A libertação
do “eu” e da própria mente
PERGUNTA:
Muitos dos que passaram pela desastrosa experiência da guerra parecem incapazes
de achar o seu lugar no mundo moderno. Jogados para todos os lados pelas vagas
desta sociedade caótica, flutuam à deriva, de ocupação em ocupação, e sua vida
é lastimável. Sou uma dessas pessoas. Que devo fazer?
KRISHNAMURTI: Quando uma pessoa está em revolta
contra a sociedade, que acontece, geralmente? Sob compulsão ou impelida pela
necessidade, ela se submete a um certo padrão social e fica sustentando uma
batalha incessante dentro de si mesma e com a sociedade. A sociedade fez de vós
o que sois, desencadeou, guerras e semeou a destruição. Esta civilização
baseia-se na inveja, na agitação, suas religiões não produzem nenhum homem
religioso. Pelo contrário, destroem o homem religioso. Que pode então um
indivíduo fazer? Alquebrado pela guerra, ou se torna neurótico, ou para não se
tornar neurótico recorre à ajuda de alguém, procurando adaptar-se ao padrão
social. E continua, assim, a manter-se uma sociedade produtiva de insânia, de
guerras e de corrupção. Ou, ainda — o que realmente é dificílimo — o indivíduo
pode examinar toda a estrutura da sociedade e libertar-se dela. Estar livre da
sociedade significa não ser ambicioso, não ser ganancioso, não ser competidor;
significa “ser nada”, perante essa sociedade que luta para ser algo. Mas esse
estado é muito difícil de aceitar, porque o indivíduo está sujeito a ser
pisado, empurrado para o lado, e nada possuirá. Nesse “estado de nada” há
sanidade, e não no outro. No momento em que perceberdes isso, no momento em que
fordes o mesmo que nada, nesse momento a Vida cuidará de vós. Ela o fará. Algo
acontecerá. Mas isso requer uma profundíssima penetração da estrutura da
sociedade. Enquanto queremos fazer parte dessa sociedade, havemos de gerar a
insânia, as guerras, a destruição e o sofrimento; mas o libertarmo-nos dessa
sociedade, que é a sociedade da violência, da riqueza, da posição, do sucesso —
isso exige paciência, investigação, descobrimento, e não a leitura de livros, a
busca ansiosa de instrutores, psicólogos, etc.
PERGUNTA:
Estou intrigado com esta frase que empregastes na vossa palestra da semana
passada: “uma mente perfeitamente controlada”. Uma mente controlada não supõe a
vontade ou uma entidade controladora?
KRISHNAMURTI: De fato empreguei a expressão “uma
mente controlada”, e pensava ter esclarecido a sua significação. Vejo,
entretanto que não fui compreendido, e por isso explicar-me-ei de novo.
Não é necessário termos, não uma mente controlada,
mas uma mente muito firme, uma mente sem distrações? Segui-me por favor. A
mente não sujeita a distrações é aquela em que não existe nenhum interesse
central. Quando há interesse central, há distrações. Mas a mente que está
completamente atenta, mas não para um determinado objeto, é uma mente firme.
Ora, examinemos rapidamente a questão do controle.
Quando há controle, há uma entidade que controla, que domina, que sublima ou
procura substitutos. No controle, pois, há sempre um mecanismo dual: a entidade
que controla e a coisa que é controlada. Por outras palavras, há conflito. Com
certeza percebeis isso. Há a entidade que controla, que avalia, que julga, o
juiz, o experimentador, o pensador; e, do lado oposto, a coisa que está sendo
examinada, controlada, reprimida, sublimada, etc. Há, assim, sempre uma batalha
entre duas entidades: o que é, e o que diz “devo ser”.
Esta contradição, este conflito, é um desperdício de energia. E é possível
ficarmos só com o fato, sem o “controlador”? É possível eu perceber o fato de
que sou invejoso, sem dizer que é mau ser invejoso, que é um estado
anti-social, anti-espiritual, que deve ser modificado? Pode a entidade que
avalia desaparecer completamente e restar só o objeto? Pode a mente considerar
o fato sem avaliação, quer dizer, sem opinião? Quando há opinião a respeito de
um fato, há confusão, conflito. Espero que estejais compreendendo.
A confusão é um desperdício de energia, e a mente
está necessariamente confusa quando se abeira de um fato com uma conclusão, uma
ideia, opinião, juízo, condenação. Mas quando a mente percebe o fato como
verdadeiro, sem ter opinião a seu respeito, há então apenas a percepção do
fato, e desta percepção resulta uma extraordinária firmeza e sutilidade da
mente, porque então não há mais diversões nem fugas, nem juízos, nem conflito,
de modo que a mente não desperdiça as suas energias. Só há, então, pensar, sem
pensador; mas o experimentar de tal coisa é dificílimo.
Vede o que ocorre. Assistis a um belo pôr de sol. No
momento preciso em que o presenciais, não há experimentador, há? Só há o
sentimento de uma grande beleza. Depois, a mente diz: Que belo que foi! Desejo
mais" — e começa o conflito do experimentador a desejar mais experiência.
Ora, pode a mente achar-se num “estado de experimentar”, sem haver
experimentador? O experimentador é memória, é o coletivo. Estais percebendo?
Posso contemplar o pôr do sol, sem comparar, sem dizer “Que belo espetáculo,
quem me dera gozá-lo mais vezes!” — posso? O mais
é produto do tempo, que encerra o medo de terminar, o medo da morte.
PERGUNTA: Há dualidade entre a mente e o “eu"?
Se há, como libertar a mente do “eu"?
KRISHNAMURTI: Existe dualidade entre o “eu”, a
pessoa, o “ego”, e a mente? Certo, não existe. A mente é o “eu”, o “ego”. O
“ego”, o “eu”, é esse impulso de inveja, brutalidade, violência, essa falta de
amor, essa busca perene de prestígio, posição, poder, essa luta para se ser
alguma coisa; e isso é o que a mente também está fazendo, não é? A mente está
sempre a pensar em como progredir, adquirir mais segurança, uma posição
melhor, mais conforto, mais riqueza, mais poder e tudo isso é o “eu”. A mente,
portanto, é o “eu”; o “eu” não é uma coisa separada, embora gostemos de pensar
que o seja, porque então a mente pode controlar o “eu”, fazer esse jogo de
vaivém, de subjugar o “eu”, procurar alterá-lo — jogo infantil da mente
educada, “educada” no sentido errôneo que se costuma dar à palavra.
Assim, pois, a mente é o “eu”, esta mesma estrutura aquisição.
E o problema é: Como pode a mente libertar-se de si própria? Tende a bondade de
seguir isto. Se a mente faz qualquer movimento para se libertar, ela é ainda
“eu”, não achais?
Vede: Eu e minha mente somos a mesma coisa; não há
divisão entre mim e a minha mente. O “eu” que é invejoso, ambicioso, é a
mesmíssima mente que diz “Não devo. ser invejosa, devo ser nobre” — o que acontece
é só que a mente dividiu a si mesma. Ora, se percebo isso, que devo fazer? Se a
mente é produto do ambiente, da inveja, da avidez, de condicionamento, que lhe
compete fazer? Sem dúvida, todo movimento que ela faça para se libertar,
decorre desse condicionamento, não é exato? Estais compreendendo? Todo
movimento que a mente faz para se libertar de seu condicionamento, é ação do
“eu” que quer ser livre, a fim de ser mais feliz, ter mais paz, sentir-se mais
perto da mão direita de Deus-Pai. Mas eu percebo tudo isso, todos os movimentos
e truques da mente. Por conseguinte, a minha mente está quieta, completamente
tranquila, imóvel; e nesse silêncio, nessa
tranquilidade encontramos a libertação do “eu” e da própria mente.
Por certo, o “eu” só tem existência no movimento da
mente para obter alguma coisa ou evitar alguma coisa. Se não há movimento de
obtenção ou evitação, a mente está então muito tranquila. E só então nos é dada
a possibilidade de ficar livres da totalidade da consciência, como “coletivo” e
como oposto do coletivo.
Krishnamurti,
28 de agosto de 1955
Realização sem
esforço
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