Pode findar o “mecanismo
do eu”?
Acho que muito importa a atitude com que
comparecemos a estas reuniões, porque para mim elas são muito sérias. Não
viestes aqui para encontrar-vos com vossos amigos, o que podeis deixar para
mais tarde, ou para passar uma hora entretida, num mero debate verbal, opondo
uma ideia ou opinião a outra. Tentamos examinar o muito complexo problema do viver, e para isso se requer muita seriedade de propósitos. Em
vista, não tem evidentemente nenhum cabimento o tirarem-se fotografias ou a
solicitação de autógrafos, pois isso é uma das muitas coisas fúteis que fazemos
quando não temos propósitos verdadeiramente sérios; e desejo perdir-vos não
considereis esta nossa reunião como um curioso ajustamento de pessoas muito
seriamente interessadas em descobrir o pleno significado do viver. Tal é pelo
menos o meu ponto de vista, e a coisa que me interessa muito seriamente. Há
tanto caos, tanta miséria e confusão no mundo; e, por menos numerosa que essa
esta assembleia, se pudermos examinar este problema muito atentamente, não só
durante cerca de uma hora, numa tarde de sábado ou manhã de domingo, talvez
então alcançaremos um ponto em que nós mesmos seremos os missionários, e não
simples ouvintes; em que começaremos a falar sobre estas coisas, das
profundezas de nossa própria compreensão e experiência. Assim, a minha
intenção, quando vos falo aqui, não é a de pôr-me em destaque ou de “preencher-me”,
o que evidentemente seria muito infantil, mas, sim, de ver se não podemos,
juntos, despertar aquela inteligência, aquela perspectiva integral da vida, que
habilitará cada um de nós a ser a chama que produz a revolução fundamental e
radical em nosso próprio pensar, e portanto, quiçá, no mundo que nos rodeia. Se
prevalecer aqui
um espírito de serenidade, um senso de dignidade, um respeito mútuo, que exige
atenção igual por parte de todos, talvez possamos examinar profundamente estes
problemas, não nos satisfazendo com descrições, com o mero arranhar da
superfície.
Desejo, se possível, discorrer nesta manhã sobre o
problema da experiência, investigar o que é experimentar e — se não efetuarmos
uma revolução fundamental no centro — que possibilidade existe de
experimentarmos, sem darmos continuidade à experiência do passado. Pois bem.
Que centro é esse? Sem dúvida, é o “eu”, o “ego”, a mente, a mente que é tão
sensível, sobremodo hábil e capaz de compreender uma tão grande variedade de
experiências, de armazenar inúmeras lembranças, que pode inventar, que sabe
planejar um avião capaz de voar a catorze mil pés de altura, a uma velocidade
de seiscentas milhas horárias.
Este centro, máquina complexa, de potencialidades
ilimitadas, está circunscrito pela ideia do “eu”: meu prazer, minha
segurança, minhas vaidades, minhas posses, meu progresso, meu
preenchimento. É um centro de afeição, de ódio, de prazeres efêmeros, de
inveja, avidez e sofrimento. E posso realizar uma revolução nesse centro, de
modo que o “eu” se torne inexistente? Porque o “eu” é a fonte de todo
sofrimento, não é verdade? Ainda que o “eu” tenha satisfações passageiras,
alegrias e afeições superficiais, ele está constantemente multiplicando
problemas e produzindo sofrimento. Por mais alto ou em qualquer nível que eu
coloque o “ego”, ele estará sempre compreendido no campo do pensamento; e o
pensamento, para a maioria de nós, é dor, é sofrimento, é uma batalha constante
entre o que sou realmente e o que deveria ser. E, no entanto, esta máquina,
esta mente, sempre a pensar em si mesma e na sua segurança, é também capaz de
expansão infinita.
Não sei se já pensastes alguma vez na extraordinária
significação, nas notáveis nuanças e sutis profundezas que têm para a mente
palavras como “amor” e “ morte”. E, entretanto, esta mente com todas as suas
sutilezas e sua ligeireza de movimentos está agrilhoada pela ideia do “eu”': o
“eu” que não é amado e deve ser amado, o “eu” que deve amar, o “eu” que
terá de morrer. E é possível que esse “eu”, esse “ego”, deixe de existir
completamente? Tal é, fundamentalmente, o nosso problema, não achais? Todas as
religiões, — não as igrejas organizadas, mas todos os verdadeiros instrutores,
todas as civilizações e culturas sempre lutaram para eliminar o “'eu”, o senso
do esforço separado. Vários governos têm feito esforços extraordinários para destruir
o “eu”, pela tirania da esquerda ou da direita, pela dominação totalitária sobre
o pensamento do “eu”, com o propósito de criar uma civilização de trabalho
cooperativo. Todavia, esse “eu” está constantemente se afirmando, traduzindo toda
experiência, toda reação, todo movimento do pensar em conformidade com seu próprio
centro. O “eu”, o “ego” é fonte de conflito e dor, de luta perene por vir a
ser, realizar, alcançar e, enquanto não percebermos esse fato, a nossa mente,
por mais hábil e sutil e ilustrada que seja, só haverá de criar mais problemas
e produzir mais sofrimentos. Assim, pois, aqueles dentre nós que tiverem
intenções realmente sérias devem evidentemente orientar a sua indagação no
sentido de descobrir se esse “eu” pode chegar a um fim.
Ora, que é esse “eu”? Um processo de reconhecimento,
não é? Um centro de experiência, de temor, de alegria, de passageiro
preenchimento, de memória. Se não existe “eu”, não há experiência com que a
mente possa identificar-se, chamando-a minha experiência.
Não vos estou dizendo nada de novo. Pelo contrário,
apenas descrevo o que realmente se passa em cada um de nós. O que expresso
verbalmente tem de ser, por força, muito limitado; mas se, enquanto escutais,
observais esse processo em vós mesmos, começareis a perceber as complexidades,
as extraordinárias sutilezas do vosso próprio pensar; tornar-vos-eis cônscios
de vosso próprio centro, desse arrogante ou negativo estado da mente, que se
chama “eu” e que está sempre ávido de algum ganho, quer aceitando, quer rejeitando.
O “eu”, pois, é um centro de reconhecimento e
experiência; e visto como cada experiência é traduzida pela mente de acordo com
esse centro, ela está sempre limitando-se a si mesma. Enquanto existir o “eu”,
a mente não poderá passar além, por mais hábil e por mais fantasticamente sutil
que seja. Enquanto toda experiência for traduzida em termos referentes ao “eu”,
em termos de gosto e desgosto, como pode a mente passar além? Uma mente toda
empenhada em buscar o prazer e evitar o sofrimento, que está sempre limitando a
si mesma com os seus esforços, suas exigências e temores — como pode essa mente
experimentar ou compreender aquilo que existe além dela própria? E, entretanto,
se temos inclinações sérias, é essa a coisa que estamos procurando, não é
verdade? Naturalmente, se estamos satisfeitos dentro da rotina dos prazeres e
dores de cada dia, não existe então problema algum; continuaremos o nosso caminho,
substituindo uma dor por outra, um prazer por outro, uma crença ou dogma por
outro. Porém, se desejamos ir mais longe, se queremos investigar, descobrir,
então, por certo, o “eu”, que está perenemente limitando a mente, tem de
acabar-se.
Mas, como pode terminar esse “eu”, esse “ego”, esse
mover-se do pensamento que se concentra e se fecha em torno do “eu”? Esse
centro se alimenta pela experiência, não é verdade? E que é experiência
consciente ou inconsciente? Esta questão é importantíssima; pensemos nela
juntos.
Experiência é continuação da memória, não é? Se me
encontro com uma pessoa completamente estranha, não há reconhecimento. Todavia,
se já conheço a pessoa, funciona imediatamente o processo de reconhecimento:
experimento prazer ou desprazer, lisonja ou insulto. A mente, por conseguinte,
traduz sempre a experiência de acordo com o conhecido. Consequentemente, o
desconhecido, aquilo que se não pode investigar, se torna temível, uma coisa de
fazer medo: o amanhã, a morte, o futuro. Sentindo medo, a mente constrói
teorias, esperanças, ideais, e tudo isso vai dar mais força ao “eu”. Tal é o
processo que conhecemos. Mas, se pudermos descobrir a maneira de não nutrir o
“eu”, em nível algum, nem alto nem baixo, então talvez possamos, negativamente,
pôr fim ao “eu”. Isso não se pode fazer positivamente, apenas de maneira negativa,
pela verificação de como o “eu” se alimenta e subsiste. Sem dúvida, o “eu”, a
mente, só é capaz de pensar em função da experiência passada, em função do
conhecido. Nossas religiões, nossa cultura, nossa visão das coisas, nossos
ideais, estão todos em relação com o conhecido, e a mente, o “eu”, apegando-se
a essas coisas, se fortalece com a posse do conhecido.
Assim, uma vez percebida de todo esse processo, pode
a mente libertar-se do conhecido e pôr-se num estado em que possa existir o
desconhecido? Por certo, a única revolução verdadeira se realiza quando não
existe mais o medo ao desconhecido. E essa revolução só é possível quando a
mente percebe a futilidade do conhecido. Consciente ou inconscientemente,
porém, andamos sempre em busca do conhecido; é o nosso desejo do conhecido que
cria deuses, o céu, o ideal do futuro, o Estado perfeito. “Projetamos” o que
deveria ser e obrigamos o homem a ajustar-se ao conhecido, e essa é
nossa Utopia.
O homem jamais pode aperfeiçoar-se, porque sua perfeição
é sempre
“o conhecido”. É muito importante pensar nisso profundamente, de princípio a
fim. Vivemos lutando para nos tornarmos cada vez mais perfeitos, tanto
tecnológica como psicologicamente. O esforço para a conquista da perfeição
tecnológica é compreensível. Mas o desejo de nos tornarmos mais perfeitos
interiormente, psicologicamente, é sempre um esforço de ajustamento ao
conhecido, a algo já experimentado — o que significa que a mente só pode
aperfeiçoar-se em conformidade com o passado, ou de acordo com a reação
do passado. Assim como a sociedade comunista é uma reação ao Estado
capitalista, ao qual está sempre oposta, assim também o esforço da mente para
aperfeiçoar-se é uma reação ao seu próprio condicionamento; e a reação nunca é
perfeita, sendo, como é, apenas um prolongamento do conhecido.
O “eu” é uma entidade total. Conquanto falemos de
“consciente” e “inconsciente”, só existe de fato um estado: a consciência. Conhecemos
a parte que chamamos “o consciente”; a outra parte, porém, é muito difícil de
conhecer-se; entretanto, a mente é um processo total que inclui tanto a
consciência interior como a consciência periférica, o oculto bem como o
manifesto. Ora, pode uma pessoa tomar conhecimento dessa consciência total que
é o “eu” com seus desejos, suas ânsias, seus temores, seus impulsos, sua luta
constante para aperfeiçoar-se, sua ânsia de preenchimento — pode uma pessoa
tornar-se completamente conhecedora desse processo, sem fortalecer a atividade
do “eu”? E pode todo esse processo do “eu” terminar? Por certo, ele não pode
extinguir-se por um ato de volição, nem por meio de nenhum artifício, nem pela
repetição de frases, de recitações monótonas — que é auto-hipnotização por meio
de palavras — nem pela absorção em alguma fantasia idiota, tal seja a danação,
ou a fantasia de Deus.
Se começardes a examinar esta questão, vereis que
esse exame é realmente muito importante, porquanto a solução dos problemas humanos não se acha em nenhum dos níveis
conscientes. Nossa consciência está atualmente limitada pelo “eu” e toda solução
proveniente do “eu” produzirá apenas
maiores malefícios e mais sofrimentos. Sabendo-se isso, estando-se percebidos
do mecanismo total do “eu”, é possível sua extinção?
Compreendeis como temos tentado pôr fim ao “eu”, ao
“ego”? Temo-lo tentado pela disciplina, por métodos de controle, de defesa, de
resistência; tentamo-lo pela compulsão, pelo ajustamento a dogma e crença.
Temo-lo tentado por meio de várias formas de sacrifício, pela abnegação em
favor do que consideramos mais importante: nossa esposa e filhos, o Estado, o
mundo. Temos tentado o auto-esquecimento, na guerra, nas obras sociais, na
filantropia e por fim na ideia de Deus. Recorremos a todos esses artifícios —
pois são de fato artifícios — e só temos produzido mais miséria, mais
tirania e mais caos neste mundo.
Não precisamos ler muito para compreendermos tudo
isso. Sois o resultado do passado, de toda a luta humana, de todas as
realizações, alegrias e sofrimentos humanos. Toda a história da humanidade está
contida em vós e se sabeis lê-la não precisais mais ler livro nenhum. Para se
descobrir isso, não é necessária nenhuma filosofia ou sistema. Assim, pois, a
pergunta que me faço e que espero façais também a vós mesmo, é a seguinte:
“Pode essa coisa chamada “eu”, que, como um fio, permeia todas as nossas ações,
todos os nossos pensamentos, todos os nossos movimentos afetivos — pode essa
coisa terminar? Fazei, por favor, esta pergunta a vós mesmos, em vez de
procurardes uma solução, pois qualquer solução que encontrardes há de ser uma solução
positiva e, portanto, uma invenção da
mente, que se tomará mais um meio de perpetuar o “eu”. Todavia, se vos
fizerdes a pergunta, estando inteiramente percebidos de todo esse mecanismo,
encontrareis, não uma resposta verbal, mas aquela resposta espontânea que é uma
revolução e que só pode apresentar-se quando fazeis a pergunta sem nenhuma
volição; e esse é o verdadeiro “escutar”. Se vos tornardes indiscriminadamente apercebidos
do “eu”, em todas as suas atividades; apercebido de todo o processo do vosso pensar,
tanto o cognitivo como o oculto; se o perceberdes sem julgamento nem
condenação, produzireis infalivelmente aquela revolução no
centro. A mente se tornará então sutil num grau extraordinário, espantosamente
ativa e vigilante.
Por ora, as nossas mentes estão tolhidas pelos
nossos temores, nossas frustrações, nosso desejo de bom êxito; mas se — sem
julgamento, sem condenação e sem escolha — começarmos a perceber todo esse mecanismo
da consciência, que se desenrola continuamente, quer despertos, quer dormindo,
verificaremos que, apesar dos nossos conflitos, nossas guerras e brutalidades,
uma revolução se opera no centro; e qual uma onda que rola para longe e mais
longe, a ação procedente do centro tem o poder de resolver-nos todas as dificuldades.
Entretanto, se forem atendidos simplesmente do exterior, os nossos problemas nunca
sertão resolvidos. É do centro que surgem todos os problemas humanos; e
se houver um findar, uma cessação completa no centro, isso por si mesmo
produzirá uma revolução total. Mas uma mente que, deliberadamente, procura
produzir uma revolução, desprezando o centro, só haverá de criar mais
sofrimento. Porque então se cria um ideal; e o idealista nunca é
revolucionário: ajusta-se simplesmente a um padrão de sua própria
invenção.
Tende, pois, a bondade de prestar atenção a tudo
isso, de absorvê-lo em silêncio, e vereis que a ação criadora é uma coisa que nasce
quando a mente está tranquila, quando o “eu” está totalmente ausente. A
atividade criadora que conhecemos ocasionalmente, resultante de agitação, não é
a mesma coisa que a ação criadora livre do centro. A ação criadora livre do
centro não é temporal, porque não é invenção da mente; e, sem essa ação
criadora, tem a vida muito pouca significação, ainda que tenhamos toda a prosperidade
e todas as comodidades deste mundo. Depressa nos cansamos do que temos, e
queremos mais comodidades, novas invenções. Mas a criação a que me refiro não é para dar-nos
satisfação, é algo totalmente desconhecido, que não pode ser concebido nem
conjecturado. E virá apenas quando a mente, perfeitamente apercebida do mecanismo
total do “eu”, compreende a significação deste e, por conseguinte, não mais o
nutre de experiência.
Krishnamurti em, Percepção Criadora,
28
de junho de 1953
__________________________________________