será afortunado, embora, com certeza, não pensará desta forma nessa idade.

É tanto um ironia como uma tragédia na vida que utilizemos nossa cota estrita e limitada de anos de vida em propósitos que, posteriormente, perceberemos que foram inúteis e em desejos que nos trazem sofrimentos quando realizados. Um moribundo, que vê o filme de sua vida passada lhe ser revisionada através de flashes diante de seus olhos, descobrirá essa ironia e sentirá essa tragédia.

Quando vier a descobrir que vinha seguindo sua própria vontade mesmo quando acreditava que estava seguindo a vontade do eu mais elevado, é que realizará a extensão do poder do ego, o prolongado tempo que será necessário para subjugá-lo e o que terá de sofrer antes que isso seja alcançado. 

Um dia o aspirante se sentirá completamente cansado do ego; verá então quão astuta e insidiosamente ele se imiscuiu em todas as suas atividades; como, mesmo nas atividades supostamente espirituais ou altruístas, esteve apenas trabalhando para o ego. Nessa aversão pelo seu eu terreno, o aspirante irá orar para libertar-se. Verá como esse ego o enganou no passado, como todos os seus anos foram monopolizados pelos desejos dele, como sustentou, alimentou e cuidou dele, mesmo quando pensava estar espiritualizando a si próprio ou servindo a outros. Orará então fervorosamente para ser libertado do ego, procurará avidamente desidentificar-se e desejará ardentemente ser tragado no nada de Deus. 

O impulso que compele o ser humano a buscar a verdade ou a encontrar a Deus vem de algo que é mais elevado do que seu ego. 

O pecado do orgulho espiritual é o do indivíduo se sentir orgulhoso por ser um aspirante espiritual. Ele não percebe que quase sempre é ele que está no centro de sua busca, enquanto que seria SUA relação com Deus que importaria. Ele está sempre apegado ao ego!

Será necessária uma real humildade para que ele reconheça que está errado. Tal sentimento o beneficiará de duas formas: corrigirá sua tendência errada e diluirá a inflação do ego.

Quando puder perdoar a Deus por toda a angústia de suas calamidades passadas e aos outros homens e mulheres pelos erros cometidos, ele chegará à paz interna. Pois é justo isso que seu ego não pode fazer.

Lao Tzu louvava a modéstia no comportamento social e o mínimo de conversa entre os outros. Tais sugestões tinham a intenção de pôr o ego no seu lugar e torná-lo humilde.

sábado, 5 de dezembro de 2015

Nossa protegida trave de tropeço da servidão egóica

"O âmago do enfoque científico é a sua recusa em contemplar os próprios desejos, gostos e interesses como a chave para a compreensão do mundo." — Bertrand Russell
[...]Todo homem que adotou a disciplina filosófica está inclinado a atribuir aos seus julgamentos um valor muito maior que o devido. Via de regra, ele procura tirar conclusões que venham de encontro aos seus mais caros preconceitos e convenham às suas tendências herdadas. É para ele um hábito não aceitar numa discussão senão os fatos que se encaixam perfeitamente nos seus pontos de vista já existentes. Por essa forma, e não raro, vem ele a recusar aquilo que mais urgentemente necessita, da mesma maneira pela qual um inválido poderá recusar-se a tomar um medicamento de gosto amargo do qual necessita inadiavelmente, por preferir alguma guloseima de sabor adocicado. 

Toda vez que um homem insere o seu ego num raciocínio, este resulta desequilibrado e distorcido no que respeita o seu sentido da verdade. Se ele se limitar a julgar todo e qualquer fato pelos padrões da sua experiência prévia, impedirá com isso o surgimento de novos conhecimentos. Ao examinarmos as manifestações da sua mentalidade em palavras e atos, sua atitude habitual (conquanto inconsciente) será esta: "Isto se encaixa dentro daquilo que eu acredito; deve, portanto, ser verdade; este fato não contradiz aqueles fatos dos quais eu tenho conhecimento; por isso, aceitá-lo-ei; esta crença é totalmente contrária às minhas; deve, portanto, ser errônea; este fato não me interessa; portanto não tem valor numa discussão; aquela explicação é de difícil compreensão para mim, por isso ignoro-a em favor de uma outra a qual compreendo e a qual deve, consequentemente, ser verdadeira!"

Todos os que desejarem iniciar-se na verdadeira filosofia devem começar por deixar de lado esses pontos de vista meramente egoístas. O que neles se evidencia é apenas orgulho e vaidade; cuida-se tão somente de corroborar os próprios preconceitos e não de promover a busca da verdade; ali o estudo das obras impressas visa exclusivamente a confirmar conclusões prévias; o recurso ao mestre se faz não para obter novos conhecimentos mas para ratificar antigas crenças. Mantendo o eu em primeiro plano no seu pensamento, o indivíduo será inconscientemente atraído para numerosos e perigosos enganos. As simpatias e antipatias geradas por esses pontos de vista pessoais constituem empecilhos à descoberta daquilo que uma ideia ou objeto realmente é. Amiúde fazem com que um homem veja coisas que absolutamente não existem, mas que, através de associações de ideias, ele imagina existir. Fato patológico é que as várias formas de insanidade e perturbações mentais estão enraizadas no ego e que todas as obsessões e complexos estão igualmente vinculados ao eu

Aquele que jamais adotou a disciplina filosófica amiúde se enamora de si mesmo e a sua disposição mental fica presa por todos os lados ao pronome eu. Esse eu priva-o da verdade, bloqueando o seu acesso à percepção correta. Esse eu prejulga de forma inconsciente os argumentos e decide por antecipação as crenças, de modo que desaparece a garantia de se chegar às conclusões certas, restando apenas voltar, através das justificativas e racionalizações, ao ponto de vista mental inicial. Esse eu é como uma aranha apanhada na sua própria teia. Quando tal egoísmo dita o padrão de raciocínio, a razão tem de permanecer à parte por impotente. Esse eu tranca a mente dentro de um armário, perdendo assim as vantagens das novas ideias que de bom grado entrariam. Quando o ego se converte no centro dos estados obsessivos, nós nos deparamos com inteligências amesquinhadas pela intolerância religiosa ou toldadas pelas sinuosidades metafísicas ou embrutecidas pelo materialismo irreflexivo ou desequilibradas pelas crenças tradicionais e sobrecarregadas pelas crenças adquiridas — todas recusando-se cegamente a examinar aquilo que não é conhecido, que não é agradável,  que não é sabido, repudiando tudo a priori. Tais inteligências aceitam de boa vontade aquilo que lhes agrada e repudiam aquilo que lhes desagrada, inventando depois racionalizações para justificar suas preferências, mas em nenhum dos casos a pergunta: — "Isto é verdade?" — é investigada independentemente das suas predileções, nem é o resultado de tal investigação aceito, quer venha de encontro àquelas predileções quer não. 

Significa tudo isto que aqueles que professa as opiniões pessoais mais fortes são os mais difíceis de levar á verdade Tais pessoas precisariam absorver a lição de Jesus: "Se não vos tornardes como as criancinhas, jamais entrareis no reino do Céu".

A humildade implicada neste dito tem sido objeto de muita incompreensão. Trata-se de uma mentalidade inocente mas não pueril. Não se trata de uma dócil submissão a pessoas malévolas ou de uma ridícula sujeição à pessoas tolas. Trata-se de deixar a parte todos os preconceitos oriundos da experiência e todas as preconcepções decorrentes do pensamento inicial até que, ao enfrentar o problema da verdade, não nos sintamos peados nem perturbados por eles. Trata-se de chegar a uma alienação total das inclinações pessoais e de fugir por completo à influência dos pensamentos do eu e do meu. Trata-se de deixar de usar como argumento as expressões: "Eu penso assim" — ou — "Ficarei com a minha opinião" — e de deixar de crer que aquilo que nós sabemos tem, necessariamente, de ser verdadeiro. Tal argumento leva simplesmente a uma opinião, e não à verdade. As crenças pessoais podem ser falsas, o conhecimento aceito pode ser fictício. É preciso caminharmos com humildade nestes redutos filosóficos. Os mestres certos são reconhecidamente raros, mas os discípulos certos também o são! 

A filosofia é um estudo puramente desinteressado e deve ser abordada sem quaisquer restrições mentais prévias. Mas as predisposições estão amiúde tão arraigadas, e por conseguinte tão escondidas, que os estudantes nem sempre suspeitam, e menos ainda constatam, a sua presença. Até mesmo alguns dos assim chamados filósofos são portadores de uma determinação subconsciente de não aceitar senão aquilo que contam ouvir e sob influência dessa auto-sugestão permitem que as suas inclinações sobreponham-se aos seus julgamentos e que a prepotência escravize a razão. Por isso o estudante compenetrado deve extirpar de forma consciente esses confortáveis subterfúgios atrás dos quais ocultam as insinceridades e as hipocrisias do raciocínio, suas fraquezas pessoais e seu egoísmo. No decurso de seus estudos, e sempre que a sua mente estiver empenhada em algum problema, ele deverá pelejar por livrar-se da pressão de todas as predileções de ordem pessoal. Tal desprendimento mental é raro e só poderá ser conseguido através de um desenvolvimento intencional. Deve o estudante lembrar-se sempre que lhe cabe primeiro enunciar simplesmente e depois analisar com isenção um caso sob todos os ângulos, antes de preferir um julgamento. A verdade nada teme da investigação plena, pelo contrário, é por ela fortalecida. Se descobrir então que está errado, o estudante deverá acolher de boa sombra a revelação e não esquivar-se a ela, por condoer-se das machucaduras da vaidade ferida e da inesperada humilhação. Ele precisa de uma completa elasticidade mental a fim de livrar-se da escravidão aos preconceitos e conseguir uma integridade interior absoluta e uma saúde mental genuína.  

[...] O estudante não deve nunca esquivar-se a um problema. Não se deve furtar a enfrentar seus próprios complexos. Não lhe resta senão encará-los resolutamente. Ele tem de, ao menos, ser sincero consigo próprio, tentando colocar-se acima das preconcepções pessoais, pois somente assim poderá ver as coisas na sua exata perspectiva. Sua afeição à verdade tem de ser sincera e incorruptível como era a de Sócrates. Uma firme objetividade intelectual ao invés de uma débil esperança emancipará a sua mente da servidão do ego e a capacitá-la-á a absorver a verdade sem oferecer resistência. A mente será assim alçada a uma atmosfera de imparcialidade e impessoalidade e habituada a um raciocínio ininterrupto de autonegação, que é o único a propiciar um discernimento correto. E mesmo aqueles que consideram essa tarefa demasiado difícil na vida cotidiana podem ao menos tentar objetivar temporariamente o seu ideal durante aqueles minutos ou horas dedicados a tais estudos. 

Onde quer que a verdade conduza, para lá deverá ir o estudante. Se ele trair sua percepção racionalista e se demonstrar um traidor de seu mais alto ideal ante as pressões violentas de preconcepções que exijam um rasteiro conformismo, ele se condenará à pena de permanecer perpetuamente cativo de uma ignorância banal. 

Em resumo: a busca da verdade encetada pelo estudante principia pela dependência à autoridade, prossegue com o uso da lógica e depois da razão, tem continuidade com o cultivo da intuição e da experiência mística, e culmina com o desenvolvimento da percepção ultramística. A filosofia mais elevada é tão sabiamente balanceada e tão lindamente integrada que não desdenha qualquer das formas de conhecimento, mas usa-as cada uma no seu devido lugar. Daí, embora o nome filosofia tenha por vezes sido usado na sua acepção acadêmica referindo-se a um sistema metafísico, o mais das vezes foi ele usado na sua acepção mais antiga e verdadeira referindo-se à visão unificada que completa a metafísica com o misticismo e incorpora a religião à ação. 

[...] O estudante de filosofia deveria compreender que, uma vez que ele também pratica a meditação, é preciso que preencha os mesmo requisitos purificadores que são preconizados ao estudante místico. Se os seus exercícios de meditação devem ser protegidos dos perigos ali envolvidos, ele deverá abster-se sempre de prejudicar os outros, enobrecendo assim o seu caráter, dominando suas paixões e cultivando suas virtudes, essas virtudes recomendadas pelos profetas de todas as grandes religiões.

Paul Brunton em, A sabedoria oculta além da ioga

domingo, 30 de agosto de 2015

É possível à mente ficar livre da atividade egocêntrica?

[...] Para compreender o que é a atividade egocêntrica, precisamos, naturalmente, examiná-la, observá-la, estar cônscios do seu processo, na sua inteireza. Se for possível ficamos cônscios dele, haverá então a possibilidade de sua dissolução; mas o estar cônscio requer certa compreensão, certa intenção de enfrentar a coisa tal como ela é, abstendo-se de interpretá-la, modificá-la, ou condená-la. Temos de estar cônscios daquela atividade que estamos desempenhando, oriunda daquele estado egocêntrico; precisamos estar cônscios dela. Essa é uma das nossas principais dificuldades, uma vez que no momento em que ficamos cônscios daquela atividade queremos moldá-la, queremos controlá-la, queremos condená-la, queremos modificá-la; mas nunca estamos em situação de enfrentá-la diretamente; e quando estamos, pouquíssimos de nós somos capazes de saber o que se deve fazer. 

Reconhecemos que as atividades egocêntricas são prejudiciais, são destrutivas e que toda forma de atividade egocêntrica — tal como a identificação com a nação, com determinado grupo, com determinados desejos, com desejos que produzem ação, a busca de um resultado, neste mundo ou no outro, a glorificação de uma ideia, o surgimento de um exemplo, a veneração e o cultivo da virtude — é, essencialmente, a atividade de uma pessoa egocêntrica. Todas as suas relações, — com a natureza, com pessoas, com ideias — são produto daquela atividade. Sabendo de tudo isso, que cabe a uma pessoa fazer? Toda atividade dessa ordem tem de findar voluntariamente, e não por imposição própria, não por ter sido influenciada, guiada. Espero que estejam percebendo a dificuldade aí existente. 

A maioria de nós somos sabedores de que essa atividade egocêntrica gera malefícios e o caos; mas só estamos cônscios disso em certas direções. Ou o observamos noutras pessoas e ignoramos nossas próprias atividades; ou, se em nossas relações com outras pessoas, tomamos conhecimento de nossa atividade egocêntrica, desejamos fazer uma transformação, desejamos encontrar um substituto, desejamos passar além. Antes de podermos atender a esse processo, precisamos saber como é que ele se origina, não é verdade? Para compreender alguma coisa, precisamos ser capazes de a observar; e, para observá-la, precisamos conhecer as suas várias atividades em níveis diferentes, tanto conscientes como inconscientes, e bem assim as diretrizes conscientes, os movimentos egocêntricos resultantes dos motivos e intenções inconscientes. Trata-se, sem dúvida, de um processo egocêntrico, resultado do tempo, não é verdade? 

Que é ser egocêntrico? Quando é que vocês têm consciência de ser "eu"?

[...] Só estou consciente das atividades do "eu" quando existe oposição, quando a consciência se vê contrariada, quando o "eu" está  desejoso de alcançar um resultado. O "eu" está ativo, ou tenho consciência daquele centro, quando o prazer termina e eu desejo mais desse prazer; há então resistência e um intencional ajustamento da mente a um determinado fim, o qual me proporcionará deleite, satisfação; estou cônscio de mim mesmo e das minhas atividades quando estou cultivando a virtude conscientemente. É só isso que sabemos. Um homem que cultiva a virtude conscientemente, não é virtuoso. A humildade não pode ser cultivada e nisso é que consiste a beleza da humanidade. 

Nessas condições, enquanto existe esse centro de atividade, em qualquer direção, consciente ou inconsciente, há o motivo do tempo e estou consciente do passado e do presente em conjunção com o futuro. O centro dessa atividade, da atividade egocêntrica do "eu", é um processo de tempo. É isso o que vocês entendem por tempo — referem-se, ao processo psicológico do tempo; é a memória que dá continuidade à atividade do centro, que é o "eu". Tenham a bondade de se observarem em funcionamento; não ouçam apenas as minhas palavras, não fiquem hipnotizados pelas minhas palavras. Se observarem a si mesmos e tomarem conhecimento desse centro de atividades, verão que ele é apenas o processo do tempo, da memória, do experimentar e traduzir cada experiência, segundo a memória; verão também que a atividade do "eu" é recognição, sendo isso processo da mente. 

Pois bem, pode a mente ficar livre da atividade egocêntrica? Talvez seja possível, em momentos raros; talvez possa acontecer à maioria de nós, quando praticamos um ato inconsciente, não intencional, não propositado. É possível à mente ficar livre da atividade egocêntrica? Eis uma pergunta muito importante, que, devem se fazer em primeiro lugar, pois, precisamente no fazê-la encontraram a resposta. Isto é, se estão conscientes do processo total dessa atividade egocêntrica, se estão perfeitamente cientes de suas atividades em diversos níveis da consciência de vocês, então, de certo, terão de se perguntar se é possível aquela atividade chegar a um fim; isto é, não pensar dentro dos limites do tempo, não pensar com referência ao que serei, ao que fui, ou ao que sou. Desse modo de pensar procede todo o processo da atividade egocêntrica; aí também tem começo a determinação de vir-a-ser, a determinação de escolher e de evitar, tudo isso processo de tempo. Notam-se, nesse processo, malefícios sem fim, miséria, confusão, perversão, degenerescência. Fiquem conscientes disso, enquanto falo, nas suas relações, nas suas mentes. 

Positivamente, o processo de tempo não é revolucionário. No processo do tempo não há transformação; só há uma continuidade e nunca um findar. No processo do tempo só existe recognição. Só quando temos a cessação completa do processo do tempo, da atividade do "eu", há o novo, há revolução, há transformação. 

Uma vez consciente de todo esse processo do "eu", em sua atividade, o que deve a mente fazer? Só com a renovação, só com a revolução — não pela evolução, não com o "eu" na atividade de vir-a-ser, mas sim pelo completo findar do "eu", há o novo. O processo do tempo não pode trazer o novo; o tempo não é o caminho da criação. 

Não sei se qualquer um de vocês já teve algum momento de criação — não "ação", não me refiro à execução algum ato — quero significar o momento de criação em que não há reconhecimento algum. Nesse momento se realiza aquele estado extraordinário em que o  "eu" como "atividade de reconhecimento" deixou de existir. Acredito que alguns de nós já conhecemos um momento desses; talvez a maioria de nós já o conhecemos. Se estamos vigilantes, veremos que naquele estado não existe nenhum "experimentador" que lembra, que traduz, reconhece, e depois identifica. Não há nenhum processo de pensamento, que é coisa do tempo. Naquele estado de criação, de ação criadora, naquele estado do novo, que é atemporal, não existe, absolutamente, nenhuma ação do "eu". 

Nossa questão, agora, é certamente esta: é possível à mente experimentar, conhecer aquele estado, não momentaneamente, não em instantes raros, mas — não quero usar a expressão "eternamente" ou "para sempre", que implicam o tempo — conhecer aquele estado, achar-se naquele estado, sem relação alguma com o tempo? Esta, sem dúvida, é uma descoberta muito importante, que cada um de nós deve fazer, porquanto ela é a porta do amor; todas as outras portas representam atividades do "eu". Onde há ação do "eu" não há amor. O amor não é do tempo. Não podem praticar o amor, pois isso seria uma atividade consciente do "eu", que espera, por meio do amor, alcançar um resultado. 

O amor, pois, não é coisa do tempo; não podem chegar a ele por meio de um esforço consciente, por meio de uma disciplina, por meio de identificação, porque tudo isso é processo do tempo. A mente que só conhece o processo do tempo é incapaz de reconhecer o amor. O amor é a única coisa que é nova, eternamente nova. Uma vez que a maioria de nós temos cultivado a mente, que é um processo de tempo, resultado do tempo, não sabemos o que é o amor. Falamos a respeito do amor; dizemos que amamos pessoas, que amamos nossos filhos, nossas esposas, nosso próximo; que amamos a natureza; mas, no momento em que estou consciente de que amo, entrou em atividade o "eu" e, consequentemente, o amor deixou de existir. 

O processo total da mente só é compreensível no estado de relação — relação com a natureza, com pessoas, com nossa própria "projeção", com tudo, enfim. Na realidade, a vida não é outra coisa senão relações. Ainda que tentemos nos isolar das nossas relações, não podemos existir sem elas; embora as relações sejam dolorosas e procuremos evitá-las pela fuga, nos recolhendo ao isolamento, nos tornando eremitas, etc., não o podemos fazer. Todos esses métodos constituem um indício de atividade do "eu". Ao perceberem o quadro, em sua inteireza, ao perceberem integralmente esse processo do tempo como consciência — perceber, sem que haja escolha, sem que haja nenhuma intenção determinada no sentido de um objetivo, sem desejo de resultado — verão como esse processo do tempo chega a um fim, espontaneamente — um fim não provocado, um fim que não é resultado do desejo. Só quando cessa aquele processo existe o amor, que é eternamente novo. 

Não temos de procurar a verdade. A verdade não é uma coisa que se acha longe de nós. A verdade habita a mente, está presente em suas atividades de cada instante. Ao perceberem essa verdade existente, momento por momento, ao perceberem inteiramente esse processo do tempo, então, esse percebimento libera, descarrega aquela consciência ou energia que está toda aplicada a ser. Quando a mente se serve da consciência como atividade egocêntrica, entra em cena o tempo, com todas as suas misérias, todos os seus conflitos, todos os seus malefícios, todas as suas ilusões intencionais; é só quando a mente, compreendendo esse processo total, cessa, pode existir o amor. Podemos chamá-lo amor ou por qualquer outro nome; o nome que lhe damos não tem importância.

Krishnamurti em, Quando o pensamento cessa

sábado, 22 de agosto de 2015

Aos adictos de atenção

O desejo de se exibir é o desejo de uma mente ignorante. Por que você quer se exibir? Por que você quer que as outras pessoas conheçam você? Qual é a razão disso? E por que você faz disso algo tão importante na sua vida, a exposição? Que as pessoas saibam que você é alguém muito importante, significativo, extraordinário? Por que? Porque você não tem um eu. Você só tem um ego — um substituto para o eu. 

O ego não é substancial. O eu é substancial, mas isso é algo que você não sabe — e uma pessoa não pode viver sem o sentimento de "eu". É difícil viver sem o sentimento de "eu". Afinal, a partir de que centro você vai trabalhar e funcionar? Você precisa de um "eu". Mesmo que seja falso, ele vai servir. Sem um "eu", você vai simplesmente se desintegrar! Quem será o integrador, o agente dentro de você? Quem vai integrar você? A partir de que centro você vai funcionar? 

A menos que conheça o eu, você vai ter que viver com um ego. Ego significa um substituto, um falso eu; você não conhece a si mesmo, então você mesmo cria um eu. É uma criação mental. E para tudo o que é falso, você tem que encontrar apoios. A exposição lhe dá apoio. 

Se alguém diz: "Você é uma pessoa linda", você começa a sentir que é lindo. Se ninguém diz isso, vai ser difícil para você sentir que você é uma pessoa bonita, você vai começar a suspeitar, duvidar. Se você diz continuamente até mesmo a uma pessoa feia "Você é linda", a feiura vai desaparecer da mente dela, e ela vai começar a sentir que é bonita — porque a mente depende da opinião dos outros, ela acumula opiniões, depende delas. 

O ego depende do que as pessoas dizem sobre você: o ego se sente bem se as pessoas se sentem bem com relação a você;  se elas se sentem mal, o ego se sente mal. Se elas não dão a você toda a atenção, os apoios são retirados; se muitas pessoas lhe dão atenção, elas alimentam o seu ego — é por isso que a atenção é solicitada continuamente. 

Até mesmo uma criança pequena pede atenção. Ela pode continuar brincando em silêncio, mas quando chega uma visita... e a mãe disse ao filho que, quando a visita chegasse, ela teria que ficar em silêncio: "Não faça barulho, e não faça bagunça", mas, quando a visita chega, a criança tem que fazer alguma cosia, porque ela também quer atenção. E ela quer mais, porque está acumulando um ego — ela só está crescendo. Ela precisa de mais alimento e disseram para ela fazer silêncio — isso é impossível! Ela vai ter que fazer alguma coisa. Mesmo se ela tiver que machucar a si mesma, ela vai cair. O machucado pode ser tolerado, mas ela precisa receber atenção. Todo mundo precisa prestar atenção, ela precisa se tornar o centro das atenções!

[...] Desde a infância até o final, no dia da sua morte , você vai pedir atenção. Quando uma pessoa está morrendo, a única ideia que está em sua mente, quase sempre é: "O que as pessoas vão dizer quando eu estiver morto? Quantas pessoas virão me dar o último adeus? O que será publicado nos jornais? Algum jornal vai escrever um editorial?" Esses são os pensamentos. Desde o primeiro até o último instante olhamos para ver o que os outros dizem. Deve ser uma necessidade profunda. 

Atenção é alimento para o ego; apenas uma pessoa que atingido o eu abre mão dessa necessidade. Quando você tem um centro, o seu próprio centro, você não precisa pedir atenção aos outros. Então você pode viver sozinho. Mesmo no meio da multidão, você vai estar sozinho, mesmo no mundo você vai estar sozinho, você vai passar no meio da multidão, mas sozinho. 

Neste momento você não pode ficar sozinho. Neste momento, se você for para o Himalaia e entrar numa densa floresta, se sentar sob uma árvore, você vai esperar que alguém passe, pelo menos alguém que possa levar uma mensagem ao mundo de que você se tornou um grande eremita. Você vai esperar, vai abrir os olhos muitas vezes para ver — se tem alguém vindo ou não... Porque você já ouviu historias de que, quando alguém renuncia ao mundo, o mundo inteiro vem a seus pés, e até agora ninguém apareceu — nenhum jornalista, nenhum repórter, nenhum cinegrafista, nada, ninguém! Você não pode ir para o Himalaia. Quando a necessidade de atenção se for, você vai estar no Himalaia aonde quer que esteja.

Osho

segunda-feira, 23 de março de 2015

A importância da completa rendição no destronamento do ego

Tudo o que fazemos ou dizemos, tudo o que sentimos ou pensamos, no fundo está relacionado com o ego. Vivemos acorrentados ao seu pilar e movemo-nos num círculo. A busca espiritual é realmente uma tentativa de sairmos desse círculo. De outro ponto de vista, é um longo processo de descoberta do que está profundamente escondido pelo nosso ego, com seus desejos, emoções, paixões, argumentos e atividades. Tomando ainda um outro ponto de vista, é um processo que nos dissocia dessas coisas. Mas é improvável que se possa persuadir o ego a, de boa vontade, deixar de exercer o seu domínio. Seus caminhos ilusórios e seus hábitos enganadores podem levar um aspirante à crença de que esteja alcançando um estágio elevado, quando está simplesmente andando num círculo. A forma de sair desse círculo é, ou procurar a fonte do ego, ou, caso isso seja difícil demais, associar-se bem de perto a um verdadeiro mestre e prestar-lhe completa obediência. O ego, sendo finito, não pode produzir um resultado infinito através de seus próprios esforços. Ele engendra seus pensamentos e emite seus desejos, dia após dia. Ambos podem ser comparados com teias de aranha que são renovadas ou ampliadas e que nunca desaparecem por muito tempo dos cantos escuros de um aposento, não importa com que frequência possam ser eliminadas. Enquanto se permitir que a aranha viva ali, elas reaparecerão. Ir ao encalço do ego em seu covil é exatamente como caçar a aranha e removê-la completamente do aposento. Não há meio mais eficiente ou mais rápido de atingir o objetivo do que trazer à luz a sua verdadeira fonte, oferecer o ego a essa Fonte, e finalmente, através da senda de afirmações e recolhimento, unir-se a ela. 

A prática do ponto de vista impessoal sob a orientação do mentalismo conduz, no devido tempo, à descoberta de que o ego é uma imagem formada na mente, uma construção mental, uma imagem com a qual estamos inextricavelmente entrelaçados. Mas essa prática começa a nos desatar e a nos libertar.

Toda a sua reflexão sobre o ego é necessariamente incompleta, pois não inclui o próprio pensamento-do-ego. Tente fazer isso e ele escapa do seu controle. Somente algo que transcende o ego pode compreendê-lo.

Se é para o ego se perpetuar, ele precisa entrar em todas as atividades da mente, e não simplesmente nas mais básicas. Isso é exatamente o que acontece. As aspirações espirituais, os ideais morais, e até as experiências místicas são, elas mesmas, projeções invertidas do ego. Através delas, o "eu" é capaz de expandir-se em um "eu" maior, mais grandioso, mais feliz e mais forte do que antes. Se elas não são as próprias criações do ego, proporcionando-lhe abrigo ou disfarce, então elas são logo infiltradas e traídas, minadas ou permeadas, até que alimentem e nutram o mesmo eu do qual se esperava que se desviassem. 

Se o aspirante está disposto a procurá-las, encontrará as atividades secretas do ego nos recantos mais insuspeitados, até mesmo no meio das suas mais grandiosas aspirações espirituais. O ego não quer morrer, e até dará as boas-vindas a essa grande redução de seu campo de ação, se esse for o único meio de escapar da morte. Visto que o ego é necessariamente o agente ativo nessas tentativas de auto-aperfeiçoamento, ele estará na melhor posição de garantir que elas terminem como uma aparente vitória sobre si mesmo, mas não uma vitória real. Esta última só pode ser alcançada confrontando-o diretamente e, sob a aspiração da Graça, matando-o diretamente; isso é completamente diferente de confrontar e matar qualquer das suas bem variadas expressões de fraquezas e faltas. Elas não são, de modo algum, a mesma coisa. São os ramos, mas o ego é a raiz. Por isso, quando o aspirante se cansa dessa interminável batalha do Caminho Longo, batalha essa com sua natureza inferior, que mal é subjugada numa manifestação e já reaparece em outra, quando se enfastia de enganar-se naquilo que imagina serem realizações, muito mais agradáveis, do Caminho Breve, ele está pronto para tentar o último e único recurso. Aqui, depois de longo tempo, o aspirante chega ao próprio ego pela completa rendição deste e não pela preocupação com seus numerosos disfarces — que podem ser feios, como a inveja, ou atraentes, como a virtude. 

Nada que a própria vontade do aspirante possa fazer traz como consequência esse destronamento do ego. A vontade divina precisa fazer isso por ele. 

A sua desvantagem é o ego forte, o "eu" que intercepta o caminho, e que deve ser subjugado pelo sacrifício emocional no sangue do coração. Mas, uma vez afastado esse "eu", você sentirá tremendo alívio e ganhará paz. 

O que ou quem está procurando a iluminação? Não pode ser o eu mais elevado, pois ele é a natureza da Luz. Resta, então, somente o ego! Esse ego, objeto de tantas acusações e desabonos, é o ser que, transformado, conquistará a verdade e achará a Realidade, mesmo que o preço a ser pago seja, no final, a completa rendição. 

O egoísmo, que é a limitação da consciência à vida individual vista como separada da vida infinita, é a última barreira para a obtenção da unidade com a vida infinita.

Paul Bruton em, Ideias em Perspectiva

sábado, 13 de setembro de 2014

Nossas buscas são todas egocêntricas

Pela aquisição de conhecimentos, pode alguém perceber diretamente algo verdadeiro, real, algo diferente das formulações da mente?... Existe percebimento direto pela instrução, pelo saber, ou só percebemos  diretamente, quando não existe a barreira do saber? 

O que se entende por "aprender"? Você de seja encontrar a felicidade, a realidade, a serenidade, a liberdade; é isso em geral o que você busca, tateando no escuro. Vendo-se descontente, insatisfeito com essas coisas, as relações, as ideias, você está em busca de algo transcendental, e procura um swami, um guru, ou X, que você acredita possuir a qualidade que você está buscando. Você deseja aprender como alcançar essa extraordinária integração da totalidade da consciência humana e, assim, você vem aqui com a mesma intenção com que se aproxima de qualquer instrutor religioso, ou seja, a intenção de aprender. Afinal de contas, é esta a intenção da maioria das pessoas aqui presentes, e se você tiver a bondade de prestar atenção ao que se está dizendo, estou certo de que não perderá em vão o seu tempo. 

Ora, pode-se ensinar a ter percebimento direto? Pode realizar-se essa totalidade de integração, essa clareza de percebimento, mediante o saber, a instrução, ou por meio de algum método? O aprender uma técnica ou a observância de um dado sistema pode levar a esse resultado? Para a maioria de nós, aprender é adquirir uma nova técnica substituir o velho pelo novo. Espero que esteja me fazendo claro. 

Existem vários métodos, que você bem conhece, e um outro dos quais está praticando, na esperança de perceber diretamente algo que se possa chamar a Realidade, o estado onde não existe o "vir a ser", porém apenas Ser. Por essa mesma razão você veio ter aqui: com o propósito de aprender, não é verdade? Você deseja saber qual é o método que este orador lhe oferecerá para a revelação daquele estado extraordinário. Deseja saber como atingir esse estado, passo a passo, pela prática de certas formas de meditação, pelo cultivo da virtude, da autodisciplina, etc. Mas eu acho que nenhum método pode produzir o claro percebimento; pelo contrário. 

Todo método implica tempo, não é exato? Quando você pratica um método, precisa do tempo, como ponte sobre o intervalo entre o que é e o que deveria ser. O tempo é necessário, para se percorrer a distância criada pela mente entre o fato e a dissolução do fato, ou seja, o fim que se deseja alcançar. Toda ideologia se baseia nessa ideia de consecução de um fim, através do tempo; e, assim, começamos a adquirir, a aprender e, por conseguinte, nos amparamos no Mestre, no guru, no instrutor, porque ele vai ajudar-nos a chegar 

Pois bem. O percebimento ou experiência direta daquela realidade depende do tempo? Existe um intervalo que é necessário transpor, pelo processo do conhecimento? Se existe, neste caso o conhecimento assume extraordinária importância. Então, quanto mais a pessoa souber, quanto mais se exercitar, quanto mais se disciplinar, etc., tanto maior será a sua capacidade de construir a ponte para a realidade. Admitimos que o tempo é necessário. Isto é, sou violento, digo que é necessário tempo para eu chegar a um estado de não-violência; preciso de tempo para praticar a "não-violência", para controlar, disciplinar a mente. Aceitamos esta ideia; porém ela pode ser uma ilusão, pode ser totalmente falsa. O percebimento pode ser imediato, independente do tempo. Eu penso que, em absoluto, ele não depende do tempo — se posso empregar a palavra "penso", sem o intuito de transmitir uma opinião, mas de apresentar um fato real. Ou uma pessoa percebe, ou não percebe. Não há nenhum processo gradual de "aprender a perceber". É a ausência de experiência — baseada, esta, sempre no conhecimento — que dá o percebimento.

(...) Nossas atividades, nossas buscas, são todas egocêntricas. Para empregar uma palavra de uso corrente, nossa ação, nosso pensamento é egoísta, interessado unicamente no "eu"; e, como lemos ou ouvimos dizer que o "eu" é uma barreira, reconhecemos necessário que ele deixe de existir — não o "eu superior" ou o "eu inferior", mas o "eu", a mente que é ambiciosa, que tem medo, que é ardilosa, em suas atividades ditadas pela própria avidez, pela própria dependência, a mente resultado do tempo. Essa mente é egocêntrica; e pode esse egocentrismo ser removido imediatamente, ou tem de ser desbastado aos poucos, camada por camada, mediante um processo gradual de instrução, experiência, e continuidade do tempo?

Krishnamurti em, DA SOLIDÃO À PLENITUDE HUMANA

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Ausência de ego

Justamente porque o ego, a alma e o Eu (Self) podem estar presentes ao mesmo tempo, não será difícil entender o sentido verdadeiro de “ausência do ego”[1] – expressão que tem causado imensa confusão. Ausência do ego não significa a ausência de um eu (self) funcional (o que seria próprio de um psicótico e não de um sábio); significa que não estamos mais exclusivamente identificados com aquele eu.

Um dos muitos motivos de não sabermos lidar com a noção de “ausência do ego” é que desejamos que nossos “sábios sem ego” satisfaçam às nossas fantasias relativas a “santidade” ou “espiritualidade”, o que, habitualmente, significa que essas pessoas estejam mortas do pescoço para baixo, livres das vontades ou desejos da carne, eternamente sorridentes. Desejamos que esses santos não passem por todas as coisas que nos incomodam – dinheiro, comida, sexo, relacionamentos, desejos. “Sábios sem ego” estão “acima de tudo isso” – assim desejamos. Queremos cabeças que falem. Acreditamos que a religião bastará para livrá-los de todos os instintos básicos, de todas as formas de relacionamento, considerando a religião, não como orientação para viver a vida com entusiasmo, mas, sim, como guia para evitá-la, reprimi-la, negá-la, fugir dela.

Em outras palavras, o homem típico espera que o sábio espiritual seja “menos que uma pessoa”, de alguma forma liberto dos impulsos confusos, difusos, complexos, pulsantes, compulsivos, que guiam a maior parte dos seres humanos. Esperamos que nossos sábios sejam a ausência de tudo o que nos impulsiona. Queremos que não sejam sequer tocados por todas as coisas que nos atemorizam, que nos confundem, que nos atormentam, que nos atordoam. É a essa ausência, a essa falta, a esse “menos que uma pessoa” que, frequentemente, chamamos “sem ego”.

Entretanto, “sem ego” não significa “menos que uma pessoa”; significa “mais que uma pessoa”. Não pessoa menos, mas pessoa mais – isto é, todas as qualidades normais da pessoa mais algumas transpessoais. Pensemos nos grandes iogues, santos e sábios – de Moisés a Cristo, a Padmasambhava. Não foram desfibrados maneirosos, mas dinâmicos e instigantes – desde o episódio dos vendilhões do Templo até a imposição de novos rumos a nações inteiras. Lidaram com o mundo em seus próprios termos, não em termos de uma piedade melosa; muitos deles provocaram revoluções sociais significativas, que se estenderam por milhares de anos. E assim fizeram, não porque tivessem evitado as dimensões físicas, emocionais e mentais da humanidade, e o ego, que é o veículo de todas elas, mas porque as assumiram com tal garra e intensidade que sacudiram as próprias fundações do mundo. Indiscutivelmente, estavam também intimamente ligados com a alma (o psiquismo mais profundo) e o espírito (o Eu informe) – fonte última de sua força – mas expressaram essa força e tiraram dela resultados concretos, exatamente porque assumiram, decididamente, as dimensões menores através das quais ela poderia expressar-se de modo a ser sentida por todas as pessoas.

Esses grandes mobilizadores e agentes de mudança não foram egos pequenos; foram, na mais completa acepção do termo, grandes egos, justamente porque o ego (veículo funcional do domínio da mente) pode existir e de fato existe com a alma (veículo do sutil) e o Eu (veículo do causal). Na mesma medida em que esses grandes mestres mobilizaram o domínio da mente, eles mobilizaram o próprio ego, porque o ego é o veículo desse reino. Entretanto, não se identificavam meramente com seu ego (isso seria narcisismo); simplesmente perceberam seu ego conectado a uma fonte Kósmica[2] radiante. Os grandes iogues, santos e sábios conseguiram tanto, exatamente porque não foram tímidos bajuladores, mas grandes egos ligados ao seu Eu superior, animados pelo puro Atman (o puro Eu – eu[3]) que é um com Brahman; abriram a boca e o mundo estremeceu, caiu de joelhos e pôde ver face a face o Deus radioso.

Santa Teresa não foi uma grande contemplativa? Sim, e Santa Teresa foi a única mulher que reformou uma tradição monástica inteira (pensemos nisso). Gautama Buda sacudiu a Índia nos seus fundamentos. Rumi, Plotino, Bodhidharma, Lady Tsogyal, Lao Tsé, Platão, o Baal Shem Tov – estes homens e mulheres deram início a revoluções no mundo que duraram centenas, às vezes milhares de anos – coisa que nem Marx, nem Lenin, nem Locke, nem Jefferson, poderiam afirmar ter conseguido. E não agiram assim porque estivessem mortos do pescoço para baixo. Não, eles eram fantasticamente, divinamente grandes egos, ligados profundamente ao psíquico, que estava diretamente ligado a Deus.

Existe certa verdade na noção do transcender o ego: não significa destruir o ego, mas, sim, conectá-lo a alguma coisa maior. Como afirma Nagarjuna[4], no mundo relativo, atman[5] é real; no absoluto nem atman nem anatman[6] são reais. Assim, em nenhum caso annatta[7] corresponde a uma descrição correta da realidade. O pequeno ego não se evapora; permanece como o centro funcional da atividade no domínio convencional. Como eu disse, perder esse ego significa tornar-se um psicótico, não um sábio.

“Transcender o ego”, significa, pois, em verdade, transcender mas incluir o ego num envolvimento mais profundo e mais elevado, primeiro na alma ou psiquismo mais profundo, depois na Testemunha ou Eu superior e, então, após a absorção nos níveis precedentes, envolver-se, incluir-se e abraçar-se na radiância do Um Sabor.[8] E isto não significa, portanto, “livrar-se” do pequeno ego, mas, ao contrário, habitar nele plenamente, vivê-lo com entusiasmo, usá-lo como veículo necessário, através do qual as grandes verdades podem ser transmitidas. Alma e espírito incluem o corpo, as emoções e a mente; não os eliminam.

Grosseiramente, podemos dizer que o ego não é uma obstrução ao Espírito, mas uma radiosa manifestação do Espírito. Todas as Formas não são senão o Vazio, inclusive a forma do próprio ego. Não é necessário livrar-se do ego, mas, simplesmente, vivê-lo com certa intensidade. Quando a identificação transborda do ego no Kosmos em geral, o ego descobre que o Atman individual é, de fato, da mesma espécie de Brahman. O Eu superior não é, em verdade, um pequeno ego, e, assim, no caso de estarmos presos ao nosso pequeno ego, a morte e a transcendência são necessárias. Os narcisistas são, simplesmente, pessoas cujos egos não são ainda suficientemente grandes para abraçar o Kosmos inteiro e, para compensar, tentam tornar-se o próprio centro do Kosmos.

Não queremos que nossos sábios tenham grandes egos; sequer desejamos que exibam qualquer característica evidente. Sempre que um sábio se mostra humano – a respeito de dinheiro, comida, sexo, relacionamentos – sentimo-nos chocados, porque estamos planejando fugir inteiramente da vida, e o sábio que vive a vida nos ofende. Queremos estar fora, queremos ascender, queremos escapar, e o sábio que assume a vida com prazer, vive-a totalmente, pega cada onda da vida e surfa nela até o fim – nos perturba e nos assusta intensamente, profundamente, porque significa que nós, também, deveríamos assumir a vida com prazer, em todos os níveis, e não simplesmente fugir dela numa nuvem etérea, luminosa. Não queremos que nossos sábios tenham corpo, ego, impulsos, vitalidade, sexo, dinheiro, relacionamentos ou vida, porque essas são coisas que habitualmente nos torturam e queremos vê-las longe de nós. Não queremos surfar as ondas da vida, queremos que as ondas desapareçam. Queremos uma espiritualidade feita de fumaça.

O sábio completo, o sábio não-dual está aqui para mostrar-nos o contrário. Geralmente conhecidos como “tântricos”, estes sábios insistem em transcender a vida, vivendo-a. Insistem em procurar libertação no envolvimento, encontrando o nirvana no meio do samsara[9], encontrando a liberação total pela completa imersão. Passam com consciência pelos nove círculos do inferno, certos de que em nenhum outro lugar encontrarão os nove círculos do céu. Nada lhes é estranho porque nada existe que não seja Um Sabor.

Na verdade, o segredo consiste em estar inteiramente à vontade no corpo e com seus desejos, com a mente e suas idéias, com o espírito e sua luz. Assumi-los inteiramente, plenamente, simultaneamente, uma vez que todos são igualmente manifestações do Um e Único Sabor. Vivenciar a paixão e vê-la funcionar; penetrar nas idéias e acompanhar seu brilho; ser absorvido pelo Espírito e despertar para a glória que o tempo esqueceu de nomear. Corpo, mente e espírito, totalmente contidos, igualmente contidos, na consciência eterna que é a essência de todo o espetáculo.

Na quietude da noite, a Deusa sussurra. Na luminosidade do dia, Deus amado brada. A vida pulsa, a mente imagina, as emoções ondulam, os pensamentos vagam. O que são todas estas coisas senão movimentos sem fim do Um Sabor, eternamente jogando com suas próprias manifestações, sussurrando mansamente a quem quiser ouvir: isto não é você mesmo? Quando o trovão ruge, você não ouve o seu Eu? Quando irrompe o raio, você não vê o seu Eu? Quando as nuvens deslizam mansamente no céu, não é o seu próprio Ser ilimitado que está acena. 

Do livro One Taste de Ken Wilber

Tradução de Ari Raynsford



[1] No original egolessness. (N. T.)
[2] Kósmica – de Kosmos. Wilber reapresenta esta palavra em seu livro Sex, Ecology, Spirituality com a seguinte observação: “Os Pitagóricos introduziram a palavra Kosmos que, normalmente, traduzimos como ‘cosmos’. Mas o significado original de Kosmos era a natureza de padrões ou de processos de todos os domínios da existência, da matéria para a matemática para o divino, e não simplesmente o universo físico, que é o significado usual das palavras ‘cosmos’ e ‘universo’ hoje... O Kosmos contém o cosmos (ou fisiosfera), bio (ou biosfera), noo (ou noosfera) e teo (teosfera ou domínio divino)...” (N. T.)
[3] Sri Ramana Maharshi frequentemente refere-se ao Self pelo nome “Eu – eu”, uma vez que o Self é a autêntica Testemunha do eu. (N. T.)
[4] Filósofo budista do Sec. II D.C., criador do Escola Madhyamika. (N. T.)
[5] No Advaita Vedanta, atman é o princípio interior de todos os seres, idêntico a Brahman, o Ser Universal que se desdobra em infinitas individualidades, as quais aparecem e desaparecem no plano dos fenômenos (ou maya), sob o ciclo do samsara (reencarnações), que, por sua vez, é efeito do karma (ação e reação). A identidade Atman/Brahman é expressa nos Upanishads na famosa expressão Tat Tvam Asi - Vós sois Isso. (N. T.)
[6] No Budismo, anatman é a negação de qualquer substrato último ou permanente no Universo. (N. T.)
[7] A polaridade atman/anatman. (N. T.)
[8] No original, One Taste  – o estado de visão não-dual ou consciência da unidade. (N. T.)
[9] O ciclo contínuo de nascimento e morte. (N. T.)

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Sobre o necessário processo de ego-esvaziamento


A verdadeira meditação, ou sintonização cósmica, exige, como prelúdio, um total esvaziamento de todos os conteúdos do nosso ego humano. Esse ego-esvaziamento é chamado "egocídio" pelos grandes iniciados. Paulo de Tarso escreve: "Eu morro todos os dias". O próprio Cristo diz aos seus discípulos: "Se o grão de trigo (ego) não morrer, ficará estéril".

Quando alguém pratica esse esvaziamento da ego-consciência, esse egocídio voluntário, ele, durante esse período, não faz nada, não quer nada; reduz a zero, temporariamente, toda e qualquer atividade do ego, pondo-se em disponibilidade para a invasão da consciência cósmica.

Para o principiante e inexperiente existe o grande perigo de que essa total passividade do ego-consciente o faça cair do transe, em auto-hipnose, estado esse que não resolve nada. Para que não aconteça isto, deve o homem, totalmente ego-esvaziado, permanecer na plenitude do EU consciente, deve ficar 100%, apesar de 0% pensante.

O inexperiente acha que isto — 100% consciente e 0% pensante — seja um círculo quadrado, algo impossível, porque confunde pensamento com consciência. O experiente, porém, sabe que o pensamento é um processo analítico do ego humano, ao passo que a consciência é um estado intuitivo do EU Cósmico. Depois de muitas tentativas infrutíferas, consegue o homem manter-se plenamente consciente, sem pensar nada, sem querer nada.

E nesse estado de total vacuidade do ego-consciente, é ele invadido pelo cosmo-consciente, que resolve os dolorosos problemas da existência humana.

Todos os nossos problemas são produtos do ego humano — ao passo que a solução desses problemas vem da consciência cósmica. A invasão da consciência cósmica não anula a ego-consciência, mas integra-a. O ego humano não é aniquilado pelo Eu Cósmico, mas integrado nele.

Quando uma semente se transforma em planta, ela não morre, mas vive de outro modo, melhor e maior. O que morre é a casca que envolvia e protegia o germe vivo. Para que o germe possa passar da vida potencial da semente para a vida atual da planta, deve a casca morrer ou dissolver-se. A integração da vida da semente na vida da planta supõe a desintegração do invólucro do germe.

É o que se entende por egocídio. A casca da semente, que foi um auxílio, se tornaria um empecilho, se não se desintegrasse.

Assim, o ego humano se torna um impedimento para o Eu Divino, se não se desintegrar, a fim de se integrar.

Neste sentido, disse Jesus: "Quem quiser salvar a sua vida (ego), perde-la-á; mas quem perder a sua vida por amor de mim e do evangelho (EU), este a salvará". O Ego não pode salvar-se pelo ego, mas pode ser salvo pelo EU. A ego-integração no EU.

Quem não morrer voluntariamente, antes de ser morto compulsoriamente, não pode viver gloriosamente.

Neste sentido, escreve Paulo de Tarso: "Eu morro todos os dias, e é por isso que eu vivo; o Cristo é quem vive em mim". Eu já não sou ego-vivente, eu sou Cristo-vivido.

E Jesus diz: "Se o grão de trigo (ego) não morrer, ficará estéril mas, se morrer, produzirá muito fruto (Eu)".

A verdadeira meditação é, pois, um MORRER e um NASCER. É uma desintegração a fim de promover uma integração.

Onde há uma vacuidade, acontece uma plenitude. O ego-esvaziamento é uma disponibilidade para a cosmo-plenificação.

Quando dizemos "cosmos", não nos referimos ao mundo material, mas à alma do Universo, que as religiões chamam Brahman, Tao, Yahveh, Deus. O grande filósofo monista Spinoza, escreveu: "Deus é a alma do Universo e o Universo é o corpo de Deus".

Quando o homem se esvazia de todos os conteúdos do seu ego humano, então ele é plenificado pela Alma do Universo, pela Divindade. A Ego-vacuidade produz Teo-plenitude.

Para o principiante, esse ego-esvaziamento é um tenebroso problema, , porque ele se identifica tradicionalmente com o seu ego humano, e o egocídio lhe parece ser a extinção de sua própria individualidade, do seu verdadeiro ser. Só aos poucos, através de muita experiência, descobre o homem que ele não é o seu ego, mas o seu EU, que se identificou com este. Quando o homem descobre o seu verdadeiro Eu centtral, cerifica ele a sua ilusão, e, daí por diante, considera o seu ego como algo que ele TEM, mas não o que ele É.

E então compreende ele as palavras do Cristo: "Eu e o Pai somos um; o Pai está em mim, e eu estou no Pai".

Huberto Rohden - Rumo à Consciência Cósmica


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"Quando você compreende, quando chega a saber,
então traz toda a beleza do passado de volta
e dá a esse passado o renascimento, renova-o,
de forma que todos os que o conheceram
possam estar de novo sobre a terra
e viajar por aqui, e ajudar as pessoas." (Tilopa)



"Nos momentos tranqüilos da meditação, a vontade de DEUS pode tornar-se evidente para nós. Acalmar a mente, através da meditação, traz uma paz interior que nos põe em contato com DEUS dentro de nós. Uma premissa básica da meditação, é que é difícil, senão impossível, alcançar um contato consciente, à não ser que a mente esteja sossegada. Para que haja um progresso, a comum sucessão ininterrupta de pensamentos tem de parar. Por isso, a nossa prática preliminar será sossegar a mente e deixar os pensamentos que brotam morrerem de morte natural. Deixamos nossos pensamentos para trás, à medida que a meditação do Décimo Primeiro Passo se torna uma realidade para nós. O equilíbrio emocional é um dos primeiros resultados da meditação, e a nossa experiência confirma isso." (11º Passo de NA)


"O Eu Superior pode usar algum evento, alguma pessoa ou algum livro como seu mensageiro. Pode fazer qualquer circunstância nova agir da mesma forma, mas o indivíduo deve ter a capacidade de reconhecer o que está acontecendo e ter a disposição para receber a mensagem". (Paul Brunton)



Observe Krishnamurti, em conversa com David Bohn, apontando para um "processo", um "caminho de transformação", descrevendo suas etapas até o estado de prontificação e a necessária base emocional para a manifestação da Visão Intuitiva, ou como dizemos no paradigma, a Retomada da Perene Consciência Amorosa Integrativa...


Krishnamurti: Estávamos discutindo o que significa para o cérebro não ter movimento. Quando um ser humano ESTEVE SEGUINDO O CAMINHO DA TRANSFORMAÇÃO, e PASSOU por TUDO isso, e esse SENTIDO DE VAZIO, SILÊNCIO E ENERGIA, ele ABANDONOU QUASE TUDO e CHEGOU AO PONTO, à BASE. Como, então, essa VISÃO INTUITIVA afeta a sua vida diária? Qual é o seu relacionamento com a sociedade? Como ele age em relação à guerra, e ao mundo todo — um mundo em que está realmente vivendo e lutando na escuridão? Qual a sua ação? Eu diria, como concordamos no outro dia, que ele é o não-movimento.

David Bohn: Sim, dissemos que a base era movimento SEM DIVISÃO.

K: Sem divisão. Sim, correto. (Capítulo 8 do livro, A ELIMINAÇÃO DO TEMPO PSICOLÓGICO)


A IMPORTÂNCIA DA RENDIÇÃO DIANTE DA MENTE ADQUIRIDA
Até praticar a rendição, a dimensão espiritual de você é algo sobre o que você lê, de que fala, com que fica entusiasmado, tema para escrita de livros, motivo de pensamento, algo em que acredita... ou não, seja qual for o caso. Não faz diferença. Só quando você se render é que a dimensão espiritual se tornará uma realidade viva na sua vida. Quando o fizer, a energia que você emana e que então governa a sua vida é de uma frequência vibratória muito superior à da energia mental que ainda comanda o nosso mundo. Através da rendição, a energia espiritual entra neste mundo. Não gera sofrimento para você, para os outros seres humanos, nem para qualquer forma de vida no planeta. (Eckhart Tolle em , A Prática do Poder do Agora, pág. 118)


O IMPOPULAR DRAMA OUTSIDER — O encontro direto com a Verdade absoluta parece, então, impossível para uma consciência humana comum, não mística. Não podemos conhecer a realidade ou mesmo provar a existência do mais simples objeto, embora isto seja uma limitação que poucas pessoas compreendem realmente e que muitas até negariam. Mas há entre os seres humanos um tipo de personalidade que, esta sim, compreende essa limitação e que não consegue se contentar com as falsas realidades que nutrem o universo das pessoas comuns. Parece que essas pessoas sentem a necessidade de forjar por si mesmas uma imagem de "alguma coisa" ou do "nada" que se encontra no outro lado de suas linhas telegráficas: uma certa "concepção do ser" e uma certa teoria do "conhecimento". Elas são ATORMENTADAS pelo Incognoscível, queimam de desejo de conhecer o princípio primeiro, almejam agarrar aquilo que se esconde atrás do sombrio espetáculo das coisas. Quando alguém possui esse temperamento, é ávido de conhecer a realidade e deve satisfazer essa fome da melhor forma possível, enganando-a, sem contudo jamais poder saciá-la. — Evelyn Underhill